O encontro da arte com a educação como mecanismo da governamentalidade contemporânea
1Fernando Zanetti Faculdade de Educação – FE- USP
Este texto visa a tornar públicos alguns dos resultados de pesquisa que objetivou realizar uma cartografia crítica da arte pedagogizada no Brasil, nas últimas duas décadas (1995 – 2013). Especificamente, tem como recorte entender como é a ação das teorias e práticas da psicologia na pedagogização da arte e dos modos de vida nos períodos em que se configura o corpus pesquisado.
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Foucault (2003) afirma que realizar a crítica é produzir um olhar sobre um domínio que quer policiar e não é capaz de fazer lei; ela é um instrumento para um devir ou uma verdade que muito provavelmente não se alcançará. Para o autor, a Modernidade trouxe a condição de questionar a verdade e seus estatutos, principalmente quanto às condições de sua produção. Por conseguinte, a crítica é o ato de pensar em público sobre uma determinada problemática e, no seu limite, significaria a realização do ato de não ser governado. “Não ser governado por uma lei injusta”, “não aceitar uma verdade porque uma autoridade o diz” ou
“recusar o magistério eclesiástico” são formas históricas de realização da crítica e do movimento pelo direito que o “sujeito se dá de interrogar uma verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus efeitos de verdade” (idem p.169). No caso do presente texto, a crítica remete ao olhar sobre o dispositivo educação/arte, que trabalha com a discursividade psicológica como saber que participa de sua constituição. Fazer a crítica desse dispositivo é uma possibilidade de colocar em suspeição as prerrogativas de um discurso sedimentado nos meios acadêmicos, o qual entroniza a arte como forma de promover uma prática pedagógica melhoradora do homem. Enfim, realizar a crítica seria dar-se o direito de questionar como foram produzidos esses discursos e práticas em que a arte se torna um elemento pedagógico.
A cartografia, remete à separação das linhas que compõem um dispositivo (Deleuze 2001, p.1). E para realizar tal tarefa foi construído e analisado um arquivo. A noção de arquivo, neste trabalho, seguiu a estratégia das pesquisas genealógicas de Michel Foucault
1 Agência financiadora: Fundação de Amparo a Pesquisa de São Paulo – FAPESP
(1979), as quais assumem a condição de arbitrariedade de um tipo de racionalidade, na constituição do corpus pesquisado, daquilo que aparecerá ou terá visibilidade e formalização, com base em escolhas dos documentos que compõem o arquivo. Como ressalta o autor, na obra Arqueologia do Saber, o trabalho histórico não deve ser de interpretar determinados documentos e nem descobrir se dizem a verdade ou se têm um valor expressivo, mas “[...] sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo” e estabelecer no “[...] próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações” (2008, p.7). Portanto, a construção do arquivo exige o posicionamento ativo do pesquisador, e não aceitar uma suposta natureza dos fatos. Isso é possível, porque, nesse viés de análise, não importa a veracidade do corpus analítico, todavia, como esse “discurso da verdade” se liga ao presente, como ele se torna materialidade ou se atualiza, como ele forja diariamente milhares de intervenções sobre o corpo dos indivíduos. O arquivo se constitui daquilo que é possível falar e ver, “[...] é a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (2008, p.147). Não devemos olhar aquilo que o arquivo exibe como a verdade que se quer perpetrar, mas entender como é possível ver o que o constitui, é pôr à mostra a racionalidade a qual permite que se veja o que se está vendo. Assim, o arquivo não guarda para as gerações futuras a verdade completa de um enunciado, porém, ativa e restringe aquilo que poderá ser dito e visto. Ele indica a racionalidade que faz ver e falar, e como esta se compõe num “sistema de enunciabilidade” (2008, p.147) – como se define o que pode ser dito no arquivo – e num
“sistema de funcionamento” (2008, p.147) – como o enunciado age nas práticas e no visto.
Analisar um arquivo propicia apontar a racionalidade que “conserva”, que seleciona um tipo de exercício de poder na permanência e preservação de uma forma e de um acontecimento, e, no caso desta pesquisa, o processo de pedagogização da arte.
O arquivo em questão conjuga dois campos da produção intelectual brasileira – a arte e a educação. Para constituí-lo, foi listado um conjunto de artigos de 19 periódicos brasileiros, dez da área da educação e nove da área de arte, classificados como A1 e A2, no período entre 1995 e 2013, com cerca de 6000 textos.
Esses periódicos são os seguintes: na área da educação – Cadernos Cedes, Cadernos de
Pesquisa, Educação & Realidade, Educação & Sociedade, Educação e Pesquisa, Educação
em Revista, Educação Temática Digital, Educar em Revista, Pró-Posições, Revista Brasileira
de Educação. Na área de artes: Ars, ArtCultura, Percevejo, Porto Arte, Visualidades, Revista
- ABEM - Associação Brasileira de Educação Musical, Revista Brasileira de Estudos da Presença, Urdimento (UDESC), Sala preta (USP).
Desse universo, foram selecionados 324 artigos, com base nos seguintes critérios: texto em periódico da área de educação que possuísse temática relacionada à arte, e texto de revista de arte que tratasse de temas ligados à educação. Para analisar cada artigo, criamos o seguinte crivo organizativo: Ano; Área/subárea; Assunto; Função da arte e do ensino da arte;
Características da Arte e do ensino da arte; Deslocamento; Problematização ou plano geral do texto.
Com essas categorias, foi possível cartografar o arquivo, perceber seus movimentos de avanço e recuo em relação a determinado assunto ou função ou característica, localizar algumas das posições em que os diversos grupos se encontram e, muitas vezes, visualizar seus estandartes. Todavia, uma das possibilidades mais interessantes foi notar as repetições e descontinuidades ou deslocamentos entre os textos e conseguir visualizar o traçado das linhas produzidas pelos diversos autores. Essas descontinuidades ou deslocamentos seriam mudança de direção, abandono, contraposição a uma determinada ideia ou prática anteriormente desenvolvida. Além disso, foi possível cartografar as problematizações propostas pelos autores.
Nesse sentido, estudar artigos acadêmicos passaria pela busca de se entender sob quais condições os sujeitos de um determinado lugar e/ou momento histórico se pensam e que indagações se colocam. Portanto, propõe-se não interpretar ou relacionar práticas e enunciados dos artigos e buscar neles verdadeiras relações, contudo, apenas traçar as linhas daquilo que os autores almejaram pensar.
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A educação, em suas diversas formas, aparece de maneira constante no processo de inclusão pelas práticas artísticas. Nesse sentido, propomo-nos a investigar como a educação, a arte e a psicologia – ou simplesmente a arte-educação e suas variações
2– constituiriam um dispositivo que congregaria uma heterogeneidade de elementos alinhados pela necessidade de
2 Ao longo do século XX e início do século XXI, o ensino da arte passou por uma grande variação de nomes, mostrando um constante processo de avaliação, tanto teórico como prático: educação artística, educação pela arte, arte-educação; arte/educação; ensino da arte; educação visual, educação da cultura visual, educação das práticas estéticas contemporâneas.
produção de uma subjetividade específica, em um determinado momento da história educacional brasileira. Essa subjetividade atualizar-se-ia em torno de algumas exigências: é necessário que o indivíduo educado seja identificado com sua localidade e torne-se responsável por ela, e, ao mesmo tempo, mantenha laços com a ideia de humanidade, que seja um homem sensível e afetivo e, ao mesmo tempo, crítico, inovador e autônomo. Enfim, que ela seja emancipado ao modo kantiano (1974), mas com uma alta dose de responsabilidade e afetividade pela localidade específica em que vive.
Quando se exigem modos de subjetivação, no caso, por meio de práticas educativas que respondam a uma governamentalidade
3, a qual visa a produzir um homem criativo, autônomo e socialmente responsável, devemos entender que aquilo que tem valor não é exatamente a vida do indivíduo em si, nem sua força de trabalho, mas os procedimentos pelos quais se transforma o indivíduo nesse ser produtivo.
Essas exigências justificam-se por uma mudança nos modos de produção de riquezas e valoração do trabalho humano. Pautando-se na obra de Foucault, Hardt e Negri (2001), Lazzarato (2001) e Corsani (2003) empreenderam uma análise da categoria de trabalho a partir da qual se pode afirmar que hoje é mais importante e lucrativa, para o mercado, a produção de informações sobre os modos de ser de uma população do que aquelas que um produto pode fornecer, por meio de sua cadeia produtiva, ou do lucro que possa advir da sua comercialização como produto material. Com a emergência dos processos de globalização econômica e a fluidez das fronteiras entre os países, experimentam-se grandes mudanças nas relações de produção, na função do trabalho do operário, na função do conhecimento, na função do mercado e das relações com as técnicas. Segundo Corsani, estabelece-se uma nova
3 A governamentalidade ou aquilo que Foucault (2005b) também nomeia como processo de governamentalização
da vida, na atualidade, seria um tipo de ação governamental que tem a população como objeto de técnica de governo, a economia política como sistema de conhecimento e os dispositivos de segurança como seus mecanismos de sustentação. Em Segurança, território, população, Foucault assevera: “Por
‘governamentalidade’, entendemos o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, as análises e as reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica – embora muito complexa – de poder, que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por ‘governamentalidade’, entendemos a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito, para a preeminência desse tipo de poder que podemos chamar de ‘governo’ sobre todos os outros – soberania, disciplina – e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo [e, por outro lado], o desenvolvimento de toda uma série de saberes. Enfim, por ‘governamentalidade’, cremos que se deveria compreender o processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado de justiça da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco
‘governamentalizado’” (p.143-144).
base de valor, novos critérios de avaliação das performances do capital, novos modos de validação da moeda e novas formas de subsunção real do trabalho. Esse acontecimento histórico do século XX traz a junção da política de mão de obra (a organização da força produtiva) com a política de organização do território (os equipamentos produtivos e a população) e com a política social (a redistribuição dos bens). O valor dos bens hoje situa-se na sociedade, nos saberes constitutivos dos fenômenos da população, nos processos cognitivos (capital humano) e na cooperação social. O valor de mercado está na sociedade, visto que as empresas passam a externar suas funções produtivas materiais para a cooperação social e se concentram principalmente na detenção dos ativos imateriais.
Dessa forma, quando se assevera que a vida humana é importante para o Estado, é apenas por aquilo que ela consegue mobilizar. São os procedimentos em torno da vida da população, as informações, os recursos financeiros, as influências políticas e as possibilidades de intervenção justa que a tornam valiosa; enfim, pela possibilidade de um determinado modo de vida permitir uma forma de governar ou de exercitar o poder.
Diante disso, como se transforma um indivíduo em um ser produtivo, nos dias de hoje?
Parece-nos que uma resposta possível remete à tríade arte/educação/psicologia, a qual, já de inicio, afirmamos serem hoje os saberes constitutivos da arte-educação e da educação artística.
Nesse sentido, lançamos a questão: a educação atualizar-se-ia nos planos discursivos e nas práticas dessa governamentalidade contemporânea, com base na noção de um tipo específico de prática da arte depurada pela psicologia para usos pedagógicos?
É importante deixar claro que não desejamos fazer um estudo da história da arte- educação ou da educação-artística, mas uma cartografia da aliança entre elas, ou de como se organizam as linhas do dispositivo que alia a educação, a psicologia e práticas artísticas, para a produção de um homem humanizado em um espaço governamentalizado sob o título dessas disciplinas. Posto isso, vejamos uma pequena amostra da longa história da aliança entre os três campos.
Se tomarmos, apenas como exemplo, a história da arte-educação no Brasil, a relação
entre o ato de desenhar e a psicologia começa a aparecer na década 1920, nas Escolas
Normais (BARBOSA, 2010). Antes disso, a relação entre arte e a educação não passava,
segundo a autora, pelas exigências de um olhar psicológico, mas pela função propedêutica que contribuiria para a formação do cidadão e o desenvolvimento do país.
Nessa perspectiva, as práticas artísticas estiveram presentes, principalmente a partir da República, nas pautas de como se governar e educar a população brasileira. Todavia, a aliança da psicologia com a arte e a educação é algo mais próximo dos nossos dias, e hoje aparece como algo absolutamente necessário para a formação do cidadão contemporâneo.
Como evidência de tal aliança, apresentamos um exemplo das centenas de artigos que coletamos, nos quais se pode visualizar a relação entre a arte, a educação e a psicologia com objetivos pedagógicos. Trata-se de um artigo intitulado Educação através da arte para um futuro sustentável (EÇA, 2010, p.13), escrito por uma pesquisadora portuguesa e publicado em uma qualificada revista acadêmica brasileira, em 2010.
A autora aponta que, para ter ressonância em um mundo onde o discurso de sustentabilidade impera, a educação brasileira deverá passar por uma grande reformulação dos seus princípios. Enfatiza a Proposta Curricular do Estado de São Paulo:
Houve um tempo em que a educação escolar era referenciada no ensino – o plano de trabalho da escola indicava o que seria ensinado ao aluno. Essa foi uma das razões pelas quais o currículo escolar foi confundido com um rol de conteúdos disciplinares. A Lei de Diretrizes e Bases – LDB (lei 9394/1996) deslocou o foco do ensino para o da aprendizagem, e não é por acaso que sua filosofia não é mais a da liberdade de ensino, mas a do direito de aprender. (SÃO PAULO, 2008).