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RAIMUNDO LÚLIO E O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO

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Academic year: 2021

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RAIMUNDO LÚLIO E O DIÁLOGO

INTER-RELIGIOSO

Acompanhando e superando a linha marcada por Fernando o católico, Felipe II foi o monarca hispânico que leu Lúlio com maior interesse, recopilou e publicou suas obras e promoveu a sua filosofia. Os avatares da historia fizeram com que os projetos evangelizadores do viajante maiorquino que não puderam ser levados a cabo na África muçulmana, encontrassem um imenso campo de experimentação no Novo Continente. Ali já era válido o argumento de que os mistérios da religião deveriam ser explicados partindo do conhecimento natural...

Lúlio (1232-1316) é o filósofo hispânico mais conhecido: na internet há mais informação sobre ele que, por exemplo, sobre Lucius Sêneca. Nascido em Maiorca três anos depois da conquista dessa ilha por Jaime I, “rei de Aragão e Maiorca, conde de Barcelona e senhor de Montpellier”. Dedicam-se a estudar o pensamento de Raimundo Lúlio um Instituto da Universidade de Friburgo de Brisgóvia (Alemanha), uma Universidade que leva seu nome, em Barcelona, a Maioricensis Scholla Lullistica, em Palma de Maiorca e o Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull) no Brasil. Em minha opinião, sem dúvida faltam ainda hoje em dia sínteses que tornem a sua mensagem acessível a um público mais amplo. Os especialistas que se interessam pela obra de Lúlio, supondo que a compreendam corretamente, raras vezes encontram tempo ou habilidade para sintetizá-la de forma acessível ao grande público. Muitos o vêem como um Quixote medieval – expressão usada por Cláudio Sánchez-Albornoz –, como o louco pelo que grande parte de seus contemporâneos o tomavam, ao dar-lhe o apelido de doutor iluminado que ele mesmo, com bom humor, chegou a adotar.

Lúlio foi um personagem entre dois mundos. Nasceu em um mundo chamado cristão, mas se auto-denominava christianus arabicus, dizendo-se ser o procurador dos não-cristãos:

procurador dos infiéis. Para Lúlio, não existiam dois mundos, mas um só, porque todos os

homens pertenciam a um mesmo gênero e estavam chamados a formar uma só comunidade. A prova de unidade do gênero humano é – para Lúlio – aquela característica que todos percebem como peculiar à espécie humana: a sua racionalidade. A razão é para cada homem o instrumento natural de conhecimento que lhe permite descobrir a partir das criaturas a existência de um único Deus, fundamento da unidade do gênero humano.

Em suas primeiras obras, Lúlio critica sobre tudo a Cristandade, que vive de costas para os muçulmanos. Esta impolidez é conseqüência de um problema mais profundo: a sociedade não é cristã, não vive de acordo com a verdade de sua religião e, por conseguinte, a maioria não se preocupa o mínimo em difundir essa verdade sobre Deus, que não é só cognoscível pelo entendimento, mas, enquanto bem infinito, é também objeto próprio da vontade: a felicidade humana consiste em conhecer e amar a Deus.

Com respeito aos muçulmanos, Lúlio está persuadido de que ignoram a verdade, sobre tudo porque não se lhes explicou adequadamente. No sistema de raciocínio lógico que ele chama “Arte”, encontra-se – segundo Lúlio, por dom divino – o instrumento adequado para eliminar as barreiras que impedem os muçulmanos de conhecer a verdade: esta não se pode

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impor desde fora, com argumentos que ele chama “de autoridade”, e tem de ser descoberta pelo próprio interessado. A fim de evitar toda suspicácia sobre uma possível manipulação, o método da Arte deve ser estritamente lógico. A Arte pretende ser um instrumento que facilite o acesso à verdade: por isso seu caráter tem que ser pedagógico, e parte dos supostos cognitivos comuns a todo ser humano.

Concretamente, o ponto de partida da Arte é a existência de Deus e as perfeições ou manifestações de sua essência cognoscível, que se identificam com seu ser infinito. Foram mencionadas já no seu Libre de contemplació (1273): bondade, grandeza, eternidade, poder, sabedoria, vontade, virtude, verdade, gloria (perfeição). Lúlio procura reduzir os

fundamentos metafísicos da Arte – essas características ou perfeições de Deus que ele

chama “dignidades” – a aquilo que é aceito pelos muçulmanos, assim como os elementos

mecânicos: a lógica aristotélica. Não se trata de uma seleção arbitraria, nem mesmo da mais

conveniente para seu público: a existência de Deus e de suas Dignidades é para ele – como para o resto dos filósofos cristãos, e na opinião de Lúlio, também para os muçulmanos – demonstrável por indução a partir da existência evidente destas perfeições nos demais seres.

Lúlio não é, portanto, um lógico abstrato, e sim um metafísico realista. Porém, a pergunta sobre as novas explicações que pode nos oferecer no campo filosófico abstrato ou conceitual é secundária: o que disse ter descoberto é um novo método. A verdade tem muitas faces: esta é uma experiência que ele extraiu de sua profissão de trovador. As coisas podem ser examinadas por múltiplos aspectos, a analogia que os seres mantêm entre si pode ajudar-nos a conhecer uns a partir dos outros, ou pode também levar-nos a confundi-los. O conhecimento objetivo de Deus é impossível sem recorrer aos seres criados, já que do Seu próprio Ser não temos experiência; e, ao mesmo tempo, se todos os seres nos levam a Deus, todos são também distintos dEle de forma mais radical de como o são entre si. O perigo do erro ou da manipulação é maior na teologia que em outras ciências.

A arte luliana confia na capacidade de raciocinar logicamente que possui a pessoa que a usa. Para chegar ao conhecimento de Deus, Lúlio propõe que se considerem as Dignidades divinas de todo ponto de vista possível, com a esperança de chegar ao conhecimento do Ser Divino afirmando e negando: afirmando até o máximo a analogia que dEle se encontra nos seres, e negando até o máximo o que há de diferente. A mecânica da Arte é pura lógica. E, para que não fique sem ser observada nenhuma das múltiplas faces da realidade, Lúlio propõe atuar de modo sistemático, combinando as dignidades entre si. A Arte luliana é a

lógica combinatória aplicada à metafísica.

Estritamente falando, Lúlio, como filósofo, não era um amador, mas um profissional, embora sua profissão original – trovador – fosse muito diferente, e por isso o caminho percorrido por ele foi longo e não isento de falta de lucidez e de erros. A arte foi, sobretudo, aparentemente contrária aos princípios pedagógicos da época, e em geral a toda pedagogia que pretenda interessar o aluno recorrendo à autoridade das verdades que já conhece, e assim confie valer a pena o esforço que se lhe pede. Lúlio parte de verdades que, certamente, o aluno aceita porque acredita conhecê-las. Mas o que Lúlio pretende é passar de um conhecimento superficial a outro mais profundo, e o aluno, que pensa que conhece

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suficientemente essas verdades, não entende a utilidade do método: aonde quer chegar Lúlio? Que sentido tem dar voltas ao já conhecido?

A arte luliana tem muito pouco a ver com um jogo lógico, uma vez que ninguém que não tivesse verdadeiro interesse em se aprofundar na matéria dificilmente poderia suportar o esforço de aprendizado que ela supõe. Lúlio tardará em compreender este fenômeno, em parte por ele ter muito interesse nela, em parte porque – segundo diz – ainda não a inventou (não no sentido principal que se dá hoje em dia ao termo, mas sim no sentido etimológico de encontrar, trovar): terá de descobrir que, na prática, a Arte não é para todos os públicos. Com o tempo aprenderá. Também ser-lhe-á útil a pregação que realizou em terras muçulmanas, onde colocar ao povo a possibilidade de troca de opinião no plano religioso é simplesmente um suicídio. A arte é, pois, um instrumento para um diálogo teológico do mais alto nível.

O uso da Arte exige por tanto rigor lógico, intelectual, mas também pureza de intenção: combinando ambas as questões, poderíamos falar de honestidade intelectual. E para garanti-la, Lúlio pretende paradoxalmente que se organizem cruzadas. Recordemos que, durante a juventude de Lúlio Jerusalém está em mãos cristãs, e que durante a maior parte de sua vida (até 1291, pouco antes de completar sessenta anos), existiam enclaves latinos na Terra Santa que, pela indiferença dos cristãos ocidentais, foram dizimados. A violência não é para Lúlio um instrumento de que se possa fazer uso indiscriminadamente para impor certos direitos, nem mesmo os que se consideram derivados da religião. Não se pode impor nenhum conhecimento, e menos os das verdades mais profundas e difíceis – as que dizem respeito a Deus. Tem de ser o entendimento quem as perceba com clareza e as proponha à vontade. O homem conserva sua liberdade inclusive frente a uma verdade que o entendimento lhe apresenta como evidente. A religião é relação entre o homem e Deus: cada pessoa é soberana.

A cruzada não é, portanto, para Lúlio, uma guerra de conquista, nem sequer uma guerra para facilitar a expansão da religião verdadeira. A cruzada é só uma guerra justa: justificada pelo fim que persegue – uma paz que permita exercer certos direitos – e conveniente pelos meios harmoniosos aos que recorre. Não seria assim se fosse apenas uma reação vingativa para aniquilar o adversário, ou simplesmente para impor-lhe a própria vontade; tampouco se fosse um esforço condenado ao fracasso. Não seria assim, simplesmente porque Lúlio não vê os muçulmanos como adversários, e sim como outros homens como ele, com quem deseja compartir o melhor que tem. Se não fosse uma expressão demasiado manipulável, seria mais correto chamar essa guerra que propõe de uma liberação.

Em qualquer caso, para referir-se à guerra de que falava Lúlio, a expressão cruzada é hoje em dia absolutamente inconveniente. As circunstancias não são as mesmas, e o passar do tempo também não parece ter ajudado a compreender o fenômeno das cruzadas, senão ao contrário. Para referirmo-nos a guerra de que falava Lúlio, a expressão – intervenção

humanitária –, poderia ajudar. Mas também, ela é equivoca, pois Lúlio não pretendia

prestar assistência humanitária a regiões devastadas ou povos oprimidos, e porque também esta expressão é manipulável. Não seria válida nos termos da Arte.

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A honestidade intelectual exige em ambos os sujeitos que dialogam o desejo de se chegar ao mesmo fim. O diálogo inter-religioso não pode ser um diálogo de idiotas, onde cada parte só pretende puxar a brasa para sua sardinha, nem uma discussão bizantina, ou como o

joc partit da poesia trovadoresca, onde aos participantes só interessaria mostrar que eram

mais espertos que seu antagonista. No diálogo luliano não há antagonistas; nem sequer as duas partes são os dois términos da discussão, porque na realidade os dois estão no mesmo lado e, com diferentes argumentos mas com um modo de pensar comum, tratam de conhecer a outra parte, que é Deus.

A Arte, por tanto, pode ser usada tanto de forma coletiva como individual, por que é sempre uma técnica para relacionar uma ou várias pessoas com a verdade, e não para relacionar os homens entre si. Muito menos, a Arte, pode ser reduzida a uma técnica de trabalho intelectual, por que o que Lúlio quer é relacionar a pessoa com Deus, e a pessoa não consiste só em seu entendimento. O entendimento, obviamente, é o primeiro instrumento, imprescindível, para resolver o quebra cabeças. Mas o que dá felicidades ao homem não é a observação asséptica de verdades dissecadas, mas o deleite do bem que lhe é próprio: o bem infinito. Por isso a técnica suprema é a “Arte amativa”. No final do caminho que começa com o intelecto, a verdade se identifica com o bem, por que todas as Dignidades se identificam entre si e com a essência divina.

A Arte é, pois, uma técnica para a contemplação. Com ela Lúlio descobre um instrumento para facilitar o caminho àqueles que honestamente buscam a verdade. E para explicar esta técnica coloca todo seu engenho, escrevendo centenas de livros e formulando a Arte em ativa, passiva e perifrástica, - como sistema lógico, e por meio de alegorias e fábulas literárias - a serviço do leitor. Lúlio exige o mesmo empenho e a mesma honestidade ao seu interlocutor: exige certo respeito, muito embora ele mesmo deixou-se encarcerar e apedrejar pelos muçulmanos, e não se importou com o riso dos cristãos que lhe tomaram por louco. O respeito que Lúlio pede é para a verdade, é para Deus: o único que no admite é o cinismo.

Para Lúlio é incoerente buscar a verdade sem renunciar à violência. Lúlio não pode falar às pessoas que admitem que a troca de religião se deva castigar com a pena de morte. A verdade que se apresenta como um bem para a consciência que colocou todos os meios a seu alcance para fazer um juízo certeiro, deve abraçar-se independentemente de qualquer argumento verdadeiro de autoridade que se lhe oponha: caia quem cair. Ele mesmo praticou este princípio em Gênova (1293), quando se viu encurralado frente ao aparente absurdo de desobedecer a uma ordem direta de Deus. Ele é a Verdade e o bem supremo, mas é a consciência que deve julgar, reconhecendo este bem e aceitando essa verdade: ninguém — nem sequer uma visão que aparentemente venha de Deus — pode anular ou substituir a decisão da consciência individual.

A honestidade é um requisito prévio para o diálogo: neste sentido, tem de ser imposta. Lúlio sabe que entre os muçulmanos existem (muitas) pessoas honestas, dispostas a empreender este diálogo. Mas estas pessoas estão submetidas a um regime político que torna para elas muito perigoso aceitar as condições do diálogo. Estritamente falando, também a sociedade em que Lúlio vivia, não estava preparada para utilizar a Arte. O

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cristianismo proclama respeitar a liberdade do homem, e a través dos revezes da história tratou de ser fiel a esse compromisso. O batismo é um ato livre, e as penas em que um cristão pode incorrer por não cumprir suas obrigações são de tipo espiritual… hoje em dia. Tentar colocar luz sobre o fenômeno da Inquisição seria tão ou mais complexo como querer esgotar o tema das cruzadas. Ambos confluíram na mesma época de Lúlio, quando se tratou de combater o catarismo. O próprio Lúlio seria perseguido e morto, embora não porque afirmasse a liberdade religiosa. Temos de nos conformar afirmando que, com a Arte, Lúlio exige àqueles que a empreguem que possuam como pré-requisito da liberdade religiosa a liberdade intelectual. Lúlio teve a experiência pessoal de que Deus pode exigir o martírio como aceitação dos maiores sacrifícios em testemunho da verdade que se conhece, porém ele não pretende impor esta exigência a seus interlocutores.

Exigir que as pessoas que vão refletir conjuntamente usando a Arte estejam dispostas a morrer pela verdade que pretendem conhecer, não é apenas uma condição muito dura: é simplesmente absurdo. É colocar o carro a frente dos bois, porque a disposição a ser mártir é conseqüência e não requisito para o conhecimento da verdade. Lúlio entende que o Islã é de fato intolerante e por isso pede que, mediante uma violência justa, se combata a violência injusta a que estão sob metidas as pessoas nos países islâmicos, de modo que, quem voluntariamente se sinta disposto a dialogar na forma que Lúlio propõe, possa fazê-lo sem arriscar sua vida. Esta é a cruzada para Lúlio.

A sociedade em que vivia Lúlio, embora se chamasse cristã, era também intolerante: pode discutir-se até que ponto o abandono da fé cristã chegou a castigar-se sistematicamente com a pena de morte e até que ponto isso foi só pretensão de alguns. O fato é que Lúlio não o via como sendo a doutrina oficial da Igreja. Mesmo que o tivesse admitido como recurso extraordinário em alguns casos, ou que não protestasse pela existência dessa prática, não teria senão refletido um sinal de seu tempo. A aceitação de tal prática como doutrina é incompatível com o espírito do cristianismo e com a Arte luliana. No Islã, todavia, a violência aparece integrada com a lei, como um elemento de ordinária administração para harmonizar os costumes sociais com as exigências da vida religiosa: não obstante, a pena capital como castigo pela troca de religião é um acréscimo alheio ao Koran.

La recuperação de Jerusalém por meio de una guerra justa é para Llull só parcialmente uma questão de prestígio: do prestígio então necessário para que a religião cristã fosse respeitada e o sistema luliano, que pressupõe a liberdade religiosa e, portanto, a liberdade de culto, acreditável. A afirmação cristã de que Cristo é Deus e de que é preciso estar disposto a dar a vida por sua religião era então para um muçulmano comum incompatível com que os cristãos não fizessem todo o possível por recuperar Jerusalém. Para tais pessoas, imbuídas do critério do êxito humano — Deus concede a seus eleitos o domínio político sobre toda a terra—, o fato de que os cristãos tivessem perdido Jerusalém corroborava que a sua religião era falsa.

Quando os primeiros cristãos foram perseguidos em Jerusalém abandonaram a cidade e toda a Judéia, sem muita réplica, para poder exercer sua religião livremente em outro lugar. Quando Constantino deu-lhes a liberdade, alegraram-se de poder recuperar a Cruz e as

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outras relíquias da morte de Cristo, e de abrir lugares de culto em Jerusalém. Quando a cidade caiu nas mãos dos muçulmanos, aquilo não foi um obstáculo para que seguissem peregrinando durante quatro séculos... até que a violência o impediu. Naquela altura o cristianismo era uma religião suficientemente estendida como para que a exigência de poder celebrar seu culto em Jerusalém fosse vista como um direito. Inclusive, a esse direito teriam renunciado os cristãos se tivessem um motivo justificado. Mas se renunciar a dar culto a Cristo em Jerusalém implicasse confessar a falsidade da própria religião, a obrigação de esclarecer o equívoco era grave.

Para Lúlio, os cristãos deviam fazer-se respeitar em Jerusalém. No resto do mundo, deviam

manter a intolerância dentro de uns limites. Isto não significa que a guerra que Lúlio

considerava justa fosse exclusivamente defensiva em cada um de seus atos (está claro que para o caso de Jerusalém não o é). Sem considerar agora os detalhes sobre quais táticas possam convir num momento dado, basta com reter que Lúlio não estabelece uma doutrina nova sobre a guerra justa, e que não é um fanático. Também em terras cristãs, quando falta o amor à virtude, os cavalheiros devem pelo menos impedir que os homens se ofendam “mutuamente uns aos outros”. O que está em jogo é a ordem, e não questões religiosas, embora também a desordem provocada por supostos motivos religiosos possa exigir a intervenção armada.

O emprego da violência, para Lúlio, é sempre secundário, e não acode espontaneamente ao grito de “tentar é mais grave que matar” (Korán, II, 191). Também Jesus disse que a quem escandalizar “mais lhe valeria que lhe atassem uma pedra de moinho ao pescoço, daquelas que move um asno, e fosse arrojado ao mar” (Marcos 9, 42): sempre será possível encontrar cristãos propensos a converter o condicional em imperativo. Lúlio não pretendia escrever tratados sobre qual das duas religiões podia ser mais fácil de interpretar em sentido intolerante, todavia admitia como certo que era o Islã. Mas não fez disso uma ponta de lança, se bem pediu aos cristãos que se fizessem respeitar, para não dar indiretamente a razão a os muçulmanos que os tomavam por idólatras, incapazes de defender sua religião, e oferecer em troca garantias mínimas sobre sua própria segurança aos intelectuais muçulmanos abertos ao diálogo.

¿Até que ponto é original o conteúdo do diálogo luliano? Quer o seja, quer não, isso não influi na validade da Arte: os conteúdos argumentativos ja estão, na sua maioria, presentes no Libre de contemplació, que é anterior ao descobrimento da Arte (1274). Se quisermos, poder-se-ia assinalar — como faz Esteve Jaulent — que sua principal originalidade foi a de anotar que o ser é produtivo: desta realidade derivam-se os argumentos sobre a causalidade operativa intrínseca de Deus, a correlação entre os princípios e o que Lúlio chamou

demostração por equiparação.

Sempre que Lúlio teve ocasião de dialogar com os muçulmanos, tratou de apresentar-lhes uma demonstração da Trindade e da Encarnação baseada nestes conceitos. A idéia aristotélica de Deus como motor imóvel, forma sem matéria e ato sem potência, podia levar à contradição de, ou negar sua relação com o mundo (que então teria sido criado pelo diabo, enquanto Deus permaneceria impassível na sua perfeição: assim pensavam os cátaros), ou de negar a liberdade divina, obrigando-o a criar um mundo eterno: daí a negação do caráter

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pessoal de Deus e a queda no panteísmo só restaria um passo.

Lúlio afirma que Deus não pode deixar de atuar com as capacidades mais excelsas que por experiência vemos o homem possui (conhecer e amar) e, portanto, se conhece e ama a si mesmo de forma necessária e eterna sem diminuir a sua liberdade: o objeto de tal conhecimento e amor não pode ser distinto da essência divina, e daí que denominar os sujeitos e objetos dessa atividade divina de pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo) seja a única forma coerente de não cair na contradição de acreditar em três deuses. Uma vez experimentada a criação e o pecado — do qual só o diabo e o homem são responsáveis: salvando, portanto, a liberdade divina—, Deus não pode ser incoerente com seu desejo de agir da forma mais perfeita nas criaturas, e por isso para Lúlio é também demonstrável que o próprio Deus se fez homem para reparar os efeitos do pecado.

A concepção operativa do ser, isto é, a correlação entre matéria, forma e ação, muito vinculada aos anteriores argumentos, e que permite a demonstração por equiparação, pode ser, em minha opinião, relacionada com o principal achado de Tomás de Aquino: o ato de

ser. Com efeito, o ser não é um ato mais, cuja única missão poderia ser a de ativar uma

essência que contivesse certas perfeições latentes. O ato de ser é a perfeição de todas as perfeições e, por meio da forma, faz ser à matéria, e a ambas na essência. As relações matéria-forma e ato-potência são reais em cada ente, de forma não exatamente equiparável à relação essência-ato de ser, já que forma e matéria estão de algum modo presentes na essência.

Continuando e superando a linha marcada por Fernando o católico, Felipe II foi o monarca hispano que com mais interesse leu Lúlio, recopilou e fez publicar suas obras e promoveu a sua filosofia. Os avatares da história fizeram com que os projetos evangelizadores do viajante maiorquino, que não puderam levar-se a termo na África muçulmana, encontrassem um imenso campo de experimentação no Novo Continente. La estava vigente o argumento de que os mistérios da religião deviam ser explicados partindo do conhecimento natural...

A fama de Lúlio e de sua filosofia estenderam-se pelo resto da Europa: no século XVIII começaram-se a editar em Alemanha suas obras completas; foi estudado também na Rússia. Os filósofos de renome que tomaram dele algum elemento, não o seguiram todavia no essencial: Giordano Bruno, Descartes (1596-1650), e sobretudo Gottlob Wilhelm Leibniz (1646-1716), quem o conheceu através de Sebastián Izquierdo (Pharus Scientiarum, Lyon, 1659). Leibniz pensou que o descobrimento da verdade é uma questão de cálculo e tomou da Arte só a combinatória: por assim dizê-lo, o corpo do sistema luliano, mas sem captar a sua alma. O que não é pouca coisa, se tivermos em conta que se considera a este filósofo alemão como o descobridor do sistema binário, base para a descoberta das calculadoras eletrônicas.

Desprezando os alti-baixos sofridos pela pessoa de Lúlio após a sua morte, qué validade ou utilidade pode ter a sua Arte hoje em dia? O mundo mudou muito nos sete séculos que transcorreram desde que formulou seu sistema, se bem o motivo principal que lhe moveu a desenvolvê-lo, a divisão religiosa entre os chamados países muçulmanos e os países de

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tradição cristã, continua em pé. Parece-me, todavia, que, depois de sete séculos, existem muitos mais muçulmanos dispostos a uma atitude de diálogo. A pesar da ação dos fundamentalistas — paga pelo que, desde 1991, foi um dos principais aliados de Estados Unidos entre os países muçulmanos —, o diálogo é possível agora mais do que nunca. Em minha opinião, ocidente — supondo que represente o liberalismo, o cristianismo ou o que se queira — tem uma oportunidade de ouro para oferecer-lhes algo melhor que o fundamentalismo. Uma oportunidade à que a queda do Muro de Berlim, em certo sentido, no lhe chega à altura dos tornozelos.

Certa dose de mão dura pode ser necessária para garantir que o diálogo não é um engodo nem um risco excessivo para os muçulmanos que decidam empreendê-lo. A violência pode ser necessária, mas não é suficiente. E uma violência excessiva poderia acabar com o empenho. Penso que isto é que diria Lúlio.

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