Universidade Federal do Rio de Janeiro
OS PAPÉIS SOCIAIS E A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO EM BLANCA
SOL DE MERCEDES CABELLO DE CARBONERA
Cláudia Regina da Silva Rodrigues
OS PAPÉIS SOCIAIS E A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO EM BLANCA
SOL DE MERCEDES CABELLO DE CARBONERA
Cláudia Regina da Silva Rodrigues
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requesito para obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Área de concentração: Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas Hispânicas).
Orientadora: Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva
Os papéis sociais e a representação do feminino em Blanca Sol de Mercedes Cabello de Carbonera
Cláudia Regina da Silva Rodrigues
Orientadora: Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de mestre em Letras Neolatinas (Área de concentração: Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas Hispânicas).
Examinado por:
______________________________________________________________ Presidente, Profa. Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva (UFRJ)
______________________________________________________________ Profa. Doutora Suely Reis Pinheiro (UFF)
______________________________________________________________ Profa. Doutora Silvia Inês Cárcamo (UFRJ)
______________________________________________________________ Profa. Doutora Rita Diogo (UERJ), Suplente
______________________________________________________________ Profa. Doutora Sônia Reis (UFRJ), Suplente
Os papéis sociais e a representação do feminino em Blanca Sol de Mercedes Cabello de Carbonera
CLÁUDIA REGINA DA SILVA RODRIGUES
Orientadora: Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de mestre em Letras Neolatinas (Área de concentração: Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas hispânicas).
Aprovado por:
______________________________________________________________ Presidente, Profa. Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva (UFRJ)
______________________________________________________________ Profa. Doutora Suely Reis Pinheiro (UFF)
______________________________________________________________ Profa. Doutora Silvia Inês Cárcamo (UFRJ)
______________________________________________________________ Profa. Doutora Rita Diogo (UERJ), Suplente
______________________________________________________________ Profa. Doutora Sônia Reis (UFRJ), Suplente
Ao meu glorioso Deus que me proporcionou meios para alcançar as vitórias almejadas. Ao meu filho, a quem devo muito da minha força. Pelo amor nutrido por ele, fui capaz de superar limites e, ter coragem para avançar cada dia mais.
AGRADECIMENTOS
Ao nosso Senhor Deus pela oportunidade que tem me concedido nas diversas áreas de minha vida, em especial por possibilitar a realização deste curso;
À Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva, pelo apoio acadêmico e pela serenidade que sempre demonstrou durante a trajetória;
À Professora Doutora Helena Gomes Parente Cunha pelas leituras sedutoras que me fizeram perceber um novo horizonte;
À Professora Doutora Angélica Maria Santos Soares (in memorian) por suas aulas altamente elucidativas e motivadoras;
A Kevin Rodrigues Frederico, meu filho querido; por ele toda a motivação se faz presente e também surge quando o cansaço se torna aparente;
Ao Rafael, meu amado companheiro, que com sua paciência e capacidade de resignação soube conduzir-me nos diversos momentos em que precisei de sustentação;
A Maria Dalva do Carmo (in memorian), minha tia querida, por todo afeto e amparo que dedicou a mim e a minha família;
A meus pais, sem os quais essa jornada nem ao menos teria sido iniciada.
Aos meus amigos Maria Rita Vieira Coelho e Luciano Prado da Silva que nunca deixaram de me incentivar e auxiliar sanando as mais diversas dúvidas;
“Não to mandei eu? Sê forte e corajoso; não temas nem te espantes, porque o Senhor, teu Deus, é contigo por onde quer que andares.”
RESUMO
OS PAPÉIS SOCIAIS E A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO EM BLANCA
SOL DE MERCEDES CABELLO DE CARBONERA
Cláudia Regina da Silva Rodrigues
Orientadora: Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Letras Neolatinas (Área de concentração: Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas Hispânicas).
Este trabalho de pesquisa tem como proposta fazer um estudo do romance
Blanca Sol da escritora peruana Mercedes Cabello de Carbonera, literatura de ordem moralizante-corretiva, onde a autora denunciou de forma sistemática um universo social que se articula segundo as condições econômicas. Pretendemos fazer uma breve análise sobre a representação da mulher e alguns possíveis papéis sociais que ela assume, com a intenção de tentar analisar o pensamento da época e a reação da sociedade; buscando identificar as contradições e conflitos resultantes das relações sociais ali existentes. Apresentamos inicialmente uma breve discussão sobre a questão da identidade para melhor elucidar a perspectiva da representação, feita através da protagonista do romance analisado, destacamos os aspectos: maternidade e infância, heroína ou anti-heroína e público e privado.
Palavras-chave: século XIX, escritura feminina, representação social.
RESUMEN
LOS PAPELES SOCIALES Y LA REPRESENTACIÓN DEL FEMENINO EM
BLANCA SOL DE MERCEDES CABELLO DE CARBONERA
Cláudia Regina da Silva Rodrigues
Tutora: Profesora Doctora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva
Resumen de la Memoria presentada al Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como requisito parcial a la obtención del título de Máster en Letras Neolatinas (Área de concentração: Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas Hispânicas).
Este trabajo de investigación tiene como objetivo hacer un estudio de la novela Blanca sol de la escritora peruana Mercedes Cabello de Carbonera. En este trabajo se propone abordar la cuestión de la mujer en la sociedad y sus múltiples aspectos. Para eso se utilizará como referencia la novela Blanca Sol; literatura de caracter moralizante-correctiva, que denunció de forma sistemática un universo social que se estructura de acuerdo a las condiciones económicas. Tenemos la intención de hacer un breve análisis de la representación de mujeres y algunos de los posibles roles sociales, con la intención de intentar tratar el pensamento de la época y la reacción de la sociedad; buscando identificar las contradicciones y los conflictos derivados de las relaciones sociales existentes en el momento. He aquí una breve discursión sobre la cuestión de la identidad. Para aclarar aún más la perspectiva de la representación presentada por la protagonista de la novela analizada destacamos algunos aspectos: maternidad e infancia, heroína o anti-heroína y público y privado.
Palabras clave: siglo XIX, escritura de las mujeres, representación social.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ... 13
2. A MULHER E A LITERATURA ... 20
2.1. Um olhar diferenciado ... 25
2.2. Representação e poder no romance ... 31
3. UMA QUESTÃO DE IDENTIDADE ... 40
3.1. Identidade: pressupostos teórico-metodológicos ... 41
3.1.2. A identidade entre outras percepções ... 45
3.2. Configurações da identidade na sociedade moderna ... 47
3.3. A fragilidade das relações humanas ... 53
3.4. Breve reflexão sobre o papel social das mulheres ... 59
4. A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA NA NARRATIVA FICCIONAL ... 77
4.2. Focos, perspectivas e visões ... 96
4.2.1. A Construção da Narrativa ... 101
5. POSSIBILIDADES DE REPRESENTAÇÃO NO ROMANCE BLANCA SOL ... 104
5.1. A trajetória descrita por Carbonera em sua obra ... 104
5.2. Maternidade e Infância ... 119
5.3. Heroína ou Anti-heroína? ... 128
5.4. Público e Privado – Conflitos e Interesses ... 134
6. CONCLUSÃO ... 140
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 144
1. INTRODUÇÃO
A vida tem duas faces: positiva e negativa. O passado foi duro mas deixou o seu legado. Saber viver é a grande sabedoria. Que eu possa dignificar, minha condição de mulher, aceitar suas limitações. E me fazer pedra de segurança dos valores que vão desmoronando. Nasci em tempos rudes. Aceitei contradições, lutas e pedras como lições de vida e delas me sirvo.
Cora Coralina
Este trabalho de pesquisa pretende fazer uma breve análise do romance
Blanca Sol1 (1889) da escritora peruana Mercedes Cabello de Carbonera. A excelência da narrativa Blanca Sol não reside apenas no conteúdo do romance, situa-se principalmente nas estratégias narrativas que Carbonera utilizou para
despertar no leitor algumas reflexões sobre temas polêmicos dentro da sociedade
como a questão da mulher. A obra foi publicada primeiramente em partes em um
folhetim para depois ganhar o formato de livro.
A decisão de implementar essa pesquisa foi motivada primeiramente pelo
meu crescente interesse pela literatura, como também pela vontade de divulgar e
tornar acessível a questão da mulher na sociedade, levando o leitor a uma possível
reflexão, e incitando o interesse naqueles que procuram entender mais sobre o
assunto. Não tenho a pretensão de esgotar o assunto nem tampouco de transformar
condutas através desta pesquisa. Meu intuito é a divulgação do tema e em especial
do trabalho de Mercedes Cabello de Carbonera.
_____________
Escritoras como Mercedes Cabello de Carbonera, no Peru, Gertrudes Gómez
de Avellaneda, em Cuba, e Juana Manso na Argentina são apenas alguns dos
nomes que abordaram a temática da educação da mulher e deslocaram os olhares,
antes subjugado ao domínio patriarcal, para um panorama que conferisse valor ao
tema.
Mercedes Cabello dá ênfase à educação da mulher e à função que exercia na
família e na sociedade; ela associou o público e o privado, dentro da sociedade
burguesa. Fez uma dura crítica à educação religiosa que recebiam as meninas; na
opinião dela, a educação recebida orientava e encaminhava as mulheres por
caminhos errôneos e contribuía para arruinar tanto o domínio público como o
privado. A escrita de autoria feminina tem se mostrado presente no meio literário e
suscitado a necessidade crescente de estudos literários que consideram a questão
cada vez mais importante, face ao crescente número de escritoras que têm
publicado suas obras. Essas escrituras, na maior parte, almejam a possibilidade de
surgimento de uma identidade diferenciada para a mulher como sujeito social.
Elas almejam uma educação igualitária para mulheres e homens, assim como
também um modelo diferente daquele que somente as prepara para serem mães e
esposas exemplares. Uma educação que fosse além das aulas de bordado, música
e poesia; onde pudessem ter acesso às matérias científicas, tais como: matemática,
história, geografia etc. Defendiam que o campo de atuação feminino deveria
ultrapassar as fronteiras do lar e das atividades domésticas.
Enquanto estruturação social, a literatura de autoria feminina é responsável
aqui por revelar valores, representações sociais e significados sobre as construções
As escritoras comprometidas como o assunto buscavam espaços em que
pudessem compartilhar opiniões e reflexões. Os jornais locais eram um excelente
suporte para a divulgação de seus escritos. As intelectuais vinculadas ao campo
literário se reuniam em veladas y tertulias literarias2 para compartilhar e discutir a questão.
Dentre os diversos nomes que levaram ao leitor o seu pensamento em favor
da educação feminina que valorizasse a mulher e a retirasse da situação de
dependência da família ou do marido se destaca Mercedes Cabello (1842-1909). Ela
assumiu uma postura radical; segundo a historiadora Sara Beatriz Guardia:
es Mercedes Cabello de Carbonera, quién más se ocupó de la educación femenina con un discurso diferente al de las mujeres de su generación. Ella fue una opositora tenaz del rol que la sociedad tradicional le asignaba a la mujer y combatió en todos los escritos la pasividad e inacción a la que estaba condenada. (Guardia, 2002, p. 176)
Sua obra foi muito criticada e, na segunda edição do romance BS
acrescentou um prólogo3 à obra que na verdade era uma nota explicativa. A
motivação do ato foi a necessidade de descartar possíveis comparações, não
deixando possibilidades para que houvesse confusão entre a realidade e a ficção.
Deixa claro que a função principal da obra é criar tipos humanos que reflitam vícios
que o escritor deseja corrigir muito mais que representar personagens da realidade.
______________
Cabe aqui mencionar Ismael Pinto Vargas, em seu livro Sin Perdón y Sin Olvido (2003), que descreve Carbonera como uma mulher cuja ação de “analisar,
refletir, pensar em voz alta, expressar ideias que muitas vezes vão contra a corrente
de uma sociedade profundamente patriarcal e repressiva”4 (Vargas, 2003, p.96, tradução nossa), era incansável. Sua ideologia vai contra o pensamento dominante
masculino e provoca o distanciamento da escritora do meio literário, culminando em
seu esquecimento após a sua morte. Felizmente seu pensamento ficou guardado
em sua escritura, nos permitindo questionar acerca da temática.
A presente pesquisa buscará contribuir com a questão da construção da
identidade da personagem feminina através do universo ficcional da narrativa Blanca Sol de Mercedes Cabello de Carbonera, assim com também algumas possibilidades de representações sociais.
A violência simbólica representada pelo poder conferiu aos homens uma
posição de supremacia e relegou as mulheres à esfera privada, excluindo-as do
ambiente público. Para tanto será observado como a autora, envolvida em um
contexto em que predominava a dominação masculina, dimensionava determinados
aspectos relativos a não sujeição da mulher através da obra citada.
Para tais reflexões serão utilizados como arcabouço teórico - Michele Perrot
com seu conceito de Público e Privado, Pierre Bourdieu em Dominação Masculina e
Poder Simbólico, e, Gérard Genett em Discurso da Narrativa, auxiliando na observação dos aspectos formais, técnicos e estruturais do objeto narrado.
______________
4 No original: “analizar, enjuizar, pensar em voz alta, expresar ideas que muchas veces van a
Tendo em vista que o encadeamento homem - mulher passa pelo viés da
relação de dominação, algumas autoras procuram dar voz ao sujeito feminino
através de seus próprios escritos, buscando mudanças que atenuem cada vez mais
as assimetrias existentes neste universo. Assim foi Mercedes Cabello de Carbonera,
uma mulher com ideias muito à frente de seu tempo, que não se calou diante da
sociedade patriarcal de sua época.
A partir dos pressupostos dos Estudos Culturais em cruzamento com
aspectos teóricos da ficção literária, considera-se que a identidade da mulher é
perpassada por outras identidades, como a de gênero e classe social, tornando-se
recorrente a violência simbólica imposta às mulheres a todo momento; às vezes de
forma suave e quase imperceptível, sem que ao menos suas vítimas percebam que
estão sofrendo.
Como essa violência se configura na sociedade do final do século XIX e quais
são as consequências que trouxeram às mulheres? Quanto a essa questão,
buscaremos elucidar o assunto através do suporte teórico já citado anteriormente; e,
também nos auxiliará na abordagem de questões semelhantes apresentadas na
narrativa Blanca Sol.
Bourdieu, através de sua análise a respeito da universalização da dominação
masculina, faz com que pensemos sobre a lógica de uma história que apresenta um
“estado arcaico”; que, ainda hoje, é difundido em muitos lugares. Faz uma análise a
partir de uma perspectiva externa, não se utiliza de uma “visão masculina” sobre a
questão. A figura feminina, apresentada pela autora em Blanca Sol, tende à categoria da anti-heroína; a personagem principal é uma mulher voluntariosa que
termina caindo no abismo da perversão total. Utiliza-se de “máscaras estéticas” para
Para tanto, viola os conceitos de civilização e civilidade existentes naquele
período; e, Jean Starobinski em seu livro Máscaras da Civilização nos diz que as pessoas são preferidas segundo o emprego “elegante”, “delicado”, que fazem dos
recursos da linguagem (...) e, vemos como a autora buscou demonstrar os vícios da
sociedade através da personagem principal, que mantinha a conduta admirável
diante da sociedade.
A questão do gênero está incluída na dualidade masculino – feminino (ou porque não dizer feminino – masculino), porém é equivocado tratar desse problema utilizando-se de elementos opostos ou binários, pois isto deixa a impressão de se
tratar de “forças” opostas que concorrem dentro de um mesmo sistema, onde
deveriam se limitar a existir. Esse esquema de oposições tende a desvalorizar e
inferiorizar o sujeito feminino, por isso exemplo bastante útil é o esquema: PÚBLICO
X PRIVADO. Como de fato se configura dentro da sociedade? Pode-se dizer que
trouxe prejuízos para o sujeito feminino? Se trouxe, quais foram? A partir da leitura
de Michele Perrot tentaremos elucidar o assunto.
Blanca Sol lança uma crítica à educação recebida pela protagonista, visto que esta é a causa de sua ambição sem limites. Desta forma, a novela propõe reformas
específicas dentro de um Estado nacional constituído, e deixa clara a necessidade
de uma mudança no sujeito feminino propriamente dito.
O espaço privado ressalta que este é o território da mulher; a divisão de
papéis situava a mulher preferencialmente dentro da família, reservando ao homem
o âmbito externo, a representação familiar, a política. O texto de Cabello de
Carbonera pode ser entendido como parte de um entrelaçado das Ciências Sociais
da época, que elaboravam algumas inclinações e criavam tendências, as quais eram
Sendo assim, faremos uma explanação breve sobre algumas possíveis
formas de representação e também sobre os papéis sociais encontradas no
2. A MULHER E A LITERATURA
… é que eu procuro dentro de mim, através de mim, através de mim própria, minha mais profunda essência. E que essa é, antes de mais nada, uma essência de mulher.
Marina Colasanti
A literatura acompanha o progresso das atividades do homem desde os
primórdios da história da escrita. Esses escritos narram histórias de muitos
personagens, comunidades e até grandes territórios, que fazem uso desse tipo de
representação simbólica em busca de reconhecimento e visibilidade.
A correlação que a literatura tem com a história tem suscitado diversas
discussões sobre os acontecimentos inerentes às comunidades sociais. Baseado na
concepção de cada momento histórico é que foi possível impulsionar de diferentes
maneiras uma enunciação em favor de um texto não só ficcional, mas que também
comtemplasse em sua escritura um pouco do momento histórico.
Os estudos que abarcam as ações literárias têm sido direcionados para
diversas áreas, impulsionados por distintas pesquisas. Com isso, tendo como
fundamento o movimento feminista, a escritura de autoria feminina tem buscado
ganhar visibilidade por meio das narrativas que simbolizam a vivência das mulheres.
A literatura de autoria feminina procura adquirir autonomia, tendo como
elemento principal a atuação das mulheres nos mais diversos eventos, divulgando a
trajetória percorrida através da história. Nesse sentido, as escritoras sempre
buscaram legitimar e dar visibilidade à história das mulheres.
Conduzindo olhares e vozes, aliando os contextos do passado com as
gêneros são capazes de gerar uma enunciação ficcional aperfeiçoada, levando a
uma nova visão de mulher.
Esta literatura é capaz de conduzir a uma posição crítica sobre a história e a
um olhar renovado sobre a questão da mulher, sendo esta portadora de voz
autônoma e reconhecida. Com a divulgação cada vez mais ampla dos estudos de
gênero, muitas escritoras começaram a pontuar em seu trabalho a sua visão a
respeito do assunto e também a concatená-la aos relatos de luta. Tudo sem deixar
de ressaltar as peculiaridades identitárias das mulheres e, muitas vezes, também
edificando a própria identidade.
Normalmente as escritoras questionam os procedimentos de ordem patriarcal,
o qual relegou ao anonimato diversas histórias. Buscam percorrer caminhos que
possibilitem a propagação cada vez maior da questão das mulheres dentro da
sociedade. Facilitam, assim, o processo de ruptura do movimento androcêntrico;
fazendo com que as mulheres cada vez mais se apoderem de escritura e história
próprios e, permitindo também que outras considerações sejam formadas como
consequência da apropriação do relato de autoria feminina.
A mulher no curso da história obteve pouca visibilidade frente à sociedade e
teve a sua trajetória marcada pelo silêncio. No século XIX, a sua imagem foi
associada à de um sujeito de pouca (ou nenhuma) desenvoltura intelectual, sendo
mesmo considerada como desprovida de inteligência, restando-lhe a posição de
sensível, sentimental e histérica diante de uma visão patriarcalista.
Com o surgimento do movimento feminista dos anos 60 do século XX, obteve
espaço, o que viabilizou o início de uma sucessão de contestações e reflexões no
que concerne ao sujeito feminino, possibilitando assim o questionamento, com a
homem-mulher. Devido à presença cada vez maior da teoria crítica feminista sobre a
presença feminina da mulher na literatura, surge o questionamento quanto à
existência de uma escrita feminina e, por sua vez, sobre o que é escrita feminina.
Ora, a presença de uma voz de mulher, a princípio, só pode ser feminina. Tais
perguntas soam como um desafio que indagam e também põe em dúvida a
existência dessa escrita; assinalam o anseio de valorizar um modelo de escrita
apoiada em uma representação falocêntrica. Outras vezes, pode ser entendida
como algo preestabelecido pelo biologismo.
É necessário esclarecer que o termo “escrita feminina” tinha o sentido distinto
no século XIX do que tem hoje. Antes a “escrita feminina” poderia ser reconhecida
por um caráter que expressava uma sensibilidade contemplativa e um
sentimentalismo exacerbado; hoje denota outro sentido, passando pela escrita de
denúncia, como também pela autobiografia.
Tratando-se da escrita de autoria feminina é relevante salientar que as
percepções e valores são distintos dos que existem no universo masculino; as
estruturas convencionais são violadas e devem ser considerados aspectos
predominantemente femininos e suas experiências de vida.
Virgínia Woolf, em seu livro Um teto todo seu, escrito em 1926, investiga a presença da mulher na literatura e conclui que é necessário que ela tenha um
espaço isolado para trabalhar e que seja independente financeiramente para que
possa escrever. Neste livro, o narrador cita seu exemplo, já que só foi possível
tornar-se escritora por ter recebido a herança de uma tia, que possibilitou a
Minha tia, Mary Beton, devo dizer-lhes, morreu de uma queda de cavalo, quando estava em Bombaim. A notícia da herança chegou certa noite quase simultaneamente com a da aprovação do decreto que deu o voto às mulheres. A carta de um advogado caiu na caixa do correio e, quando a abri, descobri que ela me havia deixado quinhentas libras anuais até o fim da minha vida. Dos dois — o voto e o dinheiro —, o dinheiro, devo admitir, pareceu-me infinitamente mais importante. Antes disso, eu ganhara a vida mendigando trabalhos esporádicos nos jornais, fazendo reportagens sobre um espetáculo de burros aqui ou um casamento ali; ganhara algumas libras endereçando envelopes, lendo para senhoras idosas, fazendo flores artificiais, ensinando o alfabeto a crianças pequenas num jardim de infância. (…) Nenhuma força no mundo pode arrancar-me minhas quinhentas libras. Comida, casa e roupas são minhas para sempre. Assim, cessam não apenas o esforço e o trabalho árduo, mas também o ódio e a amargura. Não preciso odiar homem algum: ele não pode ferir-me. Não preciso bajular homem algum: ele nada tem a dar-me. Assim, imperceptivelmente, descobri-me adotando uma nova atitude em relação à outra metade da raça humana. (Woolf, 1926, p. 45-46)
Virgínia Woolf também faz uma interessante suposição envolvendo o
reconhecimento da genialidade de William Shakespeare e o fato de ele ser um
homem. Ela cria a história de uma irmã hipotética de Shakespeare e argumenta
como seria se ela tivesse a mesma genialidade do irmão. Será que obteria o mesmo
reconhecimento e fama? Teria espaço para expôr o seu talento e seria apoiada pela
família?
A resposta dada por Woolf é obviamente negativa, e a partir daí a autora
constrói um enredo irrefutável para a vida de uma mulher daquela época. E nos faz
refletir, ao presumir que uma quantidade grande de talentos foram relegados ao
esquecimento pelo simples fato de pertencerem ao gênero feminino.
O conhecimento feminino sempre foi tido como menos importante no
ambiente cultural e na literatura; a mulher era excluída do processo de criação no
século XIX. A escrita de autoria feminina era tida como algo específico de “mulher para mulher”, envolto no pensamento antigo que a denominava como leitora
insignificante. Aceitava-se como natural e verdadeiro tal premissa e transformava o
trabalho delas em algo inferior, sem valor e até marginal. Por isso, este tipo de
Essa superação da necessidade de apresentar-se sob anonimato, do uso de
pseudônimo masculino e do uso de métodos capazes de ocultar seu desejo, permite
a reconstrução da forma de percepção do feminino e também é um modo de
recuperar as experiências silenciadas pela cultura patriarcal dominante; tem um
ideal de liberdade e racionalidade.
Por meio dos personagens na escrita de autoria feminina, são estabelecidas
relações que indagam e também discordam das posições ocupadas na sociedade
por mulheres e homens. Essa escrita salienta a luta da mulher por reconhecimento e
visibilidade, sobretudo pela revisão da identidade feminina na sociedade. A escrita
de autoria feminina latino-americana é diversificada e portadora de diversas nuances
que traduzem o sofrimento e as faces encobertas que compõem as histórias de vida
de muitas mulheres. Essas trajetórias são imersas em memórias e tradições que
revelam o ser feminino e são parte da edificação da história da mulher.
Quase sempre interpretada como um ser humano destinado a gerar filhos e
também a providenciar o bom funcionamento do lar através das tarefas domésticas,
sendo quase sempre expulsa da sala de visita, a mulher foi excluída praticamente da
História e da Literatura. Mas, esse sujeito ignorado tem reivindicado seu espaço a
partir da década de 1970; tem pleiteado um lugar onde, na maioria das vezes, é
analisada por homens, os “guardiães do discurso” (Eagleton, 1988, p.27).
Tendo a teoria a concessão para revelar o imaginário e as possibilidades, a
escrita das mulheres revela o universo feminino de uma forma minuciosa, muitas
vezes vivenciada pela escritura. São textos que descortinam um mundo de mulheres
que desempenham “pequenos-grandes” fazeres domésticos, sujeitos dóceis que se
As personagens literárias fazem parte do imaginário latino-americano e
buscam suas raízes no cotidiano, expressando-se através das ações humanas e dos
conflitos. São fundamentadas através das imagens que os indivíduos têm de si e de
seus semelhantes; vão desconstruindo representações e revelando possibilidades.
2.1. Um olhar diferenciado
Cada mulher em particular é um sujeito em construção, e a feminilidade, um conjunto de representações que tentam produzir uma identidade entre todas as mulheres, mas que, por isso mesmo, não pode dar conta das questões de cada sujeito.
Maria Rita Kehl
Em meio a um cenário patriarcal, surge Mercedes Cabello de Carbonera.
Moquegua foi a cidade de seu nascimento, em 17 de fevereiro de 1842 no Peru. Era
filha de um professor de Matemática, Gregorio Cabello Zapata, e de María Mercedes
Llosa y Mendoza. Oriunda de uma família de pessoas cultas teve a sua disposição
uma vasta biblioteca; recebeu uma educação muito à frente das mulheres de sua
época, aprendeu francês que lhe proporcionou a oportunidade de ler muitos livros de
que um grande número de peruanos até então não tinham conhecimento.
Carbonera ainda criança teve acesso a uma ampla cultura humanística que
superava as expectativas contextuais relacionadas à mulher. Foi uma grande
escritora e colaboradora da imprensa da época. Sua produção literária é composta
de seis obras: Sacrificio y Recompensa (1886), Los Amores de Hortensia (1887),
Eleodora (1887), Blanca Sol (1889), Las Consecuencias (1890) e El Conspirador
Também publicou alguns ensaios: “La novela moderna” ganhou o primeiro prêmio no Concurso Hispano-americano realizado na Academia Literaria de la Plata
em 1891, sendo publicada em 1892; a carta ensaio La Religión de la Humanidad, foi publicada em 1893; e o último livro Conde León de Tolstoy que escreveu antes de desaparecer da vida pública.
Mercedes Cabello de Carbonera é uma destacada representante da literatura
peruana e uma importante escritora de ensaios e romances. Defendeu a igualdade,
a civilização e o progresso; reivindicou a educação da mulher dentro da sociedade
peruana do século XIX, para que pudesse ter uma vida intelectual e conhecimento
suficientes que permitissem confrontar o materialismo e a superficialidade que
abundavam em seu meio. A autora rompe com a clausura do sujeito feminino e
critica as limitações concedidas às ocupações ou destinos que tem a mulher na
sociedade peruana5.
Mas, para isso, teve de enfrentar muitas dificuldades pelo fato de ser mulher e
se dedicar à tarefa intelectual. Certamente que sua postura sempre adiante da
sociedade em que vivia lhe causou um grande número de dificuldades e inimizades.
A capital peruana era, então um dos centros políticos e sociais mais
importantes do território hispano-americano, pois era detentor de um dinâmico
círculo intelectual composto de um grande número de mulheres que tiveram
participação ativa na literatura de autoria feminina. Uma das revoluções silenciosas
mais importantes do século dezenove foi a mudança da situação da mulher no
mundo, em geral e no Peru, em particular.
_______________
Tais mudanças essas que ocorreram no íntimo do lar e também na esfera
econômica e social do espaço público; tais variações foram profundamente
significativas para a sociedade feminina daquela época.
Neste período somente algumas personalidades ousaram utilizar-se de
mecanismos que permitissem que elas ocupassem alguns espaços antes negados.
Podemos mencionar como principais representantes Flora Tristán, Juana Manuela
Gorriti, Teresa González de Fainning, Mercedes Cabello de Carbonera, Antonia
Moreno Leyva, Clorinda Matto de Turner e Maria Jesús de Alvarado, dentre outras,
que deixaram profundas marcas na história.
Tais modificações de comportamento estão diretamente ligadas às
transformações da estrutura social e aos avanços no processo de modernização do
país. Podemos destacar um fator como fundamental para o maior impacto nos
câmbios ocorridos, o processo educativo. A tarefa para elas não foi fácil nem
tampouco gratificante. O castigo por violar os costumes da época as condenou,
muitas vezes, à escuridão, ao isolamento, à marginalização.
Muitas mulheres abriram o caminho, desenvolvendo as próprias estratégias
para expressar sua opinião em uma sociedade cuja estrutura tendia, a ocultar e
restringia a participação delas, principalmente na vida pública. Vale muito destacar a
representante da literatura feminina, ou melhor, um dos maiores nomes da poesia de
língua hispânica, Sóror Juana Inés de la Cruz. Monja do final do século XVII e figura
de grande influência cultural e política, sua vida atravessou importantes períodos da
colônia espanhola e, através de sua obra, extraem-se momentos significativos não
apenas da formação intelectual da mulher, mas também da formação intelectual da
Uma das várias manifestações do processo de emancipação da mulher foi a
proliferação da produção escrita em Lima. A atividade periodística e literária era um
sinal inquestionável da modernidade. As tertúlias literárias promovidas por Juanna
Manuela Gorriti são manifestações das relações entre escrita e individualidade, são
uma mescla do mundo público e privado ao mesmo tempo, um espaço diferenciado
da experiência dos lares.
A palavra escrita, sem dúvida, resultava em ameaça aos poderes tradicionais
e ao patriarcalismo. Através das publicações e da leitura apareciam outros espaços
vitais; tudo diretamente ligado ao desenvolvimento da individualidade e à ampliação
do mundo interno, o que seguia as aspirações femininas no panorama da cultura
pública. A visibilidade da produção de Carbonera questiona aspectos de uma
intimidade preservada ao longo dos séculos da história e propicia a insurgência de
uma existência marcada pelo recato, sutileza e até mesmo segredo; por uma rotina
marcada pela submissão, pela obediência e, em sua minoria assinalada pela
resistência e afirmação. Em seu discurso literário, a construção da representação
feminina foi moldada a partir de juízos de critério moral e valorativo geridos pela
fundamentação patriarcalista.
Aqui a questão da identidade relaciona-se diretamente às especificidades do
mundo moderno exercendo uma influência determinante sobre a identidade cultural.
Através de suas publicações, Carbonera passou a difundir a voz e o olhar das
mulheres, sempre marcadas por lutas. Utilizou-se da pouca visibilidade que
permeava o sujeito feminino através dos tempos como uma maneira de negar o
papel legitimado à mulher daquela época, garantindo assim uma forma de
Seus textos retratavam o ponto de vista da mulher cuja representação reside
na particularidade e na especificidade de seus personagens que também fazem
parte da história da sociedade em que vive. Dessa forma, através de sua escritura
foi capaz de fazer com que o sujeito feminino pudesse se projetar em um
determinado contexto histórico político, econômico e também social. Carbonera
representou o real captado através de sua ficção; operando entre os limites da
criação ou real, um discurso ficcional que permitisse comprovar as relações
existentes entre os papéis sociais.
Em seu universo ficcional, as representações integraram classes essenciais,
buscando através de suas enunciações configurar os constituintes tanto da
dominação como da resistência e as relações de poder; visando a influenciar a
sociedade através do descortinamento das identidades.
Foi uma escritora de ideias liberais, leitora incansável; nas referências
bibliográficas de seus trabalhos ensaísticos são evidentes os reflexos de sua
formação intelectual. Conhece o doutor Urbano de Carbonera, com quem se casa e
por ocasião do matrimônio viaja a Lima. A mudança para a capital serviu para
consolidar o processo educacional iniciado em sua terra natal.
Posteriormente torna-se participante ativa no movimento literário, contribuindo
em revistas. Utiliza-se incialmente do pseudônimo Enriqueta Pradel, para somente
mais tarde começar a usar seu nome. Por seus ensaios em favor da emancipação
da mulher, converteu-se na mais destacada ensaísta peruana.
Também teve participação de grande importância nas veladas literárias
organizadas em Lima, na casa da escritora argentina Juana Manuela Gorriti, onde
mulher, o idealismo como elemento gerador de poesia e a mulher diante da escola
materialista, dentre outros.
Porém, no momento em que começa a ingressar no mundo literário, seu
marido não a acompanha em nada que fazia parte de seu universo (atuações,
atividades e apresentações públicas). Ele vai viver em outra cidade e a deixa
sozinha, com isso Carbonera intensifica seus trabalhos como escritora.
Após a morte do companheiro, em 1855, pôde concentrar seus esforços em
sua produção periodística e literária. Publica romances e aumenta o prestígio que já
havia conquistado em âmbito nacional e internacional.
Suas ideias distintas e voltadas para o progresso não agradavam a muitos
conservadores; fez ataques ao modelo de educação aplicado no colégio de freiras
em um artigo que escreveu intitulado Los exámenes. Em um trecho diz que dessas escolas saem mulheres vazias, vaidosas; mulheres ociosas e egoístas que amam
mais aos salões que seu próprio lar (apud Vargas, 2003, p. 788). Depois da metade
da década de noventa, fica enferma, e com o passar dos anos seu estado de saúde
vai se agravando; é internada em um manicômio por sua família e falece em 12 de
outubro de 1909.
Teve um papel muito importante na América Latina, comunicando e
estabelecendo maneiras de pensar distintas da época, e também serviu de porta-voz
de ideais políticos e sociais. Carbonera não aceitava os convencionalismos de sua
época; como diz Ismael Pinto Vargas, para ela, a mulher é quem deve decidir a
quem entregar-se e a quem amar, mesmo que transgredindo a moral e os
convencionalismos. Mercedes Cabello de Carbonera foi uma apaixonada
a situação mediante uma grande campanha de educação de massas, especialmente
a educação da mulher. Afirmava que:
Siempre he creído que la novela social es [de] tanta ó [sic] mayor importancia que la novela pasional. Estudiar y manifestar las imperfecciones, los defectos y vicios que en sociedad son admitidos, sancionados, y con frecuencia objeto de admiración y de estima, será sin duda mucho más benéfico que estudiar las pasiones y sus consecuencias. (Carbonera, 1894, p. I).6
A loucura que afetou Carbonera no final de sua vida pode-se dizer que é fruto de falta de adequação entre suas aspirações intelectuais e a sociedade em que vivia, somando-se a esse fato a saúde que se encontrava debilitada.
Mercedes Cabello foi uma grande escritora, porém ao final de sua vida foi esquecida. Após sua morte, apenas um jornal publicou uma pequena nota na qual informava o falecimento; nem um outro redigiu nada sobre o assunto, era como fizessem um complô diante do fato.
2.2. Representação e poder no romance
Mercedes Cabello de Carbonera es uno de los personajes más interesantes de la intelligentsia peruana del siglo XIX. No obstante, uno de los menos conocidos. Por no haber sido apadrinada por alguna ideología al uso y la moda, su obra y su fascinante aventura intelectual se han mantenido en un piadoso limbo. También, y dentro de cierta tradicción oral, se le hacía y hace estar incursa en una leyenda negra que habla de un interessado silencio y la preterición de su obra, por oscuras y reaccionarias fuerzas. Hasta ayer, aquélla tenía un cierto sustento. Hoy, creemos que no.
Ismael Pinto Vargas
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6 Sempre acreditei que o romance social é muito ou maior importância do romance pasional. Estudar e mostrar as imperfeições, os defeitos e vícios que em uma sociedade são admitidos, sancionada, e muitas vezes são objeto de admiração e estima, certamente será muito mais benéfico para estudar as paixões e as suas consequências. (Carbonera, 1894, p. I) (tradução nossa)
significados e efeitos suficientes, que trouxeram ao leitor a possibilidade de compreensão de contextos socioculturais diversos. Segundo Vargas:
La vida y la obra de Mercedes Cabello de Carbonera están signadas por una transparente pureza moral. Ella encarna en un tiempo en que el escribir era un ameno pasatiempo o un simpático despliegue de erudición, la actitud y la aptitud literaria como un medio de acción. Fue un personaje atrayentemente contradicitorio que jamás dudó en ir contra la corriente, sin que le importara mucho enajenarse el malhumor ni la impopularidad, ya de los de su própio gremio, ya del común de la gente, o de las poderosas instituciones con las cuales en algún momento se enfrentó. Por lo que, sin proponérselo, concitó ardientes adhesiones y abjuraciones terribles, especialmente en los últimos tramos de su vida literaria activa. (Vargas, 2003, p. 15) 7
No Peru, na segunda metade do século XIX, as mulheres começaram a
almejar uma posição que a retirasse do ambiente familiar levando-a rumo aos
fechados círculos sociais da esfera pública. Através do estudo e da interação cultural
elas foram se conscientizando da necessidade de participação no âmbito social.
Mercedes Cabelo de Carbonera teve uma importante contribuição no
processo de conquistas dessas mulheres. Em seus escritos o tema que mais
aparecia era a situação da mulher. Ela não concordava com a imposição do
matrimônio às mulheres e a consequente confinação ao ambiente familiar.
Es una muralla levantada para condenarla a eterna minoria y a eterna esclavitud… ¡El positivismo le veda a la mujer todas las carreras profesionales y todos los medios de trabajar para ganar por sí misma la subsistencia! Y es aquí donde esa doctrina ha incurrido en gravísimo error, resultándole que, no obstante sus generosas miras, ella no mejorará sino mas bien, afianzará la desgraciada condición en que hoy se halla la mujer en nuestras sociedades. (Carbonera, 1893, p. 45-46) 8
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7 A vida e obra de Mercedes Cabello de Carbonera são marcados por uma pureza moral clara. Ela viveu em uma época em que a escrita era um passatempo divertido ou uma boa exibição de erudição, a atitude e a aptidão literária como um meio de ação. Era um personagem atraente e contraditório que nunca hesitou em ir contra a corrente, não se importando em alienar-se e tornar-se impopular, o que ocorria entre os próprios que frequentavam o grêmio, as pessoas comuns, ou instituições poderosas as quais enfrentou. Assim, sem querer, atraiu adesões ardentes e terrível retratação, especialmente nos últimos annos de sua vida literária ativa. (Carbonera, 1893, p. 45-46) (tradução nossa)
Mercedes Cabelo de Carbonera dá vida às suas personagens porque são
parte de sua própria vida. Usa a literatura como instrumento de denúncia da
sociedade peruana do final do século XIX, também da condição da mulher
hispano-americana, de sua subordinação (consentida ou não). Tudo isso a partir de seus
escritos e também através da representação de seus personagens nos romances de
sua autoria.
Em Blanca Sol9, Carbonera faz surgir, a protagonista, que leva o mesmo nome da obra, e Josefina, a costureira. Elas interpretam dois padrões distintos de
sujeito feminino. Enquanto Blanca Sol desempenha o papel da mulher à frente de
seu tempo que ao final torna-se cortesã; Josefina é uma moça que vive sobre o
domínio do sistema patriarcal e mesmo passando por privações financeiras mantém
uma conduta recatada.
En el momento en que Alcides, observaba con mayor afán, vio que algunas mujeres, se dirigían a un punto como si trataran de socorrer a una persona, dirigiose allá, con natural curiosidad, y divisó que sostenida por pobre mujer del pueblo, estaba una joven, que había caído al suelo, privada de sentido. En ese momento otra mujer descubría el rostro de la joven, agitando al aire con su pañuelo y diciendo: -Es el calor de la concurrencia, lo que debe haberla producido este desmayo.
Al mismo tiempo Alcides, profundamente impresionado exclama: -¡Es ella, es ella! ¡Josefina! Y pasando por entre la multitud, pudo llegar hasta colocarse delante de la joven.
Y diciendo y haciendo, Alcides levantó a la joven en sus robustos brazos, como lo haría con una criatura, dirigiéndose luego al primer coche que se presentó por allí. (…)
Después que Alcides subió al coche, llevando en brazos su preciosa carga, encontrose perplejo, sin saber que determinación tomar. (BS, 1889, p.107-108) 10
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Assim que conseguiu encontrá-la pensou:
-He aquí un trance difícil e inesperado, decía, mirando a la joven, que pálida, inerte, con la cabeza reclinada, y la frente cubierta con algunas guedejas de pelo, estaba allí asemejándose más, a una muerta, que a un ser lleno de vida y juventud como era ella.
Llevarse a la propia casa, a una mujer desmayada, es indigno de un caballero: entregarla a manos extrañas y decir que había sido recogida como una desconocida; hubiera sido lo más expedito, pero Alcides no quería ni pensaba abandonar a la que en ese momento, era para él, tesoro de inapreciable valor. (…)
Josefina, la casta doncella que podía brindarle todo el sentimentalismo y la ternura de su virgen y amante corazón, estaba allí, en su poder, suya era y nadie podría arrebatársela. (…)
¡Que hacer!… Nohubo remedio… Un momento después, Josefina, siempre desmayada, estaba recostada en uno de los ricos divanes del salón de recibo de la casa de Alcides. (…) (BS, 1889, p.107-108) 11
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10 No momento em que Alcides, observa com o máximo cuidado, vi que algumas mulheres foram em direção a um ponto como se estivesse tentando ajudar uma pessoa, e saiu correndo, com a curiosidade natural, e viu que sustentada pela pobre mulher do povo, estava uma jovem, que havia caído no chão, sem sentidos.
Enquanto isso Alcides, profundamente impressionado exclamava: ̶ "É ela, é ela! Josefina! E passando por entre a multidão, pode ficar na frente dela.
Assim dizendo, Alcides levantou a jovem com seus braços fortes, como faria com uma criatura, dirigindo-se ao primeiro carro que passou por ali. (...)
Após Alcides entrar no carro, carregando sua preciosa carga em seus braços, encontrou-se perplexo, sem saber o que fazer. . (BS, 1889, p.107-108) (tradução nossa)
11 Situação difícil e inesperada, disse, olhando para a jovem, que estava pálida e imóvel, com cabeça reclinada, e a testa coberta com algumas mechas de cabelo, mais parecendo que estava morta, do que um ser cheio da vida e da juventude como ela era.
Levá-la para sua própria casa, uma mulher inconsciente é indigno de um cavalheiro: entregá-la nas mãos de estranhos e dizer que foi recolhido como uma estranha; teria sido a melhor, mas Alcides não queria nem pensar em abandonar o que para ele era um tesouro de valor inestimável. (...)
Josefina, a donzela casta que poderia lhe dar todo o sentimento e a ternura de uma virgem, e amoroso coração, estava ali em seu poder, era sua e ninguém pode retirá-la. (...)
Josefina que era moça muito recatada ficou confusa:
¡El corazón latía! Llamola sacudiéndole el cuerpo.-¡Josefina! ¡señorita Josefina!… Al fin ella exhaló largo y angustioso suspiro, y recobrando el conocimiento miró asombrada la elegante y lujosa alcoba de Alcides, luego fijando en él sus ojos, abiertos desmesuradamente en señal del asombro que la poseía, exclamó: ¡Dios mío! ¿Qué ha sido de mí? ¿Donde estoy?… Alcides, con el más sincero y afectuoso tono que le fue dable emplear, díjola: Está usted en mi casa en la casa de un caballero, que sabrá respetar como merece a la señorita Josefina. Ella intentó con un brusco movimiento, ponerse de pie, pero su cuerpo no obedeció a su voluntad, y volvió a mirar a Alcides, cual si dudara de sus palabras.
-Lo que necesitamos ahora es, que usted recobre sus fuerzas para llevarla luego a su casa. ¿No le parece bien?
-Sí ahora mismo-y Josefina haciendo un nuevo esfuerzo, se incorporó y púsose de pie en actitud de partir.
-Espero señorita Josefina, que me concederá usted un sincero perdón por mi osadía al traerla a mi casa; pero es el caso que yo no conocía la dirección de la casa de usted y…
Ella nunca se había encontrado sola con un hombre, y menos en sus propias habitaciones como estaba ahora. (BS, 1889, p.107-108) 12
Com a publicação de BS em 1889 que fazia uma crítica direta à sociedade
limenha e aos diversos costumes populares. Surge um escândalo nos círculos
sociais em torno da publicação, o que termina por abalar sensivelmente a reputação
de Carbonera. Muitas personalidades amigas dela consideraram um erro a
publicação; em 1893, sua posição social era muito delicada.
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12 O coração batia! Ele a chamou sacudindo-lhe o corpo. ̶ Josefina, senhorita, Josefina! Por fim ela suspirou de forma forte e angustiada, e recobrando o sentido olhou assombrada o elegante e luxuoso quarto de Alcides, logo fixou o olhar nele demonstrando sinal de assombro, exclamou: Meu Deus! O que aconteceu comigo? Onde estou?...
Alcides com o mais sincero e afetuoso tom lhe disse: ̶ Você está na casa de um cavalheiro, que saberá respeitá-la como merece. Ela tentou levantar-se com movimento brusco, pôr-se de pé, porém seu corpo não a obedeceu, e voltou a olhar para Alcides como se duvidasse de suas palavras.
̶
O que necessitas agora é que recobre as forças para que eu possa leva-la para sua casa. Não te parece bom?
̶
Sim, agora mesmo, e Josefina fazendo novo esforço se pôs de pé como se fosse partir.
̶
Espero que a senhorita me perdoe a ousadia de trazer-lhe a minha casa; mas como eu não conhecia o endereço de sua casa...
No transcorrer da história, a mulher nutriu a submissão e o silêncio e aceitou
o comando do homem e o sistema social vigente. Para que tais condutas fossem
fundamentadas, havia diversas influências atuantes na relação social entre mulheres
e homens alicerçadas, em bases de perspectivas comportamentais, culturais e
ideológicas dentre tantas outras.
No final do século XIX, a mulher ainda se mantinha subordinada à sujeição do
sistema patriarcal dominante, circunstância vigente desde os primórdios da
colonização. O contexto educacional foi decisivo, junto à Igreja para a manutenção
do sistema cuja visão ideológica promovia a manutenção do patriarcalismo. A
estrutura patriarcal impõe assimetrias a todas as atividades humanas.
E, nesse contexto, uma forte corrente ideológica foi representada pelo
positivismo na figura de Auguste Comte, que, sintonizado com o pensamento
vigente, enfatiza normas de comportamento para a mulher oitocentista, preceito que
logo se divulga para outros países. Partindo da premissa de que seu destino
consistia em disciplinar as forças humanas, baseado na relação contínua entre o
sentimento e a razão como reguladora das atividades, a questão da mulher também
foi abordada na teoria positivista.
Comte considerava essenciais as diferenças entre homens e mulheres, mas
vacilou quanto à valorização dessas diferenças, o que implicava inferiorização para
a mulher. Articula a conduta desejável a uma mulher e, ao mesmo tempo valoriza a
função exercida pela mulher “virtuosa”, deixando registrado perspectivas essenciais
em sua conduta:
O culto positivo erige o sexo afetivo como providência moral de nossa espécie. Cada digna mulher ministra habitualmente a esse culto a melhor representação do verdadeiro Grande Ser.
caracteres que as distinguem. Aquelas mesmo que a princípio deplorarem a perda de esperanças quiméricas não tardarão em sentir a superioridade moral de nossa imortalidade subjetiva, cuja natureza é profundamente altruísta, sobre a antiga imortalidade objetiva, que não podia deixar de ser radicalmente egoísta. (Auguste Comte, 1983, p.130)
Percebe-se a partir da citação que Comte tem uma posição definida no que
se refere à conduta feminina frente à sociedade da época. Dentro da concepção
positivista, não há espaço para uma mulher emancipada; admitindo-se somente a
ela a submissão ao homem e a dedicação total à família. De acordo com os
preceitos positivistas, a mulher devia dedicação integral ao marido e aos filhos;
une-se a isso o fato de a maior parte delas possuir pouca instrução, elas tinham a função
restrita ao ambiente doméstico, sendo mantidas, dessa forma, excluídas da
sociedade.
Mesmo convencida das vantagens que o Positivismo oferecia, Carbonera não
deixava de atacar o fato de as mulheres serem obrigadas a aceitar uma posição
passiva, o que considerava uma injustiça:
¿Queréis que la mujer sea verdaderamente virtuosa, con esa sólida virtud positiva y util a si misma, y a la sociedad? Pues abridle francos todos los caminos; más aún, impulsadla por la senda del trabajo, ya sea profesional, industrial o de cualquier outro género, adecuado a sus facultades.
Cerrad para siempre esa puerta maldita del matrimonio obligado, ella es la entrada a todos los adúlterios, y el gérmen de los infortunios de la família. Salvad a la mujer de esa esclavitud pasiva, que mata las fuerzas vivas de su inteligencia y todas las energías de su voluntad. (Carbonera, 1893, p. 47)13
______________
13 Queres que a mulher seja verdadeiramente virtuosa, com aquela forte virtude positiva e útil para si e para a sociedade? Então lhe abra de verdade todos os caminhos; e a impulsione ao trabalho, quer seja profissional, na indústria ou de outro gênero, algo adequado as suas habilidades.
Feche para sempre essa porta maldita do casamento forçado, ela entrada dos adultérios e o germe das desgraças da família.
Essas palavras não foram bem recebidas pela sociedade na época;
sociedade esta predominantemente machista, que reservava o trabalho remunerado
aos homens, e estes não aceitavam as duras críticas que Carbonera fazia.
Mercedes Cabello de Carbonera dedicou a sua vida ao cultivo das letras e
perseguiu com intrepidez a luta por denunciar a forma preconceituosa a qual as
mulheres eram submetidas na sociedade limenha; ela foi defensora da educação e
da emancipação da mulher. Mas a sua coragem e determinação, expressas através
de seus escritos, não foram compreendidas pela comunidade detentora dos
preceitos patriarcais. Sendo assim, tornou-se impossível a sua caminhada; o vigor
de sua postura, traduzido por suas opiniões, fez com que não surgisse interesse por
parte dos interlocutores. Sua escrita pretendia ocasionar mudança nos contextos
social, político e cultural.
A autora assumiu uma liberdade com todos os riscos que se oferecem a uma
mulher no século XIX. Foi chamada de insana por várias vezes nas páginas dos
principais diários; até que foi sugerido que deveria ser internada em um manicômio
após ter feito um discurso no Liceu Fanning, onde defendeu a educação laica e
causou um escândalo ao destacar a necessidade de as mulheres conhecerem o seu
próprio corpo.
Foi internada em 27 de janeiro de 1900, e ali onde permaneceu por nove anos
até falecer em 12 de outubro de 1909. Patricio Ricketts Rey de Castro, investigador
do trabalho da escritora, escreve sobre o final lastimável da vida da autora:
Em seguida apresenta o comentário que transcrevemos abaixo:
Uma notável escritora peruana, sentado pacificamente em uma grande poltrona, nos olhou com o mais profundo desprezo. Talvez tenha nos reconhecido e teve pena, talvez seu orgulho tenha iluminado o cérebro por um segundo e nos julgou pequenos, ao ver-se de novo no Ateneo e no Livro, na Revista e no Jornal e; mas, oh amargas ironias do destino! : Estava ali uma pensadora que já não pensa uma tocha que não dá luz e que espera o último suspiro da para qu e seja extinto o seu último raio... (apud Ricketts, 2008, p.44) 15
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14 Cuatro meses antes del fallecimiento de Mercedes, la revista Ilustración Peruana [1909, pp. 270-273] publicó un extenso artículo en mayo acerca del hospicio donde la escritora sobrevivía en silencio, con el alma vacía, a la espera de la muerte.
Cinco fotografías, reproducidas con gran nitidez, ilustran el texto, en el que el periodista visitante, Carlos Sánchez Gutiérrez, nos dejó un conmovido apunte de Cabello, a quien podemos distinguir, a distancia pero con claridad, en la fotografia del corredor del pabellón de las mujeres. Allí, sentada en un sillón de banqueta e inclinada hacia delante, tal como la describe el periodista, descubrimos a la autora de El Conspirador. (Ricketts, 2008, p. 44)
3. UMA QUESTÃO DE IDENTIDADE
Nos últimos anos, o conceito de identidade foi tema de inúmeras pesquisas
em diversas áreas. Trata-se de um termo de definição extremamente complexa por
envolver diversas vertentes que o tentam explicar.
É bastante comum buscar relacionar a formação e a transformação das
identidades com uma sociedade mais ampla que reflete toda uma estrutura social.
A identidade de um indivíduo não se esgota em si mesma. Está em
permanente processo de mudança e varia de acordo com os estímulos recebidos
através da interação. E, é a partir dessa relação que cada um procura respostas
para entender determinadas condutas e também para definir sua própria conduta.
É um processo de sucessão temporal e de pequenas mudanças. Para
entender o conceito referente a um determinado grupo é preciso recorrer à História,
é necessário compreender a cultura do indivíduo; o que não é um processo simples.
Vejamos como Raymond Williams conceitua a palavra cultura:
[…] é uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua inglesa. Isso ocorre em parte por causa de seu intrincado desenvolvimento histórico em diversas línguas europeias, mas principalmente porque passou a ser usada para referir-se a conceitos importantes e em diversas disciplinas intelectuais distintas e em diversos sistemas de pensamento distintos e incompatíveis. (Williams, 2011, p.117)
A identidade é um ponto de referência através do qual surge o conceito de si
e a imagem de si; e, identidade social se configura através do resultado das
dinâmicas das relações sociais do homem inserido na sociedade, ou seja, se
configura através de diversas combinações.
Os papéis sociais são impostos aos indivíduos a todo momento e estes
favorecem a composição das identidades através dos processos de construção e
As transformações ocorridas com o advento da modernidade promovem
questionamentos e rupturas referentes às práticas de dominação vigentes. As
relações existentes entre gênero e história não ficaram isentas dessas variações que
atuaram diretamente na representação da identidade feminina enquanto prática
subversiva ao discurso dominante patriarcal.
Mas a identidade não depende somente do desejo ou do interesse da pessoa
em afirmar quem é, pois muitos indivíduos não possuem representação nem força
simbólica para afirmar ou negar sua posição. É preciso mais, a representação é feita
através de sua autoimagem e do reconhecimento, ou seja, de sua identidade.
A identidade é o que permite ao sujeito o reconhecimento de sua existência; o
que se dá a partir da percepção de si mesmo (e do outro), de seu saber, de seu
conhecimento de mundo, seus julgamentos e crenças. É o direito de reconhecimento
a uma voz; é o cessar de um silenciamento a fim de legitimar-se, estar autorizado a
agir. Isso se dá através da força do reconhecimento por parte do outro que é o
integrante de determinada comunidade.
3.1. Identidade: pressupostos teórico-metodológicos
Os processos identitários são discutidos a partir de enfoques conceituais e
contextuais tendo a identidade como categoria de análise, considerada como sendo
uma construção social constituída por inúmeras nuances. Dessa forma, cada
indivíduo é representado socialmente por suas características peculiares. O termo
em questão também é muitas vezes utilizado como sendo sinônimo do vocábulo
personalidade; nesse sentido considera-se que a forma como o sujeito se expressa,
E é atuando através de sua história social que será determinada a sua
personalidade ou identidade. O termo identidade não é de fácil precisão conceitual;
sua definição não se restringe somente à vida cotidiana, avança e entra no campo
da bagagem cultural de cada um. As experiências vividas que variam de contexto a
todo o tempo – os estímulos recebidos são diversos.
A identidade é promovida pela socialização e garantida pela individualização.
Temos aqui uma bifurcação em que “a identidade passa a ser qualificada como
identidade pessoal (atributos específicos do indivíduo) e/ou identidade social
(atributos que assinalam a pertença a grupos ou categorias)” (Jacques, 1998, p.
161). Diante da multiplicidade de aptidões e qualificações imputadas à identidade,
salienta-se a expressão da identidade social, visto que os seus constituintes, além
de irem em direção ao social, vão também em direção ao individual.
O termo identidade pode ser utilizado para designar, de certa forma, uma
especificidade construída através da interação com outros indivíduos; sendo assim,
não é inata e pode ser compreendida como uma manifestação sócio-histórica de
individualidade. A contextualização social será responsável por oferecer as diversas
formas de identidade, que é integrada por múltiplos papéis. A identidade é um
espaço amplo onde se manifestam os diversos personagens que existem em cada
indivíduo, porém, estes não se limitam a tais manifestações, são capazes de
diversas outras possibilidades constantemente.
Quando se discute tal concepção, é necessário levar em consideração que
existem entendimentos distintos quanto ao surgimento e à formação da identidade
em cada ser. São duas perspectivas: a essencialista e a não-essencialista. A
primeira baseia-se na concepção biológica; acreditando que as características de
pessoa, são concepções pré-definidas, herdadas; nesta teoria o indivíduo é o
elemento central e é constituído de forma única. É como se existisse um conjunto
cristalino, autêntico, de características que não se alteram ao longo do tempo, como sugere Woodward (2000, p. 12).
Para os essencialistas, a identidade é algo imutável e que permanece, ou
seja, dentro dos grupos as características são partilhadas, não havendo espaço para
mudanças. A concepção essencialista vem sendo reprovada, segundo Stuart Hall
(2006) pelo simples motivo de que não leva em conta a multiplicidade que nos
constitui. Os essencialistas baseiam-se em uma concepção clássica, onde as
identidades têm sua formação preconcebida, como se o indivíduo já fosse dotado
desde o nascimento das particularidades que o constituem.
Segundo Semprini, “Sua existência, sua homogeneidade interna, sua
especificidade cultural seriam de fato, aceitas como tal e pouco suscetíveis à
evolução. Assim, os negros, os índios ou as demais minorias, são consideradas
como peças imóveis do mosaico social” (Semprini, 1999, p. 90-91). Essa concepção
é muitas vezes utilizada para justificar os chamados “desvios” dos homossexuais e a
“inferioridade” das mulheres, ou seja, contribui para reforçar processos
discriminatórios, às vezes, podendo até parecer, de acordo com a concepção
essencialista, que determinadas condutas são irrefutáveis.
Os estudiosos do assunto utilizam-se de diferentes mecanismos que buscam
justificar a objetividade identitária; podemos usar como exemplo a carga histórica do
indivíduo ou a etnia. Creem na cultura como algo que pode ser transformado e
reproduzido pela vida como um elemento estável que sofre poucas oscilações.
É interessante ressaltar que o grupo dos essencialistas legitima sua posição