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CORPO E OLHAR: A LINGUAGEM TRANSGRESSIVA DOS SENTIDOS

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CORPO E OLHAR: A LINGUAGEM TRANSGRESSIVA DOS SENTIDOS

Isabel Cristina Corgosinho

A obra de João Gilberto Noll é representativa da ficção brasileira contem po­

rânea em mais de um a característica. O descentram ento do n arrad o r com relação ao saber d em o n stra a consciência da crise do conhecim ento e prin cip alm ente a crise d a rep resentação do sujeito, que aqui é visto com o u m ser frag m entado e incapaz de com unicar suas experiências.

No plano do agenciamento formal, o experimentalismo não mobiliza a aten­

ção do escritor, em bora não tenha sido abandonado de todo. Os textos porosos de Noll não se esquivam à contribuição vinda da indústria cultural: o cinema e a música realizam o bem -sucedido intercâm bio de linguagens sem pre presente nas suas narrativas.

Intencionalm ente subm erso n um universo ficcional em que o silêncio das personagens se m istura a espaços totalm ente desi efei encializados, a figura do cor­

po e seu p ro lo n g am en to no o lhar em erg em do texto com o signos geradores de sentido. Interpretando as palavras do próprio escritor, as suas personagens não se propõem à defesa de qualquer tese p ara gerar um pensam ento, mas se dispõem a deixar o corpo p en sar através do espasm o e do tiem or, de um a fisgada e não através da razão.

Ao se posicionar pela linguagem dos sentidos, Noll não está apenas deline­

ando a sua tendência criativa,mas reforçando a observação que faz o crítico Silviano Santiago1 de que, nos últimos anos, a figura do corpo apai ece como tema instigante nos romances. Tòma-se um lugar da descoberta do sei, íetom ada da força dionisíaca em oposição à força apolínea, sendo o erotismo a enei gia que impele o corpo a um com portam ento não-racional e não-reprimido. O coi po passa a ser o lugar da liber­

dade, de o nde sai o grito do indivíduo contra as sociedades repressivas.

O escritor gaúcho estaria assim sintonizado à concepção criativa de outros escritores latinos com o Severo Sarduy, Augusto Roa Bastos, Luiz Rafael Sanchez, entre outros, que optaram por rom per com a literatura que se estrutura em concei­

tos e equações, p ro p o n d o as forças desgovernadas dos sentidos, que tecem nas

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paixões e sensualidades o fino tecido da nova linguagem literária. Contraria, portan­

to, a exaltada tradição do iluminismo que se apóia inteiram ento no intelecto como base do conhecim ento do m undo.

E é dessa desconstrução do racionalismo ocidental, pelas linguagens do cor­

po e do olhar, que tratam as obras citadas de Noll, que interpretarem os a seguir.

O status do corpo na m odernidade

Em bora a discussão se situe na m odernidade, h á um a referência platônica que cabe destacar. N o Livro VII de A R epública2, ao ex por seu pensam ento sobre o m u n d o inteligível e o m u n d o sensível, o filósofo ateniense considera a experiência do sensível

com o obstáculo p ara acessar as idéias ou as essências, ou seja, as opiniões que, para ele, têm como causa de sua im precisão e m obilidade o testem unho dos sentidos sobre os quais elas se apóiam . C onstituem , pois, os sentidos entraves ao conhecim ento da verdadeira realidade. O que caracteriza as realidades inteligíveis ou as idéias, para o platonismo, é a sua capacidade de estabilidade, sua eternidade:

seu ser. E, ao contrário, o que caracteriza p rincipalm ente as realidades sensíveis é sua natureza móvel, seu aparecim ento e desaparecim ento, seu nascim ento e sua m orte, enfim , sua condição de vir a ser. Daí que o “ser” recebe o status de objeto da ciência, definida sua natureza estável e imutável, enquanto o “vir a ser” é relega­

do a objeto da opinião, p o r sua natureza instável e efêm era.

O corpo, portanto, estaria irrem ediavelm ente ligado ao m undo do vir a ser.

N ão é só instável em seus sentidos, m as está sujeito à m orte. São estes entraves que im pedem o impulso da alm a em direção ao m undo do ser e das idéias eternas.

A condição instável de seus sentidos e sua m ortalidade im pendem -no de acessar a verdadeira realidade, pois iludem sobre o verdadeiro bem , em virtude deste não p o d e r estar ligado à única realidade do corpo que é a do m undo sensível. Platão tam bém vê com o obstáculo à verdadeira realidade a excessiva im portância que os sentidos atribuem aos prazeres e aos sofrimentos, o que causaria o afastam ento da alma da existência de bens mais preciosos e dos valores verdadeiros.

Na busca de satisfazer os prazeres exigidos pelos sentidos, suas necessida­

des e suas paixões, a alm a do indivíduo é arrastada para as solicitações indefinidas do m undo sensível. A rrasta um desejo insaciável p o r natureza, um a vez que um desejo realizado é motivo para busca de novos desejos. A insaciabilidade do desejo aprisionaria a alma no desejo. Para escapar dessa prisão, deve a alma aprisionar o corpo m ortal, porque ele quebra o im pulso d a alm a em direção ao que é imortal, ou melhor, às essências divinas e eternas que são as “idéias”. E im portante cham ar atenção para a a contam inação das linguagens filosófica e religiosa nas colocações de Platão: “o corpo é o túm ulo d a alm a” e que “no hom em , a alm a é o que se assemelha ao divino, ao m undo da verdadeira realidade ou das idéias; é como um a parcela da alma divina habitando no h om em ”. E o corpo, leitor, é o extraviado que em purra a alm a p ara baixo, p ara o m undo da terra, da m atéria, e nesse m undo ela

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é retida como estranha e prisioneira. A p artir dessas colocações, é possível afirm ar que Platão não só foi o precurssor de algum as das idéias do C ristianism o com o também do Cartesianismo.

É preciso destacar que nem sem pre o corpo foi visto assim. Ao fazer um a abordagem sobre a relação entre a literatura e a realidade do corpo, Lígia Cademartori3 relem bra o paganism o, “onde os mitos, exaltando o sexo e o amor, ofereciam um a interpretação alegre e inocente do corpo e de seus desejos, m antendo, assim, Eros, o impulso amoroso, no âm bito das forças criativas vitais”.

Mas, como vim os em Platão, logo o corpo passou a o cupar u m lugar de subordinação nos sistem as d e valor religioso, m oral e social d a cultura euro péia ocidental. Descartes, portanto, não foi o prim eiro a considerar a m ente superior à m atéria. O ntologicam ente, a m ente, a consciência ou o ego têm sido indicados como os guardiães e governantes do corpo, e o corpo deve ser seu criado.

Segundo Roy P o rter1, essa subordinação sistemática do corpo à m ente aca­

ba p o r degradá-lo; seus apetites e desejos são encarados como cegos, obstinados, anárquicos ou, como no Cristianismo, radicalmente pecaminosos, sendo encarados como a prisão da alm a com o o era para Platão e p ara os pitagóricos. O lgária M a­

tos5, ao escrever sobre o desejo de evidência em Descartes e o desejo de vidência em Walter Benjamin, aponta a cisão corpo e alma como o pré-requisito para alcan­

çar a tão desejada evidência cartesiana no conhecimento. Para o filósofo iluminista, a p a rtir do m o m ento em que o h om em se to rn a m estre e senh or d a natureza, rom pe c o m a submissão a ela, capaz, portanto, de dom iná-la fora e den tro de nós.

O corpo instintivo, irracional, vai contra o desejo de evidência do filósofo que anseia p o r um a racionalidade que desvende o m istério do m undo. Daí porqu e o corpo, reduto da sensibilidade, da sensualidade, do desejo e da paixão, vai inviabilizar a construção da racionalidade iluminista de estilo cartesiano, pois essas capacidades que traçam o perfil do corpo são vistas com o inimigas do pensam ento. E p o r isso que Walter Benjamin aponta o dualismo corpo e alm a como o em pecilho para que a p a ix ã o seja a b ase e m p íric a d o d e se n v o lv im e n to d a ra c io n a lid a d e , incom patibilizando, pois, a relação entre o hom em e seu desejo, entre a razão e o corpo, sua história, sua memória.

E ainda Descartes que, num jogo articulado entre o Saber e o Ver, vai consi­

d erar a visão como sendo o mais universal e o mais nobre entre os nossos sentidos.

Apesar de conceber o sujeito sem corpo e sem sentidos reconhece nele u m olhar, mas apenas o o lhar da evidência. Daí porque concluir, segundo O. Matos, que as palavras “evidência”, “idéias claras e distintas”, “luz natural” participam de um cam­

po sem ântico que tem com o antônim as as palavras obscuro, confuso. Mas esse olhar apenas traduz a necessidade de ver a idéia. O o lhar cartesiano, segundo W Benjamin, é onividente: para ver tudo, inclusive os fantasmas, para atravessar todos os segredos, é preciso ser p u ra transparência vazia, sem interior, sem qualidade, despersonalizada. O resultado é a formação do sujeito dessubjetivado.

Éjustam ente desse corpo cartesianamente concebido que nos fala S. Santiago ao situá-lo nas décadas recentes:

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T e m p o s m arciais ex ig em dos cid ad ão s d iscip lin a e rig o r: ritm o na tecnologia d o corpo, eficiência n a tecnologia da m áquina. C onfundem - se a saúde da m áquina do corpo com a saúde do corpo d a m áquina. Eis d e form a co m p lem en ta r a visão tecnológica d o h om em (...).6

O resultado dessa razão controladora e autocontroladora, desde Descartes, que p ro cu ra um p o n to fixo, estável e seguro, segundo O lgária M atos, não é o triunfo sobre a natureza exterior e interior - mas o Cogito - isto é, o vazio. Isto se dá p o rq u e o sujeito racional é u m a en tid ad e lógica, o u seja, não tem carne, nem sangue, nem desejos, nem sentidos, não tem d o r a mitigar, n em esperanças a realizar. E é ju stam en te desse vazio que as m ultidões hoje, em todos os lugares do m undo, procuram fugir, m as apenas o que conseguem é a sublimação dos desejos que se recalcam p o r detrás das aulas de aeróbica, ginástica estética e musculação. A ação coletiva hoje passa a ser aquela que encontram os nas academias, o nde corpos suados e ágeis obedecem cegam ente as regras e a assepsia do com ércio estético.

Há, no entanto, n a literatura (assim como na psicanálise) um a notável resis­

tência à concepção cartesiana do corpo. Bem-vinda a essa discussão é a contribui­

ção de Freud sobre a sexualidade infantil, que vai colocar em relevo a im portância do corpo en q u an to linguagem , pela qual o h om em se inscreve no simbólico. E exclusivamente do corpo que se servem os recém -nascidos p ara expressar as suas necessidades vitais antes do acesso à linguagem oral, e é ain da o p rim eiro olhar lançado ao espelho que desfaz a experiência do corpo fragm entado, caótico, p ro ­ longam ento fundido e confundido com o m undo ao seu redor, que p o d e devolver u m a organizada, sim étrica e perfeita do eu externo que é ele m esmo.

Mas trata-se aqui de m ostrar, m ais um a vez, com o a lite ratu ra consegue, prescindindo de sistemas e regras, descontrair, p o r m eio de seu discurso encarna­

do, o corpo e o olhar cartesianam ente concebidos.

A razão no faro do corpo furioso

Ao lerm os a obra de Noll, deparam o-nos com textos no quais o processo de m ontagem im pede qualquer relação de causalidade. O olhar dos nar radores percor­

re lugares sem rosto, sem nomes, desfigurados, tom ados desconhecidos, incapazes de relacionar-se com suas experiências. A narrativa é fragm entada em cenas que se form am a p a rtir d e corpos à deriva num tem p o cro n o lo g icam en te ind efinid o (“v ia g e n s “, v isag en s, d e v a n e io s) e em esp aço s m a rc a d a m e n te p ú b lic o s e im pessoais: ruas, bares, becos, hotéis, praças, estradas desertas, casas e prédios abandonados. Eroticidade ( ou a p erd a dela), abandono, violência, indiferença e m orte m arcam os enlaces dos corpos num a cidade que não consegue mais se ver.

C onscientes da p erd a dos referenciais com unitários e d a inexistência de laços orgânicos entre os indivíduos, sofrendo a implacável solidão de si no território de seus corpos e de seus fantasmas, como bem observou o crítico ítalo Moriconi, os narradores-personagens de Bandoleiros, A Fúria do C orpo e O Q uieto Animal da

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E s q u in a tornam -se estrangeiros dentro e fora de seus países, eternos exilados.

“João é um escritor guerreiro. Acabou de lançar um rom ance esperançoso.

Uma história de am or na penúria”.7. E assim que o n arrado r de Bandoleiros defme o rom ance do m esm o autor, J. G. Noll, A Fúria do Corpo.

Logo no início do romance, somos intimados por um a personagem anônima, sem história, profissão ou d inheiro, a seguir o único roteiro possível no relato: o corpo, que peram bula “nas ruas de u m tem po onde d ar o nom e é fornecer suspei­

tas”8 • Nesse roteiro a tem poralidade é visivelmente m albaratada, não existe um a ordenação tem poral da história, cuja intenção, ao nosso ver, é revelar a sua próp ria crise.

O que tentam os seguir fragm enta-se a cada lance d e corpos. O n arrad o r- personagem , ao longo das cenas, relaciona-se com um garoto traficante, com um a vizinha que o “traveste” em m ulher, com um gay n um elevador, com u m rico da Delfim M oreira, com m endigos nas ruas; além de explorar com sua com panheira um casal de suiços. Com o sua am ada .Afrodite, o narrador vive sua história de am or na penúria.

Ela é o Eu do m undo. Somos dois corpos que ain d a se desvanecem a q u alq u er toque de amor, somos dois corpos em busca de u m a felicida­

d e can h estra m as radiosa.8

Seguindo os enlaces do narrador-personagem , vamos andar pelas ruas, bares e becos de um a Rio de Janeiro sórdida, onde os duas personagens centrais inaugu­

ram o esplendor da miséria, através de relações que negam apresentações e p ro ­ põem o sexo como a única alternativa de redenção e possibilidade de contato com o outro, p orque: “só o m eu sexo está livre de qualquer ofensa, e é só com ele-só- ele que abrirei cam inho e n tre eu e tu, aq u i.” 10

E o corpo furioso, caótico, gozante, vulnerável p or ser carne apenas, carne instituída do sensível, que denuncia a p ró p ria prisão nas estruturas d a razão institucionalizada. Desesperadam ente esse corpo busca reconquistar a experiência dos sentidos, contrapondo-se ao corpo atlético das academias, contido num a exis­

tência diet, racionalizada e adepta de Narciso.

H á algo de sagrado e violento na figura de A frodite. Mais que m ulher, é m etáfora do corpo que se desracionaliza e consegue enfim recriar um a nova lin­

guagem que m ultiplica seus sentidos nas entranhas do prazer erótico: a person a­

gem d esa p re n d e a escrita e a classificação m orfológica das palavras. Passa a ser en ten d id a com o corpo, pois com ele escreve.

Em d Fúria do Corpo, encontram os um texto alegorizante mítico, perm eado de citações bíblicas e jogos de palavras que desenham as quim eras d a sim ilitude entre as palavras e as coisas. A tem poralidade nesse rom ance não obedece a n e ­ nhum a cronologia verificável ou sucessão linear de episódios. O relato apresenta- se como um a série de enlaces que o corpo do n arrado r vai travando no decorrer de um a existência errante na cidade do Rio de Janeiro. H á um a ilusão de m ovim ento que é logo denunciada pela estrutura circular, em que os protagonistas (narrad or e

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Afrodite) conduzem seus corpos num revezam ento incessante com outros corpos pelos espaços insólitos da cidade. O câmbio de corpos detona a ação do rom ance que, no entanto, não avança, não progride em direção à qualquer transformação. O rom ance começa e term ina no m esm o espaço, e os personagens perm anecem na m esm a condição existencial e social que se encontravam no início.

É sob o aspecto da errância, d a fa rtu ra orgiástica do corpo e tam bém do ideal, s u s te n ta d o p e lo p e rs o n a g e m de viver com A fro d ite u m a p aix ão transform adora, que o narrador-personagem refaz nesse rom ance o mesma trajetó­

ria do deus grego Dioniso. A paródia dos textos bíblicos realizada pelo narrador nos supreende pela linguagem apaixonada que entoa um canto orgiástico à vida como alternativa para o estado de desolação em que se encontra o hom em . A tragicidade d a n arrativa é m arcada pelas presenças da m orte, d a angústia, da violência, da errância, da em briaguez perm anente, mas tam bém pelo desregram ento erótico, pelo canto orgiástico que revelam o caráter transgressivo do m undo sensível.

A razão na mira do olhar-bandoleiro

Assim como o detetive e o estrangeiro, o viajante é tam bém um a figura de nossos tem pos. O n arrad o r-p erso n ag em de Noll, em Bandoleiros, sentindo-se estran ho em sua terra, p arte em busca de um en red o p ara seu novo livro, com o também de um a identidade e lugar. De Boston, Porto Alegre ou da desértica Viamão são as estradas p o r onde se desloca seu corpo bandoleiro.

Em Boston, unindo-se a ex-com panheira Ada, o narrad o r defronta-se com a utópica “M inimal Society”, organização que é vista sob seus olhos irônicos como o cúmulo da racionalização do mundo. Nessa “ordem ” minimal o personagem desco­

bre a instalação insensata do caos e a m ortificação de sua libido, que é tam bém a mutilação da figura de Eros, contraditoriam ente detonado pelas personagens femi­

ninas porta-vozes dessa nova “ord e m ”. A relação do n a rra d o r com a personagem Ada, sua “c o m p an h e ira”, é im possibilitada p ela com pulsão m etam órfica que se opera na personalidade de ambos. A personalidade d e Ada fragmenta-se em cená­

rios que encenam de cada vez um a personagem diferente, transm utada pela busca incessante de algo que sem pre começa e term ina no nada. Os laços entre as perso­

nagens desfazem-se num a atmosfera flutuante, causada pela precariedade e limi­

tes da intersubjetividade, contam inada até a raiz pelo vazio comunicativo e afetivo.

Com a personagem Steve, um am ericano que o n arrad o r conhece num bar em Boston, o distanciamento é representado por um a pura construção fantasmátíca.

T anto no contato en tre eles em Boston, quanto no reencontro dos dois na cidade de Viamão, no Brasil, o que vem os são p erso nag ens exiladas em “viagens”que em baralham projeções do inconsciente, fragm entos da m em ória e registros instan­

tâneos do presen te, que se m isturam a um potencial d e agressão e rejeição já ex p e rim en tad o pela personagem com as m inim alistas, e que aqui se radicaliza num caos, impossibilitando a formação de quaisquer laços interpessoais.

N o curto diálogo que o narrador m antém com o am igojoão, o leitor pode aí

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identificar a preocupação, no enredo, d e trazer à tona as polêm icas questões so­

brem a pós-m odernidade: a falência do m odelo das ciências hum anas, a p erd a do pensam ento totalizante e o papel do escritor n a contem poraneidade, entre outras.

Partindo d e seu país, o n d e se tornara um estranho, o personagem -viajante caminha sua solidão pela cidade de Boston, reafirm ando sua condição de estrangei­

ro num m undo onde se to m o u impossível distinguir realidade e ficção. O retorno ao seu país de origem radicaliza o dram a do vazio da personagem com a m orte do amigojoão.

O lugarejo de Viamão encena u m espaço que está se torn an d o constitutivo no im aginário contem porâneo: o deserto. O en red o fragm entado d e Bandoleiros rem ete a filmes rodados no Oeste americano: o encontro d e dois forasteiros solitá­

rios duelando num a paisagem onde todos os referenciais são apenas ruínas soterra­

das num chão calcinado. Ilhados em suas viagens fantasmáticas, vêem frustrar-se a amizade que era para eles um a possibilidade de superar o isolamento e a alienação.

O jogo de projeções e identificações qifc se dava enquanto Steve falava e o narrador ouvia não term ina em m aior cumplicidade entre eles, mas num a definitiva e trágica separação. Daí que o in tin erário dos viajantes, n a rra d o r e Steve, só serve p ara acentuar cada vez mais os seus próprios descaminhos.

O olhar do narrador-b an d o leiro só é capaz de ver em vertigem . Irônico à evidência, às idéias claras e distintas e à luz natu ral, o o lh ar que p o d e d e fato enxergar o dia é aquele que se desdobra em espasmos e, sem m edo, m ergulha na escuridão. Sarcástico, o n a rra d o r de Bandoleiros pro clam a que os de saúde na vista encarceram o próprio olhar, pois estão sem pre a reclam ar que se diga aquilo que se vê. O sol que se p ro p õ e à razão é visto pelo n arrad or-p erso n ag em c o m o o Sol Macabro. Nessa citação não estaria o próprio narrador definindo ironicamente a sua concepção trágica de olhar o m undo?

N ão adianta, todos q uerem a fantasia solar, e nos p u x am p a ra ela, sem descanso. E tal a lucidez, que não im aginam mais a substância secreta, a n te r io r ao so l.11.

C om o o Dioniso de 0 N a scim en to da T ra g éd ia d e N ietzsche, essa personagem experim enta o sofrim ento da individuação. Despedaçado enquanto sujeito, impossibilitado de afirmar-se ou emancipar-se da com unidade, ele está ai...

Q uem sou eu? Eis a p e rg u n ta que se faz ao longo do relato. A agudeza do olh ar dessa personagem teria alcançado o conhecim ento do ver p ro fun do do qual nos fala Nietzsche. A contemporaneidade está muito próxim a do panoram a civilizacional descrito pelo filósofo:

...agora não devem os esco n d e r aquilo que se esco n d e n o seio dessa civilização socrática! O otim ism o que se crê sem limites! A gora não d e ­ vemos ficar apavorados, se os frutos desse otim ism o am ad u recerem , se a sociedade,azedada até as m ais p ro fu n d as cam adas p o r u m a civiliza­

ção desse espécie, estrem ece pouco a pouco sob exuberantes ebulições

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e apetites, se a crença n a felicidade te rrestre p a ra todos, se a cren ça na possibilidade de u m a tal civilização de um saber universal pouco a p o u ­ co se tran sfo rm a na am eaçad o ra exigência dessa felicidade te rre stre alex an d rin a, na invocação de um deus ex machina eu rid ip ia n o !12

C om esse conhecim ento é iniciada u m a civilização, que eu ouso d esignar com o trágica cujo ca ráte r mais im p o rta n te é colocar no lu g a r d a ciência, com o alvo su p rem o , a sab ed o ria, que, sem se d e ix a r e n g a n a r pelas digressões sedutores das ciências, volta-se com o lh a r im passível p a ra o p a n o ra m a total do m u n d o e p rocura, com am orosa sim patia, assum ir o sofrim ento etern o com o seu p ró p rio so frim en to .13

Diante da fiiga incessante da luz que cega, do abscesso no pensam ento e da escama que encarcera seu corpo, é possível falar de um olhar trágico do narrador- personagem de B andoleiros. A inda nessa obra é possível identificar a h erança joyciana do fluxo de pensam ento e do relato de acontecim entos com o técnica da voz narrativa. A intrusão metaficcional está presente nas várias versões da m orte do personagem Steve e no projeto ficcional perseguido pelo narrador-personagem ao escrever o livro “Sol M acabro” (obra dentro da obra).

O corpo quieto do anim al da esquina

R eagindo co n tra os corpos insulados da obra Bandoleiros, em bo ra não ro m p en d o com o m u n d o ficcional encen ad o nela — p erso nag ens sem história, cenas entre pedaços de ruínas, poem as inconclusos, figuras que aparecem /desapa- recem sem se projetar, sem se desp ed ir — a o b ra 0 Q uieto A n im a l da E sq u in a 11 traz um a m udança significativa no com portam ento do narrador-personagem : sua form a de olhar o m undo e de se relacionar com o O utro.

O olhar desse narrador-personagem cultiva a claridade da noite, a lua. Contra a p e rd a de sentido das im agens que constituíam a nossa id en tid ad e e lugar, o jovem narrad o r vai nom ear os espaços físicos por onde passeia sua solidão. O olhar do n arrad o r aproxim a-se do olhar do estrangeiro porque, com o aquele que não é do lugar, que acabou de chegar, é capaz de ver aquilo que os que lá estão não po dem m ais perceber. Tem-se a im pressão de que o o lh ar pousa nas coisas com o se fosse p ela p rim eira vez, com o se tentasse livrar a paisagem d a rep resen tação que se faz dela, deixar as coisas aparecerem como são. Esse peculiar m odo de olhar reintroduz im aginação e linguagem onde tudo era vazio e mutismo. Exatam ente o que faz o n arrad o r-p o eta: busca a poesia através de um o lh ar fenom enológico, capaz de captai' a banalidade do cotidiano hum ano, de dar-lhe a poesia do instantâ­

neo e da contem poraneidade. Por isso os poem as sem pre inconclusos. Em vez de cenas deglam our, o o lhar do n arra d o r vai m ontar cenas daquilo que chamávamos de interio rid ad e, cenas dom ésticas, cenas dos vários lugares p o r o nd e passa: a go rd u ra talhada n um copo de leite, a fuligem, os cheiros e marcas hum anos, um tênis rasgado, os banheiros públicos, a miséria sórdida das vidas que peram bulam

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pelo prédio em ruínas, a loucura... T udo é m ostrado em seus íntimos detalhes p o r um olhar m uito pessoal. A ação do olhar em devaneios, em visagens, em sonhos e os enlaces afetivos do corpo, com o elem entos recorrentes, fazem o p apel d e fio condutor da narrativa. A prim eira tentativa de comunicar-se com o m undo eviden­

cia-se pelo projeto d a personagem de perseguir a poesia (resultado do seu olhar- observar). O corpo, m esm o nos m om entos de pu ro instinto, não é m ais o corpo que age sem m otivação. H á aqui u m a m otivação clara que é a da aproxim ação física com o outro frente à falência do diálogo, da palavra.

O n a rra d o r do Quieto A n im a l da E squina con trapõ e ao corpo racionali­

zado um a consciência perceptiva que é solidária com o corpo, p ró p rio ou vivido, com que nos instalam os no m u ndo, ganhando e doan do significações. T an to os corpos nessa obra qu an to em Bandoleiros contrapõem -se igualm ente aos corpos esquizofrênicos das academ ias, pois eles se nom eiam em formas, em secreções, em cheiros, em ruínas, em gestos, em desejos, em paixões. N ão existe aqui n e ­ nhum p u d o r em n om ear a realidade física dos corpos que estão sob a tênue maqui- lagem da perform ance atlética e estética dos nossos tem pos.

Nessa obra, a p e r c e p ç ã o fenomenológica do corpo, que aos poucos se reve­

la, ap rofunda a concepção filosófica de M erleau-Ponty, p ara quem o corpo ap re­

senta aquilo que sem pre foi o apanágio da consciência: a reflexividade. Mas ap re­

senta tam bém aquilo que sem pre foi o apanágio do objeto: a visibilidade.

O enigm a reside nisto: m eu corpo é ao m esm o tem p o vidente e visível.

Ele, que olha todas as coisas, tam bém p o d e o lh a r a si e reco n h ecer no que está v en d o e n tã o o ‘o u tro laclo’do seu p o d e r v idente. Ele se vê vidente, toca-se tateante, é visível e sensível p o r si m esm o. E um si n ã o p o r transparência, com o o pensam ento, que só pensa o que q u e r que seja assim ilando-o, constituindo-o, transform ando-o em p en sam e n to - m as u m si p o r confusão, p o r narcisism o, p o r inerência daquele que vê n aquilo que ele vê, daquele que toca naquilo que ele toca, do senciente no sentido - um si, p o rtan to , que é tom ado e n tre coisas, que tem um a face e u m dorso, u m passado e um futuro (...)'’’

A descoberta do corpo reflexivo e observável leva o crítico francês a m o s tr a r que a experiência inicial do corpo consigo mesmo é um a experiência e m p ropaga­

ção e que se re p ete n a relação com as coisas e na relação c o m os outros.

P or outro lado, o o lh ar visionário do Quieto A n im a l da E squina leva-o a uma experiência que resulta do apagam ento da visão habitual e que fala p o r enig­

mas. As cenas-visões e a “realid ad e” no texto se confudem : essa interação resulta n um a instigante estru tu ra surrealista do texto. Assim com o em Bandoleiros, é possível conjecturar um a intrusão metaficcional do narrador, que busca a literatura através da figura de um p oeta-m arginal. Poesia essa que nos lem bra aquela dos anos 70, escrita a p a rtir de um a m istura de acaso cotidiano e registro do imediato.

É, portanto, nesse corpo reflexivo e observável que encontram os o espaço no qual o sexo, a água, o fogo e a poesia se tornam elem entos simbólicos de um a m etam orfose existencial. A partir dessa transformação, o corpo nessa obra encena­

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ria a possibilidade da formação de um a identidade e do resgate da intersubjetividade perdida.

A contribuição da obra de Noll vem ju stam en te do resgate da im agem na literatura. Ao trab alh ar com a visão do corpo, ele ten ta ro m p er com o m und o da representação do olhar espiritual, através do regim e da fascinação.

O d ra m a vivenciado p o r suas personagens está ju stam en te na luta contra um a tradição cultural que recusa a fala do corpo. O corpo em Noll m ergulha seu olh ar visionário e sua eroticidade no universo sensível, onde, enfim , o h om em possa aproxim ar-se do coração selvagem da vida. Sua narrativa aponta, sobretudo, para um horizonte onde seja possível a humanização p ara além da desumanização projetada p o r nossa sociedade pós-industrializada. C ontrapõem -se, outrossim , à neutralização cínica dos conflitos de classe e à dispersão do imaginário revolucioná­

rio e, m ais que isso, nos provoca a son h ar com um m u n d o o n d e o inteligível e o sensível não se contraponham m utuam ente.

NOTAS

1 SANTIAGO, Silviano. Prosa literária atu a l no B rasil. In: N as malhas da letra. São Paulo, C om panhia das letras, 1989.

2 PLATÃO. A república: Livro VII. Trad. Elza Moreira Marcelina. Brasília. Ed. Univer­

sidade de Brasília, 1989.

3 CADEMARTORI, Lígia. L iteratura e realidade do corpo. In: Os preferidos do p u ­ blicoOs gêneros da literatura de massa. Petrópolis, Vozes, 1987, p .23.

1 PORTER, Roy. H istória do corpo. In: A escrita da história. N ovas perspectivas.

São Paulo, UNESP 1992.

3 MATOS, O lgária. 0 desejo de evidência, desejo de vidência: Walter B enjam in. In:

0 olhar. São Paulo, C om panhia das Letras, 1988.

6 SANTIAGO, op. cit., p.63

7 NOLL, Jo ão Gilberto. Bandoleiros. R io d ejan eiro , Nova Fronteira, 1985. p .77 s NOLL, Jo ão G ilberto .A fú r ia do corpo. Rio de Jan eiro , Rocco, 1989. p. 6 9 NOLL, op. cit., p. 17

74 CERRADOS, Brasília, n° 5, 1996

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i° NOLL, op. cit., p. 9.

il NOLL, op. cit., p.26.

ï2 NIETZSCHE, F riedrich. 0 nascim ento da tragédia no espírito da música. In: Os pensadores. São Paulo, Nova Cultural, 1991, p . 18

13 NIETZSCHE, op. cit., p. 19.

14 N OLL, Jo ã o G ilberto . 0 Quieto a n im al da esquina. Rio d e Jan eiro , Rocco, 1991.

15 MERLEAU-PONTY, M aurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo, M artins Fontes, 1994.

ISABEL CRISTINA CORGOSINHO é professora da Fundação Educacional do DF e m e s tra em Teoria d a lite ra tu ra p e lo D e p a rta m e n to de Teoria L ite ­ rária e L ite ra tu ra s d a UnB.

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Referências

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