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Alberto de Lacerda e Jean Hugo

Autor(es):

Sousa, Luís Amorim de

Publicado por:

Crescente Branco: Associação Cultural e Recreativa

URL

persistente:

URI:http://hdl.handle.net/10316.2/37341

Accessed :

25-Mar-2021 10:57:04

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delphica

letras & artes

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númer o dois 2014

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LUÍS AMORIM DE SOUSA

ALBERTO DE LACERDA

E JEAN HUGO

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I

Durante as primeiras décadas da sua longa permanência em Londres, Alberto de Lacerda viveu sempre em quartos de aluguer. Alugar casa era caro e complicado e a instituição dos quartos de aluguer atravessava a sociedade britânica como uma solução prática para quem dela precisava. Disponibilizavam-se quartos mobilados por dinheiro, infelicidade ou companhia. Não se assinavam contratos nem se cumpriam quaisquer formalidades. Uma semana de renda antecipada era, em geral, tudo quanto era preciso.

Os senhorios, normalmente, eram mulheres: viúvas, divorciadas, ou velhotas solitárias. Chamavam-se “landladies”. Os ocupantes, fossem homens ou mulheres, eram os “lodgers”. Havia lojas de bairro que permitiam que as montras (a troco de algum dinheiro) fossem usadas para colocar anúncios. Os anúncios obedeciam a fórmulas estandardizadas. Depois, havia os jornais. Nas páginas publicitárias, em letrinhas pequeninas, por baixo de um cabeçalho que dizia PARA ALUGAR, lá vinham indicações de onde ficavam situados, quanto custavam em libras e xelins, e que facilidades adicionais se concediam: banhos, uso da cozinha e telefone e, às vezes, mais raramente, porta de entrada independente. Esse era o mundo dos quartos alugados por estudantes, enfermeiras, caixeiros-viajantes e dactilógrafas vindas da província. Para além desse havia outro, incomparavelmente mais rarefeito, de indivíduos ou famílias que recebiam hóspedes muito bem recomendados, dentro de um entendimento especial de cortesia e compatibilidades sociais. Aí as rendas eram calculadas não em libras e xelins, mas em guinéus. Isso marcava um degrau de qualidade, muito embora a um guinéu não correspondesse mais do que a soma de uma libra e um xelim. Quartos desses apareciam em residências “bijou”, mansões ou apartamentos em prédios que tinham nomes bem sonantes. Ficavam sempre em bairros de bom-tom. Frequentemente, as regras que presidiam a esse tipo de aluguer continham toques de excentricidade. Por inclinação pessoal, instinto e altas recomendações, Alberto de Lacerda viveu quase sempre em quartos encontrados nesse meio. O número 52 de Tite Street, em Chelsea, pertencia à família Hope-Nicholson. Foi num quarto dessa casa que, em toda a primeira fase da sua vida londrina, Alberto de Lacerda mais prolongadamente residiu. De lá partiu para os Estados Unidos e para lá regressou até se instalar por fim, do outro lado do rio, no primeiro e único apartamento que conseguiu ter em Londres. A casa de Tite Street chamava-se More House. Na vizinhança imediata do número 52 tinham vivido os pintores Augustus John e John Singer Sargent, que ali pintou, entre outros, os célebres retratos do romancista Henry James e da actriz Ellen Terry. Um pouco abaixo tinha vivido também Oscar Wilde com a sua mulher e filhos. Um deles, Vyvyan, foi décadas depois apresentado a Alberto de Lacerda. Esse encontro decorreu durante um jantar oferecido por Mrs. Hope-Nicholson. Jacqueline Hope, era esse o seu nome de solteira, era ainda aparentada com a família de Wilde. Ao casar com Hedley Nicholson e por decisão conjunta do casal, o nome da família foi oficialmente mudado para Hope-Nicholson, com o tracinho de união que os ingleses tão especialmente acarinham. Eram igualmente excêntricos, e tanto um como o outro se entregavam a actividades culturais

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intensas que iam do teatro, às biografias dos dois monarcas ingleses chamados Carlos, o Primeiro e o Segundo, à genealogia e ao desenho de motivos heráldicos e aos Ballets Russes de Diaghilev. De Carlos I havia, na capela de Moore House, um fragmento da túnica que vestiu para subir ao cadafalso. Hedley Hope-Nicholson, homem de letras, foi o autor de uma “antologia de coisas caprichosas” intitulada: “The Mindes Delight: Or Variety of Memorable Things Worthy of Observation”. A tradução deste título é inteiramente possível mas incomensuravelmente redutora. O casal divorciou-se a certa altura. Dos três filhos que tiveram, Felix permaneceu na companhia da mãe em More House. As duas filhas, Lauretta e Marie Jacqueline foram viver em França com o pai. Lauretta veio a casar com o pintor Jean Hugo. Foi nesse singularíssimo contexto que o poeta português Alberto de Lacerda e o pintor francês Jean Hugo se conheceram.

II

“Conheci pessoas extraordinárias”, dizia-me o Alberto com frequência. E em geral, acrescentava: “Extraordinaríssimas”. E esse era um talento seu. Encontrar e conviver com pessoas extraordinárias. Um talento natural. Uso a palavra com total rigor: natural, oposto de cultivado. Era uma intensa curiosidade que o levava a interessar-se por tudo. Tudo aquilo que tivesse uma dimensão humana ou autenticidade artística. Frequentemente, esses dois requisitos, fundiam-se no prazer de uma amizade nova com alguém que produzia obras de arte admiráveis. Foi assim com Jean Hugo. A coincidência, na amizade entre ambos, do papel desempenhado pela família Hope-Nicholson é testemunho de uma partilha de interesses, que, neste caso, enveredavam por inúmeros caminhos. O mundo íntimo do pintor, frequentado por figuras como Erik Satie, Picasso, Collette, Raymond Radiguet, Max Jacob, Blaise Cendrars, Paul Éluard, Louise de Vilmorin, Cecil Beaton, tantas outras, aproximava Alberto de uma

Desenho de J

ean Hug

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geração de artistas que informaram o seu gosto e povoaram a sua imaginação. Mas a amizade e a admiração entre ambos era legítima, autêntica, testemunhada por terceiros e confirmada de inúmeras maneiras. Entre elas, a pequena mas sedutora colecção de gouaches e retratos pertencentes à Colecção Alberto de Lacerda.

Jean Hugo nasceu em Paris, no ano de 1894 e morreu na sua propriedade em Lunel, em 1984. Era bisneto de Victor Hugo. Nascido no seio de uma família de escritores e artistas plásticos, Jean Hugo desde sempre se dedicou à literatura e à pintura. A sua vida situa-se do começo ao fim do século passado e a ele, genuinamente, pertenceu. A sua carreira fez-se na companhia dos grandes criadores do século XX e em memoráveis colaborações. Para citar apenas dois exemplos, são de Jean Hugo tanto os cenários como os figurinos usados em “Les Mariés de la Tour Eiffel” de Jean Cocteau, e “La Passion de Jeanne d’Arc”, de Carl Theodor Dreyer. Na sua vida pessoal, apesar do nome herdado, da bravura demonstrada em combate durante a primeira guerra mundial (que, de resto, lhe valeu a Cruz de Guerra), da sua presença física (era altíssimo) e da qualidade inegável do que escreveu e pintou, foi sempre um homem discreto, testemunha de primeira linha de vários movimentos de vanguarda, e admirador da pintura renascentista italiana. Foi casado duas vezes, com a pintora surrealista Valentine Hugo e com Lauretta, de quem teve sete filhos. Escreveu diários e livros de memórias, sendo “Avant d’ Oublier” considerado um livro fundamental para a história do surrealismo.

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III

No apartamento de Alberto de Lacerda em Prince of Wales Drive, havia lugares escolhidos para os seus quadros preferidos. Sempre em lugar de destaque, na parede principal da salinha pessoalíssima onde gostava de estar e receber os amigos, Alberto mantinha um óleo do seu “querido Jean Hugo”. Quando pela primeira vez mo apontou, uma paisagem tranquila, no meio de tantas coisas que prendiam a atenção, perguntei:

“É aquele quadrinho ali, Alberto?”. O Alberto riu-se. “Quadrinho? Para grande parte das coisas que ele faz, é um quadro enorme. Quer ver?” E abrindo, com algum esforço, um gavetão onde guardava peças soltas da sua colecção de arte, mostrou-me uma selecção de gouaches de Jean Hugo. Eram imagens pequenas, miniaturas quase, mas que pareciam conter algo de monumental. Disse-o, na altura, ao Alberto. “É um comentário feliz”, respondeu ele. E ali ficámos os dois a contemplar aquelas paisagens lindas pintadas em tons trazidos de Siena, e que apesar de serem tão pequenas se abriam para infindáveis trajectos do olhar. E ao fim de certo tempo, o Alberto acrescentou: “Tenho outras coisas dele noutro lado. Depois lhe mostro. E há ainda os meus retratos”. E nessa altura o Alberto olhou para mim de uma maneira muito especial e disse a frase gémea de “conheci pessoas extraordinárias”: “tenho tido imensa sorte”. É típico da personalidade de Alberto de Lacerda que as amizades que fez ao longo da vida inteira se entrecruzem e o coloquem no centro de um universo referenciado por inúmeras vivências e testemunhos pessoais. O seu desejo de presenciar determinados acontecimentos culturais e o gosto em se aproximar das personalidades que neles intervieram, colocam-no também a ele, como aproximador entre terceiros. Tudo se passa como no célebre poema de Drummond em que “João amava Teresa que amava Raimundo/ que amava Maria que amava Joaquim…” mas com um desfecho feliz onde, ao contrário do poema, todos “entram na história”. Roy Campbell apresentou Alberto a Edith Sitwell, que Alberto apresentou a Manuel Bandeira, que apresentou Alberto a Cecília Meirelles, que era amiga pessoal de Vieira da Silva, que Beryl de Zoete, recomendou a Alberto, que já a tinha conhecido através de Jean Hugo. Estamos de volta à casa de Tite Street para de lá partirmos novamente em mil divagações maravilhosas.

A 28 de Junho de 1984, Alberto de Lacerda esceveu no seu diário:

“Morreu Jean Hugo.Gostava muito do homem e admirava profundamente o artista. Fez inúmeras obras primas miniaturas que são miraculosas. O homem, sereníssimo, respirava bondade e um espírito de benevolência especial difícil de pôr em palavras. Guardo entre os meus tesouros mais queridos tudo o que ele me deu, e alguma coisa que comprei”.

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Há quanto tempo não contemplava As ondas brandas e todavia

Os deuses quando me desembarcaram Neste planeta foi numa ilha

Gente acenando continuamente Da costa enorme Não os conheço Serei para eles o consumado

Estrangeiro insólito verso e anverso Verso e anverso de quantos existe Alguém reclama os quatro costados As ilhas são todas desconhecidas O mar fustiga de todos os lados

New York, 6 de Junho 98

(inédito) ALBERTO DE LACERDA

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VASCO ROSA

LACERDA POR DESCOBRIR

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Tudo o que já foi feito para manter legível a poesia de Alberto de Lacerda, em particular a edição de dois volumes de Oferenda (um título

extremamente significativo!),1 merece louvor e gratidão. Mas a verdade é

que os editores da INCM falharam ao deixarem de lado a compilação do trabalho crítico do autor do ensaio-manifesto «Um lugar para a Poesia», publicado nas primeiras páginas do primeiro fascículo de Távola Redonda,

em Janeiro de 1950.2

A excepcional ligação do poeta ao meio artístico foi já sublinhada em várias exposições e aproximações biográficas (é, por exemplo, conhecido e reconhecido o seu protagonismo nas primeiras mostras individuais de Paula Rego e de Menez), e no entanto ainda ninguém notou consequentemente que ele, vivendo em Londres — epicentro duma vida cultural fervilhante e livre, além de escala obrigatória de grandes eventos expositivos —, escreveu centenas de crónicas de arte que são indissociáveis do seu trabalho literário, e sem a consideração das quais não pode ser feito um juízo cabal do lugar de Alberto de Lacerda na cena cultural portuguesa da segunda metade do século passado.

Creio que entre portugueses esse privilégio geográfico só teve equivalência no pintor António Dacosta, que nas décadas de 1950-70 escreveu de Paris para O Estado de São Paulo crónicas de arte, que todavia não foram replicadas no Diário Popular de Lisboa, onde ele anteriormente colaborara, pelo que delas só tivemos proveito num magnífico livro póstumo, editado pela Assírio & Alvim em 1999. Ao contrário de Dacosta, Lacerda publicou regularmente em vários jornais e revistas portugueses, com o seu nome ou sob pseudónimo. Essas tais centenas de páginas precisam de ser resgatadas das encadernações de periódicos, tanto mais que elas nos transmitem esse especial entendimento das artes pelo lado de dentro das letras. Além disso, como se comprova nos exemplos adiante escolhidos, a prosa de Alberto de Lacerda, consistentemente erudita, é clara, elegante e inteligível, denunciando o prejuízo criado pela hoje predominante e instituída

linguagem obtusa de muitos críticos e comissários. A voz dum poeta é sempre toda outra coisa, e vale a pena ouvi-la!

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GAUGUIN E O GRUPO DE PONT-AVEN

Esta exposição da Tate Gallery, intitulada Gauguin e o grupo de Pont-Aven, constitui um dos acontecimentos mais originais deste género na Inglaterra nos últimos anos. Denys Sutton, responsável pela esplendorosa exposição Bonnard actualmente na Royal Academy, fez a Londres mais esta dádiva: escolher os quadros e escrever o prefácio do catálogo desta

complexa exposição da Taça.3

Paul Gauguin é uma das personalidades mais facetadas, mais marcadas dos últimos duzentos anos. É uma daquelas figuras imediatamente geniais, como Rimbaud ou Sá-Carneiro: só a luz que cega as pode iluminar e é essa a única perspectiva segundo a qual devemos encarar um gigante tão estranho como Gauguin.

Em 1888 — ano em que nasceu Fernando Pessoa — Gauguin fixa-se na aldeia de Pont-Aven, na Bretanha, a fim de se dedicar exclusivamente à pintura. É um homem doente, muito pobre, mas devorado por um insaciável fogo criador e um brilho intelectual que influencia fortemente aqueles que o rodeiam. Ao contrário do que às vezes se imagina, não foi ele quem fundou essa celebrada colónia de artistas. Pont-Aven já desde dezenas de anos atrás era um centro plástico. Gauguin foi a primeira figura de génio que ali deixou uma dedada inapagável. Reuniu à sua

volta uma série de artistas notáveis,4 exercendo sobre eles uma influência que de certo modo

se pode comparar à influência de Mallarmé sobre os poetas simbolistas. Com uma diferença importante: a influência do poeta era subtil e impregnada daquele aristocratismo distante que caracterizava todos os seus actos e até a sua obra; Gauguin era uma tempestade, tendo por vezes uma influência trágica, como foi o caso das suas relações com Van Gogh. Logo no início da sua estadia em Pont-Aven, Gauguin conheceu Émile Bernard [1868-1941], de 20 anos de idade, que impressionou o mestre com uma tela admirável integrada nesta exposição:

Mulheres Bretãs no Campo.5 Este quadro tem um papel singular na arte moderna. Gauguin

levou-o a Arles para o mostrar a Van Gogh. Este ficou tão impressionado que fez uma cópia,6

e não é muito difícil detectar a influência de Émile Bernard no seu desenvolvimento ulterior. Quando Gauguin vai para Pont-Aven, já tinha sofrido a experiência plástica decisiva da paisagem e do povo da Martinica. Essa viagem tinha-o marcado de uma forma tal que constitui um dos ramos da árvore genealógica da arte moderna. Acentuou-se o seu fascínio pelas cores puras, a construção do quadro cada vez mais independente da coincidência com o real — numa palavra, o império da imaginação. Esta liberdade vai conduzir às maiores aventuras do século XX: a arte de Gauguin contém já um Picasso, um Braque, o expressionismo, certo surrealismo, e até certa pintura abstracta. Falei atrás nos poetas simbolistas, e vem a propósito lembrar que tanto esses poetas como Gauguin usam os seus materiais, a palavra e a cor, como valores mágicos.

Uma coisa que esta exposição prova é que há certos momentos da evolução das artes plásticas em que é, na verdade, fecundo que um grupo de artistas trabalhe em conjunto debaixo de uma orientação estética comum, desde que essa orientação não seja rígida. Foi o caso, mais tarde, do cubismo, e foi o caso de Gauguin em Pont-Aven.

A exposição que está montada nas enormes galerias de esculturas da Tate Gallery, distribui-se por várias divisões improvisadas e que ajudam muito a seguir a evolução dos vários artistas. Estão ali centenas de telas, alguns desenhos e gravuras, e meia dúzia de esculturas; o arranjo é tão inteligente, ao mesmo tempo tão simples que o cansaço vem apenas da força plástica de tão diversas personalidades. É isso talvez o mais fascinante: a individualidade preservada por

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um Maurice Denis [1870-1943], um Bernard, um Claude-Émile Schuffenecker [1851-1934], um Sérusier [Paul, 1864-1927], apesar do império e do fascínio exercidos por Gauguin. Como não podia deixar de ser, quem domina, de longe, a exposição é Paul Gauguin. Embora não seja dos melhores, um dos quadros mais comoventes da sua autoria nesta exposição é

um retrato de Van Gogh pintando os famosos girassóis.7 É impossível vermos a frio esta tela

lembrando-nos de toda a série trágica de acontecimentos em que os dois génios se viram envolvidos. Mas estão aqui várias obras-primas de Gauguin; e ressalta mais uma vez o luxo patético da cor, a composição ousadíssima — acima de tudo, a força visionária que parece ter a palavra génio gravada em cada movimento do pincel. E é tal a energia da sua arte que, à semelhança de certos pintores muito recentes, sentimos em Gauguin o próprio gesto, o próprio acto febril de pintar. Só para ver os seus quadros — o que seria uma injustiça, pois toda a exposição tem um raro interesse — valeria a pena passar umas boas horas na Tate Gallery.

Diário Popular, Lisboa, 24 Fevereiro 1966 GLóRIA DE MORANDI

Sábado à tarde. Dezembro. O frio ainda é suportável; uma luz pérola e baça parece emergir da atmosfera enevoada. Sábado à tarde em Londres tem sempre uma fímbria de sossego. De

sossego absoluto. É o que se sente ali, naquelas salas da Royal Academy.8 Um monge veio ali

parar. Uma ave do paraíso. Um monge de religião nenhuma, a não ser a mais importante de todas: a cândida reverência pela vida. É um sopro, um sopro sólido, uma meditação diáfana. Morandi — que nome tão belo! — está em Londres. A Royal Academy presta-lhe a

homenagem de uma retrospectiva. E um silêncio poderoso, como uma asa gigantesca e doce, desce sobre a cidade.

Trata-se de um grande mestre, apesar de um registo tão discreto, tão voluntariamente limitado. Lembra-me Chopin, tão exigente e profundo e deliberadamente limitado; lembra-me Éluard, de tão rica monotonia; lembra-lembra-me as infinitas variações sobre o lembra-mesmo tema das nossas cantigas d’amigo; é claro que Chardin também me vem à mente, mas Morandi é mais misterioso, vai mais longe.

Giorgio Morandi nasceu em 1890 na velha cidade de Bolonha, que poucas vezes abandonou. As viagens pouco o interessavam. É um recluso, um introspectivo, que viu «como um danado» meia dúzia de objectos que o obcecaram a vida inteira. A sua luz é a meia-luz de uma sala ao crepúsculo invadida de silêncio. Imperam nas suas telas o cinzento-escuro, o pérola-desmaiado, quase branco, e os ocres mais enigmáticos que os olhos possam imaginar. E os olhos imaginam — sempre — quando contemplam Morandi. É que a sua observação realista tem raízes na vida interior, uma vida interior em que as tempestades não foram ignoradas ou reprimidas, mas parece terem sido transmudadas, desde tempos imemoriais, na monotonia magnífica das águas horizontais.

Um bule. Uma jarra. Sobretudo, uma garrafas esguias que reaparecem quadro após quadro: os temas são quase sempre os mesmos. Os olhos não se cansam porque encontram os olhos de Morandi, e esses olhos têm a serenidade beatífica de uma meditação sem par que derrubou do quotidiano a grosseria e a agitação para encontrar apenas o que buscava e o que estava lá: a simplicidade, a nobreza, a humildade. É um santo porque sacrificou tudo pelo essencial, porque se foi despindo a vida inteira à procura da verdade diária, muito mais difícil que as precárias verdades metafísicas. Se há uma eternidade, ela ecoa nesse vaivém diário do animal

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humano com tudo quanto o rodeia. As relações do homem com os objectos que vivem com ele são misteriosas quanto as suas relações com os outros homens. Quando o homem sente reverência — uma reverência cândida, instintiva — pelos objectos e as coisas mais simples, essa relação tinge as proporções do amor: o homem fica situado tão concretamente, com tanta realidade, na terra e no tempo, que experimenta a sensação do não-tempo. Em pintura, o arquétipo dessa serenidade monumental, dessa meditação antimetafísica e objectual, é Pierro della Francesca. Em música Mozart, o maior de todos os músicos. É uma eternidade existencial. Sob este prisma, há que estudar um dia a modernidade de Morandi: o sentido do concreto, o homem como um espaço-ponte de inquietação entre as coisas quietas, os objectos. O homem sem religião, porque a eternidade é aqui, e agora ou nunca, sem patético. Podemos relacionar Morandi com outros casos singulares do século XX: o pintor e escultor Giacometti, o poeta brasileiro João Cabral de Mello Neto.

Uma espécie de glória, isenta de qualquer bruaá publicitário, rodeava Morandi quando morreu há seis anos na sua cidade de Bolonha. Este homem que ensinava para se manter, e que foi pobre quase toda a sua vida, perseguiu a sua visão com a tenacidade de um Rilke ou de um Keats.

Umas quatro salas, condignas desta música de câmara pictural: quadro após quadro, desenho após desenho, gravura após gravura, o que se nos depara é uma visão objectiva, nua de psicologismo, visão que é um correlative objective de uma visão interior das mais singulares do século XX.

O desenho e a gravura de Morandi acusam a mesma essencialidade, o mesmo pudor, que, nem por ser pudor, lhe permite voos extraordinários e desconcertadamente límpidos.

Morandi é um dos poetas mais puros de toda a história da arte.

In Diário Popular, Lisboa, 14 Janeiro 1971. Lido por Alberto de Lacerda aos microfones da BBC, por encomenda de Luís Amorim de Sousa. Não consta das bibliografias dos catálogos das exposições de Giorgio Morandi em Portugal: Fundação Gulbenkian (1978) e Fundação Vieira da Silva e Arpad Szenes (2002).

UMA OBRA-PRIMA DE VISCONTI

Vaghe stelle dell’Orsa é um dos mais belos filmes destes últimos anos.9 Tem a perfeição

circular que só atingem as obras dos grandes mestres. E Visconti é um dos grandes mestres do cinema. É uma obra profundamente sentida que consegue esta coisa paradoxal: se nada foi deixado ao acaso ou ao improviso, se nenhuma zona ficou por explorar — ao mesmo tempo conserva intacto aquele mistério central, aquela liberdade interior que nos permite viajar nele com completo à-vontade. Esse mistério, essa liberdade, esse à-vontade concedido ao público são talvez as três garantias da grandeza de uma obra.

A crítica deteve-se demasiado sobre o facto de Visconti ter ido buscar inspiração à tragédia grega. O filme tem como tema central um caso de incesto — reminiscente do mito de Orestes —, que tudo leva a crer não chegou à consumação física. A tragédia clássica foi um ponto de partida para Visconti: é um filme bem marcadamente moderno, pela lucidez, a angústia dos vários personagens, o controlo intelectual, o lirismo das paixões (lirismo que nunca tomba numa histeria à la Tenesse Williams). A fotografia a preto e branco é prodigiosa de riqueza de contrastes, de subtileza, de sugestão, de finura. É um filme requintado sem ser decadente, embora vários dos seus elementos apontem a decadência: o jovem cuja única coisa real é a paixão pela irmã; a pequena localidade italiana consumida por um passado

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1 Os primeiros dois volumes da obra completa saíram em 1984 e 1994. A Imprensa Nacional – Casa da Moeda também

publicou outros livros avulsos de Alberto de Lacerda, como Elegias de Londres (1987). Perspectiva-se agora uma nova edição, em volume único de c. 900 páginas, incluindo alguns livros deixados inéditos.

2 Na Colóquio-Letras de Janeiro de 2015 reabilito, comento e anoto um texto de Alberto de Lacerda, «Hollywood e a

vida do espírito em Portugal», de Maio de 1962.

3 Depois da Tate Gallery, a exposição foi para a Kunsthaus de Zurique.

4 Gauguin pintou Nature morte au profil de Charles Laval (46 x 38 cm, Museum of Art, Indianapolis) e La famille

Schuffenecker (73 x 92 cm, Musée d’Orsay, Paris). Por seu turno, Laval pintou um auto-retrato dedicando-o ao «ami-go Vincent» (50 x 60 cm, Museu Van Gogh, Amesterdam). No mesmo museu, está Émile Bernard avec le portrait de Gauguin (46 x 55 cm), de Van Gogh.

5 Brettones dans la prarie verte (Pardon à Pont-Aven) foi pintado em 1888 (74 x 92 cm, colecção privada). 6 Aguarela e grafite sobre papel, 48,5 x 62 cm. Pertence à Civica Galeria de Arte Moderna, de Milão. 7 73 x 92 cm. No Museu Van Gogh, de Amesterdam.

8 De 5 de Dezembro de 1970 a 17 de Janeiro de 1971.

9 Realizado em 1964, o filme ganhou o Leão de Ouro do Festival de Veneza de Setembro de 1965. Proibido pela

Cen-sura, recebeu em Portugal o título Sandra (personagem de Claudia Cardinalli) quando foi apresentado na Cinemateca oito anos depois, em 1973. Afinal, nunca passou no chamado circuito comercial (agradece-se à Cinemateca Portugue-sa a informação prestada), nem mesmo depois do 25 de Abril de 1974.

Alberto de Lacerda enaltece num jornal de Lisboa um filme que os portugueses não puderam ver por causa do regime político.

10 Rocco e i suoi frattelli, de 1960, estreado em Portugal no ano seguinte, com cortes. 11 Obra composta em 1884, aqui executada por Augusto d’Ottavi.

morto; o palácio triste, meio abandonado, onde foram criados os dois irmãos; a mãe louca.

O director de Rocco10 traça a história com nitidez clínica e uma poesia exaltante. Consegue

por meios simples e empolgantes a altitude de uma tragédia clássica. É fascinante seguirmos a mão de Mestre Visconti: o fio da narrativa tem o seu tempo próprio, um tempo musical que corresponde ao nosso tempo inteiro de espectadores: esta coincidência só a consegue a maturidade artística. A forma como as cenas desaguam uma nas outras, o emprego dos grandes planos (de que a Nouvelle Vague abusa até à náusea), as trouvailles visuais — como na cena pungente da cisterna, em que os rostos dos irmãos se encontram e se afastam reflectidos na água — a respiração do todo — são de mestre. Não há o mínimo confrangimento estético ou outro. Tudo enforma a gravidade geral do filme. É uma obra-prima.

Os dois personagens principais foram admiravelmente escolhidos: Claudia Cardinale e Jean Sorel. São dois animais muito belos em que Visconti carregou a sensualidade sombria, e onde inventou, como sobre uma tela, um traço de fatalidade. Só Cocteau, que eu me lembre, era capaz de despertar nos seus artistas laivos que eles não possuíam. Claudia Cardinale personagem de tragédia grega — quem diria! Os seus olhos negros enormes, raiados de um ligeiro toque meio diabólico, meio infantil — Visconti conseguiu nimbá-los, nimbar toda a figura, todo o personagem de distância aristocrática, de mistério, de poesia que transcende os sentidos sem os abandonar. Jean Sorel, belo e terrível (e moralmente fraco), tem aqui uma ressonância trágica que não se lhe imgainava noutros filmes.

Para fundo sonoro, Visconti escolheu o Prelúdio, Coral e Fuga de César Franck.11 Com que

pureza de sensibilidade, com que discrição de subtileza utiliza essa maravilhosa peça para piano! É com igual pureza e discrição que utiliza os interiores magníficos, a paisagem italiana, o olhar de Cardinale, a presença de Jean Sorel, a força trágica da grande actriz francesa Marie Bell [1900-85], que interpreta o papel dificílimo da mãe enlouquecida.

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