REPRESENTAÇÕES PATERNAS: UMA ANÁLISE DA PATERNIDADE NA CONTEMPORANEIDADE ATRAVÉS DO FILME PROCURANDO NEMO
Renata Borstmann Yohanna Breunig Acadêmicas de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC)
Introdução
A mídia opera na “constituição de sujeitos e subjetividades, na medida em que produz imagens, significações, enfim, saberes que de alguma forma se dirigem à ‘educação’ das pessoas” (FISCHER, 2002, p. 153). Age, portanto, como uma instância pedagógica, exercendo poder sobre os corpos, como no conceito de "poder disciplinar" de Foucault. Esse poder atua como uma regulação da espécie humana, visando um indivíduo que possa ser tratado como um corpo dócil, tendo sob controle a esfera individual, social e afetiva dos sujeitos (FOUCAULT, 2013).
A partir deste entendimento da mídia, podemos pensar em sua repercussão através dos filmes infantis. Estes possuem um amplo alcance, chegando a todos os segmentos da sociedade, penetrando nossas vidas. Através das vertentes pós-estruturalistas, é possível compreender que esses dispositivos midiáticos “transmitem uma variedade de formas de conhecimento que, embora não sejam reconhecidos como tais, são vitais na formação de identidades e subjetividades” (SILVA, 1999, p. 140).
Diante disso, temos observado que os filmes infantis geralmente trazem personagens principais órfãos de um ou ambos os pais, sendo frequente o aparecimento apenas do pai. Esta percepção nos inquietou e nos levou a querer entender como essas posições de sujeito vêm sendo representadas na mídia voltada ao público infantil. Tendo em vista que, como a cultura, os filmes infantis acompanham as mudanças que percorrem nossa sociedade, optamos por analisar um filme contemporâneo que aborde modos de vivenciar a paternidade. Portanto, debruçamo-nos sobre o filme “Procurando Nemo” (2003) para análise e debate da proposta aqui exposta, a partir dos Estudos Culturais e discursos midiáticos.
O filme retrata as aventuras do peixinho Nemo, que foi pego por um mergulhador e
separado de seu pai (Marlin). O amor e a busca incessável deste pai em encontrar e cuidar de
seu filho é o foco principal da narrativa. Seu pai, a partir da trágica perda de sua esposa e seus filhotes, em um ataque de tubarão, torna-se superprotetor em relação a seu filho, Nemo. A partir desta separação com o Nemo, Marlin vai a alto mar para procurá-lo e, desta forma, a história se desenvolve. Ao final do filme, Marlin e Nemo se reencontram e seu pai consegue tornar-se menos superprotetor.
Tendo em vista o resumo acima, nos deteremos a analisar apenas algumas cenas específicas em que há a representação da paternidade, as quais nos auxiliam a pensar essa temática, sendo favorável ao que nos propomos a discutir.
Para tanto, foi utilizada como metodologia uma pesquisa qualitativa, que buscará respostas às questões particulares que não podem ser quantificadas, como o universo de significados, de motivos, de aspirações, de crenças e de valores (Minayo, 2000). Esta objetiva, portanto, a compreensão do conhecimento. Diante disto, optamos por utilizá-la, pois visa a investigar e refletir sobre como a mídia apresenta modos de paternidade através deste filme infantil. Para atender ao objetivo de problematizar como estes produzem identidades e subjetividades, foi também realizada uma revisão bibliográfica, bem como a análise de produto midiático (o filme), com aporte teórico dos Estudos Culturais.
Mídia e Estudos Culturais
A mídia tem sido considerada importante para a construção de identidades, visto que é um lugar privilegiado de circulação de discursos em nossa sociedade (HENNIGEN, 2002).
Podemos afirmar que um dos meios pelo qual a construção da identidade do sujeito pós- moderno se dá é através da mídia, ou seja, no contato com o outro. Sabendo disso, considera- se a mídia como um poder disciplinar regulador dos corpos, sendo este “um poder que, em vez de se apropriar e retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor” (FOUCAULT, 1987, p. 14).
A mídia não só produz a construção de identidades, mas também, através disso, molda
a percepção que temos do que é ser e estar no mundo. Por essa razão, as representações que a
mídia traz da paternidade vão produzir diferentes visões dessas posições de sujeito, tendo
repercussão na vida cotidiana. As posições de sujeito são discursos que nos atravessam e nos
tornam o que somos
.Através desses discursos construímos nossas identidades e assumimos essas posições, culturalmente (HALL, 2011).
Segundo Fischer (2000, p. 19) “nossas identidades são construídas culturalmente”, o que quer dizer que estão sempre em constante construção a partir da cultura, não podendo mais ser considerada como prioritariamente pertinente ao campo psicológico, como algo intrínseco ao ser humano. A cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas ou códigos de significação, que atribuem sentido a toda nossa existência. Assumindo, portanto, uma centralidade cada vez maior na sociedade, sendo responsável pelas mudanças que ocorrem (GUARESCHI; MEDEIROS; BRUSCHI, 2003).
Visto que a cultura permeia os espaços nos quais estamos inseridos e está em constante construção, pretendemos aprofundar estes conhecimentos através dos Estudos Culturais. Estes surgem como uma área que visa estudar diferentes disciplinas e suas interações, compreendendo os aspectos culturais da sociedade contemporânea (HALL, 1980 apud JOHNSON; SCHULMAN, 1999). Portanto, tem o objetivo de ser “um campo de estudo que não pretende ser tão rígido e fixo como uma disciplina, mas que se propõe a abrir as questões e não fechá-las” (GUARESCHI; MEDEIROS; BRUSCHI, 2003, p. 23).
Diante disso, os Estudos Culturais examinam os efeitos produzidos na cultura, através da mídia, as formas como o público se apropria das informações transmitidas, por meio das imagens e discursos. Com isto, os Estudos Culturais se propõem a refletir e questionar, conforme o contexto social e momento cultural da mídia a ser estudada, como o conteúdo apresentado por determinado dispositivo midiático se endereça ao seu público alvo. De acordo com Ellsworth (apud Fischer, 2002), há modos específicos de endereçamento que dizem respeito a certas posições de sujeitos esperadas. Há uma expectativa e desejo por parte dos produtores, criadores, emissores. Porém, há também uma operação dos sujeitos sobre esses produtos e sobre todo esse processo comunicacional, que é bem mais complexo do que simplesmente a existência de um filme, por exemplo, que é veiculado e recebido no interior de cada lar.
As mensagens trazidas através dos filmes produzem modos de leitura da realidade,
permitindo que se simbolize e signifique experiências. De acordo com Rael (2013), está
ocorrendo um aumento gradativo de afastamento da escola como único local de construção e
divulgação de saberes. A mídia, em geral, pode ser compreendida como instância educativa.
Portanto, a forma como os filmes representam seus personagens é de um viés pedagógico, que faz com que se aprendam maneiras de ser e de perceber o mundo.
Conforme Hall (apud Santi e Santi, 2008), representação é descrever ou retratar através da linguagem, sendo linguagem a forma como significamos os objetos, as pessoas, os eventos que constituem o nosso cotidiano. Consideramos, então, importante estudar as representações que o filme apresenta sobre a paternidade, pois este pode instituir modelos de vida e de família.
Sendo assim, é importante saber como a mídia está representando essas posições, através dos personagens do pai no filme infantil, pois recebemos essas informações desde a infância e, assim, essas mídias participam ativamente da construção de nossas identidades.
Para isto, é importante termos um conhecimento acerca das diferentes posições da paternidade ao longo dos tempos.
Contextualização da Paternidade
Para que possamos compreender a paternidade no mundo pós-moderno é de fundamental importância que façamos uma breve retomada das diferentes posições paternas conforme as mudanças históricas e sociais. Não podemos deixar de considerar que a família mais retratada nos referenciais bibliográficos é essencialmente a família tradicional (nuclear) burguesa, considerada por muitos anos como um padrão a ser seguido. E, conforme Reis (1989, p. 100), quando há outros modelos de família “são consideradas, no máximo, estruturas que ainda vão se diferenciar em direção a esse modelo ideal de família”.
A família é um sistema que vem se modificando, principalmente, em decorrência dos movimentos feministas, que geraram um abalo nas estruturas familiares, como a “divisão sexual do trabalho e a dicotomia entre o público e o privado, atribuída segundo gênero”
(VAITSMAN, 2001, p. 16). A mulher passou a não ter mais apenas a responsabilidade de cuidar da casa e da família e, com isso, fez com que a posição paterna também se modificasse.
Dessa forma, o homem não tem mais a função somente de prover materialmente a família (RAMIRES, 1997).
Após esses acontecimentos, decorrentes dos movimentos sociais e feministas, passou-
se a se ter maiores estudos referentes à paternidade, os quais
surgem como um campo particular e investigam a participação mais efetiva do homem no cotidiano familiar, mais especificamente no cuidado com filhos/as: este homem passa a ser caracterizado como o novo pai. (HENNIGEN; GUARESCHI, 2002, p. 53.)
Hennigen (2004, p. 101) afirma que “o homem é um objeto de pesquisa relativamente novo para a Psicologia e para as Ciências Sociais”. Para a autora, este novo objeto se constitui diante da perda gradativa de seu status universal e de seus privilégios sociais. De acordo com a perspectiva atual, a importância do pai no desenvolvimento de seus filhos, bem como as consequências e prejuízos de sua ausência denotam que estes são psicologicamente capazes de participar de forma ativa nos cuidados e na criação dos filhos. E isto, portanto, poderá ser bom e saudável para ambos (RAMIRES, 2001).
Análise do Filme
Na primeira cena do filme “Procurando o Nemo” já percebemos uma representação de pai a ser identificada, como quando o casal de peixes, Marlin e Coral, mudam-se para sua nova casa. Ambos estão esperando pelo nascimento de seus filhotes. Marlin ao mostrar a nova morada para Coral, a questiona ao ver as ovas: Marlin: Será que eles vão gostar de mim? E Coral responde: Marlin, são mais de quatrocentas ovas, uma vai ter que gostar de você!
Podemos perceber, desde o início, a preocupação demonstrada por Marlin em relação aos seus filhos.
Segundo Gomes e Resende (2004, p. 122) “apesar da importância da figura paterna, o homem, em vias de se tornar pai, tende a se fragilizar diante da nova responsabilidade”. Estes sentimentos aparecem em vista do “novo” a ser experienciado, gerando insegurança, medos e dúvidas na espera do nascimento do filho. Os questionamentos feitos por Marlin sobre se os filhos irão gostar dele, advêm do fato de que ele realmente se importa de maneira afetiva com os mesmos, não sendo apenas uma preocupação em sustentar “financeiramente” a família, como provedor.
Em meio a um ataque de tubarão, Marlin acaba perdendo sua esposa e seus filhotes,
restando apenas uma ova. Ao encontrá-la, refere-se a ela da seguinte maneira: Pronto, pronto.
Tudo Bem. Papai está aqui. O papai está aqui com você. Eu prometo que nunca nada vai acontecer com você, Nemo.
Diante desta terrível perda, Marlin passa a ter medo de perder o filho, já que é a única família que lhe restou. Por isso, tem uma preocupação excessiva em relação a Nemo. Não queria nem que o Nemo fosse à escola, pois não poderia protegê-lo. Nemo: Primeiro dia de aula, primeiro dia de aula! Tá na hora de ir para a escola! Vamos lá, acorda! Primeiro dia de aula! Vamo’bora! Marlin: Eu não quero ir para a escola, mais 5 minutinhos! Nemo: Não é para você, pai! É para mim! Levanta, levanta! Marlin: Ta bem, ta bem, já levantei! [...]
Nesta cena podemos perceber o receio em deixar o filho ir para escola, pois, sendo assim, ficará longe de seu olhar.
Estas cenas retratam uma mudança na visão de identidade paterna (considerando a família burguesa). Há uma concepção de um pai afetivo e presente na vida do filho, que já tem um interesse espontâneo em cuidar e fazer o melhor pelo Nemo. Portanto, não assume somente a posição de provedor, como era referido na família burguesa. Percebemos que a identidade paterna vem se modificando, pois, como afirma Hall (2011), a identidade não é fixa, essencial e permanente, sendo definida historicamente. Desta forma, Vieira e Nascimento (2014, p. 60) concluem que “a construção desses novos sentidos se dá, de forma recorrente, a partir de antigas referências já disponíveis”.
Outra percepção que podemos avaliar nesta análise é o fato de que Marlin leva seu filho à escola e, quando chega ao local, há somente pais (homens) com os seus filhos. Após despedirem-se dos filhos, Marlin conversa com os pais. Pai 1: É você foi bem, para marinheiro de primeira viagem... Marlin: Ué, a gente não pode ficar segurando os filhos...
Pai 2: Para mim foi difícil quando o meu mais velho foi lá no paredão. Isso nos leva a pensar na posição que os pais vêm assumindo e suas responsabilidades com os filhos, estando presente em diversos contextos da vida da criança.
No entanto, essas transformações nos submetem à questão de gênero, em que foram atribuídas, histórica e culturamente, posições e ações esperadas para homens e mulheres.
Deste modo, é comum encontrarmos pessoas que considerem Marlin como um pai que
assume uma “posição materna”. E então, questionamo-nos: o que é posição materna? O que é
ser pai?
Através da educação sexista são atribuídas características, significados e valores para o universo feminino e masculino. Siqueira (1999, p. 190) nos traz que “as mulheres foram educadas para serem ‘femininas’, ou seja, dóceis, emotivas, frágeis, mães intuitivas. Os meninos, por sua vez, para serem duros, fortes, racionais”. Diante dessas posições demarcadas surge a “hipótese da maternagem exclusiva das mulheres como uma construção social e não como um fato natural” (RAMIRES, 1997, p. 47).
A exemplo do filme, o modo como Marlin age com o filho nos faz perceber que há um espaço para novas configurações de paternidade, em que é atribuído ao pai o direito e o desejo de ser o cuidador, protetor e educador da sua prole. Desta forma, demonstra que é capaz de realizar tarefas e demonstrar sentimentos culturalmente e socialmente conferidos à maternidade.
Isso significa que o homem pode assumir essa posição “dita materna” e ser algo natural dele. Não é porque ele é mais afetivo ou participativo que está “exercendo maternagem”. Ele simplesmente está sendo pai, com suas características e compromissos.
Essa visão torna-se possível na medida em que as pessoas se libertam das amarras e padrões tradicionais que permeiam a sociedade (SIQUEIRA, 1999).
É justamente em meio a essas representações, as quais vêm tendo um espaço maior na sociedade para discussão, que a mídia passa a retratar esses “novos” modos de ser pai, acompanhando a cultura e produzindo sentidos e significados. Conforme afirma Hennigen (2004),
na atualidade, a importância da mídia na produção e circulação de discursos sobre os modos de ser é inegável, logo, qualquer que seja a dimensão da subjetividade humana sob estudo, a contemplação dos discursos da mídia a este respeito pode ser bastante produtiva. (HENNIGEN, 2004, p. 102)