• Nenhum resultado encontrado

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo RODRIGO BARBOSA OLIVEIRA E SILVA

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Pontifícia Universidade Católica de São Paulo RODRIGO BARBOSA OLIVEIRA E SILVA"

Copied!
132
0
0

Texto

(1)

RODRIGO BARBOSA OLIVEIRA E SILVA

Boa-fé objetiva e suas repercussões civis

Mestrado em Direito

São Paulo

2020

(2)

Boa-fé objetiva e suas repercussões civis

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito, na subárea Direito Civil, sob a orientação do Professor Doutor José Manoel de Arruda Alvim Netto.

São Paulo

2020

(3)

CDD

Boa-fé objetiva e suas repercussões civis / Rodrigo Barbosa Oliveira e Silva. -- São Paulo:

[s.n.], 2020.

132p ; 21,5 x 30 cm.

Orientador: José Manoel de Arruda Alvim Netto.

Dissertação (Mestrado)-- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós Graduados em Direito.

1. Obrigação. 2. Boa-fé objetiva . 3. Boa-fé subjetiva. 4. Contratos. I. Alvim Netto, José Manoel de Arruda. II. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós Graduados em Direito. III. Título.

(4)

Boa-fé objetiva e suas repercussões civis

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito, na subárea Direito Civil, sob a orientação do Professor Doutor José Manoel de Arruda Alvim Netto.

Aprovado em:_____/_____/_____.

Banca Examinadora

Professor Doutor José Manoel de Arruda Alvim Netto (Orientador).

Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Julgamento:_____________________________________________________

Assinatura:______________________________________________________

Professor (a) Doutor (a) ___________________________________________

Instituição: ______________________________________________________

Julgamento: _____________________________________________________

Assinatura: ______________________________________________________

Professor (a) Doutor (a) ___________________________________________

Instituição: ______________________________________________________

Julgamento: _____________________________________________________

Assinatura: ______________________________________________________

Professor (a) Doutor (a) ___________________________________________

Instituição: ______________________________________________________

Julgamento: _____________________________________________________

Assinatura: ______________________________________________________

(5)

Não poderia deixar de agradecer ao meu pequeno filho Bernardo, que com sua vinda e a incansável curiosidade pela vida me inspira a cada dia a me aperfeiçoar.

Aos meus pais, minha eterna gratidão pelo apoio ao estudo e por terem se empenhado arduamente

na minha formação e educação.

Ao Doutor José Manoel de Arruda Alvim Netto, pela dedicação ao ensino e presteza na orientação desse trabalho.

Aos professores da PUC-SP, que muito me ensinaram e despendem um trabalho hercúleo para a construção de um ambiente acadêmico

promissor em nosso país.

E por tudo mais, agradeço a Deus, por me guiar e dar a

oportunidade de fazer esse trabalho.

(6)

A presente dissertação tem como objetivo apresentar uma abordagem científica do instituto da boa-fé sem qualquer finalidade de esgotar o estudo do tema. A pesquisa visa proporcionar sua utilização como fonte normativa e constante consolidação no ordenamento jurídico brasileiro. A boa-fé objetiva é uma inesgotável fonte de validação e de purificação do direito, em especial no tocante às suas funções de integração e de controle. Nesse sentido, sua aplicabilidade se consolida no sistema jurídico nacional com forte posicionamento doutrinário e jurisprudencial. A conclusão da dissertação aponta para a aplicabilidade do instituto da boa-fé e seus desdobramentos em todos os ramos do direito, não apenas ao direito privado. No mais, a boa-fé objetiva funciona como fonte integrativa e controle do bom direito, o que por si só representa o fundamento da nação brasileira em ter uma sociedade livre, justa e solidária.

Palavras-chave: Obrigação. Boa-fé objetiva. Boa-fé subjetiva. Contratos. Função de

controle e de integração.

(7)

This dissertation aims to present a scientific approach of the institute of good faith without any purpose of exhausting the study of the theme.

The objective of good faith is an inexhaustible source of validation and purification of the law, especially to its functions of integration and control. In this sense, its applicability is consolidated in the national legal system with strong doctrinal and jurisprudential positioning. The conclusion points to the applicability of the institute and its developments in all fields, not just to the private law. In addition, objective good faith is responsible for the integration and control of good law, which itself represents the foundation of our nation in having a free, fair and solidary society.

Keywords: Obligation. Objetive good faith. Subjective good faith. Contracts. Control

and Integration Function.

(8)

BGB Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil Alemão)

BGH Bundesgerichtshof (Superior Tribunal Federal, equivalente ao STJ).

CC/2002 Código Civil brasileiro de 2002 CCom Código Comercial

CDC Código de Defesa do Consumidor

LINDB Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro RG Reichsgericht (Tribunal Imperial)

ROHG Reichsoberhandelsgericht (Supremo Tribunal Imperial do Comércio) STF Supremo Tribunal Federal

STJ Superior Tribunal de Justiça

TJSP Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

(9)

1 INTRODUÇÃO 11

2 A ORIGEM HISTÓRICA 14

2.1 Da fides à bona fides 16

3 BOA-FÉ NA PRIMEIRA E NA SEGUNDA SISTEMÁTICA 19

3.1 A primeira sistemática 19

3.2 A segunda sistemática 20

3.3 A boa-fé nas codificações francesa e alemã 22 3.3.1 A primeira codificação: O Código Napoleão ou Code Civil 22 3.3.2 A segunda codificação: O Código Civil Alemão ou BGB –

Gesetzbuch Burgerliches 24

4 A BOA-FÉ OBJETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO NACIONAL 27

4.1 Conceito jurídico vago 30

4.2 Cláusula geral e princípio jurídico 34

4.3 Da boa-fé objetiva e subjetiva 38

4.4 Funções da boa-fé objetiva 40

4.4.1 Função interpretativa e integrativa 41

4.4.2 Função criadora de deveres jurídicos anexos 44 4.4.3 Função de controle ou delimitadora do exercício dos direitos subjetivos 50

4.5 Desdobramentos da boa-fé objetiva 57

4.5.1 Venire contra factum proprium 59

4.5.2 Suppressio 61

4.5.3 Surrectio 63

4.5.4 Tu quoque e exceptio non adimpleti contractus 65

4.5.5 Estoppel 68

4.6 Duty to migate the loss 70

5 DA VIOLAÇÃO DA BOA-FÉ OBJETIVA E O DEVER DE INDENIZAR 73

5.1 Responsabilidade pré-contratual 73

5.2 Responsabilidade contratual 78

5.3 Responsabilidade pós-contratual 81

5.4 Responsabilidade extracontratual 83

6 APONTAMENTOS JURISPRUDENCIAIS 90

6.1 Súmula 308. Ineficácia da hipoteca entre instituição financeira

e construtor. Função integrativa da boa-fé objetiva 92 6.2 Boa-fé objetiva. Contrato de representação comercial 101 6.3 Violação da boa-fé objetiva no processo civil 103 6.4 Arrematação do bem penhorado. Indevido levantamento dos valores.

Crédito preferencial. Violação da boa-fé objetiva 105 6.5 Cumprimento forçado de contrato. Denúncia imotivada.

Concessionária de veículos 106

6.6 Exclusão da responsabilidade do emitente do cheque por costume.

Empréstimo de lâminas de cheque. Impossibilidade 111

(10)

assumido por autoridade pública. Suspensão da execução judicial

de dívida bancária. Justa expectativa do mutuário 115 6.9 Atividade regulatória. Função atípica. Vedação à elisão fiscal 116 6.10 Imposto sobre a propriedade territorial rural. Invasão do Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Impossibilidade da

subsistência da exação tributária 120

7 CONCLUSÃO 123

REFERÊNCIAS 126

(11)

1 INTRODUÇÃO

A dogmática tradicional resolve apenas uma parcela dos problemas jurídicos postos pela sociedade, haja vista a complexidade das novas demandas sociais.

Diante disso, os conceitos jurídicos vagos e as cláusulas gerais fizeram com que o direito se adaptasse a esses novos desafios. Eles desempenham um papel fundamental para a resolução dos problemas jurídicos, especialmente aos essencialmente complexos nos quais não há correspondência normativa no direito positivo.

Os conceitos jurídicos vagos foram introduzidos no sistema jurídico como técnica legislativa, a fim de permitir ao aplicador do direito a utilização de instrumentos para a resolução de problemas jurídicos complexos do mundo real e, assim, alinhar o direito à dinâmica social, distanciando-o da estrutura jurídica estática do século XIX.

A cláusula geral da boa-fé é reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência estrangeira como essencial à operabilidade do direito, já que permite a abertura para a integração do sistema jurídico, especialmente quando se exige uma apreciação valorativa do direito posto em debate, sem uma perfeita correspondência ao direito positivo. No mesmo sentido, no sistema jurídico nacional, a boa-fé objetiva é referida em diversos dispositivos, o que permite sua valoração no caso concreto e a aplicação da justiça.

É inegável que normas jurídicas de conceito vago e as cláusulas gerais propiciam a adequação do direito positivo às mutações sociais e, assim, sua constante evolução e coerência ao sistema jurídico. A abertura do sistema autoriza ao intérprete o uso de conceitos vagos, pois eles desempenham o papel de vetores interpretativos, haja vista a complexidade da sociedade contemporânea.

O sistema jurídico nacional há tempos não é considerado um sistema fechado, como à época da promulgação do Código Civil, em 1916, que se caracterizou por forte corrente positivista. Já o Código Civil de 2002 traz diversas normas de conceito jurídico vago, o que permite sua harmonização com o direito positivo, além de funcionalizar a operabilidade do direito.

A doutrina atual demonstra preocupação na aplicabilidade das cláusulas gerais,

especialmente por abrir possibilidade às arbitrariedades em decisões judiciais, o que

contrapõe os métodos racionais de previsibilidade e a segurança inerentes ao direito.

(12)

Teresa Arruda Alvim, atenta à coerência e à operabilidade do direito, sustenta:

“quando se diz que o juiz, ao decidir hard cases, cria o direito, não se quer com isso significar que ele invente o direito, mas tem o dever de fazê-lo em harmonia com o sistema

1

.

Em outras palavras, a preocupação se funda na correta aplicação das normas vagas, no sentido de que o permissivo ao livre convencimento judicial de não se vincular à letra da lei não configure uma discricionariedade plena, mas vinculação ao sistema jurídico.

Vale destacar que a cláusula geral da boa-fé, na acepção objetiva – que é objeto do presente trabalho – traz como premissa um standard jurídico e a regra de comportamento exigível de todos nas relações obrigacionais. Dessa forma, o instituto da boa-fé objetiva não visa proteger o direito individual da parte, mas a sociedade, na medida em que preserva a confiança inerente a todas as relações obrigacionais.

Nesse sentido, toda norma jurídica deve trazer um resultado prático. Portanto, a consulta à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é imprescindível para se aferir o uso da boa-fé objetiva no contexto do Estado Democrático de Direito.

Destaca-se que a boa-fé objetiva, referida no art. 422 do Código Civil, indica os padrões de conduta voltados à virtude e à moral. Com isso, o conceito aberto das cláusulas gerais permite uma constante adaptabilidade dos valores mais atuais, sem que isso implique a quebra da segurança jurídica. Não é diferente a nova diretriz liberal introduzida pela Lei Federal n. 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica), que manteve a cláusula geral da boa-fé objetiva como norma de interpretação e integração dos negócios jurídicos

2

.

O presente estudo não tem a pretensão de indicar a melhor interpretação da boa-fé objetiva, mas apenas de convidar a uma reflexão sobre o instituto sem se afastar das regras da experiência trazidas pelos ensinamentos filosóficos, doutrinários e jurisprudenciais.

Há uma vastidão de perspectivas em relação à boa-fé, seja pela sua historicidade, seja pela sua natureza como instituto jurídico. Assim, é necessário dar

1 ALVIM, Teresa Arruda; DANTAS, Bruno. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores. 6. ed. São Paulo: RT, 2020, p. 79-80.

2 “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. § 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei” (Incluído pela Lei n. 13.874, de 2019) (grifos nossos).

(13)

um enfoque útil no tema a ser tratado, especificamente na sua aplicabilidade perante os tribunais superiores.

A aplicação da boa-fé objetiva no direito nacional tem sido um paradoxo: de um lado a jurisprudência, ciente da eficácia das cláusulas gerais e sua necessidade no cenário jurídico dada a complexidade social; de outro lado a doutrina, que apresenta perspectivas hermenêuticas associadas à boa-fé objetiva, conforme os trabalhos doutrinários elaborados por António Menezes Cordeiro e Judith Martins-Costa.

Nesta pesquisa, o enfoque é examinar a boa-fé objetiva na perspectiva de cláusula geral que, por sua característica de norma vaga, se apresenta como uma alternativa para flexibilizar o direito escrito e se adaptar às realidades sociais. A dissertação também é voltada ao exame das consequências da sua violação em casos apreciados pelo Superior Tribunal de Justiça, órgão do Poder Judiciário encarregado de julgar os litígios em última instância. Eventualmente, ainda assim, será demonstrada a atuação de outros tribunais judiciais ou administrativos.

Faz-se necessário, portanto, delimitar a pesquisa jurisprudencial, uma vez que todos os acórdãos e decisões monocráticas do Superior Tribunal de Justiça levantados em uma só pesquisa tornam o trabalho infindável. Assim, a pesquisa será realizada nos acórdãos selecionados pelo próprio tribunal, que pela sua novidade e repercussão foram publicados nos informativos jurisprudenciais entre 2001 e 2020.

Diante da dimensão da pesquisa, e visando trazer um critério de reflexão, também serão abordados os julgados relevantes não inseridos no contexto dos informativos jurisprudenciais, mas apreciados pelo Superior Tribunal de Justiça, além de casos interpretados à luz do instituto, a fim de auxiliar a compreensão da boa-fé objetiva.

A análise desses julgados parte da premissa da abertura do sistema pela boa- fé objetiva, que permite ao julgador harmonizar o direito escrito com as perspectivas valorativas do caso concreto. Serão também avaliadas as funções da boa-fé objetiva na correção jurídica, especificamente nas suas funções interpretativa, integrativa e de controle.

Assim, espera-se que esta pesquisa possa afastar alguns mitos provenientes

da boa-fé objetiva.

(14)

2 A ORIGEM HISTÓRICA

A fides inaugura sua origem há milênios, quando o homem passou a viver em sociedade respeitando padrões de conduta como uma condição à sua sobrevivência.

A doutrina indica a origem da boa-fé no direito romano, porém, os historiadores sustentam uma ancianidade ainda maior. A palavra fides estaria ligada à confiança, à cooperação, à proteção e à lealdade – que, por sua vez, são deveres de conduta exigíveis de todos que convivem socialmente – e, igualmente, à colaboração, como fundamento da justiça e da virtude

3

.

No antigo Egito, a exigência de honeste vivere evidenciava a boa-fé, a qual era marcante naquela sociedade. A Lei Maat, também conhecida como as 42 Confissões, era uma espécie de mandamentos de retidão, assim como os dez mandamentos para os cristãos. Esta Lei apresentava normas explícitas relativas à necessidade de se ter condutas pautadas em não lesar o próximo, tal como previsto em seu art. 33: “Eu não levei alguém ao erro”.

Na Grécia Antiga, Aristóteles sustentava que a manifestação da moral social era uma virtude, que somada à justiça torna a vida política ordenada e justa. Portanto, o justo na visão aristotélica era considerado, frequentemente, como aquele com a melhor das virtudes. Isto mostra o liame com a premissa de honeste vivere e viver em estado de lealdade e de cooperação

4

.

No direito romano histórico ou direito romano privado, a boa-fé se desenvolveu desde as origens da sociedade romana (que, segundo a tradição, se deu com a fundação de Roma (754 a.C.) até a morte de Justiniano (565 d.C.))

5

. Foram treze séculos de evolução do direito privado, em que certamente a boa-fé evoluiu de diferentes formas. No entanto, a que apresenta uma semântica propriamente vinculada ao nosso estudo é aquela referente ao período em que a fides se tornou um instrumento de soberania do império romano.

Assim, a fides, com o passar do tempo, foi despida de características religiosas (época em que os romanos cultuavam a deusa fides), personificação da palavra dada, e se voltou para a prática de negócios comerciais. O vínculo com a lealdade e a probidade ganhou cada vez mais importância no império romano, permanecendo assim até os dias atuais.

3 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 54.

4 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução e notas de Edson Bini. 4. ed. São Paulo: Edipro, 2014, p. 182.

5 ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 01.

(15)

Importante salientar que a boa-fé é atrelada à honeste vivere e ao não lesar o próximo, também previsto no Código Justinianeu do Imperador Justiniano, de 526 d.C., do qual é o “preceito de viver honestamente, não lesar a outrem e dar a cada um o que é seu”

6

. Portanto, sua observância estaria ligada à virtude e ao justo.

De acordo com o entendimento de António Menezes Cordeiro, a definição da origem da boa-fé é um trabalho árduo e complexo, pois há falta de documentação histórica, o que dificulta reconstruir o ambiente sociojurídico daquela época. No entanto, no último século, foram desenvolvidas investigações inspiradas na doutrina alemã; além disso, outros historiadores também muito colaboraram para retirar os ensinamentos que a história da boa-fé deixa à contemporaneidade

7

.

Nesse sentido, António Menezes Cordeiro afirma que os elementos históricos trazem à fides primitiva alguns significados distintos, quais sejam a fides-sacra, a fides-facto e a fides-ética.

A fides-sacra está relacionada à Lei das XII Tábuas, a qual patronus si clienti fraudem fecerit, sacer esto (se um patrono tiver cometido alguma fraude contra o seu cliente, que seja condenado), que cominava pena contra o patrão que fraudasse a confiança do cliente

8

. A finalidade dessa norma romana era conferir lealdade às relações sociais.

A fides-facto conduz à noção de garantia despida de conotações religiosas ou morais. Em sua pesquisa, o autor português menciona que a fides-facto estava associada a um ritual de dar as mãos e firmar o acordado, ritual que permanece na contemporaneidade quando se acorda algo

9

.

A fides-ética ocorre após se depositar garantia na pessoa, a qual ganha uma feição de palavra ou moral. Assim, seria mais do que um acordo, mas um dever constituindo um elemento subjetivo.

6 DONNINI, Rogério. Bona fides: do direito material ao processual. Revista de Processo v. 251. Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. Salvador: UNIFACS, 2016, p. 3. O Corpus Iuris Civilis ou Código Justinianeu, do Imperador Justiniano, de 526 d.C., está dividido em quatro partes: O Digesto ou Digesta, também conhecido com o nome grego Pandectas, que é uma compilação de fragmentos de textos de jurisconsultos clássicos; as Institutas ou Instituições (Institutiones), que eram utilizadas como um manual de direito romano aos estudantes de direito de Constantinopla, o Código (Codex), consistente de uma coleção sistemática de leis e decretos imperiais, e as Novelas (Novellae Constituitiones), que eram as novas leis imperiais. No Digesto 1.1.10.1, Ulpiano enumera os preceitos do direito: viver honestamente, não lesar a outrem e dar a cada um o que é seu (Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere). Disponível em:

https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/4597. Acesso em: 25 ago. 2019.

7 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1983, p. 54.

8 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 53.

9 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1983, p. 56.

(16)

Segundo Judith Martins-Costa, a ideia de fides nasceu no mundo romano e recebeu diversos significados, haja vista sua própria evolução história. Daí a expressão de confiança, colaboração, amparo ou proteção como fundamentos da virtude cívica. No mais, a autora entende que a boa-fé era o valor fundante da sociedade romana para sua soberania e a manutenção do império, o que estaria vinculado à ética e à moral

10

.

2.1 Da fides à bona fides

A fides promessa ou garantia exerceu um papel primordial na sociedade romana, já que a confiança era o principal alicerce das relações sociais, pois a palavra dada se difundia em vários outros institutos do direito romano, que com o tempo evoluiu e se expandiu para as relações entre os povos do mediterrâneo.

A estrutura jurisdicional romana era centrada no formalismo, visto que o direito estava concentrado em ações típicas, e parametrizado – o que era denominado fórmula. Este formalismo se caracterizava por procedimentos previamente tipificados para cada tipo de demanda, incapazes de atender à evolução econômica e territorial do império romano

11

. Logo, as ações judiciais romanas não alcançavam as situações subjetivas surgidas com o incremento comercial no Mediterrâneo

12

.

A boa-fé no direito romano evoluiu para uma questão de soberania, já que por volta da primeira metade do século III. a.C., Roma se transformou na principal potência comercial do Mediterrâneo. Com isso, a lealdade entre os indivíduos gerava um estado de confiança mútuo e prolongado, o que constituía uma virtude cívica por excelência e era geradora de respeito e de boa reputação, o que fundamentava todas as relações comerciais ou entre os indivíduos

13

.

A palavra dada no direito romano, essencialmente durante o período da prosperidade comercial de Roma, criava o estado de confiança que se consagrava

10 COSTA, Judith Martins. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 54.

11 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1983, p. 70-71.

12 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 68.

13 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. O Tratado Roma- Cartago indica que a fides era considerada com núcleo normativo, seja dos tratados entre cidades, seja dos contratos de Direito Privado, o que, em última análise, deixa entrever que já no mundo romano a diferença entre os contratos de Direito Internacional e os de Direito Privado interno não residia na estrutura de ambos, mas no diverso mecanismo protetivo da garantia estatal em razão de um fator externo aos contraentes, qual seja, a autoridade do Estado que firmava o tratado, enquanto os segundo adquiririam esta qualidade já por si, isto é, em sede anterior àquela configurada pela autoridade do Estado, tendo em extrema importância no que concerne especificamente aos quatros contratos denominados consensuais – a compra e venda, a locação, a sociedade e o mandato –, e também os três contratos reais não solenes – o mútuo, o depósito e o comodato.

(17)

com o gesto da manus dextra, a palma da mão direita. Salienta-se que o ato de sacramentar o acordo não era mera saudação, mas a demonstração de que as pessoas se vincularam a cumprir a sua obrigação

14

.

Nesse sentido, a utilização da fides como instrumento de soberania estatal foi empregado entre Roma e outros Estados, tornando-se o primeiro tratado entre Roma e Cartago, que segundo Políbio, a cada Estado prometia a própria fé pública vinculando seus cidadãos aos negócios privados realizados. Com isso, era prometida a proteção aos negócios realizados entre cidadãos de diferentes Estados, passando assim à proteção estatal dos negócios privados

15

. Dessa forma, a proteção da fides foi considerada o núcleo normativo de direito privado naquele momento histórico.

Denota-se que a fides garantia, com seu contorno de fides lealdade, constrange a manutenção da promessa e indica o valor nuclear da sociedade romana cujo significado se aliou à manutenção da preponderância comercial no Mediterrâneo e, consequentemente, à manutenção da lealdade e à correção no agir negocial.

A fides considerada como núcleo normativo, seja dos tratados entre cidades ou contratos de direito privado, passou a ser amplamente utilizada entre os romanos e estrangeiros. Os contratos e documentos eram firmados e o interesse estatal em garantir sua fé era essencial para estabilizar a prosperidade romana.

Ressalta-se que durante a prosperidade romana no mediterrâneo, houve a transposição da fides em bona fides em virtude do mesmo núcleo semântico, ou seja, os próprios predicados da fides de lealdade, proteção e cooperação. O império romano como potência comercial se viu obrigado, para manter sua hegemonia, a criar mecanismos para creditar suas operações internacionais e internas, já que a fides nas relações internas não era mais o suficiente.

Com isso, a correção nos negócios aliada à moralidade tornou a lealdade à palavra dada uma condição para um indivíduo ser tido como titular de um crédito que, como tal, poderia ser oferecido nas relações creditícias.

14 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 57. Como lealdade à palavra dada condição que, mantida ou prolongada entre as pessoas, gera um estado de confiança em relação à conduta do sujeito, titular da fides – constitui a virtude cívica por excelência, qualidade geradora do respeito social e da boa reputação. O que visa tutelar é o estado de confiança de quem justamente confiou, sancionando-se a conduta contrária à confiança do emissor da declaração. Os símbolos, talvez mais que os signos, expressam esse conteúdo. No domínio das obrigações esse era o espaço da deusa Fides, sendo-lhe consagrada a manus destra, a palma da mão direita, o que está na origem do gesto (ainda hoje cotidianamente repetido por quem confia) de dar-se as mãos, sacramentando o pactuado. A dextrarum iunctio entre duas pessoas não era mera saudação, antes servindo para demonstrar que, por seu intermédio, as pessoas se ligavam pelo vinculum fidei, vínculo sacro, ao menos na idade arcaica, divinizado com a fides que estava no seu substrato.

15 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 58.

(18)

De acordo com Judith Martins-Costa, a palavra crédito tem início com a aproximação entre os termos fides e res, o que transformou o trânsito semântico da palavra lealdade para “ter confiança em alguém”. Assim, a nova concepção traz às relações comerciais e creditícias o sentido ativo de dar confiança a alguém, e o sentido passivo de ter a confiança de alguém.

De fato, a bona fama era condição essencial para a obtenção da fides ou creditum, já que o crédito somente era obtido por pessoas de boa reputação. Nesse sentido, o verbo credere se apresentava aos romanos como a possibilidade de dar algo aliando a confiança e a coisa, como também a ideia de dar com garantia, ou seja, o dever de cumprir a promessa.

Denota-se que aliando a bona fama e a fides nasceu o contrato de mútuo e suas subcategorias, como o comodato. Com isso, houve a transformação da fides em bona fides. Essas figuras contratuais se baseavam na boa palavra, ou seja, na boa fides.

Acrescenta-se que o surgimento da bona fides se deu em virtude da necessidade exigida pelos negócios já que a experiência romana antiga era definida pelo formalismo da lei civil. Dessa forma, para a validade dos contratos, os romanos não reconheciam a validade de pactos alheios fora da formalidade do ius civile.

As dificuldades postas para o crescimento do império romano, dada a

insuficiência de modelos negociais previstos no ius civile, porém necessários ao

ambiente mercantil, fizeram surgir a bona fides, a qual outorgava a fidúcia necessária

naquele ambiente negocial com estrangeiros. Dessa forma, o acordo verbal ou

informal ganhou proteção nas relações mercantis com a bona fides, a qual funcionava

como um elemento fundante na manutenção da ordem econômica, já que inibia as

partes ao descumprimento da palavra e estimulava a correção ou o leal adimplemento

das obrigações.

(19)

3 BOA-FÉ NA PRIMEIRA E NA SEGUNDA SISTEMÁTICA

De acordo com António Menezes Cordeiro, a ciência europeia do direito no final da Idade Média estava ligada à leitura histórica dos textos justinianeus, o que dificultava o ensino do direito.

Com isso, o humanismo surgiu como uma força reformadora da leitura do direito, como um fenômeno complexo e transformador, que ofereceu à posteridade uma renovação metodológica

16

.

Judith Martins-Costa observa que a evolução da boa-fé da primeira à segunda sistemática se deu em virtude de um constante processo evolutivo do direito:

Pela trama entretecida pelas categorias do Direito Romano e pelas dimensões axiológicas do Direito Canônico – uma e outras amalgamadas, via ius commune, na cultura do Humanismo –, formou- se a significação atribuída à boa-fé como princípio central e diluído, assim, ingressando a noção na primeira sistemática, aquela que se desenvolve no Humanismo, dali passando – com significados agregados – à segunda sistemática, a do jusracionalismo

17

.

Assim, a evolução da boa-fé objetiva até a contemporaneidade se deu em decorrência de um longo período de sedimentação doutrinária e jurisprudencial, o que não poderia ser diferente, uma vez que partiu de um sistema fechado para um sistema aberto apto a se adaptar às realidades sociais atuais.

3.1 A primeira sistemática

A primeira sistemática em relação à bona fides reviveu aspectos que se perderam na Idade Média e produziu a primeira tentativa de tratar globalmente o assunto, principalmente nas obras de Cujaccius (1522 – 1590) e Donellus (1527 – 1591), que ficaram conhecidos como jurisprudentes expoentes do humanismo jurídico.

Segundo Judith Martins-Costa, a primeira sistemática teve grande importância na construção da boa-fé objetiva, já que trouxe uma análise inovadora àquela época, especialmente no tocante à análise e à proposta de desdobramento de institutos derivados do direito romano:

16 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1983, p. 189-190.

17 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 96.

(20)

No que diz com o tratamento dado à boa-fé, o ponto em comum entre os dois expoentes daquela escola – Cujaccius e Donellus – está no exame da distinção romana entre os contratos stricti iuris e boane fidei, distinção taxonômica, por certo, mas com importantíssimos desdobramentos em matéria hermenêutica

18

.

Cujaccius empreendeu esforços para sistematizar o direito e apresentou diversos sentidos atribuídos à bona fides na compilação justinianeia, porém manteve os institutos separados. Dessa forma, manteve vivo o instituto da boa-fé como um princípio e não um mero complemento subjetivo de outros institutos

19

.

Segundo anota António Cordeiro Menezes, Donellus, no âmbito contratual, estabelece deveres positivos, obrigando que a parte cumpra sua prestação, e deveres negativos, a fim de que a parte se abstenha de agir com dolo, fraude e coação

20

. Ao analisar a boa-fé possessória do direito romano, a distingue ao exigir ausência de fraude e lealdade, ou seja, um comportamento correto para a aquisição do direito alinhado com a boa-fé objetiva contemporânea:

Isto é: Donellus define a boa-fé possessória, em termos aparentemente clássicos. Aproxima-a, porém, da ideia de lealdade, tal como definiu Cícero. A boa-fé possessória deixa de ser um mero dado subjectivo: implica o comportamento correcto, com ausência de dolo

21

.

Assim, o papel dos humanistas trouxe um grande avanço ao estudo da boa-fé como instituto jurídico, o que repercute até hoje.

3.2 A segunda sistemática

Durante os séculos XV e XVI, houve uma transformação importante na cultura jurídica ocidental que reflete até os dias atuais. O direito europeu teve grandes raízes para a construção de sua dogmática, dentre elas o jusracionalismo. Não se pode negar que grandes influências decorreram do direito romano e do direito canônico.

18 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 97.

19 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1983, p.198.

20 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1983, p.199-200. Daí a importância da obra dos Humanistas: embora uma pequena elite de juristas, que pouco influiu, imediatamente, na prática do direito, e ainda incompleto o seu lavor de sistematização, é certo que a renovação a que procederam teve o mérito de, por meio da construção de princípios gerais elaborados a partir da ordenação de elementos díspares, concluir a unificação conceitual de alguns conceitos-chave para o direito, proporcionando a alavanca para a elaboração centralizada do sistema, tarefa que seria empreendida pelo jusracionalismo.

21 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1983, p.199.

(21)

O jusracionalismo pretendia deduzir um direito puramente racional, isto é, um direito fundado em princípios racionais que fosse válido independentemente das condições sociais ou culturais. Essa forma ideológica de caráter eminentemente jusnaturalista propunha que o direito natural seria deduzido racionalmente e deveria ser utilizado para corrigir os outros vários direitos.

De acordo com António Menezes Cordeiro, o jusracionalismo é o período no qual o pensamento jurídico atuou diretamente no direito, que por seu turno, é a designação clássica da filosofia e das teorias tradicionais do direito ocidental. Assim, a boa-fé surge, com uma série de potencialidades, por vezes até contraditórias: por um lado, um conceito técnico-jurídico e, por outro, um conteúdo psicológico

22

.

Salienta-se que o objetivo do jusracionalismo não era em si reduzir a experiência adquirida pelo direito natural e pelo conteúdo filosófico, mas definir a ordem da razão, ou seja, aquilo que estrutura o sistema. Assim, a proposta é o uso da razão tão evidente que não precisa ser provada ou demonstrada.

O principal expoente da primeira geração dos jusracionalistas foi o holandês Hugo Grotius (1583-1645), que preconizava pela jurisprudência um direito válido pela razão além de estruturar a teoria jurídica geral. Ao abordar a boa-fé, Hugo Grotius assentou o princípio da responsabilidade da declaração, ou seja, deve ser tido como verdadeiro aquilo que foi exteriorizado

23

.

No tratamento da justiça contratual, Hugo Grotius liga a fides à aequalitas – ou equivalência de prestações e contraprestações. Por meio desse entendimento, propõe uma ética contratual material, a que se equipararia ao que se denomina deveres laterais ou anexos da boa-fé objetiva

24

.

Vale destacar que ao analisar as relações entre vontade e declaração, Hugo Grotius fixa o entendimento de que a eficácia jurídica somente teria espaço para pessoas moralmente responsáveis. Com isso, trata como verdadeiro aquilo que foi exteriorizado pelas palavras dos declarantes, portanto, consegue unificar os princípios da vontade e da confiança, um dos alicerces da boa-fé objetiva atual

25

.

22 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1983, p. 202.

23 WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Tradução portuguesa de António Manuel Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, p. 323.

24 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p.106.

25 WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Tradução portuguesa de António Manuel Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, p. 331.

(22)

Nesse sentido, Franz Wieacker, ao estudar o pensamento de Hugo Grotius avalia que a justiça contratual decorre também dos deveres das partes quanto ao dever de respeito e de esclarecimentos mútuos

26

. Dessa forma, o entendimento de Hugo Grotius repercute diretamente nos deveres anexos ou parcelares da boa-fé objetiva contemporânea, como os deveres de informação e de boa conduta.

Portanto, o pensamento jusnaturalista, aliado ao pensamento de Hugo Grotius, deu também sua contribuição à construção da boa-fé objetiva contemporânea, especialmente ao delimitar e indicar os seus deveres anexos.

3.3 A boa-fé nas codificações francesa e alemã

O sistema francês foi o primeiro a consagrar o instituto da boa-fé no ordenamento civil. Já o sistema alemão, trouxe a boa-fé objetiva como um standard de conduta expressamente previsto no Código Civil. Assim, ambos foram os sistemas mais representativos em suas épocas no que diz respeito à positivação do princípio da boa-fé. O Code Napoléon foi o primeiro a se referir à boa-fé nas relações contratuais mas foi com o Bürgerliches Gesetzbuch ou BGB (Código Civil Alemão) que o princípio da boa-fé objetiva se desenvolveu.

3.3.1 A primeira codificação: O Código Napoleão ou Code Civil

O panorama privatista do Código Civil francês foi marcante. Ele recebeu forte influência do direito romano e canônico, o que definiu os parâmetros do direito europeu

27

.

O Código Civil francês foi elaborado em um momento de profundas alterações sociais na Europa, ocasião de forte influência do jusracionalismo. Os principais idealizadores do sistema francês foram Domat e Pothier, os quais, sob uma

26 WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Tradução portuguesa de António Manuel Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, p. 334.

27 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1983, p. 226. c. Redigido no rescaldo da Revolução Francesa, numa altura em que a instabilidade constitucional era, ainda, acentuada, e depois de várias tentativas de codificação ocorridas no auge do período revolucionário, o Código Napoleão é, com facilidade, considerado o produto inovador de alterações jurídico-sociais profundas.

Há muito, porém, que a historiografia mais atenta aponta o infundado dessa consideração. O Código Napoleão traduz apenas o ponto culminante da evolução que, iniciada com os comentaristas e renovada pelo humanismo e pela primeira sistemática, seria inflectida e conduzida, em termos definitivos, pelo jusracionalismo. Não há, entre a doutrina jurídica pré-revolucionária e o Código, quaisquer quebras ou, sequer, evoluções significativas. No próprio campo jurídico-positivo, as inovações cingiram-se à manutenção de parte das consagrações revolucionárias, nomeadamente no campo dos Direitos Reais.

(23)

conjugação de elementos morais, jurídicos e filosóficos introduziram a boa-fé nas relações contratuais.

O Código de Napoleão recolhe a ideologia da Revolução Industrial, na qual o direito positivo fixa a obrigatoriedade contratual, atribuindo à boa-fé um papel residual, já que era a tradução jurídica da concepção econômica, política e filosófica do liberalismo. A liberdade objetivada pelos idealizadores da lei civil era de apagar os entraves até então existentes relativos aos privilégios feudais.

Em virtude das liberdades preconizadas pelo Código Civil francês, o consentimento é o fundamento dos contratos e dos vínculos obrigacionais no direito francês. Com isso, a falta de consentimento pela falta de liberdade incide entre os vícios, assim como o erro e o dolo. Pothier trata do dolo como uma violação da boa- fé que afetava a eficácia dos negócios jurídicos

28

.

Em outras palavras, o dolo não produz a nulidade do contrato, mas inaugura o direito potestativo de se rescindir a avença contratual, já que o consentimento foi viciado por meio de um artifício enganoso, o que, de acordo com Pothier, é uma violação à boa-fé.

Observa-se que no direito francês a regra da boa-fé tornou-se um elemento de vontade contratual, servindo como norma de interpretação dos negócios jurídicos, o que esvaziava a eventual dialética entre os princípios da autonomia da vontade e da boa-fé objetiva como cláusula geral. Com isso, demonstra uma aproximação ao elemento psicológico da atual boa-fé subjetiva.

De acordo com Judith Martins-Costa, somente no final do século XX a doutrina francesa retomaria o tema da boa-fé como um standard apto a estabelecer deveres de comportamento, haja vista a necessidade de um direito uniforme no âmbito europeu e nos contratos internacionais. As novas percepções trouxeram uma força normativa e estenderam sua aplicabilidade na fase pré-contratual. Portanto, apesar de ressalvas doutrinárias, a boa-fé como fonte normativa cresceu na doutrina francesa como uma obrigação de cooperação, de informação e de equilíbrio contratual

29

.

28 POTHIER, Robert-Joseph. Traité des obligations. Paris: Librairie de L´Oeuvre de Saint Paul, 1883, I, 29, p. 17.

In: MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 68. “Quando uma das partes foi induzida a contratar por dolo da outra, o contrato não é absoluto e essencialmente nulo, porque o consentimento por surpresa não deixa de ser consentimento; mas este contrato é viciado e a parte surpreendida pode, em dez anos, tendo cartas de rescisão, o rescindir, porque (o contrato) peca contra a boa-fé que deve reinar entre os contratos. Ora, se a minha promessa me obriga para convosco, o dolo que vós haveis cometido em me surpreender vos obriga a indenizar-me e, por conseguinte, a desonerar-me da minha promessa.

29 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 118-120.

(24)

3.3.2 A segunda codificação: O Código Civil Alemão ou BGB – Gesetzbuch Burgerliches

De acordo com António Menezes Cordeiro, o BGB alemão, de 1869, entrou em vigor em 1900 e foi o precursor da segunda codificação, consagrando a boa-fé subjetiva em termos éticos e a boa-fé objetiva no âmbito contratual

30

.

Ao escrever sua obra, o doutrinador ressaltou cinco dispositivos acerca da boa- fé objetiva no BGB – representada pela expressão Treu und Glauben – e dezesseis acerca da boa-fé subjetiva – correspondente à expressão guter Glauben. Dentre os cinco dispositivos, destaca-se o parágrafo 242, onde se lê: “o devedor está adstrito a realizar a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego”. O parágrafo representou a positivação da cláusula geral da boa-fé das obrigações. Também o parágrafo 157 trata da boa-fé objetiva de alcance geral ao dispor: “os contratos se interpretam como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego”.

Registre-se que a fonte que levou à consagração da boa-fé objetiva no direito alemão decorreu da experiência comercial alcançada na jurisprudência alemã pelo Tribunal de Apelação Comercial com sede em Lübeck. As decisões judiciais baseavam-se na boa-fé objetiva como fundamento jurídico para a observância dos deveres de cooperação e de confiança.

É fundamental lembrar que uma codificação pressupõe um pré-entendimento do direito, o que leva à conclusão de que a estrutura do BGB relativa à boa-fé objetiva é um exemplo de construção jusnatural do direito, isto é, conectada a uma concepção solidarista do direito a uma referência à realidade jurídica vigente. Segundo António Menezes Cordeiro, uma codificação é fruto da evolução cultural de uma sociedade, ou seja, há uma prévia discussão e contingência do instituto que leva à elaboração da norma:

Uma codificação pressupõe sempre um certo pré-entendimento genérico da matéria a tratar, o que é dizer: antes do estudo científico e da formalização pressupostos pela codificação, existe já, a nível cultural, uma ideia dos problemas a considerar e das saídas para eles recomendadas. A codificação acusa, fatalmente, as inclinações assumidas pelo pré-entendimento da problemática que pretenda incluir, ficando comprometida caso tal pré-entendimento falhe de todo

30 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1983, p.325.

(25)

em todo. O pré-entendimento jurídico, porque jurídico, tem natureza contratual

31

.

Observa também que:

Destes, com raízes jus racionalistas claras e com uma projeção límpida do domínio do pensar liberal, sobressai a boa-fé com factor de fortalecimento e de materialização do contrato ou seja: a boa-fé como necessidade de cumprimento efectivo dos deveres contratuais assumidos, por oposição a cumprimentos formais, que não tenham em conta o seu conteúdo verdadeiro

32

.

António Menezes Cordeiro comenta, ainda, o trabalho elaborado por Jürden Schmidt, que tratou de modo sistemático a boa-fé objetiva:

Esta esquematização, preconizada por Jürden Schmidt, a qual nos aspectos relacionados com a evolução mais recente da boa-fé, haverá oportunidade de regressar, tem a maior importância e deve ser tida como referência.

[...]

A distinção básica a operar nas doutrinas iniciais sobre boa-fé não é, pois, entre concepções negociais ou não negociais, mas entre entendimentos juspositivos ou metajurídicos

33

.

Consoante o exposto, a boa-fé objetiva se consagrou no direito alemão desde o século XIX, cujo repertório jurisprudencial é rico em remeter à observância dos deveres anexos ou colaterais da boa-fé objetiva, como os deveres de informação, cooperação, lealdade, autorresponsabilidade e boa razão. António Menezes Cordeiro menciona em sua obra um caso julgado em 1950, relacionado a posições jurídicas na relação contratual, o qual transcreve para demonstrar a já evoluída doutrina alemã:

A decisão do OAG Lübeck 14-Mai-1850 reporta-se a uma boa-fé objectiva, condicionante do modo de exercício de posições jurídicas.

Fora movida uma ação para o pagamento de mercadorias encomendadas e entregues. O R. responde alegando determinados vícios nas coisas vendidas que, por isso, quer devolver. Entre vários outros aspectos, o OAG entendeu que o destinatário de mercadorias, quando, por qualquer razão, não queira aceitá-las, deve comunicá-lo quanto antes ao vendedor; não existe, para tanto, uma regra legal ou consuetudinária, sendo apenas uma consequência da bona fides e da

31 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1983, p. 329.

32 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1983, p. 329-330.

33 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1983, p. 333-335.

(26)

diligência que as partes de devem mutuamente no tráfego comercial – OAG Lübeck 14-Maio-1850, OAG/Römer 2 (1856) 314-325 (314-315 e 317-318). O emprego do latim bona fides é do próprio texto da decisão

34

.

Vale destacar que mesmo com o transcorrer do tempo e a modernização do Código Civil Alemão dos anos 2001 e 2002, a boa-fé objetiva permanece hígida, fortalecendo ainda mais o princípio da confiança inerente às relações jurídicas. Dessa forma, o instituto da boa-fé sacramentado no atual ordenamento jurídico alemão se deu em virtude de uma robusta cultura jurídica doutrinária e jurisprudencial que permitiu o alargamento e a positivação da boa-fé.

34 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1983, p. 318.

(27)

4 A BOA-FÉ OBJETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO NACIONAL

Inicialmente, a aplicação da boa-fé objetiva no cenário nacional não se deu apenas após sua referência no direito estatuído. Muito antes, a doutrina e a jurisprudência já a utilizavam, notadamente, na solução de problemas aos quais o critério sistemático-dedutivo não apresentava uma resposta satisfatória ao direito.

Com isso, a tópica assumiu o papel fundamental de flexibilizar a arquitetura do pensamento lógico-dedutivo do direito apresentado pela legislação anterior e permitir a inserção da boa-fé objetiva muito antes de sua referência no sistema jurídico

35

.

Nas palavras de Eduardo Tomasevicius Filho, a referência da boa-fé no ordenamento nacional se deu com o Código Comercial de 1850

36

, porém com um viés interpretativo. Observa, ainda, que no Código Civil de 1916 não existia a cláusula geral da boa-fé objetiva, apenas uma referência aos contratos de seguros:

Já o Código Civil de 1916 não tinha cláusula geral sobre a boa-fé. Em matéria contratual, a doutrina sempre apontou o art. 1.443, relativa a contrato de seguro, como o único que estabelecia o dever de informar à contraparte sobre os riscos a serem cobertos, por força da boa-fé.

Isso não significa, entretanto, que a boa-fé era um instituto ausente do direito brasileiro

37

.

O Código Civil de 1916, portanto, anterior à Constituição Federal de 1988, retratava as ideias liberais resultantes do Código de Napoleão e representava a concepção clássica da teoria contratual, a qual era filiada à autonomia da vontade e a um sistema fechado à porosidade das cláusulas gerais e normas de conteúdo jurídico vago.

É oportuno lembrar que com a vigência da Lei n. 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor – “CDC”) e da Lei n. 10.406/2002 (Código Civil), a boa-fé objetiva ganhou relevância e se consolidou na doutrina e na jurisprudência. Assim, o esforço

35 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1983, p. 196-202.

36 “Art. 131 – Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: 1 – a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras; 2 – as cláusulas duvidosas serão entendidas pelas que o não forem, e que as partes tiverem admitido;

e as antecedentes e subsequentes, que estiverem em harmonia, explicarão as ambíguas; 3 – o fato dos contraentes posterior ao contrato, que tiver relação com o objeto principal, será a melhor explicação da vontade que as partes tiverem no ato da celebração do mesmo contrato; 4 – o uso e prática geralmente observada no comércio nos casos da mesma natureza, e especialmente o costume do lugar onde o contrato deva ter execução, prevalecerá a qualquer inteligência em contrário que se pretenda dar às palavras; 5 – nos casos duvidosos, que não possam resolver-se segundo as bases estabelecidas, decidir-se-á em favor do devedor”.

(grifos nossos).

37 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O princípio da boa-fé no direito civil. São Paulo: Almedina, 2020, p. 154.

(28)

da doutrina e da jurisprudência para fundamentar a aplicação da boa-fé objetiva, como no art. 85 do Código Civil de 1916

38

e no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (atual Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro)

39

, passou a ser mais fluido e fortaleceu a autonomia do instituto.

Com o surgimento da corrente doutrinária denominada “constitucionalização do direito civil”, também chamada de “direito civil constitucional”, houve uma releitura dos institutos de direito civil conforme a Constituição Federal de 1988. Assim, as normas de direito privado até então fundadas na casuística passaram a conter, além de conceitos vagos, uma forte carga axiológica, o que permitiu a porosidade e consagrou o sistema aberto no ordenamento jurídico nacional.

A cláusula geral da boa-fé objetiva, dada a sua natureza de norma vaga, está apta contornar o arcabouço jurídico e a permitir a abertura do sistema nas relações afetivas e negociais. No tocante às relações afetivas, a cláusula geral da boa-fé objetiva se relaciona ao princípio da dignidade da pessoa humana, assumindo esse valor e princípio, constituindo elemento decisivo na afirmação de qualquer Estado Democrático de Direito

40

.

Como exemplo, tem-se a repercussão dos direitos de família às uniões homoafetivas, que por efeito expansivo da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4.277/DF e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.

132/RJ, todos os institutos de direito de família foram acrescidos aos casais homoafetivos, sob o fundamento da dignidade da pessoa humana, o que levou à expedição da Resolução n. 175 do Conselho Nacional de Justiça

41

.

38 “Art. 85. Nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem”.

39 “Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

40 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil – obrigações. 14. ed. Salvador:

JusPodivm, 2020, p. 169.

41 O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições constitucionais e regimentais, CONSIDERANDO a decisão do plenário do Conselho Nacional de Justiça, tomada no julgamento do Ato Normativo n. 0002626-65.2013.2.00.0000, na 169ª Sessão Ordinária, realizada em 14 de maio de 2013;

CONSIDERANDO que o Supremo Tribunal Federal, nos acórdãos prolatados em julgamento da ADPF 132/RJ e da ADI 4277/DF, reconheceu a inconstitucionalidade de distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas de mesmo sexo; CONSIDERANDO que as referidas decisões foram proferidas com eficácia vinculante à administração pública e aos demais órgãos do Poder Judiciário; CONSIDERANDO que o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do RESP 1.183.378/RS, decidiu inexistir óbices legais à celebração de casamento entre pessoas de mesmo sexo; CONSIDERANDO a competência do Conselho Nacional de Justiça, prevista no art. 103-B, da Constituição Federal de 1988; RESOLVE: Art. 1º É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. Art. 2º A recusa prevista no art. 1º implicará a imediata comunicação ao respectivo juiz corregedor para as providências cabíveis. Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação (DJE/CNJ n. 89/2013, de 15/05/2013, p. 2).

(29)

As cláusulas gerais são sempre desafiadas a solucionar problemas complexos nos quais as regras da casuística se mostram inaptas pela dinâmica social. Com isso, as lides serão testadas à abertura do sistema.

Efetivamente, a boa-fé como cláusula geral, assim como as normas de conceito jurídico vago, prescindem de valoração para sua concretização e aplicabilidade, o que só é permitido ao analisar o caso concreto. No entanto, “boa-fé” quando adjetivada de

“objetiva” ganha natureza de instituto jurídico indicativo de normatividade, interpretativa e de um standard de conduta.

Conforme explica Judith Martins-Costa, a boa-fé é utilizada pelos juristas de modo multifacetado, nem sempre com o mesmo conteúdo jurídico. Isso se deve à própria legislação, que ora a integra à norma jurídica como conceito jurídico vago, ora como princípio e ora como em sua acepção objetiva de standard jurídico ou regra de conduta

42

.

Conquanto seja impossível definir a boa-fé objetiva, é possível ressaltar seu caráter fundante no ordenamento jurídico como pauta de interpretação, integração e correção de condutas. Essa abertura é viabilizada pelas cláusulas gerais, a qual se caracteriza por uma técnica legislativa que propõe a abertura axiológica, a fim de modular a lei pela compreensão ética.

A boa-fé está referida em diversos dispositivos do Código Civil. Nos negócios jurídicos serve como regra de interpretação e de integração (arts. 113, § 2º e 167). No direito de família, a boa-fé purifica a anulabilidade ou a nulidade do casamento (art.

1.561). Nos contratos, a boa-fé é exigível nas fases prévias, de execução e posteriores do contrato, além de assumir as funções integrativa e de controle (art. 422). No direito das obrigações, protege-se quem agiu de boa-fé, presumindo o pagamento ao credor putativo (art. 309). No direito das coisas, a regra também não é diferente, já que a posse de boa-fé conta prazo para usucapião e protege a posse.

Em outras palavras, o legislador nacional andou bem ao consagrar a boa-fé objetiva como um standard jurídico de conduta ética nas relações obrigacionais, fazendo com que a legislação pátria se alinhasse aos diplomas estrangeiros na busca pela equidade e pela verdade interpretativa.

42 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 41.

(30)

4.1 Conceito jurídico vago

A boa-fé objetiva é uma matriz de fundo ético e moral, a qual encontra seus fundamentos nos primórdios do direito natural. Trata-se, portanto, de uma norma polissêmica, que independentemente de sua destinação, espelha eficácia jurídica e é considerada fundamento do justo.

Afirma-se que a referência da boa-fé não se limita ao direito privado, ao contrário, encontra-se em todos os ramos do direito, já que qualquer relação jurídica deve ser pautada na boa razão, na ética, na razoabilidade, na cooperação e na confiança. Com isso, o agir segundo a bona fides é indispensável à democracia, que tem a pluralidade de opiniões como sua maior característica. Por essa razão, não é de se estranhar a difusão da boa-fé objetiva por diversos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais no direito nacional.

Nos sistemas jurídicos nacional e estrangeiro há uma tendência em se mitigar a utilização do modelo normativo, típico das codificações pós-Revolução Francesa, já que um sistema centrado apenas na casuística não foi suficiente para atender à complexidade das relações impostas pela sociedade contemporânea. Ressalta-se que o equilíbrio do direito está na busca pelo justo, não na acepção da justiça como valor, mas ligado à verdade da interpretação.

A forma encontrada pelo direito foi a de criar técnicas legislativas baseadas em cláusula gerais e em conceitos jurídicos vagos que permitem ao aplicador do direito usufruir de um sistema aberto atento à realidade social contemporânea.

Salienta-se que a adequação do sistema jurídico se deu por uma necessidade social, a partir do momento em que as sociedades modernas se tornaram heterogêneas, no sentido pluralista, o que transformou, de certo modo, o sistema codificado em algo inapto a atender a complexidade da vida social

43

.

Nesse mesmo sentido, Judith Martins-Costa sustenta que a linguagem legislativa moderna evoluiu por meio de programas em que a sociedade pluralista passou a exigir do direito, especialmente, a indicação de programas e de resultados

43 José Manoel de Arruda Alvim Netto observa: “Entenda-se por sociedade heterogênea aquela em que não há um grupo dominante e um dominado, claramente identificáveis, mas diversos grupos influentes, seja através de poder ‘quase’ efetivo, seja através de pressão, ao lado e sobre o detentor ‘formal’ do poder. Utilizamo-nos, pois, da expressão sociedade ‘heterogênea’ objetivando significar uma sociedade onde os valores, e,

consequentemente as expectativas, não se podem considerar uniformes, exatamente por não ocorrer a predominância nítida de uma classe, ou, de um ou alguns grupos sociais”. ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Argüição de Relevância no Recurso Extraordinário. São Paulo: RT, 1988, p. 14.

(31)

desejáveis ao bem comum, fundamental à utilidade social e à operabilidade do direito

44

.

Assim, o conteúdo vago em determinadas normas não é estranho ao sistema jurídico, uma vez que a vagueza semântica é útil e necessária, já que é construída intencionalmente com tal imprecisão, justamente para delinear os casos em que o critério de subsunção não se revele adequado à solução do problema.

Judith Martins-Costa observa o pensamento tópico como uma forma importante a fundamentar as normas de conteúdo jurídico vago. Para a doutrinadora, o pensamento tópico foi estruturado por Theodor Viehweg a partir da utilidade da dialética proposta por Aristóteles. A tópica, segundo ela, consiste em uma técnica de pensamento ou um estilo que se fundamenta a orientar problemas postos, a partir da dimensão do peso e do valor atribuído ao caso concreto

45

.

Com isso, surge com a tópica a busca de um referencial a partir do problema, a fim de equacionar os interesses postos em discussão. Diversamente do modo de pensar sistemático, com a tópica nascem premissas com vistas a resolver os problemas até se encontrar uma solução que satisfaça a razão.

Vale ressaltar que a utilização reiterada desses conceitos jurídicos vagos permite diminuir o grau de indeterminação, haja vista a finalidade do sistema aberto.

Isso não quer dizer tornar novamente o sistema fechado, mas alterar o sistema de raciocínio tópico para o quase dedutivo

46

.

Teresa Arruda Alvim e Bruno Dantas exemplificam a evolução do conceito de família, que anteriormente codificada como um modelo patriarcal, hoje é caracterizada

44 Judith Martins-Costa ressalta: “[...] nossa época viu irromper na linguagem legislativa indicações de programas e de resultados desejáveis para o bem comum e a utilidade social (o que tem sido chamado de diretivas ou

‘normas-objetivo’), permeando-a também em terminologias científicas, econômicas e sociais que, estranhas ao modo tradicional de legislar, são, contudo, adequadas ao tratamento dos problemas da idade contemporânea.

Mais ainda, os códigos civis mais recentes e certas leis especiais têm privilegiado a inserção de certos tipos de normas que fogem ao padrão tradicional, não mais enucleando-se na definição, a mais perfeita possível, de certos pressupostos e na correlata indicação punctual e pormenorizada de suas consequências. Pelo contrário, esses novos tipos de normas buscam a formulação da hipótese legal mediante o emprego de conceitos cujos termos têm significados intencionalmente vagos e abertos, os chamados ‘conceitos jurídicos indeterminados’.

Por vezes, – e aí encontraremos as cláusulas gerais propriamente ditas –, o seu enunciado, em vez de traçar punctualmente a hipótese e as suas consequências, é desenhado como uma vaga moldura, permitindo, pela vagueza semântica que caracteriza os seus termos, a incorporação de princípios, diretrizes e máximas de conduta originalmente estrangeiros e ao corpus codificado, do que resulta, mediante atividade de concreção desses princípios, diretrizes e máximas de conduta, a constante formulação de novas normas”. MARTINS- COSTA, Judith. O direito privado como um “sistema em construção” – as cláusulas gerais no projeto do Código Civil brasileiro. Revista dos Tribunais, n. 753, 1998, p. 27-28.

45 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 196-201.

46 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Argüição de Relevância no Recurso Extraordinário. São Paulo:

RT, 1988, p. 38. Ao enfrentar o conceito indeterminado “relevantes” para cabimento de recurso extraordinário.

Referências

Documentos relacionados

É primeiramente no plano clínico que a noção de inconscien- te começa a se impor, antes que as dificuldades conceituais envolvi- das na sua formulação comecem a ser

No final, os EUA viram a maioria das questões que tinham de ser resolvidas no sentido da criação de um tribunal que lhe fosse aceitável serem estabelecidas em sentido oposto, pelo

insights into the effects of small obstacles on riverine habitat and fish community structure of two Iberian streams with different levels of impact from the

A versão reduzida do Questionário de Conhecimentos da Diabetes (Sousa, McIntyre, Martins & Silva. 2015), foi desenvolvido com o objectivo de avaliar o

Taking into account the theoretical framework we have presented as relevant for understanding the organization, expression and social impact of these civic movements, grounded on

Entre as atividades, parte dos alunos é também conduzida a concertos entoados pela Orquestra Sinfônica de Santo André e OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São

Antes de se apresentar as ações de melhoria que dizem respeito ao sistema pull e tendo em consideração que o planeamento da UI de Lamas combina a tipologia

O objetivo deste estudo foi avaliar o impacto da terapia nutricional e dos cuidados da equipe multidisciplinar no tratamento de idosos com lesão por pressão,