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O público em cena e a subversão do espetáculo

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Academic year: 2022

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O público em cena e a subversão do “espetáculo”

Margarida Gandara Rauen/ Margie

Doutora/Profa. Associada, UNICENTRO

Resumo

Neste trabalho, abordo diferentes critérios e entendimentos de interatividade em eventos nos quais pessoas do público tornam-se agentes compositores da cena, subvertendo a noção de espetáculo e flexibilizando a relação com o tempo na proposta artística e em sua recepção. Considero as implicações históricas e metodológicas das teorias de interatividade e sua relevância para o estudo de propostas artísticas contemporâneas, à luz de autores tais como Guy Debord, Nicolas Bourriaud e Steve Dixon.

Palavras-chave: performance; processos criativos; interatividade; público

O tema da interatividade ganhou importância maior nos anos 60, depois das incursões futuristas da primeira metade do século XX. No Brasil, a transformação do papel autoral ocupou os neoconcretistas Ferreira Gullar, Helio Oiticica e Lygia Clark, questionadora do próprio termo “obra,” por remeter ao produto acabado e assinado. Em sua coletânea sobre o tema da participação, Claire Bishop (2006) desenha uma linha do tempo desde Umberto Eco (Obra Aberta, 1962) e Roland Barthes (o ensaio “A Morte do Autor”, 1968), passando por Hélio Oiticica (trechos do diário, 1965-66) e Lygia Clark (cartas trocadas com Hélio Oiticica, 1968-69), além de aproximar Joseph Beuys, Peter Bürger, Nicolas Bourriaud, Graciela Carnevale, Eda Cufer, Rirkrit Tiravanija, entre diversos outros artistas, curadores e filósofos.

Embora o termo “espetáculo” seja comum, em língua portuguesa, como sinônimo de peça, performance e outros eventos cênicos, esse uso é altamente ambíguo, dadas as conotações com dinâmicas mercadológicas. A subversão do

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espetáculo-mercadoria foi sistematicamente praticada pelos situacionistas, numa relação direta com Guy Debord. Sem ignorar as críticas feitas a Debord durante mais de quarenta anos de recepção do livro A Sociedade do Espetáculo (1967), é paradoxal observar, nas artes cênicas, o atual fortalecimento de suas idéias, com o crescente interesse de performers e coletivos na inclusão do público como agente compositor da cena em eventos interativos. Analisadas como ritual por Richard Schechner, cujo pensamento, na área de Artes no Brasil, se expandiu com Renato Cohen, essas práticas de performance e live-art sugerem tanto a rejeição radical da arte mercadoria, até as ações telemáticas que proporcionam a interação de pessoas geograficamente distantes em tempo real. Nesse contexto, em vista da problematização da cultura espetacular por Guy Debord e dos questionamentos da Escola de Frankfurt sobre a cultura de massa, o estudo da arte interativa requer, também, um tratamento distanciado do termo espetáculo.

A Estética Relacional, proposta por Nicolas Bourriaud (1998) é uma das mais recentes abordagens da arte interativa. Bourriaud argumenta que o espetáculo implica formas específicas de relações humanas e “só pode ser analisado e combatido por meio da produção de novos tipos de relacionamentos entre as pessoas” (Bourriaud, 2002, p.

85). Se Debord caracterizou a sociedade do espetáculo numa época em que a mercadoria parecia ocupar toda a vida das pessoas, atualmente vivemos numa

“sociedade de extras”: “Hoje, estamos num estágio mais avançado do desenvolvimento espetacular: o indivíduo passou de um estado passivo e puramente repetitivo à atividade mínima a ele imposta por forças de mercado” (Bourriaud, 2002, p. 113). A ênfase de Debord nas formas capitalistas de troca, porém, oculta o fato de que “Elas não representam a troca em termos absolutos, mas uma forma histórica de produção (o capitalismo)”(Bourriaud, 2002, p. 85). Quando o trabalho é capaz de gerar um campo relacional e uma dimensão social, ocorre uma reconciliação do Situacionismo com o mundo da arte. A arte relacional consiste, então, em “Um conjunto de práticas artísticas cujo ponto de partida teórico e prático é a totalidade das relações humanas e seu contexto social, ao invés de um espaço independente e privado” (Bourriaud, 1998, p.

113).1

1 Tradução minha de todas as citações de Bourriaud (2002).

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Bourriaud define a estética relacional como uma “teoria que consiste em julgar trabalhos de arte com base nas relações inter-humanas que eles representam, produzem ou provocam”(Bourriaud, 2002, p. 112), sendo a co-existência o critério-chave da arte relacional. Duas perguntas informam a análise: “Esse trabalho me permite entrar em diálogo com ele? Eu poderia existir, e como, no espaço por ele definido?” (Bourriaud, 2001, p. 109).

Entrar em diálogo, aqui, não deve ser entendido como um processo cognitivo ou intelectual inerente à recepção. Os teóricos da interatividade não só pressupõe que toda arte é interativa porque ocorre um processo recepcional quando o público se depara com um objeto, mas também concordam que a interatividade na arte contemporânea envolve a agência do público em tempo real. O objeto artístico não será apenas um meio de expressão de um autor e/ou co-autores, pois os/as artistas passam a propositores interessados/as em compartilhar uma proposta, ao invés de lançarem obras a serem assistidas por espectadores. O termo interatividade, entretanto, é usado abusivamente em inúmeros contextos, conforme observa Steve Dixon, remetendo a Margaret Morse (1998) e diferenciando o papel do receptor nas diversas midias em termos dos tipos e graus de participação em primeira e terceira pessoa:

Como a televisão é predominantemente unidirecional, quando um apresentador endereça o espectador diretamente, percebemos o apresentador na tela, tal qual fazemos na maioria das casos com atores no teatro e na performance, como uma terceira pessoa, “ele” ou “ela”, ao invés do “você” da interação na vida real. [...] Mas nas instalações interativas e performances nas quais o utilizador/público é diretamente endereçado e pode responder com sentido, o/a performer torna-se um “você”, agindo na segunda pessoa e não na terceira, em decorrência da interação direta, mesmo quando o/a performer está mediatizado(a) numa tela (Dixon, 2007, p. 561, tradução minha).

Dada essa relação entre primeira e segunda pessoa, além de polissemicamente aberto, o trabalho artístico é interminável, podendo transformar-se tantas vezes quantas forem as composições agregadas pelo público, na função de agente compositor (Rauen, 2009). Söke Dinkla propôs o termo “floating work of art” [obra de arte flutuante] para definir tais concepções interativas (Dixon, 2007, p. 560).

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Os critérios da co-participação e da ação do performer em segunda pessoa são complementares ao critério de paidia ou jogo livre (Roger Caillois, 1958), que eu venho aplicando em pesquisas sobre a interatividade e suas nuances comportamentais (Rauen, 2009). Paidia também implica um uso versátil do tempo. Portanto, para além do estudo da forma e do teor político do conteúdo, seja como dramaturgia ou roteiro de ações, a análise das dinâmicas de participação tem consistência metodológica e também permite acessar o tempo na arte e na recepção. Ao definir comportamento, Bourriaud observa que todos os regimes totalitários evitam o tempo versátil livremente preenchido pelo indivíduo e o substituem por um tempo uniforme e coletivo, pela “fantasia de um local central onde seria possível obter o amplo significado da sociedade [...]” (Bourriaud, 2002, p. 108). Mary Schmidt e Randy Martin (2006) abordam o engajamento político e seus desmembramentos na construção da cidadania artística.

Ao rever os meus processos criativos e os de outros artistas e grupos que tenho pesquisado, cujo trabalho envolve o público como agente compositor, percebo a relevância dos diversos critérios revisados. Augusto Boal, reconhecido como um artista seminal na teoria e prática da interatividade (Dixon, 2007), alerta sobre a poética de opressão, cujos valores de um mundo perfeito ou quase perfeito são impostos aos espectadores. Os critérios de jogo e tempo livre, participação em primeira e segunda pessoa também aparecem nos processos criativos de Jerzy Grotowski, Marina Abramovic, David Byrne, e dos artistas brasileiros do Erro Grupo, OPOVOEMPE, Companhia Silenciosa, Corpos Informáticos, entre outros (Rauen, 2009).

Penso que esses critérios também são válidos para a análise das implicações culturais de propostas contemporâneas interativas, por constituirem comportamentos e procedimentos com uma dimensão socio-política que transcende a noção coloquial de espetáculo.

Referências bibliográficas

Bishop, C. Participation. Documents of Contemporary Art. London: Whitechapel;

Cambridge, Ma.: The MIT Press, 2006.

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Bourriaud, N. Relational Aesthetics. Tr. Simon Pleasance & Fronza Woods with Mathieu Copeland. Dijon: Les presses du réel, 2002.

Campbell, M. S.; Martin, R. (eds.) Artistic Citizenship. A Public Voice for the Arts.

New York e London: Routledge, 2006.

Cohen, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2004. [A primeira edição foi publicada em1989].

______. Work in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1998.

Debord, G. A Sociedade do Espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro:

Contraponto Editora, 1997. (1 ed francesa 1967).

Dixon, S. Digital Performance. A History of New Media in Theater, Dance, Performance Art, and Installation. Cambridge e London: The MIT Press, 2007.

Grotowski, Jerzy. A possibilidade do teatro. Materiais de trabalho do Teatro das 13 Filas, Opole, fevereiro de 1962. In: FLASZEN, Ludwik; POLLASTRELLI, Carla (Curadores). O teatro laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. Trad. Berenice Raulino. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 48-74

Morse, M. Virtualities: Television, Media Art and Cyberculture. Bloomington e Indianapolis: Indiana UP, 1998.

Rauen, M. G. / Margie (org.) A interatividade, o controle da cena e o público como agente compositor. Salvador: EDUFBA, 2009.

Schechner, Richard. Performance studies: an introduction. London e New York:

Routledge, 2002.

Contato: margie.g.rauen@gmail.com

Referências

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