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Teatro site specific

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Academic year: 2018

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TEATRO

SITE-SPECIFIC

Três estudos de caso

Jorge Palinhos, Maria Carneiro e Susana Paixão

Centro de Estudos Arnaldo Araújo Escola Superior Artística do Porto

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Centro de Estudos Arnaldo Araújo

Escola Superior Artística do Porto

Jorge Palinhos, Maria Carneiro e Susana Paixão

TEATRO

SITE-SPECIFIC

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Edições Caseiras / 28

Título:

Teatro site-specific. Três estudos de caso Autores:

Direcção gráfica:

Jorge Cunha Pimentel

Arranjo gráfico:

Joana Couto

Edição:

Centro de Estudos Arnaldo Araújo da CESAP/ESAP

Apoio:

Propriedade:

Cooperativa de Ensino Superior Artístico do Porto Largo de S. Domingos, 80

4050-545 Porto, Portugal Telef.: +351 223 392 100/40 Fax: +351 223 392 101

1ª edição, Porto, Maio de 2017 Tiragem: 300 exemplares

Escola Superior Artística do Porto Largo de S. Domingos, 80 4050-545 Porto, Portugal Telef.: +351 223392130 Fax.: +351 223392139 e-mail: ceaa@esap.pt www.ceaa.pt

Jorge Palinhos, Maria Carneiro e Susana Paixão

© dos autores e CESAP/CEAA, 2017

Impressão e acabamento:

ISBN: 978-972-8784-69-0

Depósito Legal:

Este livro foi sujeito a um processo anónimo de revisão por pares (double blind peer review). Referees: Cláudia Marisa, Eduarda Neves e Marta Freitas Almendra

Este livro foi realizado no âmbito do projeto Arquitecturas Dramáticas (ESAP/2013/P08/TRV) e impresso na sequência do mesmo projecto (ESAP/2016-17/P35/SATH), com financiamento da Secção Autónoma de Teoria e História da Escola Superior Artística do Porto

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INTRODUÇÃO

VISÕES ÚTEIS: VIAGENS PERFORMATIVAS - A "ARTE NA PAISAGEM" COMO TRABALHO SITE-SPECIFIC

A CASA COMO ESPAÇO E MEMÓRIA: CASO DE ESTUDO DO ESPECTÁCULO ATÉ COMPRAVA O TEU AMOR DO TEATRO DO VESTIDO

O TRABALHO TEATRAL DA PRODUÇÕES

SUPLEMENTARES DE TEATRO: ESPAÇOS TEATRAIS ALTERNATIVOS E SITE-SPECIFIC

Maria Helena Maia

Jorge Palinhos

Maria Carneiro

Susana Paixão

Índice

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Teatro site-specific. Três casos de estudo corresponde ao trabalho desenvol-vido no início do projeto Arquiteturas Dramáticas, que desde 2014 tem vindo a decorrer no âmbito do grupo de Estudos de Arquitetura do Centro de Estudos Arnaldo Araújo e da Secção Autónoma de Teoria e História da Escola Superior Artística do Porto, com financiamento conjunto destas duas estruturas da ESAP.

Trata-se de um trabalho inicial, em que se começava a tatear o caminho para a compreensão das interações e interseções entre Arquitetura e Teatro, nas suas múltiplas vertentes.

Conhecer melhor o trabalho no campo do teatro site-specific desenvolvido por algumas companhias sediadas no norte do país, foi a primeira opção, em que pesou a proximidade física e a necessidade de circunscrever o âmbito do estudo de modo a torná-lo exequível no tempo reduzido em que era suposto ser executado.

Entretanto o projeto cresceu, ganhando um horizonte teórico mais alargado e dimensão internacional mas, por isso mesmo, importa registar este trabalho inicial, desenvolvido por dois investigadores, Jorge Palinhos e Maria Carneiro e por uma aluna de licenciatura, Susana Paixão, que no âmbito de um estágio creditado de investigação da ESAP, participou no arranque do projeto para o qual contribuiu com o trabalho que agora também se publica.

Três autores, todos eles com formação na área do teatro, refletem sobre o trabalho de três companhias – Visões Úteis, Teatro do Vestido e Produções Suplementares de Teatro – que têm em comum contarem na sua atividade com espetáculos site specific, em espaços não convencionais.

Um exercício que agora os autores vêm registar e partilhar.

INTRODUÇÃO

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Neste estudo procede-se à análise do trabalho site-specific da companhia Visões Úteis, nomeadamente no que diz respeito aos seus trabalhos realizados sob o tema de “Arte na Paisagem”. Para tanto irei caracterizar brevemente o percurso da companhia dentro deste âmbito – ou seja, excluindo o substancial trabalho de teatro de palco que a companhia também tem desenvolvido – e focando-me especialmente numa das performances da companhia – O Resto do Mundo – como exemplo de análise do tipo de trabalho site-specific desenvolvido pelo coletivo teatral do Porto.

Teatro site-specific

A arte site-specific é uma forma artística que ganhou relevância a partir dos anos 60, com a tentativa de vários artistas de criarem obras que fossem

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específicas de determinados locais. Segundo Mion Kwon , estes artistas procuravam chamar a atenção para as condições específicas de produção e apresentação das obras de arte, mas mais tarde esta foi usada para chamar a atenção para questões culturais e sociais mais amplas, relacionadas com cada lugar, numa busca de tornar o espaço numa metáfora para as questões políticas ou sociais mais prementes.

A esta busca acrescia o ensejo de dar relevo às impressões de autenticidade e experiência que cada espaço proporcionava. Ao empregar espaços reais, aproveitados nas suas especificidades físicas, sociais, culturais, patrimoniais e históricas, a própria performance ganhava uma singularidade e palpabilidade que outras formas artísticas não proporcionavam. E, no caso das artes performativas, uma experiência singular que convocava o espectador para fora da sua zona de conforto e para o horizonte de uma experiência irrepetível. Isto é, em contradição com o espaço especta-cularizado do lugar teatral, entrávamos no espaço funcional e formal da arquitetura construída ou da paisagem, que seriam espectacularizadas. Ou seja, estaríamos perante um espaço real que também se tornava «uma

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concepção espacial figurada, ilusionística» proporcionando assim a possibilidade de tornar o mundo num palco, segundo a famosa citação de Shakespeare.

Dito de outro modo, a metodologia site-specific pode potencialmente tornar o próprio espaço invisível, ou um mero palco para o espetáculo, no sentido em

VISÕES ÚTEIS: VIAGENS PERFORMATIVAS -

A "ARTE NA PAISAGEM" COMO TRABALHO

SITE-SPECIFIC

Jorge Palinhos

1. Miwon Kwon – One place after the other. Cambridge: MIT Press, 2002, pp. 3-5.

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que o espaço não explora devidamente a singularidade da sua existência e configuração enquanto espaço autónomo. Remeto para tal, por exemplo, encenações de textos clássicos em espaços não-convencionais, em que a configuração espacial contribui para a experiência performativa, mas não está no centro desta, tornando-se, por isso, apenas mais um cenário, mas um cenário com uma qualidade particular de realidade.

Para uma performance poder ser considerada site-specific, deve ter o espaço como central à sua conceção e à sua execução. Não só atendendo aos seus traços específicos, mas contribuindo ativamente para os revelar.

Sugiro que o trabalho site-specific do Visões Úteis obedece em larga margem a esses princípios, embora marcado por algumas características reveladoras de uma dada postura artística da própria companhia, que irei tentar demonstrar.

Visões Úteis

Visões Úteis é um dos coletivos teatrais mais conceituados do Porto, tendo o seu trabalho já sido distinguido a nível municipal e tido ressonâncias nacionais e internacionais. Para além do trabalho que desenvolve para palco, tem também vindo a explorar uma linha de investigação e prática artística no âmbito do espaço e paisagem, a que foi dado o nome de «Arte na Paisagem».

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Segundo as informações do CETBASE , o coletivo Visões Úteis foi fundado em 1994 por Ana Vitorino, Carlos Costa, Catarina Martins, Lucinda Gomes, Nuno Cardoso, Paulo Lisboa e Pedro Carreira. A matriz do grupo não se encontra no Porto, mas em Coimbra, onde todos os membros se encontraram e colaboraram no âmbito do CITAC, nomeadamente sob a direção do ator e encenador brasileiro Paulo Lisboa. O CITAC – Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra – é, juntamente com o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, uma das principais e mais antigas companhias universitárias de teatro em Coimbra, tendo sido fundado em 1956. Apesar do longo historial e de muitas mudanças na sua direção artística, o CITAC sempre manteve uma forte consciência política e social e um profundo

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interesse em formas não-canónicas de teatro e de ocupação do espaço . A fundação do Visões Úteis reconhece esse alicerce, pois, ainda segundo o CETbase:

na Inf. Nº 142/BA/95, datada de 26-05-1995, podemos ler sobre este colectivo o seguinte: «(...) Visões úteis é constituída maioritariamente por actores e artistas de outras áreas que durante vários anos partilharam uma experiência teatral no CITAC – Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra. A origem da companhia está intimamente relacionada com a dinâmica introduzida no grupo universitário pelo encenador e actor Paulo Lisboa, director da Companhia Absurda, de Belo Horizonte, Brasil, que nos últimos anos tem desenvolvido grande parte da sua actividade no nosso país,

3. CETBASE – http://ww3.fl.ul.pt/CETbase/reports/ client/Report.htm?ObjType=Instituicao&ObjId=414 (Acesso a 24 de Novembro de 2014).

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particularmente em Coimbra com o CITAC. Vale a pena destacar o facto de a companhia ter elegido a cidade do Porto para a sua instalação, incluindo a utilização e recuperação para o meio teatral do Teatro Sá de Bandeira, (...).» [in: arquivo do Serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian, Sector de Teatro, dossier T.213 - 041435 - P, processo Visões Úteis];

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Como notam Isabel Alves Costa e Paulo Eduardo Carvalho (2008) , tal origem era singular para uma companhia, nesta época e na cidade do Porto, onde a maioria das novas companhias formadas vinham das escolas de teatro que haviam sido fundadas na cidade, como era o caso do Balleteatro, da Academia Contemporânea de Espectáculo e da Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo. É verosímil que esta matriz original tenha contribuído de forma significativa para que o trabalho artístico do VU apresentasse diferenças substantivas no panorama teatral do Porto.

No momento da escrita deste texto, a companhia contava já com 38 espetáculos e 9 apresentações de Arte na Paisagem, segundo o site da companhia. Na verdade, nos seus primeiros anos, o VU dedicou-se fundamentalmente a realizar peças para palco, quase sempre dirigidas por encenadores convidados. A qualidade de tal trabalho acabaria por ser reconhecida com a Medalha de Mérito Municipal, em 2001, atribuída pela Câmara do Porto. No entanto, a dada altura começaram a verificar-se transformações no trabalho do grupo. Estas transformações passaram por mudanças na composição sua que acabaria por ter como núcleo criador e dinamizador, a partir de finais dos anos 90, Ana Vitorino, Carlos Costa, Catarina Martins e Pedro Carreira.

Podem identificar-se vários momentos que esboçam uma mudança de rumo no percurso da companhia, mas, no âmbito dos primórdios do trabalho realizado sob a égide de «Arte na Paisagem» irei sublinhar três espectáculos. O primeiro foi Casa de Mulheres, uma peça estreada em 1996, e que teve 76 apresentações até 1999. Casa de Mulheres, segundo o testemunho da própria companhia, seria um marco para fomentar no grupo a confiança de que seria capaz de desenvolver conceitos e ideias originais para espectáculos, em vez de se basear em peças pré-existentes. O segundo foi Shiu! (2000), uma instalação site-specific, realizada na Igreja dos Grilos, no Porto, com textos adaptados a partir da obra do escritor e dramaturgo italiano Tonino Guerra, que incentivou a criação de peças para locais específicos. O terceiro trabalho foi Visíveis na estrada através da orla do bosque (2001), um projeto artístico singular que, acredito, contribuiu de forma poderosa para a estética do grupo, e em particular para a estética do grupo no âmbito da Arte na Paisagem, tal como passarei em seguida a desenvolver.

5. Isabel Alves Costa e Paulo Eduardo Carvalho –

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Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque (2001)

Visíveis na Estrada Através da Orla do Bosque pode ser descrito como uma peça de processo, isto é, cujo cerne está mais na sua forma de construção do que no resultado que foi apresentado ao público. Segundo o livro homónimo publicado pela companhia:

foi o projecto em três fases (...) Numa primeira fase apresentámos no Porto o espectáculo "estudos" (estreado em Abril na Galeria "Maus Hábitos") que teve ponto de partida nestes temas (...) Numa segunda fase (Maio/Junho) partimos pelas estradas Europeias durante quatro semanas e ao longo de cerca de dez mil quilómetros, contactando e trabalhando com artistas, intelectuais e entidades culturais ligados a uma ideia de Europa e de cultura Europeia contemporânea.(...) Finalmente, numa terceira fase apresentámos no Porto, em Outubro, no Teatro do Campo Alegre, uma síntese destes contactos e das influências que sofremos em viagem, num espectáculo a que

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chamámos simplesmente... "Orla do Bosque".

Do excerto citado gostaria de sublinhar a ideia do poder transformador da viagem, que o grupo admite que esteve subjacente ao conceito deste projeto artístico, na forma como uma viagem pode transformar os criadores/intérpretes de uma obra e, por isso, a própria obra. Não creio que seja coincidência que posteriormente a este projeto todas as obras que a companhia realizou no âmbito da Arte na Paisagem e de projetos site-specific

tivessem como cerne a viagem e a capacidade de transformação que o movimento espacial e cultural possa ter sobre o indivíduo. Aliás, a primeira obra a ser realizada sob a categoria geral de Arte na Paisagem é justamente uma viagem, um percurso a pé desempenhado pelo próprio espectador, o

audiowalkComa Profundo.

Coma Profundo (2002)

A companhia entrou em contacto com o conceito de audiowalks em Londres, em 2000, num trabalho da artista plástica canadiana Janet Cardiff, com a performance The Missing Voice (case study b) (1999), no qual o espectador percorria o East End de Londres enquanto escutava uma narração áudio que correlacionava referências ao espaço com elementos ficcionais do género policial noir. Segundo Kitty Scott:

Cardiff produces each audio-walk on location, inflecting it with the character of a place and giving it the guise of a tour or travelogue. (…) You are central to the story, because it happens in your head. You unwittingly become a performer who completes a circuit both literally and metaphorically. As a silent voyeur you resist the category of the innocent bystander seen in many films; you are more like a walk-on

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exhibition. The audio-walks simultaneously spectacularize and subsume your body. You are a technologically enhanced living reference point and Cardiff implicates you emotionally and

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environmentally. Her voice leads. You follow.

Segundo os próprios membros da companhia afirmaram em entrevista presencial, estes ficaram fascinados com o potencial do formato, especialmente com a sensação de liberdade telecomandada que este confere ao espectador, que se sente orientado no percurso e nas decisões, mas ao mesmo tempo livre nos seus movimentos e gestos. E daí terá surgido a decisão de realizar um projeto dentro do conceito dos audiowalks.

No seguimento do Porto Capital da Cultura, em 2001, durante o qual a cidade sofreu uma profunda transformação urbanística, a companhia sentiu a necessidade de abordar a questão do urbanismo e das transformações urbanas no seu trabalho artístico. E encontrou o formato e o espaço ideal para trabalhar o tema, através do audiowalk e no espaço da Foz Velha.

A Foz Velha é uma zona tradicional piscatória que até ao início do século XX se encontrava ainda à parte da zona administrativa e social do Porto, até a Avenida da Boavista ser inaugurada em 1917. Com a integração urbana e com a apetência que a proximidade do mar tende a gerar, a zona foi sendo cada vez mais procurada por uma classe abastada, que procurava uma vivência muito diferente daquela que a pequena comunidade piscatória normalmente trazia. De uma configuração de casas baixas e próximas e uma vida comunitária intensa e pedonal, a zona foi ganhando uma configuração de construção em volume, condomínios fechados e vida comunitária mínima, regida pelas deslocações automóveis.

O desenvolvimento destes temas, a sua ligação intrínseca, trouxe-nos a Coma Profundo, um projecto que tenta reflectir sobre o modo como lidamos com a morte do homem e a morte do espaço, ou seja, como lidamos com a nossa memória individual e colectiva. Atravessamos um espaço como um local utilitário, ignorando, activa ou passivamente, que ele foi parte da vida de milhões de homens antes de nós. Desprezamos a vida, o trabalho, os erros de todos os que nos precederam na vã convicção de que somos melhores, faremos melhor. A nós ninguém nos esquecerá. Desprezamos a memória dos homens mortos e, consequentemente, o espaço onde deixaram as suas marcas e o seu cheiro. Desprezá-los ajuda a adiar a consciência da nossa própria efemeridade da nossa própria capacidade de errar, da possível futilidade de todas as nossas grandes certezas e aspirações. Vamos esquecendo e construindo de novo, cada vez maior e mais alto, para que a marca agora seja indelével, como se a História a nós não nos

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apanhasse… 7. Janet Cardiff – The Missing Voice (case study b).

Londres: Artangel, 1999, p. 5.

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É assim que o projeto é apresentado no livro que o regista e, como a passagem transcrita indica, trata-se de um projeto fantasmático, onde se procura registar a mudança de um espaço, e a forma como este se transforma – e aquilo que perde, no entendimento dos criadores do projeto – com a ação humana. O projeto assentou numa pesquisa exaustiva sobre a configuração do local e hábitos da população. Com base nesta pesquisa foi criado este audiowalk em que o espectador é convidado a percorrer um itinerário determinado, onde vai escutando diferentes vozes a falar do espaço, da sua história, dos seus hábitos. O texto sonoro assenta fundamentalmente em duas vozes: uma voz masculina que dá instruções e comentários objetivos sobre o espaço ao ouvinte, e uma voz feminina que vai traduzindo impressões subjetivas, poéticas e inquietantes. Além do som, a companhia também distribuiu marcas subtis pelo espaço, como cartazes, mensagens, que o espectador poderia ou não encontrar, e que ajudariam a criar maior envolvência. Embora, segundo o testemunho da companhia, o seu objetivo fosse fundamentalmente revelar os contrastes entre as zonas antigas, pitorescas e de escala humana e social da zona com os novos condomínios privados e edifícios construídos em altura e de acesso automóvel, através do percurso e das chamadas de atenção das próprias vozes e sons, que iam, tanto quanto possível, subtilmente dirigindo o olhar do espectador.

Coma Profundo acabou por ter um impacto público notável, tendo sido inclusivamente reposto, mas não teve qualquer impacto do ponto de vista urbanístico da zona, que continua a gentrificar-se e a descaracterizar-se. Inclusivamente o percurso terminava numa zona perto de um estaleiro de novos prédios e condomínios em construção, prédios esses que hoje foram concluídos e são habitados.

Errare (2004)

Partindo da experiência prévia de Coma Profundo, e com base num convite da Fundação Cultural Edison, sedeada em Parma, o coletivo realizou um outro audiowalk nesta mesma cidade italiana.

Para este audiowalk, a companhia assumiu que a relação com o espaço urbano seria necessariamente diferente. Não um olhar de habitante, politicamente comprometido com a cidade, como acontecia com o Porto de

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Obviamente, não deixou de haver também um olhar político, com o percurso a explorar os contrastes urbanos da cidade, entre a zona antiga e turística e a zona mais nova e mais pobre, mas não foi esse o objetivo explícito do projeto.

Os ossos de que é feita a pedra (2009)

Os ossos de que é feita a pedra foi um audiowalk encomendado para a inauguração da Cidade da Cultura da Galiza, e cujo propósito era o de explorar a arquitetura do espaço construído, ainda despido de equipamentos, na sua relação com a cultura galega, usando para tal o mesmo dispositivo do audioguia e o percurso, que desta vez seria feito em grupos pequenos, acompanhados por um guia-segurança que controlava os movimentos e unidade do grupo.

Era o passo seguinte natural a Coma Profundo, e marcava a disponibilidade do grupo para pensar não só o urbanismo, mas a própria arquitetura através da caminhada e do som. Todavia, mudanças políticas determinaram que a performance nunca chegasse a concretizar-se, tendo sido cancelada aquando da estreia.

Cluny – A Língua das Pedras (2010)

No âmbito das comemorações dos 1100 anos da fundação da Ordem Monástica de Cluny, a companhia propôs-se fazer uma performance que explorasse o legado espiritual da ordem através do percurso dos seus espaços emblemáticos. Evitando repetir o modelo do audiowalk, a companhia criou um projeto em que os intérpretes fizessem um percurso próprio, em caminhada, pelos vários locais emblemáticos da ordem, durante o qual recolheram imagens, sons, testemunhos, que permitiram posteriormente criar uma instalação multimédia.

Aqui, como noutros projetos anteriores, vemos ser retomada a ideia da experiência enquanto portadora de sentido artístico, que já havíamos encontrado em Visíveis Na Estrada Através da Orla do Bosque, por exemplo.

Viagens com alma (2011)

Em Viagens com alma (2011) a companhia voltou aos audiowalks, desta vez talhados para explorarem espaços arquitetónicos e patrimoniais. Numa parceria com a Diocese do Porto, a companhia criou quatro audiowalks para quatro monumentos sacros românicos: o Mosteiro de São Pedro de Cête, o Mosteiro de São Salvador de Paço de Sousa, o Mosteiro de São Salvador de Vairão e o Mosteiro de Santo Tirso de Riba d'Ave.

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desestabilizassem a perceção do próprio espectador, fazendo-o questionar-se do papel do edifício nos dias de hoje.

Biométricos Rua (2014)

Biométricos Rua foi um audiowalk integrado num projeto maior da companhia, que abarcava também o Biométricos Mira, uma exposição sobre esforço físico, e Biométricos Parque, um jogo entre equipas cujos jogadores tinha a sua perceção visual alterada. Nestas três performances, o Visões Úteis procurava explorar a experiência e perceção do esforço físico humano. Ao contrário dos audiowalks anteriores, todavia, Biométricos Rua não procurava estabelecer uma relação com o espaço arquitetónico e urbanístico envolvente, mas apenas com a morfologia do local, pelo que não pode ser exatamente considerado site-specific. Isto é, a companhia definiu percursos consoante o seu grau de elevação, e estabeleceu uma dramaturgia de jogo – em que o espectador recebia “pontos” por percorrer as áreas mais difíceis em menos tempo, a fim de incentivar o esforço físico do próprio espectador. Segundo a própria companhia, esta experiência do esforço físico promovia no espectador uma maior empatia para com as histórias que escutava, todas elas – fossem testemunhais ou não – relacionadas com a experiência de esforço físico, quase sempre em contexto laboral.

O Resto do Mundo (2007)

Como referi antes, irei analisar mais aprofundadamente esta performance de 2007, pela sua representatividade no historial da companhia e impacto mediático e público. Em traços conceptuais, O Resto do Mundo consistia numa viagem de táxi do centro do Porto até algumas das zonas mais degradadas da sua periferia, usando textos, personagens e referências da novela de Joseph Conrad, O Coração das Trevas.

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contribuísse para criar um certo estado de espírito no espectador. O público seguia no carro com dois atores: um encarnava o narrador da história e outro o próprio Marlow. Estes dois performers eram complementados por vozes gravadas e música ambiente transmitida pelo autorrádio.

Examinando o percurso usado é possível identificar uma dupla função espacial. Efetivamente, o ponto de partida é perto da igreja e estação de metro da Trindade, naquele que é considerado o centro político e social da cidade, onde se encontra a Câmara Municipal, mas também diversos serviços centrais, como correios, transportes, serviços burocráticos, etc. O percurso prosseguia em seguida pelos Aliados e Ribeira, no que se pode considerar a zona turística da urbe, antes de subir a marginal do rio Douro, até à zona para lá do Freixo, onde o táxi virava para o interior, enveredando por um labirinto de percursos em terra batida, alcatrão, e outras vias semirrurais, onde os passageiros do veículo se sentiam em território desconhecido, ou mesmo hostil, entre hortas, baldios, urbanizações sociais e edifícios degradados. Antes de o veículo voltar na direção do centro da cidade e encontrar-se, subitamente, junto ao Estádio do Dragão e ao centro comercial Dolce Vita, que assinalava o fim da viagem e o abandono do táxi por parte dos passageiros/espectadores.

Por um lado, há uma tentativa de aproximar o percurso terrestre aos ambientes criados por Conrad. Tal é evidente no uso da marginal do rio, seguindo no sentido ascendente, mas também no uso da luminosidade natural, aproveitando o crepúsculo para gerar um ambiente cada vez mais opressivo e inquietante. Ou seja, estamos perante um uso inteligente dos Figura 1. Uma visão panorâmica do itinerário

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espaços urbanos para promover a performance, o gesto e a crítica social. Mais precisamente, em todo o sentido, desde o centro urbano, representação simbólica da civilização, do poder, até à periferia degradada, de pobreza, caos urbanístico, problemas sociais e isolamento, para terminar subitamente junto a um centro comercial e a um Estádio, que representam o consumismo, a alienação social, e uma civilização assente em valores materiais.

Nesta performance é possível identificar alguns dos diferentes tipos de

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espaços descritos por Judith Rugg que são usados no teatro site-specific, sendo os mais significativos para esta performance a noção de espaços contingentes – isto é: espaços que são contíguos aos espaços hierárquicos da cidade organizada. Diria mesmo que esta performance do Visões Úteis funciona, de forma dramatúrgica e ficcional, como uma revelação desses espaços contingentes da cidade hierárquica e organizada. Aproximando a margem desorganizada do centro organizado através de um veículo comum – um táxi – e uma obra literária consagrada, o espectador-passageiro é forçado a confrontar-se com a ideia de que a própria organização e hierarquia e civilização e cultura estão próximas do caos e do irracional. E, tal como diz Rugg em relação aos espaços contingentes, que são transformados em instalações através de performances, de forma a revelarem a cidade enquanto

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espectáculo, numa altura em que a cidade do Porto começava a investir fortemente no seu potencial turístico, esse potencial era atacado por esta performance enquanto encenação e mito.

Estamos por isso perante a concretização da experiência arquitetónica tal como é descrita por Vieira de Almeida:

temos em A um observador “envolvido” no seu espaço virtual e que por qualquer motivo ele se desloca até B. Este movimento é por hipótese real e chegando a B, o observador possui não só o espaço sensível desta segunda posição mas a memória do espaço sensível A, e também a memória de todos aqueles que corresponderam a posições intermédias (…) Esta experiência realizada permite-lhe ajuizar de uma outra experiência virtual C, e assim alargar progressivamente o

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seu conceito de espaço, sobretudo em extensão.

Esta ação de deslocação entre espaços acaba por criar um nexo de perceção que funciona como construção dramatúrgica do próprio espectáculo. Creio que se pode afirmar que a construção dramatúrgica desta performance é baseada numa combinação de contrastes e continuidades de espaço e gesto. Encontramos a continuidade na própria noção de viagem, com o público a ser levado de táxi num itinerário relativamente contínuo e coerente, durante um tempo contínuo, que transmite uma sensação de coerência percetual. Tal coerência de tempo e presença é contrariada pela seleção e sucessão cuidadosa de espaços contrastantes que são atravessados.

9. Judith Rugg – Exploring Site-Specific Art. New York: Tauris, 2010, p. 33.

10. Judith Rugg – Exploring Site-Specific Art. New York: Tauris, 2010, p. 34.

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Georg Simmel notou que a vida urbana é marcada por contrastes violentos e uma forte especialização. Creio que é indubitável que essas características são essenciais para o drama e a dramaturgia em geral, sendo por isso que grande parte do drama ocidental é eminentemente um drama urbano e não rural, espaço mental e cultural onde predomina uma dramaturgia ritualizada, repetitiva e contínua. Esses contrastes urbanos agudizaram-se nas cidades modernas, com a sua organização em diferentes áreas, com diferentes populações e diferentes estilos de vida. Se a cidade até ao século XIX era um aglomerado de aldeias dentro das quais os seus habitantes viviam, trabalhavam e morriam, a cidade atual é um conjunto de áreas especializadas, no lazer, no trabalho, na habitação. Tais diferenças podem derivar de razões urbanísticas, mas também económicas e sociais.

Considero, por isso, notável como O Resto do Mundo permite explorar todas estas noções naquilo que se pode entender como uma dramaturgia dos contrastes urbanos. Essa dramaturgia já estava configurada noutras expe-riências de audiowalks, como Coma Profundo e Errare, mas é aqui levada mais longe, constituindo uma utilização particularmente sofisticada das dimensões do espaço e distância que permite explorar o “espaço urbanístico”

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enquanto “espaço exterior modelado” e social. A distância entre a “cidade institucional” e a “cidade marginal”, na qual a primeira representa a cultura, poder, história, engenharia e natureza, ao contrário da “cidade da margem” que representa a natureza ao abandono, a pobreza, o subdesenvolvimento, a impotência comunitária e o isolamento, que são dramaturgicamente ligadas através de um movimento contínuo através do espaço e sob condições de luz natural muito específicas. A conclusão do movimento, e da performance, remete-nos para a visão do consumismo e entretenimento, exibidos pelo centro comercial e o estádio de futebol, que traduz um simulacro de sucesso e unidade numa comunidade que o espectador acabou de presenciar como sendo dividida e em degradação.

Temos aqui subjacente uma visão ideológica da cidade, obviamente, mas a dramaturgia da performance explora também o conceito do desconhecido, onde o desconhecido geográfico se revela também enquanto vazio emocional. A falta de ligação emocional do passageiro com o ambiente em redor revela também a falta de empatia para com a paisagem humana.

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Retomando a ideia de Walter Benjamin de que é necessário um vínculo emocional que permita a organização percetual do espaço, estamos perante um público que, vindo de uma classe média e de um fundo intelectualizado, é neste caso exposto ao vazio emocional da paisagem. Não afirmo que esta paisagem não contenha vínculos emocionais humanos. Pelo contrário. Mas o público deste espetáculo, e do teatro em Portugal no geral, tem ligações humanas limitadas com esta paisagem. Pouco do público do passeio teria ligações afetivas com populações locais. E, como afirmava Benjamin, sem um foco emocional, este espaço torna-se sem sentido e confuso. Todavia o 12. Georg Simmel – Fidelidade, gratidão e outros

textos. Lisboa: Relógio d'água, 2004, p. 76.

13. Pedro Vieira de Almeida – Ensaio sobre o Espaço da Arquitectura. Porto: CEAA, 2011, p. 61.

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público também ganha consciência da sua proximidade geográfica, o que acaba por constituir o cerne do espetáculo. Estas são “regiões” diferentes, no

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sentido que lhes dava Goffman, na medida em que são áreas que constituem barreiras emocionais e percetuais à perceção individual. Mesmo que, geográfica, política e representacio-nalmente se nos afigurem como a mesma região.

Por fim, gostaria de notar que o efeito de ficcionalizar estes espaços reais tem como resultado a ficcionalização do próprio espectador. Ou seja, o público é

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afastado da realidade e situa-se num círculo mágico de Huizinga que acaba por se sobrepor à própria realidade.

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Todavia, voltando a Benjamin e à sua distinção entre documento/matéria e a obra de arte/forma, torna-se evidente que o teatro site-specific funciona a partir da matéria de espaço e gesto, mas, para o compreender enquanto arte e trabalho, é necessário entendê-lo através da sua forma deliberada que é, acredito, a dramaturgia. É pela ligação subtil entre os diferentes materiais que o artista pode construir uma obra coesa que podemos estudar e atribuir uma consciência mais profunda.

Esta foi apenas uma breve resenha do percurso da companhia Visões Úteis e das suas performances site-specific. Performances essas que, espero ter demonstrado, procuram revelar e expor qualidades políticas e sociais do espaço fundamentalmente através de uma ideia e dramaturgia de percurso. Não só o percurso através do espaço que, no caso dos espectáculos da companhia, acaba por funcionar como eixo dramatúrgico do espectáculo, como também do percurso enquanto experiência subjetiva, que opera no próprio corpo e consciência do espectador, tal como a companhia aprendeu a desenvolver e trabalhar, e se torna fundamental a partir da sua obra pioneira

Visíveis na Estrada através da Orla do Bosque.

Deste estudo julgo que ficam várias pistas para futuras investigações, tanto no âmbito dos Estudos Teatrais, como Arquitetónicos, ou até mesmo Culturais, mas gostaria de ressaltar apenas três. Em primeiro lugar, o conceito de percurso ou caminhada enquanto dispositivo performático e teatral, mas também arquitetónico, que pode proporcionar uma experiência performativa de âmbito muito diferente para o público. Em segundo lugar, o conceito de espaço enquanto alicerce dramatúrgico, não apenas como elemento visual mas também como elemento percetual e também experiencial. Em terceiro lugar, a importância do teatro site-specific enquanto experiência – quer individual, quer coletiva – que dá ao espectador a possibilidade de vivenciar um espaço e uma performance de forma não apenas consciente mas também corpórea e sensorial.

15. Erving Goffman – A apresentação do eu na vida de todos os dias. Lisboa: Relógio d'água, 1993, p. 129.

16. Johan Huizinga – Homo Ludens. Lisboa: Edições 70, 2003.

17. Walter Benjamin – Imagens de Pensamento. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004, pp. 62-63.

Este trabalho foi realizado no âmbito do projeto

(22)

Este estudo está estruturado em duas partes. A primeira pretende reflectir sobre a questão do teatro e arquitectura, suas intersecções e aplicações, procurando explorar conceitos, terminologias e ideias recorrentes nos discursos de ambos os campos, mas também de áreas afins como a cenografia, espaço cénico e design de cena. Esta reflexão revela-se crucial na compreensão de quais as questões e variáveis em cima da mesa trazidas de cada uma das disciplinas, e como muitas dessas já se relacionam entre si, criando problemáticas reais nas práticas contemporâneas quer do teatro, quer da arquitectura e, claro, no seu espaço de intersecção. Pretende-se, de igual forma, expandir o campo de pensamento, adquirir novas noções e conhecer casos de estudo concretos que ilustram bem esta relação.

A segunda parte centra-se no caso de estudo da companhia de teatro portuguesa Teatro do Vestido (TdV), em particular do espectáculo Até comprava o teu amor (2014). Face à pesquisa e estudo desenvolvidos procura-se perceber o sentido da apropriação de espaços edificados para a construção de espectáculos pela companhia.

Este estudo foi elaborado no âmbito do projecto de investigação Arquiteturas Dramáticas, que pretendia compreender o sentido da apropriação dos espaços arquitectónicos pelas práticas performativas (teatro, dança, performance), nomeadamente o uso de espaços construídos como espaços cénicos. Pretendia ainda fazer um levantamento exaustivo de casos, sua contextualização estético-artística nos dois campos, teatro e arquitectura, e investigação das suas consequências concretas, nomeadamente da forma como a arquitectura se presta à sua dramatização e de como é possível construir dramaturgias em torno de espaços pré-existentes.

Estas declarações de intenção revelam-se logo bastante complexas em si, quer do lado disciplinar do teatro, quer da arquitectura. O campo de estudo da relação entre as duas áreas abre-se ainda mais quando tomamos em consideração a contaminação de uma na outra, ou até mesmo o simples uso de ideias e conceitos do teatro na arquitectura e vice-versa. Tal acontece quando se aplicam termos e noções de arquitectura, como: espaço, volume, espacialidades, etc., para falar de espectáculos, eventos performativos, espaços cénicos. O mesmo acontece quando se utilizam termos do universo

A CASA COMO ESPAÇO E MEMÓRIA: CASO DE ESTUDO DO

ESPECTÁCULO

ATÉ COMPRAVA O TEU AMOR

DO TEATRO

DO VESTIDO

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teatral e do espectáculo, como: drama, dramático, performativo, cenográfico, para se falar de arquitectura, edifícios, planeamentos urbanos, entre outros. Esta mistura de termos e conceitos provenientes das duas disciplinas resulta em inúmeras combinações, as quais acompanham o estado do pensamento crítico deste campo interdisciplinar. Desta forma, palavras-chave como arquitectura, espaço, evento, performativo, performatividade, dramático são peças base de variadíssimas combinações, como: espaço-evento,

performatividade do espaço, arquitectura performativa, arquitectura como evento, entre potenciais muitas outras.

Assim, e à primeira vista, podemos dividir o estudo em duas áreas temáticas. A primeira centrando-se na ideia de como a arquitectura se presta à sua dramatização, onde pode entrar o campo de estudo e prática performance architectures. Juliet Rufford escreve que esta prática explora a possibilidade de como exercer uma influência de várias naturezas performativas e/ou

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activistas pelo corpo sobre a arquitectura . Dando o exemplo do evento

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“Performing Architectures” que coloca as pertinentes questões: “How can a

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building perform, and how can we perform a building?”. O evento decorreu no museu Tate Britain em Londres, onde as pessoas eram convidadas a participar na transformação dos espaços arquitectónicos das galerias pela interacção dos seus corpos, seguindo uma série de instruções. Bastante conhecida é a performance de intervenção temporária “Bodies in Urban

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Space” de Willi Dorner , na qual corpos, sozinhos ou em grupo, vestidos de cores garridas, se posicionam em diferentes edifícios e recantos da cidade, sempre anónimos, com a face escondida, interpelando o espectador a equacionar como podem ser restritivos ao corpo humano alguns locais e equipamentos da cidade.

A segunda área desenrola-se na possibilidade de se criar dramaturgias em torno de espaços existentes, como é o caso de espectáculos site-specific. Estes são espectáculos que acontecem em espaços não teatrais, muitas vezes espaços/edifícios abandonados, fechados ou mesmo degradados. Estes espaços, geralmente, não obedecem à convenção arquitectónica da separação palco-plateia, tendo muitas vezes a cena aberta e o lugar do público indefinido e embebido no espaço cénico. Consequentemente, o envolvimento e aproximação do espectador é bastante potenciado. A criação

site-specific de espectáculos ou instalações tem atenção de diversas formas, ao que o espaço nos diz à partida, desenvolvendo-se uma relação com a especificidade única desse. Geralmente estes são espaços com qualidades de ambiente únicas. Contudo o ambiente e funções dos espaços podem ser radicalmente alteradas, pelos acontecimentos ou tratamento plástico destes. Mike Pearson cita Simon Persighetti, do colectivo Wrights and Sights (Reino Unido) na questão do site-specific: “(...) site is frequently a scene of plenitude, its inherent characteristics, manifold effect and unruly elements always liable to leak, spill and diffuse into performance: site-specific work

1. Juliet Rufford – “Theatre and Architecture: A Place Between”. In J. Palinhos e M. H. Maia (Ed.),

Dramatic Architectures – places for drama, drama for places (pp. 26-39). Porto: CEAA, 2014, p. 30.

2. Mais informações sobre os eventos “Performing Architectures” no Tate Modern, Londres: http://www .tate.org.uk/whats-on/tate-britain/music-and-live-performance/late-tate-britain-february-2013.

3. M. Mulvey – “What does performance have to do with architecture? How can a building perform, and how can we perform a building?” In Tate Blogs & Channel. <http://www.tate.org.uk/context-comment/ blogs/what-does-performance-have-do-architecture-how-can-building-perform-and-how> (acedido a 30 de Agosto de 2014).

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has to deal with, embrace and cohabit with existing factors of scale,

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architecture, chance, accident, incident.”

Sumariamente – um espectáculo pode surgir completamente da vivência de um espaço, assim como uma dramaturgia, texto, ideia podem pré-datar o encontro com o espaço. O tratamento artístico e plástico do espaço pode manter o ambiente deste ou reformulá-lo totalmente. Como Vladan Perić escreve: “(...) events that take place in space that is not designed for them have the potential to change the meaning of that space, without a physical

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intervention in the space.”

É importante notar que mesmo no universo do teatro algum deste vocabulário ainda se apresenta como novidade, muitas vezes gerando alguma ambiguidade no seu uso. Os termos performance, performatividade, performático e performativo são exemplos disso. Muito pelo seu uso massificado na língua inglesa, e consequentemente em bibliografia muito disseminada nos domínios das artes do espectáculo, mas também do desporto, tecnologia e mecânica. Como clarifica Višnja Žugić:

This diversity of meanings results from the width of the term

performativity, which has been established as a very influential

th

concept in contemporary culture in the second half of the 20 century. At the same time, multiple approaches to performance in architecture

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result from an insufficiently clear definition of the term itself.

Em português pode ser discutível o emprego mais correcto de palavras como performativo ou performático. Performance e Arte da Performance são termos que carecem de aplicações, e traduções, consensuais. Roselee Goldberg propôs o termo Arte da Performance ao referir-se a eventos ao vivo realizados por artistas. Em Espanha muitas vezes o termo Performance é traduzido por Arte de Acção.

Quando falamos de teatro e arquitectura, suas relações e intersecções, recorremos inevitavelmente a conceitos e termos de cada uma das disciplinas para assim desenvolvermos um pensamento crítico. Por vezes colocamos as mesmas questões, porém, partindo de pontos de partida diferentes, o que nos leva a diferentes caminhos de descoberta e até a diferentes respostas. As questões acumulam-se – questões do espaço (referente ao reino da arquitectura) e da performatividade (referente ao reino do teatro). Eventos performativos podem mudar espaços edificados? São alguns edifícios simplesmente performativos, como o Guggenheim em Bilbao? Existe uma dramaturgia própria em espaços edificados, como no Museu Judaico, em Berlim, onde a própria arquitectura guia os visitantes?

Pelo meio desta teia de conceitos é introduzida outra variável: questão do corpo, do que este faz no espaço, que influência a sua presença e acção têm no espaço, levantando ainda mais questões. Pode-se produzir espaço pelo agenciamento humano, pelo movimento, por exemplo? Os corpos no espaço 5. M. Pearson – Site-Specific Performance. London:

Palgrave Macmillan, 2010, p. 1.

6. Vladan Perić – “Dramaturgy of space: establishing ephemeral chronotope in Architecture”. In J. Palinhos e M. H. Maia (Ed.), Dramatic Architectures – places for drama, drama for places (p. 337-348). Porto: CEAA, 2014, p. 338.

7. Višnja Žugić – “The concept of space

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criam arquitectura? Que acção tem a arquitectura sobre os corpos?

Perante tais formulações teóricas importa explicar a nossa metodologia, objectivos e procura neste estudo. Por um lado interessa explorar o caso da apropriação de diferentes espaços e ter em conta a influência do seu discurso arquitectónico para o processo criativo e construção do espectáculo. Por outro, interessa perceber o grau de afecção da dramaturgia, do teatro, do espectáculo, nos espaços, para assim compreender as manipulações plásticas e dramatúrgicas exercidas sobre estes.

CASO DE ESTUDO Rés do chão

O primeiro desafio centrou-se na aproximação e numa maior descoberta do trabalho do TdV. A entrevista conduzida com a encenadora, Joana Craveiro, tornou-se uma oportunidade importante para testar questões, ideias e linhas

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de pensamento. Realizar a entrevista foi um passo importante, pois esperávamos avaliar se seria possível levar a encenadora a pensar e falar sobre a arquitecura e sobre um pensamento arquitectónico nos seus espectáculos. Desta maneira tentávamos descobrir mais sobre a relação criativa com os espaços físicos e edificados, do que sobre a relação com o espaço como memória de um lugar. Esta suposição acabou por não resultar, levando a uma redefinição da entrevista, e consequentemente do resultado previsto de todo o estudo.

O TdV define-se como um colectivo de pessoas, que fazem teatro partindo de uma escrita original e tendo em especial atenção a observação do mundo e suas comunidades. Joana Craveiro tem formação superior em Antropologia, Interpretação e Encenação. No momento da escrita deste texto frequentava o doutoramento na Universidade de Roehampton, no Reino Unido, investigando através da performance, a transmissão de memória na política no Portugal ditatorial e pós-ditatorial. Para isso construiu um embodied museum composto de 9 leituras-performances.

O TdV tem realizado espectáculos em muitos espaços diferentes. Existe um compromisso óbvio em chegar a diferentes espaços, onde é possível fazer teatro. A razão inicial para tal depreende-se do facto de a companhia não ter espaço de apresentação próprio, necessitando assim de sair à rua e procurar. A falta desta comodidade transformou a relação com os espaços numa “relação muito orgânica”, como diz a encenadora. Depois de um espaço ser encontrado, ou se tornar disponível, os actores e a encenadora começam a trabalhar com o espaço, para o espaço e a partir do espaço. Esta relação desenvolveu-se com antigos espaços de ensaios, onde espectáculos acabaram por ser apresentados. Por esta razão alguns espectáculos começaram a partir do próprio espaço, como por exemplo, Nunca serei bom rapaz (2006) foi apresentado no Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos em Lisboa, onde o TdV

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cave e usou textos de George Jackson e Joana Craveiro, explorando ideias de estar preso, ser recluso, manter a sanidade mental. Este foi um de muitos espectáculos site-specific.

Outra estratégia de encontrar espaços fazia-se por vias de residências artísticas, normalmente em zonas rurais, para onde a companhia ia e ficava durante um período de tempo. Em diferentes locais, o objectivo era o de encontrar espaços inesperados, como efectivamente aconteceu, assim como começar a construir um diálogo com a comunidade local e a sua vida quotidiana. Desta forma a companhia descobriu diferentes espaços onde fazer espectáculos, como aconteceu com Walden (2006) que teve lugar num lagar de azeite.

Paralelamente à falta de um espaço de apresentação permanente está bem presente uma preferência por não trabalhar em palcos convencionais. Estúdios ou caixas pretas não entusiasmam a encenadora, que afirma: “porque de facto o espaço… poder trabalhar um espaço como se fosse um texto… fazer uma dramaturgia do espaço… acho que é uma coisa que enriquece muito o espectáculo.” (Entrevista) Enriquece o espectáculo tanto a nível de conteúdo e dramatúrgico, ao mesmo tempo, enriquecendo a relação deste com o público, como veremos mais à frente.

Num primeiro plano, o TdV cria espectáculos para espaços, nos quais procura resgatar memórias simbólicas ou uma simbologia do espaço. Num edifício em Viseu, o antigo IARN – Instituto de Apoio ao Retorno Nacionais, no qual nos inícios dos anos de 1970 cidadãos chegados das ex-colónias portuguesas procuravam ajuda e apoio, a companhia colocou em cena o espectáculo

Retornos, Exílios e Alguns que Ficaram (2014). Com base nas memórias e usos desse espaço, os actores levavam os espectadores através do edifício, actualmente um local de exposições, indicando o que diferentes compartimentos eram nessa altura, conseguindo levar a cabo uma “arqueologia do espaço”. Joana Craveiro comenta:

(...) um espaço que realmente serviu para uma certa coisa e depois quando nós fazemos teatro sobre isso nesse espaço, ganha uma força e uma dimensão que é a dimensão da realidade. Nós estamos ali a usar aquele espaço e a falar sobre coisas que aconteceram realmente ali, mesmo que esse espaço hoje não seja usado para isso. (Entrevista)

Este é, então, o plano da apropriação e ocupação do espaço. Outro plano, ou nível, é o da inspiração, quando a companhia se inspira por um edifício ou local, como aconteceu com o espectáculo Até comprava o teu amor.

Primeiro andar

Os espectáculos do TdV são criados a partir da cena, com os actores e nos

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ensaios (devised ). O espaço de ensaios, o contexto dos ensaios, o processo de ensaios e o que daí advém, é o coração do processo criativo.

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Esta prática profundamente ancorada no trabalho, no momento, na cena, toma em consideração todos os elementos do espectáculo (luz, espaço, texto, movimento, som) os quais através do agenciamento do ensaio dão origem à construção do espectáculo. O processo de trabalho floresce deste acto total de criar espectáculos, de forma colaborativa, no local, por um grupo de pessoas. Joana Craveiro pensa o seu papel enquanto encenadora nada desligado deste redemoinho criativo. A encenadora esclarece que entende o seu papel mais de acordo com uma direcção da produção criativa, do que como de encenação. Partindo de desafios e tarefas iniciais definidas pela encenadora, os actores começam a gerar material. Cada actor é tomado como um colaborador criativo e co-criador. Os actores começam a desenvolver e escrever “a sua própria partitura”, como lhes chama Joana Craveiro. Pegando nesse material, a encenadora escreve e reescreve as cenas e textos, devolvendo-as posteriormente aos actores, deixando o processo crescer e ramificar-se, como explica no processo de Até comprava o teu amor:

Quando edito e reescrevo as histórias, sei que ilumino os pormenores que me interessam dramaturgicamente, o que às vezes dá um significado que não tinha para a pessoa que a viveu. Mas o meu trabalho não é contar as coisas exactamente como aconteceram, é dar- -lhes uma dimensão poética, até porque tenho pavor da autocomiseração. Isso também protege os actores, sentem-se menos

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expostos.

Perante um tópico, ideia, livro ou documento, aos actores é sempre pedido para darem algo das suas próprias vidas, das suas biografias. Do material criativo gerado pelos actores, ou do material trazido de jornadas exploratórias, é estabelecida uma ponte com a sua vida, ou não, pois a companhia trabalha sempre com a intersecção do ficcional com o autobiográfico. É a partir da examinação desse material que os actores e a encenadora começam a desenhar a dramaturgia, conferindo mais relevância a certos episódios e momentos.

Olhando atentamente para o trabalho do TdV, percebe-se que este é sobretudo desenvolvido no encontro de pessoas, no contexto de ensaio. Há um rico e profundo trabalho de grupo, de exposição, confiança e partilha. Autenticidade, verdade e intimidade são conceitos envolvidos pela ideia de os criadores estarem sempre a falar de si mesmos. Como afirma Joana Craveiro:

O nosso trabalho proporciona uma relação íntima do espectador com o actor, e do actor com o espectador. E do actor com o acto teatral. (...) Acho que há um nível de intimidade que eu procuro numa relação que quebra um pouco a ideia do fazer teatro. E que procura um outro tipo de autenticidade, talvez outro tipo de verdade em cena. (...) Porque essa intimidade não se cria só com o espaço, cria-se também com uma

10. Inês Nadais – “Esta história acaba em camas”. In

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certa forma de fazer teatro (...) da maneira como nos apropriamos dos textos e dos materiais, que à partida são nossos, portanto não há propriamente uma apropriação – o estar a falar de si sempre. (Entrevista)

O quarto interior

Desta vista geral do processo criativo em relação com o espaço, Joana Craveiro afirma que o que realmente procura é a transformação do espaço em lugar: “Para mim a palavra espaço é importante, porque trabalho na relação com isso, mas acho que numa relação de transformação do espaço em lugar.” (Entrevista) A encenadora explica que no processo de trabalho um espaço tem de se transformar num lugar, isto é, um espaço tem de se tornar num lugar de qualquer coisa, de qualquer coisa teatral. A encenadora completa: “E acho que é isso que o teatro faz ao apropriar-se de certos espaços.” (Entrevista) O trabalho em volta da ideia de lugar espera descobrir, desenvolver e resgatar histórias, memórias, pessoas, sentimentos, lutas, e, acima de tudo, vestígios de vida. Esses lugares contam histórias que vivem ali – histórias de pessoas através do tempo e geografias. Criar um lugar baseia-se principalmente na atribuição de uma dimensão humana a um espaço – a um edifício, cela de hospital, rua de paralelos. Um espaço pode ser vazio, porém um lugar é, certamente, imensamente carregado.

Começamos a perceber melhor a enorme importância da Memória e da História no fazer teatro da companhia. Estes fazedores de teatro são eles próprios arqueólogos e antropologistas, que assumem a tarefa de escavar camadas e camadas de história, para assim revelarem fósseis de factos e ficções. Vão atrás de histórias desaparecidas, tomando diferentes decisões relativamente ao caminho artístico a desenvolver, sempre com uma forte fundação no local, na sua história, na sua ressonância, e claro, no seu potencial gatilho de activação da imaginação.

Depois disso, estes agentes desenham narrativas simultâneas e justapostas sobre o mesmo tema. Os actores vão re-representar (re-enact) algo, que parte de um episódio, ou objecto – eles vão interpretar, performatizar isso mesmo, a história, a cultura, a experiência pessoal. Como conta Mark Rees sobre a criação do espectáculo site-specific e visita guiada For Mountain, Sand & See

(2010), National Theatre of Wales:

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scream in horror! We're hoping to find a chapel we can use for this production and we'll encourage the international performance artists

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to take people on guided tours of Barmouth.

O resultado artístico do encontro, cruzamento e trabalho sobre os espaços apresenta-se com infinitas possibilidades criativas. A criação da dramaturgia resulta de diferentes metodologias, desde a apropriação e inspiração, como refere Joana Craveiro, até à extorsão de histórias e vivências, especulação, imaginação, recontextualização, restauração de usos e propósitos. Muitas vezes, mais do que os episódios que ali se passaram, dá-se a ver cenas, que os criadores gostariam que ali tivessem acontecido; ou mesmo que algumas dessas tivessem cursos e finais diferentes. Pela animação de certos locais, através da reconstituição performativa, da introdução de elementos estranhos a estes, assim como da instalação temporária, os espectadores são transportados para um tempo liminal, que bebe de vestígios do passado, contudo é contemporâneo no seu fazer e na consciência de si mesmo.

Joana Craveiro declara: “O que é que eu procuro nos espaços? Eu procuro que eles ressoem (...) Este trabalho sobre espaços diferenciados também permite estabelecer relações diferentes com o público.” (Entrevista). Quando pensamos sobre a manipulação e tratamento do espaço pelo TdV podemos avançar com a equação: num dos lados do sinal de igual encontramos o espaço físico e material. Do outro lado encontramos o espaço do afecto, das memórias e dos vestígios. No meio, e como resultado, encontramos o que a companhia procura – habitar espaços, encontrar o espaço do teatro, e levar o público numa viagem dramatúrgica, única a cada espaço.

A grande escadaria

Até comprava o teu amor passa-se num palácio do século XIX desabitado no Porto, o Palacete Pinto Leite. Neste caso o espectáculo não surgiu directamente do espaço em causa. Primeiro o TdV teve a ideia de fazer um espectáculo sobre o amor. Em segundo lugar surgiu a ideia de criar diferentes instalações em diferentes compartimentos, onde cada actor teria 15 minutos para fazer um monólogo. Sendo este projecto uma encomenda do Teatro Nacional de São João, Joana Craveiro escolheu o palácio de uma lista de edifícios sob a alçada da Câmara Municipal do Porto. Em terceiro lugar houve a adaptação da ideia à realidade edificada do palacete.

A arquitectura e planta do palacete ofereceram bastante inspiração, a partir da qual os actores trabalharam. Os actores criaram as suas cenas especificamente para o quarto que lhes foi atribuído. Alguns destes compartimentos eram grandes salas de jantar, outros faziam lembrar o quarto da empregada, inspirando assim os actores de formas diferentes. As cenas construídas pelos actores espelham bem a relação da especificidade do espaço e da arquitectura com o conteúdo da acção: “Tudo isso estava muito

11. M. Rees – “For Mountain, Sand and Sea”. In

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presente no texto e na construção das cenas, essa relação íntima entre a arquitectura do espaço e o que o actor estava a fazer.” (Entrevista)

O público, dividido em 7 grupos com um máximo de 10 pessoas, era levado numa viagem na qual testemunhavam todos os 7 monólogos, em ordens diferentes. Confrontada com a ideia de qualificar este espectáculo como um espectáculo em percurso a encenadora comenta: “O espectáculo em si é concebido de um conjunto de cenas, mas não é tanto o percurso de umas para as outras que é importante – se pudessem ser todas no mesmo quarto seriam. (...) Eu não chamaria um espectáculo percurso, mas sim um espectáculo em cenas.” (Entrevista)

O facto de cada grupo de espectadores fruir o percurso em ordens diferentes parece-nos um factor essencial para a experiência total do espectáculo. Pois, por um lado, quando se fala na especificidade e unicidade de espectáculos comprometidos com a experiência íntima e única do espectador, a formalidade dessa vivência é potenciada. Por outro lado, é sublinhada pela construção de uma percepção e linha dramatúrgica do todo do espectáculo serem diferentes.

É importante pensar aqui no momento crítico de recepção da obra pelo espectador. Como o espectador se apercebe do ambiente de um espaço, tão intrínseco em espectáculos site-specific, e como lida com este são factores determinantes da sua experiência in locus. O ambiente é um conceito só adquirido por via da experiência, afectando a experiência. Gernot Böhme, filósofo alemão, escreve sobre como se gera a sensação de ambiente: “The truth is that atmospheres are a typical intermediate phenomenon, something

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between subject and object.” O filósofo vai mais longe ao dividir a experiência do ambiente em dois – na estética da recepção e na produção estética: “The conception of atmospheres as a phenomenon has its origin in reception aesthetics. Atmospheres are apprehended as powers, which affect the subject; they have the tendency to induce in the subject a characteristic mood. (...) The matter looks different if approached from the side of production aesthetics, which make it possible to gain rational access to this "intangible" entity. It is the art of the stage set which rids atmospheres of the

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odour of the irrational: here, it is a question of producing atmospheres.” Em cada quarto existia uma instalação, a qual era composta por objectos escolhidos e adereços trazidos para sublinhar a memória e o ambiente que aquela divisão, em particular, inspirava. Joana Craveiro acrescenta:

Não há uma transformação que eu tenha feito, mas uso adereços para potenciar. Por exemplo, um salão lindíssimo, muito nobre, mas claro o Palacete Pinto Leite é um palacete meio arruinado, nós pusemos um lustre no tecto ou pusemos uma mesa enorme com uma toalha branca adamascada. De repente potencia uma coisa que já está no espaço. Não pintamos as paredes, não transformamos nada. A sala já nos remetia 12. G. Böhme – “The art of the stage set as a

paradigm for an aesthetics of atmospheres”. In

CRESSON-Centre de recherche sur l'espace sonore et l'environnement urbain. <http://www.cresson. archi.fr/PUBLI/pubCOLLOQUE/AMB8-confGBohme-eng.pdf> (acedido a 10 Outubro 2014).

13. G. Böhme – “The art of the stage set as a paradigm for an aesthetics of atmospheres”. In

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para um determinado ambiente, que nós depois construímos então através da utilização de adereços. (Entrevista)

O amor foi o tema trabalhado pela companhia, nomeadamente primeiros e últimos amores, a possibilidade e impossibilidade do amor. A ideia da casa, do quarto, como lugar interior estava igualmente presente. Aos actores foi pedido que olhassem para o espaço interior e elaborassem sobre este. Contudo, em alguns momentos, como Joana Craveiro aponta, ninguém consegue mais falar do quarto, e então começa a falar de si mesmo.

A ideia de níveis, e camadas, mencionada anteriormente, reemerge. A companhia trabalha sempre com o conceito de “cartografia emocional”, “capital emocional” ou “mapas de emoção”. Isto significa que a criação surge do interior para o exterior, tomando-o de assalto. Há, novamente, a ideia do

fazer lugar, carregada com o que está presente, e com o que é trazido ou mencionado. Estes são os níveis, a partir dos quais a companhia está interessada em explorar e fazer espectáculos.

O sótão – notas finais

Para finalizar a presente discussão, vale a pena sublinhar a ideia de transformação de um espaço num lugar, numa linha de pensamento na qual o espaço não é suficiente. Relembramos Mike Pearson, que cita variados autores na questão do lugar e do fazer lugar. Escolhemos esta citação de Hayden Lorimer, académico no campo da Geografia Cultural, pela sua natureza crua e intransigente: “(...) places do not have locations but

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histories.”

O TdV cria espectáculos site-specific, os quais buscam inspiração no espaço material, mas mais do que isso, investem no re-emerger de histórias e vidas passadas. Estes espectáculos materializam um re-escrever, uma re-leitura, uma re-interpretação da História. Estes têm o objectivo de dar voz a certos momentos e episódios silenciados por lutas de poder, pela sociedade, pelo tempo. Assim buscam nos arquivos, com o objectivo de apresentar publicamente sob novos contextos e ideias, documentos e memorabilia – ao

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que se pode chamar performing the archives.

Através da acção, da presença dos actores e do desenho do espaço, o TdV está a espoletar alguma coisa do espaço – sendo essa a verdadeira essência do trabalho. O espaço cénico, o ambiente, as memórias darão origem a novas leituras, a novos olhares – a um novo sentido da experiência. O poder e comoção do site-specific no TdV abraça o local, as ruas e as paredes, mas sobretudo a carga humana. Há um dever de trabalhar para descobrir os testemunhos silenciados num local encontrado – uma espécie de contribuição mútua. Os edifícios são fontes primárias de repositórios de humanidade. Quando as pessoas já aí não estão, e então só ficaram as paredes para

14. M. Pearson – Site-Specific Performance. London: Palgrave Macmillan, 2010, p. 16.

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mediarem um contar das histórias. Por vezes em espectáculos a escrita fica, mas o espaço muda – precisamente o que acontecerá quando Até comprava o teu amor for apresentado em Lisboa.

Quando pensamos no projecto artístico do TdV sentimos a luta pelo preservar e dar voz ao que está na iminência de desaparecer. Há algo de frágil e fugaz nos espectáculos site-specific. Algo será inevitavelmente perdido e a companhia tenta, uma última vez, permitir uma existência um pouco mais longa, para assim aumentar as possibilidades de lembrar, porque: “Muitos

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destes lugares são hoje arqueologia, hoje já não existem.”

Para o TdV a casa, como espaço de “stones and bricks” como refere Eugenio

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Barba, importa. As casas e os edifícios que ainda resistem de pé são documentos e testemunhos de um tempo fugaz. No entanto, a casa como memória irá ter ecos mais duradores e proporcionará a maior parte do material para a construção dos espectáculos. A casa tentando-se agarrar à sua presença fantasmagórica, imaterial, tem o objectivo maior de se imortalizar na memória.

16. C. Vasconcelos e Teatro do Vestido – Teatro do Vestido, e agora já tinham passado 10 anos. Lisboa: Vestido, 2012, p. 213.

17. E. Barba – The Paper Canoe. A guide to Theatre Anthropology. London: Routledge, 1995.

Este trabalho foi realizado no âmbito do projeto

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(34)

Este estudo pretende abordar o trabalho da companhia Produções Suplementares de Teatro (P.S.). Em Portugal surgem cada vez mais artistas e companhias que procuram espaços alternativos ao teatro convencional para neles trabalharem, como tal, cresce também a necessidade de realizar estudos sobre o trabalho que têm desenvolvido e perceber de que forma e porque o fazem.

A P.S., companhia dirigida pelo encenador britânico Lee Beagley, oficializada em 2006 no norte de Portugal, apresenta as suas produções em espaços teatrais não convencionais, utilizando diferentes processos de criação artística, a partir do lugar, com o lugar e no lugar onde os apresentam. Trabalhos que apesar de serem fortemente caracterizados pela vertente musical, física e cómica se destacam pelo reaproveitamento da arquitectura na arte dramática.

Constitui por isso um caso de estudo para as formas como a arquitectura se pode prestar à dramatização, como é possível construir dramaturgias em torno de espaços pré-existentes, bem como a forma de a arquitectura transformar a percepção do objecto artístico. Para tal apresentam-se aspectos das várias produções realizadas pela P.S., colocando em evidência os que se relacionam com o tema e que possam de algum modo demonstrar a existência de uma relação intrínseca entre a arquitectura e o teatro.

Surgiu então com este estudo, sobre uma companhia teatral que trabalha em espaços alternativos, a necessidade de procurar o motivo que levou ao questionamento do espaço convencional. Peter Brook escreve nas primeiras linhas de Espaço Vazio:

Posso chegar a um espaço vazio qualquer e usá-lo como espaço de cena. Uma pessoa atravessa esse espaço vazio enquanto outra pessoa observa – e nada mais é necessário para que ocorra uma acção teatral. No entanto não é bem a isto que nos referimos quando falamos de teatro. Cortinas vermelhas, projectores, verso branco, riso, escuridão: todas estas ideias estão misturadas na imagem difusa transmitida por

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uma só palavra com múltiplos sentidos.

É precisamente contra este dogma, ainda presente na sociedade contemporânea, que as companhias como a P.S. trabalham, optando por

O TRABALHO TEATRAL DA PRODUÇÕES SUPLEMENTARES

DE TEATRO: ESPAÇOS TEATRAIS ALTERNATIVOS E

SITE-SPECIFIC

Susana Paixão

Imagem

Figura 1. Uma visão panorâmica do itinerário  seguido durante a performance. Este é um mapa  aproximado, visto que o percurso na zona oriental é  feito maioritariamente por atalhos e estradas não  sinalizadas, difíceis de mapear nos Mapas da Google.

Referências

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