DIÁLOGOS SOBRE FEMINISMO, AUTONOMIA REPRODUTIVA E A LUTA DAS
MULHERES LÉSBICAS
Alexandra Lopes da Costa – UFGD
1E-mail: alexasociais@yahoo.com.br
Pensar o debate sobre a autonomia reprodutiva no marco dos feminismos e da luta
das mulheres lésbicas implica desvendar os processos sociais, históricos, políticos,
econômicos e culturais que constroem a subordinação de gênero no patriarcado e as formas
distintas de conceber o corpo, a reprodução e a sexualidade para homens e mulheres em
sua diversidade (étnico-racial, de classe, orientação sexual, geração, etc), ao longo do
tempo, nas diferentes culturas e no interior de uma mesma sociedade.
Foi no contexto da atmosfera dos anos 1960, período marcado por intensa agitação
popular, cultural e política que o processo de politização do debate sobre o corpo, a
sexualidade e a reprodução emergem no interior dos movimentos feministas em diversas
partes do globo.
O slogan “nosso corpo nos pertence”, um dos principais lemas da época para reflexão
e luta política incitava o questionamento do caráter de objeto do corpo feminino sob o
controle masculino, auxiliando a desvelar as sutilezas da subordinação de gênero
(PORTELLA, 200).
Uma forte inspiração para a luta do movimento feminista foi o pensamento de Simone
de Beauvoir. Na célebre frase, “A biologia é o destino”, Beauvoir refletia como o corpo
feminino associado ao reino da natureza em oposição à cultura, com sua capacidade de
gestar e parir definia na maternidade, na domesticidade e na família o lugar reservado às
mulheres no mundo, auxiliando na reflexão e revolta das feministas contra essa forma
1
Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), especialista lato sensu em Dependências Químicas pela Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal (Uniderp) e mestranda em História pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
artificialmente construída de normatizar a experiência e o projeto de vida das mulheres na
sociedade (apud PORTELLA, 2009).
A busca da autonomia das mulheres se tornava então uma frente de luta essencial
para a própria existência política do movimento, contribuindo para demarcar um campo de
luta próprio em relação a outros movimentos, e, sobretudo, como um projeto de vida a ser
conquistado pelas mulheres (PORTELLA, 2009).
Influenciados pelos ideais de igualdade e coletividade herdados de maio de 1968,
muitos grupos de mulheres e feministas aglutinaram-se em torno de questões comuns ao
conjunto de mulheres, estabelecendo ideais de irmandade pelo simples fato de ser mulher, o
que resultou numa visão homogeneizada em que a opressão das mulheres era vista como
fruto estrito da diferença entre os sexos
2.
Costa (1999) enfatiza que a noção de irmandade (sororidade) criada e propagada em
algum momento da história do feminismo traz em seu bojo a idéia de unificação das
mulheres, sintetizando e focalizando a luta nos marcos da desigualdade em relação aos
homens. Ou seja, com o passar do tempo, esta visão acabou por homogeneizar e ocultar
as diferenças e desigualdades relativas à posição de classe, geracionais, características
raciais, étnicas, de orientação sexual e ideológica entre as mulheres (COSTA, 1999).
A feminista Maria José de Oliveira Araújo também comunga com o pensamento desta
autora. Para ela esta concepção de igualdade apesar de ter promovido a aproximação e a
sociabilidade entre as mulheres escamoteou as diferenças, especialmente no que tange às
especificidades das mulheres negras e das lésbicas
3.
Outro aspecto é que o debate em torno dos direitos sexuais e reprodutivos levado a
cabo pelos movimentos feministas centrou-se na luta em prol da
liberdade sexual, pela
2
Consultar ARAÚJO, Maria José de Oliveira. Reflexões sobre a saúde da mulher negra e o movimento feminista. Texto apresentado no Seminário Alcances e Limites da Predisposição Biológica, realizado pelo Programa Saúde Reprodutiva da Mulher Negra, do Cebrap, em São Paulo, nos dias 06 e 07 de dezembro de 1993 e disponível no endereço eletrônico: http://bit.ly/bjQNGC, consultado em 15 set. 2010.
3 Idem.
legalização do aborto, contra a demonização dos métodos contraceptivos e no direito a uma
sexualidade voltada ao prazer independente da reprodução, logo, inserida no âmbito da
heterossexualidade
4.
Este pensamento, de certo modo, negligenciou a luta das mulheres lésbicas, pois o
“que estava colocado pelo feminismo era uma questão política e filosófica sobre uma
sexualidade que não estivesse subjugada à reprodução no marco de um contrato de
casamento, de uma relação permitida social e legalmente” (ÁVILA, 2001, p. 7).
Além disso, a antropóloga feminista Maria Luiz Heilborn relata que nos anos 1970 e
1980 o processo de desqualificação do feminismo pela sociedade brasileira era fortemente
atrelado à lesbofobia. “As feministas eram taxadas de sapatão, de mulher-macho. Afinal,
tinha que haver um problema nessas mulheres de estarem questionando os homens. Só
poderiam não gostar de homem”, explicou a pesquisadora durante a palestra proferida no
Seminário Feminismo, Liberdade Sexual e Luta das Mulheres Lésbicas, realizado pela
Articulação de Mulheres Brasileiras entre os dias 05 e 07 de fevereiro de 2010, no Rio de
Janeiro
5.
Para essa autora isso ajudou a construir um estigma em relação às feministas e uma
imagem das lésbicas associada ao macho, como se elas quisessem ou estivessem
roubando o lugar do homem. Surge nessa época um forte medo da sociedade e das
mulheres heterossexuais do ataque das mulheres lésbicas, projetando uma idéia machista
4
Sobre esse assunto consultar ÁVILA, Maria Betânia. Os direitos sexuais devem ser uma pauta constante do feminismo (entrevista). In. Jornal da Rede Saúde – Informativo da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, n° 24, dezembro de 2001, p. 7 - 9.
5
Todas as citações e discussões envolvendo o pensamento da antropóloga Maria Luiza Heilborn utilizadas ao longo deste artigo foram retiradas da palestra proferida pela feminista durante o Seminário Feminismo, Liberdade Sexual e Luta das Mulheres Lésbicas, realizado no dia 05 de fevereiro de 2010, pela Articulação de Mulheres Brasileiras, no Rio de Janeiro. HEILBORN, Maria Luiza. Feminismo, Liberdade Sexual e Luta das Mulheres Lésbicas (palestra). In. Seminário Feminismo, Liberdade Sexual e Luta das Mulheres Lésbicas, Articulação de Mulheres Brasileiras, 2010.
em relação a elas. “Como se bastasse ser mulher para as lésbicas darem em cima”
6,
resume a antropóloga.
Segundo Heilborn tanto o estigma de “sapatão” associado às feministas quanto de
uma sexualidade aflorada e insaciável das lésbicas diante de todas as mulheres, análoga à
construção da sexualidade masculina no imaginário social, permanece arraigado até hoje na
sociedade, destacando que o Movimento Feminista precisa encontrar uma forma de
desconstruir esses estigmas sem desqualificar as lésbicas e o movimento homossexual
7.
Maria Betânia Ávila (2001) acredita que o feminismo não enfrentou de forma
adequada esse estigma, tampouco o que ele representa socialmente, refletindo que o
sujeito político feminista ainda carece de um discurso em defesa do lesbianismo. Para ela, o
feminismo como pensamento crítico e ação política possui um déficit de reflexão e debate
nesse âmbito.
Portanto, as relações entre o feminismo e a lesbianidade apresentaram diversos
tensionamentos no decorrer da história, aponta a ativista lésbica feminista Marylucia
Mesquita
8. De acordo com essa autora, o levante do movimento organizado de lésbicas
surge no final da década de 1970, quando feministas começaram a participar do grupo
Somos, em São Paulo, primeira organização homossexual do país.
Conforme Mesquita nos anos 1980 existia poucos grupos de lésbicas e somente a
partir da década de 1990 os agrupamentos despontaram no cenário brasileiro com maior
expressividade por meio da criação de núcleos estritamente lésbicos, pelo fortalecimento de
lésbicas atuantes em organizações mistas ou pelo ativismo autônomo, intensificando-se nos
anos seguintes
9.
6 Idem. 7 Ibidem. 8
Ver MESQUITA, Marylucia. Movimento de Mulheres Lésbicas no Brasil: Sinalizando algumas conquistas e desafios para o século XX. Texto disponível no endereço eletrônico: http://bit.ly/aIkRnn. Consultado em: 10 set. 2010.
9 Idem.
A falta de prioridade nas agendas de luta dos movimentos feministas envolvendo o
tema da cidadania, da saúde, especificidades e demandas das mulheres lésbicas, bem
como, da pouca visibilidade das lésbicas no interior dos movimentos de homossexuais
mistos, têm contribuído para críticas, tensionamentos e conflitos intra e entre os movimentos
LGBTT e feministas, inclusive no que diz respeito à interrupção voluntária da gravidez.
Em síntese, essa trajetória de politização dos movimentos feministas e lésbico-
feministas em torno do corpo, da reprodução e da sexualidade não foi linear, mas múltipla e
diversa, o que segundo Ana Paula Portella (2009) expressa uma característica do feminismo
na convivência e defesa de diferentes concepções, o que não prescinde da ausência de
divergências, conflitos e tensões, além de uma heterogeneidade de práticas de ação
política
10.
A pauta do aborto no contexto dos feminismos e da luta das mulheres lésbicas
Nas últimas décadas, o movimento feminista realizou importantes mobilizações e
ações políticas em prol da legalização do aborto, da desvinculação entre a sexualidade e a
reprodução e na luta pelo direito ao uso dos métodos contraceptivos e à liberdade sexual no
Brasil (PORTELLA, 2004).
Sobre esse assunto Portella (2004) informa que a conquista da autonomia na esfera
da sexualidade em relação à reprodução possibilitou a emergência do prazer como
componente central para vivência sexual desfazendo a idéia da maternidade e
conjugalidade como fatídico destino das mulheres.
10
A feminista assinala que o início deste percurso foi simultâneo as passeatas, manifestações públicas e práticas educativas realizadas pelo movimento feminista com base nos grupos de reflexão que, com o tempo, se ramificaram em diversas atividades influenciando até mesmo a implementação de normativas legais no plano internacional e das políticas públicas nacionalmente. Ver PORTELLA, Ana Paula. Corpo, sexualidade e reprodução. Recife: SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, 2009. (Série Formação Política).
No entanto, a pauta contra a criminalização e pela legalização do aborto ainda
permanece um tabu sob forte resistência nos setores conservadores da sociedade e no
legislativo brasileiro mesmo diante dos altos índices de mortalidade materna e seqüelas na
saúde que atingem milhares de mulheres anualmente no país fazendo desta questão um
grave problema de saúde pública.
Apesar de todo o investimento teórico e prático do feminismo no referente ao aborto
e à autonomia reprodutiva das mulheres no que diz respeito ao direito ou não de ter filhos e
ao controle sobre suas vidas, corpos e destinos, há divergências, tensões e ambigüidades
quando o assunto remete ao aborto entre expressões do movimento lésbico, o movimento
feminista e as lésbicas feministas.
De um lado, ativistas lésbicas reclamam que a pauta do aborto tem conquistado
visibilidade dentro do movimento lésbico em detrimento das bandeiras lésbicas, o que
evidenciaria o aparelhamento e a cooptação do movimento feminista em relação ao
movimento lésbico, conforme exemplifica o pensamento de Miriam Martinho:
Na verdade, trata-se de um dos casos mais deslavados de cooptação e aparelhamento de um movimento por outro do que tenho notícia. Só para citar alguns exemplos mais acintosos dessas ações: na caminhada lésbica em Sampa, em 2005, se viram mais bandeiras sobre o aborto do que bandeiras com temas lésbicos na avenida. No último SENALE, em Recife, viu se a princípio, como propostas, de temas para o encontro, o aborto e os direitos sexuais e reprodutivos11.
Por outro, a partir do entendimento de que as identidades sexuais são construídas e
que os dilemas contemporâneos no campo da sexualidade e gênero apontam para a
diversidade, na ótica de Maria Luiza Heilborn se torna imprescindível pensar o aborto como
uma questão que também atinge as mulheres lésbicas e bissexuais
12.
11
Ver MARTINHO, Miriam. Dia da Visibilidade: 12 anos de uma história mal contada. Texto disponível no endereço eletrônico: http://bit.ly/dQICM. Consultado em 10 de set. 2010.
12
Ver HEILBORN, Maria Luiza. Feminismo, Liberdade Sexual e Luta das Mulheres Lésbicas (palestra). In. Seminário Feminismo, Liberdade Sexual e Luta das Mulheres Lésbicas, Articulação de Mulheres Brasileiras, 2010.
Outro aspecto pontuado por Heilborn refere-se a importância de entender a questão
da diferença entre práticas sexuais, conjugalidade e identidade sexual, criticando o conceito
de identidade fixa, única, igual. Para ela a vida das pessoas e seus afetos não cabem no
conceito de identidade fixa. Ou seja, as trajetórias sexuais, os desejos e a própria vida das
pessoas são extremamente diversas.
Para Heilborn isso não significa ser adepta da teoria queer e das identidades fluídas,
mas entender que a vida das pessoas, suas histórias e experiências são o que constrói a
identidade. Como exemplo a antropóloga destaca a questão das masculinidades lésbicas,
das travestis querendo participar do movimento feminista, das mulheres que desejam fazer
a transição do sexo e das lésbicas ‘without sex’, casais de mulheres homossexuais que se
amam e vivem juntas, mas sem se relacionarem sexualmente
13.
É sob esse aspecto que o campo dos direitos reprodutivos e o aborto precisam ser
pensados, inclusive em relação às mulheres lésbicas e bissexuais. Para a antropóloga não
se trata de pensar a questão do aborto apenas sob a ótica das lésbicas que sofreram
estupro, mas como um direito a todas as mulheres, já que as trajetórias sexuais nem
sempre são uniformes no que diz respeito às identidades e relacionamentos homossexuais
e heterossexuais.
Conforme Heilborn “a sexualidade é uma construção, é uma escolha, sua vida, as
experiências, as vivências, vão construindo a forma de amar. Não é uma escolha
consciente, mas íntima, psicológica, misturada com a questão cultural”, pontuou a
antropóloga parodiando a pensadora feminista Simone de Beavouir, “ninguém nasce gay ou
lésbica. Ninguém nasce sabendo sentir. Esse é um discurso biologicista”
14, explicitou.
Nesse sentido, Heilborn enfatiza a necessidade de compreensão das múltiplas e
nem sempre uniformes maneiras de amar e sentir desejo destacando que o feminismo
13
Idem. 14
precisa levar em consideração esses aspectos e as experiências das mulheres lésbicas,
afinal, as vivências das lésbicas antes de tudo são de mulheres.
Nem todo mundo organiza seus desejos da mesma maneira. As biografias dos sujeitos são várias e isso precisa ser respeitado. Um feminismo sério tem que levar em consideração que lésbicas antes de serem lésbicas são mulheres. O feminismo tem compromisso com a cultura, com a mudança de cultura, com a mudança de pensar o mundo15.
Já para a pesquisadora e ativista lésbico-feminista Marylucia Mesquita os conceitos
de autonomia e de autodeterminação reprodutiva defendidos pelo movimento feminista não
estão sendo pensados pelo feminismo no tocante as mulheres lésbicas
16. l
Eu falo das mulheres lésbicas negras na periferia que assumem um estilo corpóreo masculino. A violência e o preconceito às mulheres de gramática corporal masculinizada nas periferias é altíssimo. Muitas são estupradas. Então têm um preconceito de orientação sexual, gênero, classe e de raça juntos. E a autonomia precisa ser pensada na diversidade. A autodeterminação reprodutiva também. Também falo de casais de mulheres lésbicas que desejam ter filhos e optam por técnicas de reprodução assistida com inseminação de óvulos da parceira, mas que depois não conseguem registrar a criança como mães17.
Além disso, na ótica da pesquisadora a lesbianidade ainda é um campo que
permanece na clandestinidade, inclusive dentro dos movimentos feministas, sofrendo forte
influência da heterossexualidade obrigatória, um conceito que para a pesquisadora é
estruturante do pensamento social. “Quando uma criança nasce não está colocada a
questão da homossexualidade. Nem se cogita isso. Nem ao menos se pensa sobre isso.
Essa
é
a
força
da
heterossexualidade
obrigatória,
da
naturalização
da
heterossexualidade”
18.
15
Ver HEILBORN, Maria Luiza. Feminismo, Liberdade Sexual e Luta das Mulheres Lésbicas
(palestra). In. Seminário Feminismo, Liberdade Sexual e Luta das Mulheres Lésbicas, Articulação de Mulheres Brasileiras, 2010.
16
Ver MESQUITA, Marylucia. Feminismo, Liberdade Sexual e Luta das Mulheres Lésbicas (palestra). In. Seminário Feminismo, Liberdade Sexual e Luta das Mulheres Lésbicas, Articulação de Mulheres Brasileiras, 2010.
17
Ver MESQUITA, Marylucia. Feminismo, Liberdade Sexual e Luta das Mulheres Lésbicas (palestra). In. Seminário Feminismo, Liberdade Sexual e Luta das Mulheres Lésbicas, Articulação de Mulheres Brasileiras, 2010.
18 Idem.