Supremo Tribunal de Justiça Processo nº 088283
Relator: MACHADO SOARES Sessão: 12 Março 1996
Número: SJ199603120882831 Votação: UNANIMIDADE Meio Processual: REVISTA.
Decisão: ANULADO O JULGAMENTO.
EMBARGOS DE TERCEIRO MATÉRIA DE FACTO JULGAMENTO
VALOR DA CAUSA ALÇADA TRIBUNAL COLECTIVO
Sumário
Em processo especial de embargos de terceiro, quando o valor da causa é superior ao da alçada da Relação, o julgamento da matéria de facto terá de ser obrigatoriamente efectuado pelo Tribunal Colectivo.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
Por apenso à execução ordinária para pagamento de quantia certa, movida a A e mulher por Cockburn Smither & C. Lda, e na qual foi penhorada uma
fracção autónoma de um prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, veio a Imobiliária Pinto
Ribeiro S.A., deduzir embargos de terceiro visando a restituição e a
manutenção da sua posse relativamente a essa fracção autónoma, que teria ingressado na sua esfera patrimonial por escritura pública de 9 de Março de 1989, como entrada em espécie para a integração do seu capital social e achando-se inscrita, a seu favor, no registo predial.
Na contestação, a exequente embargante, para além de deduzir o incidente do valor da causa, impugnaram também o acto de disposição patrimonial contido na escritura pública atrás referida, nos termos dos artigos 610 e seguintes do Código Civil.
Houve resposta à contestação.
Decidindo o incidente relativo ao valor da causa, foi proferido despacho fixando esse valor em 4050000 escudos.
Posteriormente veio a proceder-se a julgamento perante o Meritíssimo Juiz do processo, que culminou com a prolação da sentença que julgou improcedentes os embargos e ordenou o prosseguimento da execução.
A embargante recorreu para a Relação de Lisboa, mas sem êxito, pois esta, através do Acórdão de 18 de Maio de
1995, constante de folhas 164 e seguintes confirmou a sentença recorrida.
Ainda inconformada, a embargante agravou desse Acórdão para este Supremo Tribunal, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:
1- O valor processual da causa excede a alçada das Relações.
2- Somente os processos especiais nos quais se torne impossível a separação da matéria de facto da de direito excluem a obrigatoriedade da intervenção do Tribunal Colectivo.
3- Os embargos de terceiro constituem processo especial em que a matéria de facto claramente se destaca da matéria de direito.
4- A competência dos Tribunais Colectivos é definida no artigo 79 da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais.
5- O acórdão recorrido violou os artigos 79 da lei referida e 646 n. 3 do Código de Processo Civil.
6- Por isso deve ser revogado procedendo-se à anulação do julgamento da matéria de facto efectuado na 1. instância, com as consequências daí decorrentes.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
No caso sob judice, o valor da causa foi fixado em 4050000 escudos.
Não obstante, o julgamento da matéria de facto foi efectuado pelo Juiz singular.
Defende a agravante que, tendo em atenção o valor da causa - superior à alçada da Relação - competia ao
Tribunal Colectivo o julgamento da matéria de facto, pelo que este deverá ser anulado, nos termos do n. 3 do artigo 646 do Código de Processo Civil.
A Relação não subscreveu esta tese, esgrimindo, ao sustentar a asserção contrária, com o disposto no artigo 791 daquele mesmo diploma para onde remetem os artigos 1033 e 1042, também daquele código, que se inserem na regulação de processo de embargos de terceiros, aqui especialmente visado - o qual só possibilitaria a intervenção do Colectivo, se alguma das partes a requeresse, o que não aconteceu, neste caso.
Não sufragamos esta posição.
O artigo 79 alínea b) da Lei Orgânica dos Tribunais
Judicial (LOTJ) dispõe na alínea b) do seu artigo 79 que compete ao Tribunal
Colectivo julgar "as questões de facto nas acções de natureza cível, família e trabalho, de valor superior à alçada dos Tribunais
Judiciais de primeira instância, salvo tratando-se de acção de processo
especial, cujos termos excluam a intervenção do Tribunal Colectivo, bem como as questões da mesma natureza nos incidentes, procedimentos cautelares e execuções que sigam os termos do processo de declaração e excedam a
referida alçada, sem prejuízo dos casos em que a lei de processo prescinda da intervenção do colectivo".
Segundo este preceito, o Tribunal Colectivo não intervém no julgamento das acções de processo especial, de valor superior à alçada dos Tribunais Judiciais de primeira instância, em dois casos, ou seja, quando os termos dessas acções excluam a intervenção desse tribunal ou quando a própria lei de processo prescinde de tal intervenção.
Ora, nenhuma destas hipóteses ocorre no caso sub judice.
A última, reporta-se naturalmente "àqueles casos em que a lei de processo determina expressamente a não intervenção do tribunal colectivo no
julgamento da matéria de facto, como são os previstos no n. 2 do artigo 646 e no artigo 791 (cfr. Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 15 de Novembro de 1989, Boletim 391, páginas 509 e seguintes).
A outra, que se verifica quando os termos das acções agora visadas excluem, eles próprios, a intervenção do
Tribunal Colectivo, tem em vista, segundo o ensinamento do Professor Alberto dos Reis, a propósito do preceito semelhante, as acções que não admitem audiência de discussão e julgamento e cuja tramitação torne impossível a separação entre o julgamento de facto e o julgamento de direito (Rev. Leg. Jur.
85, páginas 3 e 17; Dr. Alberto Baltazar Coelho, "Atribuição do Tribunal Colectivo...", in Col. - Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça 1984, I, páginas 5 e seguintes).
Como não ocorrem, neste caso, tais excepções, é ao
Tribunal Colectivo que, de harmonia com a citada alínea b) do artigo 79 da LOTJ, competiria, em principio, o julgamento da matéria de facto, nesta acção.
Há que ter em conta, porém, que, por remissão dos artigos 1033 e 1042, os embargos de terceiros seguem basicamente os termos do processo sumário.
Ora, do artigo 791 n. 1, que se integra no âmbito sitológico desta forma de processo, resulta que o Tribunal Colectivo só intervém, se for requerida por qualquer das partes a sua intervenção.
Atendendo, porém, ao n. 1 do artigo 462, do diploma que vimos referindo (C.P.C.), é óbvio que o regime do n. 1 do artigo 791 só se aplica, em regra, quando o valor da acção não excede a alçada da Relação.
Será, no entanto, que a remissão feita pelos citados artigos 1033 e 1042, para o n. 1 do artigo 791, não atende a esta limitação, atinente ao valor da alçada, e que, por isso, ao nível das acções, com processo especial, que seguem,
basicamente, os termos do processo sumário, como é o caso em apreço, se aplica sempre a disciplina daquele n. 1 do artigo 791, como aliás se sustentou no Acórdão recorrido?
A nossa resposta só pode ser negativa, até porque, tal hermenêutica
inutilizaria a determinação da alínea b) do artigo 79 da LOTJ - que, por isso mesmo, não foi minimamente considerado naquele aresto - excluindo
praticamente, do seu âmbito, pelo menos em termos de obrigatoriedade, as acções com processo especial, aqui referenciadas, como é a sub judice. por isso, o nosso posicionamento interpretativo é outro:
Quando nos processos especiais, como este, se remete para a disciplina do processo sumário, designadamente para o dispositivo do n. 1 do artigo 791, essa remissão faz-se para este preceito, sim, mas com a amplitude que ele naturalmente tem, ou seja, com a amplitude que, ao nível do processo comum, lhe foi dada pelo legislador.
Assim, se o processo especial tem, como é o caso, um valor superior à alçada da Relação, tal remissão não é viável para o n. 1 do artigo 791, porque este preceito não foi pensado pelo legislador para acções com esse valor. De
contrário, verificar-se-ia uma intolerável e gratuita diminuição de garantias - o que seria absurdo!
- desses processos relativamente aos processos comuns, de igual valor.
É esta, aliás, a ideia - se bem vemos - que subjaz à afirmação contida no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Novembro de 1989, já
citado, de que "não faria o mínimo sentido que a matéria de facto de uns embargos de terceiro de valor de milhares ou milhões de contos pudesse ser decidida pelo tribunal singular".
Portanto, quando os processos especiais ora enfocados, como é o sub judice, com valor superior à alçada da Relação, cabem obrigatoriamente ao Tribunal Colectivo o julgamento da matéria de facto, como determina a citada alínea b) do artigo 79 da LOTJ, por não se justificar, em tais casos, a remessa para o n. 1 do artigo 791.
E claro está - nem seria preciso dizê-lo - que aquela alínea b) ao referir-se a processos de valor superior à alçada da primeira instância, abrange, também obviamente os de valor superior à alçada da Relação.
Face às premissas postas, resta considerar, a este respeito, que só os
processos especiais, nas condições do aqui versado, mas de valor superior à alçada da primeira instância, e inferior à da Relação, poderão ser julgados pelo Juiz singular ou pelo Tribunal Colectivo, mas, neste caso, se a intervenção
deste tiver sido requerida por qualquer das partes.
No caso sub judice, como o valor da causa é superior ao da alçada da Relação, o julgamento da matéria de facto teria de ter sido obrigatoriamente efectuado pelo Tribunal Colectivo, e não, como foi, pelo juiz singular.
Preceitua o n. 5 do artigo 646 n. 3 do Código de Processo Civil que "Se as questões de facto forem julgadas pelo juiz singular quando o devam ser pelo Tribunal Colectivo, será anulado o julgamento".
Esta nulidade, como defende Rodrigues Bastos (Notas,
III, página 204) pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada
oficiosamente pelo Tribunal em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito, sobre o fundo da causa" (Professor Alberto dos Reis, Anotado IV, página 474; Professor Manuel de
Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, página
27; vejam-se ainda Acórdão do S.T.J. de 15 de Novembro de 1979, já citado, de 13 de Junho de 1993, in Col. 1993 - Acórdão do S.T.J. - II, página 106).
Assim, dando-se provimento ao recurso, anula-se o julgamento da matéria de facto proferido na 1. instância, e, bem assim, os termos processuais que dependam de tal anulação.
Custas pela parte vencida a final.
Lisboa, 12 de Março de 1996 Machado Soares,
Fernando Fabião (dispensei o visto), Fernandes Magalhães.