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ANTONIN ARTAUD: A VIDA E SUA DIMENSÃO POLÍTICA MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

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Academic year: 2019

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JUDSON FORLAN GONZAGA CABRAL

ANTONIN ARTAUD: A VIDA E SUA DIMENSÃO POLÍTICA

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

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ANTONIN ARTAUD: A VIDA E SUA DIMENSÃO POLÍTICA

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciências Sociais, sob a orientação do Prof. Dr. Miguel Chaia.

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BANCA EXAMINADORA

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Ao Professor Doutor Miguel Chaia, orientador generoso, inventivo e muito firme. Amigo, pelo qual serei eternamente grato.

À Professora Vera Chaia, por tudo.

À Talita Alcalá Vinagre, amiga admirável, Pesquisadora/Artista admirável. Muito obrigado!!!

A todos os meus amigos, que durante toda essa trajetória foram fundamentais: Joana Egypto e Ricardo Campello, pelas longas conversas, trocas e generosidade. Luis Eduardo Tavares e Alexis Milonopoulos, amizade que levarei para a vida. Andrei Massa, parceiro de trabalho, amigo de longa data. Paloma Fraga, pelas inúmeras conversas, trocas, parcerias estimulantes. E a todos os outros.

À professora Silvana Tótora, pelas suas aulas magnificas e seus textos estimulantes.

À professora Rose Segurado, pelas aulas na graduação e mais ainda por me apresentar ao professor Miguel Chaia.

Ao Professor Renato Ferracini e à professora Silvana Tótora, pela atenção e pelas decisivas sugestões na banca de qualificação e presença na banca de defesa.

À Kátia e Rafael, funcionários do Programa em Ciências Sociais, por sempre me ajudar quando precisei e ao Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC.

À PUC-SP, esse espaço da produção e circulação de conhecimento.

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leva a vida; aos meus irmãos João Fábio Cabral (preto), Francister Cabral (Mirte) e Fábia Cabral (Fabia), por tornar possível tudo isso.

À memória de José Claudio Peixoto Mendes, onde estiver meu eterno

agradecimento. Muito, muito obrigado. A Você, eu dedico essa Dissertação, pois tenho certeza que você estaria muito feliz! Viva, viva!!!!!!

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Antonin Artaud foi um artista francês que viveu no século XX. Ele com seu teatro e estilo de vida abalou os diversos programas morais e instituições pelas quais a vida era balizada. Fez de sua vida e arte um combate. Por isso mesmo sofreu diversos tipos de correções. Artaud, homem de teatro, trabalhou como ator de cinema, foi dramaturgo, figurinista, cenógrafo, desenhista, crítico de arte, foi um ativo entre seus contemporâneos. Trilhando inicialmente a esteira das vanguardas históricas e de seus ideais, especialmente o dos surrealistas tinha como projeto revivificar a arte teatral para que a mesma fosse usada como o lugar de ação sobre a vida. O teatro como prática de si. A obra de Artaud foi fundamental para que ele pudesse traçar uma vida que se colocava além ou aquém de certa perspectiva de vida vigente com seus mecanismos normalizadores. Além de Artaud e seu teatro a pesquisa enfatiza Nietzsche e Foucault com alguns conceitos caros a esses autores. A vida dos três foram vidas que de certa forma traçaram sobre a existência maneiras outras de estar nela. Instituíram uma estética da existência à medida que fizeram das suas vidas uma obra de arte. Portanto, a pesquisa enfatiza a vida e sua dimensão política entendida aqui na qualidade de uma vida no e pelos seus experimentos. Para tanto, busca pensar à luz dos autores outros tipos possíveis de politização.

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Antonin Artaud was a french artist that lived on 20th century. With his theater and lifestyle, he shattered several moral institutions and rules that guided life. Made his life and art a combat. For this same reason, was subject of several reprimands. Artaud, man of theater stage, worked as a film actor, playwright, costume designer, scenographist, illustrator, art critic, an active man among his peers. Begun threading the path of historical avant-garde, and his ideals, especially those connected to surrealism, were aimed at revive theatrical art so it could be used as the place of action on life. Theater as practice of itself. Artaud’s works were crucial so he could draw a life that was beyond or earlier of a certain life perspective consonant with its standardizing mechanisms. Beyond Artaud and his theater, this research focus on Nietzsche and Foucault, addressing some concepts dear to those authors. The life of those three were lives that to a certain extent drawn over existence other ways to be part of it. They established an aesthetic of existence from designing their lives as art pieces. Therefore, the research focuses on life and its political dimension seen through quality of life and its experiments. In this sense, draws the authors’ thoughts for different kinds of political actions.

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INTRODUÇÃO... 08

1 EXPERIMENTO ARTAUD: UMA INVESTIGAÇÃO POLÍTICA, O TEATRO COMO PRÁTICA DE SI... 24

1.1 Teatro Alfred Jarry... 26

1.2 O Teatro e seus duplos... 32

1.3 O teatro e a peste... 37

1.4 O Teatro da Crueldade... 43

1.5 O corpo-sem-órgãos... 54

1.6 A Dimensão Política do Teatro de Artaud... 59

2 ANTONIN ARTAUD ENTRE NIETZSCHE E FOUCAULT: A CRUELDADE E O CUIDA DE SI COMO PRÁTICA, RESISTÊNCIA E EMERSÃO DE VIDAS OUTRAS... 78

2.1 O poder em Foucault... 79

2.2 Nietzsche e a Grande Política... 85

2.3 A crueldade entre Artaud e Nietzsche... 91

2.4 O Antonin Artaud o suicida da sociedade... 98

2.5 Artaud um contradiscurso, uma anticonduta... 106

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 116

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INTRODUÇÃO

Artaud (2006) começa seu livro “O teatro e seu duplo” da seguinte maneira:

Nunca como neste momento, quando é a própria vida que se vai, se falou tanto em civilização e cultura. E há um estranho paralelismo entre esse esboroamento generalizado da vida que está na base da desmoralização atual e a preocupação com uma cultura que nunca coincidiu com a vida e que é feita para reger a vida. (2006, p. 01).

Artaud começa a esboçar esse livro entre os anos de 1930 do século XX em diante. Pouco tempo, portanto, antes de sua última internação que durou dos anos de 1939 a 1946. De 1946 a 1948, ano de sua morte, ele completou o que veio a ser

“O teatro e seu duplo”. Em todo caso a questão que se colocava para Artaud era acerca do que a cultura ocidental com seu processo civilizatório estava fazendo com a vida. Ele via nesse processo civilizatório a ruína da própria vida e a separação de sua potência. Percebia que pouco a pouco os indivíduos eram cortados das suas conexões vivas para se submeterem a um estilo de vida que os coficavam. Toda sua luta em vida sendo, portanto, um constante combate as segmentarizações, balizas pelos quais o corpo e a vida passavam.

Pois bem, essa pesquisa teórica que agora apresento volta sua análise acerca da vida e sua dimensão política na obra e vida do Artista francês Antonin Artaud. Buscando refletir como Artaud com seu teatro criou através de seus experimentos e escrita uma vida que resistia às estratégias de poder e seus mecanismos de normalização. Além de Artaud, outros dois autores serão fundamentais para pensar a vida e sua dimensão política na obra e vida do artista francês. São eles: Michel Foucault e Fredriech Nietzsche.

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nação corresponde à vida da população: medida por meio das taxas de natalidade, mortalidade, longevidade, qualidade etc. Em nome da vida, são criadas e usurpadas forças, reivindicados e declarados direitos, instituídos e modificados costumes. Contudo, fica uma pergunta, de qual vida estamos falando? De uma vida que de cabo a rabo foi aparelhada pelo capital, pois este necessita, como deixa claro Maurizio Lazzarato na esteira Felix Guattari, lançar modelos subjetivos que se articule com os fluxos econômicos, tecnológicos e sociais. Ou seja, do mesmo modo que se produz carro, roupa, se produz subjetividades que consumam tais produtos, mas não só os produtos, e sim, formas de vida. Através dos fluxos de imagem, de informação, de conhecimento e de serviços que acessamos constantemente, absorvemos maneiras de viver, sentidos de vida, consumimos toneladas de subjetividade.

A vida vira o alvo da política moderna enquanto forma, estilo. Ao final de

“História da sexualidade volume I: A vontade de saber”, Foucault sintetiza o processo através do qual, no início da modernidade, a vida natural começa a ser incluída nos

mecanismos e cálculos do poder estatal, transformando a política em biopolítica: “o

homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja a política, sua vida de ser vivo está em questão”1. (1997, p. 134).

Foucault apresenta nos seus cursos no College de France, suas ideias sobre

a passagem do “Estado territorial” ao “Estado de população”. Ele definiu o conceito

de Biopolítica como a forma pela qual se tentou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas apresentados `a prática governamental através de fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos constituídos como uma população. Eram estes fenômenos relativos à saúde, higiene, natalidade, diferença entre raças, etc.

Segundo Foucault, foram duas as formas principais através das quais se desenvolveu concretamente o poder sobre a vida a partir do século XVII. A primeira se centrou no corpo máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na

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sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos. As disciplinas como procedimentos de poder asseguravam o cumprimento dessas metas. A segunda forma de exercício do poder sobre a vida como já mencionado, a saber a biopolítica, se formou por volta da metade do século XVIII e centrava-se no corpo espécie, no corpo como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida. Tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores, através de uma biopolítica da população. As disciplinas do corpo e as regulações da população, segundo Foucault, constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida.

Assim é que, com abordagem dos mecanismos da biopolítica, a ampliação dos instrumentos teóricos que compõem a analítica do poder realizada por Foucault

chega ao tema do “governo da vida” ou, ainda, ao problema da “vida como objeto de governo”. É no interior dessas duas análises que pode ser situado o estudo

realizado por Foucault acerca do poder pastoral – entendido pelo filósofo como o

“modelo arcaico” das governamentalidades políticas -, bem como seu estudo sobre

as “artes de governar” consistente na razão de Estado e nos neoliberalismos

contemporâneos.

Contudo, se é a vida o alvo sobre a qual incide todas técnicas de poder

político na tentativa de uma homogeneização da mesma, é nela própria que se

encontrará as resistências que permitirão que outros tipos de vida possam emergir.

Essas formas de vida visadas não constituem uma massa inerte `a mercê das tecnologias de poder político, mas um conjunto vivo de estratégias. A partir daí, seria preciso se perguntar de que maneira, no interior desses mecanismos de controle e produção de subjetividade, pode surgir novas modalidades de se agregar, de trabalhar, de criar, de auto-superar, de inventar dispositivos de valorização e autovalorização.

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reinventar a corporeidade, de lidar com o prazer e a dor, de rascunhar uma existência outra. Territórios existenciais como propõem Deleuze-Guattari, espaços heterotópicos como explica Foucault, isto é, outros espaços no interior da sociedade com suas instituições normalizadoras, com seus espaços de contenção, perspectivas extra-moral como reivindica Nietzsche, com seu combate a unilateralidade da perspectiva moral judaico-cristã.

Isto é, “imaginar e fazer existir novos esquemas de politização”. Pois segundo

Foucault (2014), o conjunto das relações de força em uma sociedade dada constitui o domínio da política, a política é uma:

Estratégia mais ou menos global que tenta ordenar e finalizar essas relações de força […] Toda relação de força implica, a cada momento, uma relação de poder (que é, de algum modo, seu corte instantâneo), e cada relação de poder remete, como ao seu efeito, mas também como `a sua condição de possibilidade, a um campo político de que ela faz parte”. (2014, p. 40).

Para Foucault, a análise e critica política tem que inventar estratégias que permitirão, ao mesmo tempo, modificar essas relações de forças bem como coordená-las de maneira que essa modificação seja possível e se inscreva na realidade.

Segundo Foucault, as relações de poder enraízam-se profundamente no nexo social. Uma sociedade sem relações de poder só poderia ser uma abstração, já que viver em sociedade é viver de modo que seja possível uns agirem sobre a ação do outro. Contudo, deve-se notar que isto não quer dizer que o poder se constitui em uma fatalidade incontornável no centro da sociedade, tampouco que as relações de poder tal como estão constituídas sejam necessária e que não possam ser transformadas ou abolidas.

Buscar formas novas de fazer política, eis o recado de Foucault, só assim

poderemos resistir a “vampirização” da vida por parte das tecnologias do governo da

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antiguidade é a do cuidado de si, a de fazer da própria existência uma obra de arte. A de tornar a vida uma experiência, não no sentido de acumulação, mas no sentido

de torna-se outra coisa por meio da experimentação. Ou a fórmula “Torna-se o que

é” nietzschiana que pode ser entendida como um devir aplicado `a vida humana. A uma vida enquanto exercício de estilo.

Para Rosa Dias, Nietzsche exorta cada um esculpir sua existência como uma obra de arte. A vida deve ser pensada, querida e desejada tal como um artista deseja e cria sua obra, ao empregar toda sua energia para produzir um objeto único. Eis o que nos fala Dias (2011):

Mantendo a arte de viver em primeiro plano, Nietzsche investe todo seu saber na tarefa de descobrir e inventar novas formas de vida, Convida o ser humano a participar de maneira renovada na ordem do mundo, a construir a própria singularidade, organizar uma rede de referências que o ajude a se moldar na criação de si mesmo. E tudo isso só pode ser feito contra o presente, contra um “eu” constituído2. (2011, p.12).

O ser humano, para a autora na esteira de Nietzsche, é um hábil experimentador de si mesmo, um espírito em constante metamorfose. Recusar,

portanto, um “eu” constituído, é colocar em evidência um sistema complexo de

elementos múltiplos, distintos e que nenhum poder de síntese domina. É tornar visível a multiplicidade que é o ser humano e que a cultural Ocidental tentou forjar como um eu universal, carregando em si uma essência a priori, sendo o mesmo para todos os tempos e lugares. Sendo da ordem dos efeitos, as subjetividades são configurações singulares, históricas, momentâneas; configurações transitórias e descontínuas, abertas a múltiplas possibilidades de acordo com as práticas a que estão submetidas.

Portanto, a vida não pode ser restringida a uma única perspectiva, a vida é expansão, e como expansão é uma atividade criadora, que não quer conservar-se: antes de tudo quer crescer. Para Nietzsche a vida é vontade de potência e como

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vontade de potência busca apropriar-se de alguma coisa para impor uma forma, um sentido, uma função, uma nova direção.

Fazer da vida uma obra de arte é fazer da própria vida um experimento, é

concebê-la como um risco em que se pode “ganhar” ou “perder” isso porque tudo é

novo, inédito e perigoso. O seu projeto político está na concepção de uma singularidade radical, no surgimento de vida paralelas que não se contentam com o que estar estabelecido, mas que faz ranger de dentro os pilares que sustentam essa

falsa “boa vida”, “vida feliz”. A política está na afirmação da sua condição de outsider, em não querer participar dos estabelecidos e suas fixações hierárquicas e seus assujeitamentos, e sim, na constituição de estilos outros de vida que tem na sua imanência sua própria valoração.

Mas para isso, temos que inventar como nos fala Foucault espaços aonde essas vidas possam ser gestadas, rascunhadas, experimentadas. E talvez, não tenha lugar melhor para tais experimentos do que nas artes. Todavia, o objeto dessa pesquisa é o artista francês Antonin Artaud e seu teatro da crueldade, isto é, a vida e sua dimensão política, enquanto uma política do experimento, da invenção, uma

“política menor” nos termos deleuzianos, uma “grande política” nos termos

nietzschiano e que, portanto, não se pretende enquanto modelo a ser seguido

universalmente, mas enquanto uma “arte interessada”, na exata medida que

estimula a vontade de potência como movimento de auto-superação, isto é, uma força originária. A arte como estímulo da vida.

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Artaud reivindica que o teatro crie seu próprio espaço e que não seja mera representação de conflitos sociais, mas que seja um espaço de contínua criação, de feitura e desmanche do homem e do mundo que habita. Portanto, não é um teatro que se contenta com a representação da realidade, mas um teatro que cria realidades e com isso se torna um meio de confronto da mesma, vide sua ideia acerca do teatro e a peste. Não é um teatro da representação enquanto auto-conservação de uma certa realidade, perspectiva, vida, mas um teatro que afirma a vida como continua criação. Eis o que nos diz Derrida (2009):

[…] Artaud quer acabar com o conceito imitativo da arte. Com a estética aristotélica na qual se reconheceu a metafísica ocidental da arte. ' A arte não é imitação da vida, mas a vida é a imitação de um princípio transcendente com o qual a arte nos volta a pôr em comunicação' […] A arte teatral deve ser o lugar primordial da destruição da imitação: mais do que outro foi marcado por esse trabalho de representação total no qual a afirmação da vida se deixa desdobrar e escavar pela negação. Esta representação, cuja estrutura se imprime não apenas na arte mas em toda cultura ocidental (as suas religiões, as suas filosofias, a sua política), designa portanto mais do que um tipo particular de construção teatral. Eis por que a questão que se põe a nós hoje excede largamente a tecnologia teatral3. (2009, p. 342).

Isto se aproxima - claro, guardadas as devidas diferenças - por um lado, com o pensamento de Rancière (2012) quando ele nos fala o seguinte:

[...] Como o teatro poderia desmascarar os hipócritas, se a lei que o rege é a lei que governa o comportamento dos hipócritas: a encenação por corpos vivos dos sinais de pensamentos e sentimentos que não são seus? […] O problema então não se refere à validade moral ou política da mensagem transmitida pelo dispositivo representativo. refere-se ao próprio dispositivo. Sua fissura põe à mostra que a eficácia da arte não consiste em transmitir mensagens, dar modelos ou contramodelos de comportamento ou ensinar a decifrar as representações. Ela consiste sobretudo em disposições dos corpos, em recorte de espaços e tempos singulares que definem maneiras de ser, juntos ou separados, na frente ou no meio, dentro ou fora, perto ou longe"4. (2012, p.55).

3DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 2009.

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Por outro lado, com a problematização de Lazzarato (2014) no rastro de Feliz Guattari acerca da representação política e as funções representativas da linguagem:

As semióticas significantes (linguagem, escritura) afirmam 'representar' todas as outras podalidades de expressão ditas pré-significantes (corporais, mímicas, icônicas) e a-pré-significantes (a moeda, as equações da ciência etc). A essas últimas faltam alguma coisa que só a linguagem pode acrescentar, da mesma forma que falta para os cidadãos e para o social alguma coisa que só a representação política pode trazer. […] tanto a 'representação', linguageira quanto a representação política constituem uma tomada de poder que sobrecodifica, hierarquiza, subordina as outras semióticas e as outras modalidades de expressão. As duas formas de 'representação', nos sistemas de signos e nas instituições políticas, são solidárias, e toda ruptura política requer que tanto uma quanto a outra se desfaçam5. (2014, p. 174).

Artaud entendi que essas formas de representação, principalmente a da linguagem, separava o homem das forças que impulsiona e que o faz vibrar em um plano de criação. Para ele, essas representações é o que nos fazia estabilizar em uma forma, ou melhor, que nos faz pensar, viver através de formas cristalizadas,

criando assim, maneiras corretas” de pensar, bem como, de sentir e de viver. Neste

caso ganha força a compreensão da arte num movimento interno em direção ao sujeito, seja ele artista ou usufruidor. O significado da arte é marcadamente o de potencializar a vida, criando simbiose de difíceis distinções entre artista , obra, circunstância e vida. Uma arte que está voltada a constituição de si próprio.

A constituição de si mesmo para Lazzarato (2014) pode romper com as

significações dominantes, “já que ela não considera, num primeiro momento,

significantes, discursos, mas uma potência de autoafetação, uma relação de força

com ela mesma”. (2014, p.176). Se formos nos vestígios de Foucault poderíamos falar de uma prática de subjetivação e produção de modelos de existência. E tal problemática era cara a Artaud, visto seu pensamento acerca da relação entre vida

e arte, pois, para o criador do “teatro e a peste” essa relação só pode ser concebida

como combate, no sentido de provocação de uma pela outra, da qual nenhuma sai

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intacta. Segundo Lazzarato (2014):

A subjetivação política foucaultiana é indissociável da ethopoiesis (a

formação do ethos, a formação do sujeito). A necessidade de

articular a transformação do mundo (das instituições, das leis) com a transformação de si, dos outros e da própria existência constitui, de acordo com Foucault, o problema específico da política [...]. (2014, p. 299).

O que esse teatro começa a perceber é que a força, talvez, política (de ação) do teatro na contemporaneidade estaria no fato mesmo de interromper certa apreensão da realidade. Muito mais do que na representação da mesma ou em reproduzir uma forma pautada na transmissão. Esse teatro se caracteriza por criar espaços de experimentação de si. Busca ser mais da ordem da suspensão, descontinuidade, e menos da mediação. Ele quer ser mais da produção de presença e menos da representação.

A questão que se coloca, portanto, é como a arte pode se tornar uma ação política e, por conseguinte, um meio de criação de outras maneiras de se estar na vida. Ora, a arte de Artaud não era outra coisa senão essa tentativa, ou seja, a tentativa de uma ação que buscava outra forma de vida. Mas não se deve entender outra forma de vida como uma simples reforma, aonde sai de uma e vai para outra mantendo a mesma lógica anterior. Por querer essa outra forma um paradoxo se instaurava, pois por um lado ele combatia certa forma de política, mais ligada ao modelo institucional e, portanto, a sua lógica macropolítica, que para ele era a interrupção dos fluxos potentes, era de alguma forma domesticadora dos instintos rebeladores e do estreitamento da vida, das várias possibilidades de exercê-la. Mas ao mesmo tempo, ao insistir em querer interromper a ressonância-codificadora macro sobre a vida, ele se relacionava com outra dimensão da política, com a micropolítica. Pois de algum modo ele sabia que era ali na dimensão do contato entre os corpos que novas formas poderiam insurgir.

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político para conformá-la a uma determinada ordem. Talvez, esteja aí relevância da pesquisa que aqui segue, isto é, a tentativa de estudar a dimensão política na vida e na mesma proporção e como possibilidade de resistência sua dimensão política enquanto experimentadora de estilos outros.

A presente pesquisa, portanto, tem o objetivo de analisar uma dimensão política que envolva a situação da própria vida. Tomando como referência a obra de Artaud pretende-se problematizar o conceito de política, supondo sua característica

polissêmica, de modo a ampliar este conceito para experiência da “escrita de si”, e assim, ver nesta “política-menor” possibilidades de invenções da própria e existência e do que a restringi.

Para tanto o recorte da pesquisa se deu pelo estudo de alguns textos de Artaud na qual ele formula o conceito do teatro da crueldade, buscando os desdobramentos deste meio artístico nas dimensões da vida ou existência, numa situação marcada pela cultura enquanto área compreendida politicamente. Neste sentido, estão sendo analisadas criteriosamente três obras de Artaud, quais sejam: O teatro e seu duplo, Linguagem e Vida e Van Gogh, O suicidado da sociedade.

O tema dessa pesquisa, portanto, refere-se a relação entre arte e política,

especificamente, entre teatro e uma determinada proposta de arte, enquanto motivadora e fomentadora de um publico envolvido visceralmente com as ações em desenvolvimento. Pretende-se, dessa forma, analisar possibilidades para ampliação do debate a respeito do significado da política - enquanto pensamento e ação.

A relação teatro e política é um tema recorrente na literatura teatral. Porém muitas vezes vem carregada de pré-conceitos ou interpretações simplistas. Quando se fala em teatro político, pensa-se em teatro engajado, teatro didático, tomada de posição. E isto é colocar mal a problema, ou, em todo caso restringi-lo. Se podemos

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partir daí, tudo muda: a interrogação não se aplica mais unicamente às “mensagens”

deste ou daquele autor dramático, mas abrange todo o teatro no coração mesmo do seu exercício.

Se o teatro como uma ação política não se restringe mais só a questão da representação de conflitos intersubjetivos (como no teatro do drama burguês), ou sociais (como o teatro Épico de Bertold Brecht, o teatro da morte de Tadeuz Kantor), ele reivindica uma ação direta sobre si e sobre o mundo, sem o ato da mediação, nesse sentido, ele tem no seu cerne a própria constituição de um espaço-tempo próprio por meio do qual a experimentação sobre si pode acontecer.

E mais, ele coloca uma questão para o que comumente se entende por político, que é o desse teatro começar por reconhecer que uma representação teatral de problemas definidos na realidade como políticos corre, desde o início, o perigo de repetir demais, tal e qual o que foi qualificado publicamente, na mídia e no

discurso padrão, como “político”. E se concordarmos com Foucault (2014) para o

qual “se levarmos em conta um discurso, não devemos interrogar a realidade de que esse discurso seria reflexo, mas a realidade do problema que faz com que nos achemos obrigados a falar dele[...]". (2014, p.15).

Devemos interrogar se o efeito que se queria ao transmitir tal mensagem não se tornou a reafirmação ao invés de ruptura, se não se tornou uma política da continuidade e, portanto, do conformismo e não uma política do dano, isto é, da descontinuidade, do não ver o que se quer que veja e falar o que se quer que fale. Um teatro político que reivindica, portanto, uma atitude critica ao nos relacionarmos no espaço-tempo [que está acontecendo agora].

Há, nesse sentido, uma necessidade de deslocamento ou mesmo ampliação

do entendimento do termo “política”, pois, o mesmo é comumente associado à uma

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relações múltiplas e complexas.

Desse modo, nos aliamos a Michel Foucault para o qual em a “História da sexualidade I” o poder não é central e localizado, mas acontece nas relações, de

maneira complexa e mútua, não somente entre dois corpos, mas em uma rede. O poder acontece nas extremidades da vida, em suas últimas ramificações, nas

relações de cada singularidade, nas “micro-percepções” que se encontram na

complexidade das relações em nível social, cultural, familiar, profissional. A esta nova forma, Foucault dá o nome de micropoder, que segundo ele, são detentores de grande influência nas atitudes humanas, deixando os homens aptos para o controle do Estado.

E também a Friedrich Nietzsche com seu entendimento do que seria “A

Grande Política”, que poderia ser entendida, grosso modo, como contra-movimentos ao desenvolvimento decadencial da pequena política, com suas aspirações de

melhoramento do homem transvestidas por “fachadas pseudo-humanistas”. À luz

dos conceitos de Foucault, considerando política como esta rede complexa de

relações, e de Nietzsche com sua “grande política”, o presente projeto busca

compreender como o teatro de Artaud pode torna-se “ação política”.

Sendo assim, a análise da obra de Artaud será feita a partir da perspectiva da

“micropolítica” em Foucault e da “grande política” em Nietzsche como construção de

interferências que se aliam a outros modos de se estar na vida, vislumbrando com isso a libertação individual e a produção de rupturas subjetivas que permita a constituição da existência de si.

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Pensar outros parâmetros, deslocar-se efetivamente da posição política tradicional, tanto em termos de uma prática conceitual quanto em termo de uma prática militante. Pensar contra lógica, a qual permite, por exemplo, romper a reificação da consciência e apreender a dimensão de criatividade social é pensar a

“técnica de subjetivação” para Foucault. Dito de outra maneira deslocar-se da posição política tradicional ou pensar a técnica de subjetivação é interferir no status quo, é gerar outros modos singulares de sentir, pensar e existir. É Pensar a expansão dos índices de liberdade, outra produção estética da existência.

Guatarri e Antonio Negri, quando falam de revolução, propõem que se saia da posição apenas pragmática, da busca da verdadeira revolução, e se entenda que a revolução é uma revolucionar permanente. A vida, pensada como potência da vida, nesses autores, requer um combate, compõe-se em meio a processos plurais de racionalização. É nesta perspectiva que Foucault, talvez, vai afirmar a liberdade como um exercício, como práticas de liberdade que acontecem naquilo que se faz para transforma-se. Este exercício opera uma critica no limite de si mesmo e se afirma como processo permanente de problematização e de ultrapassagem dos limites históricos que nos constituem em seu estado de coisas e de enunciados.

A dimensão critica e política da obra de Artaud evidencia-se na sua tentativa de distorcer a teoria pela qual era julgado, de querer transformar o indivíduo- uma

operação próxima ao conceito de “grande política” nietzschiano e da micropolítica com sua construção de interferências que aliavam outros modos de está na vida. Dessa forma o artesão do corpo sem órgãos corrobora com os autores aqui citados ao identificar que o poder está no individuo e que, por conseguinte, se contrapõe ao poder estatal, a uma política organizada pelo viés institucional, visto por esses autores como uma forma de massacre do indivíduo na sua potencia de vida. E essa distorção, desordenamento, esfacelamento desse indivíduo formatado estariam expressos no teatro da crueldade.

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A arte contemporânea vem adensando a insurreição dos saberem subjugados, sinalizando o prenuncio da liberdade ao trazer novos significados à rede produtiva de micropoderes (...). Conectando diferentes práticas culturais e políticas, numa época em que o capitalismo exacerba as formas artísticas. Assim, na contemporaneidade, a arte critica vem explicitando com mais

frequência a sua faceta de arte radical, fortalecida pela eclosão do ativismo artístico. A relação entre arte e política deixa vislumbrar a libertação individual e a produção de ruptura subjetivas que permitem avançar na luta micropolítica. (CHAIA, 2007, p. 38).

E de novo retornamos a Artaud quando sua grande preocupação era com a vida e sua potência. Para ele era insuportável o condicionamento inato que pesava sobre o corpo, pois ele sabia que a vida, era determinada social, histórica, e

politicamente “(...) ela não é apenas influenciada e invadida de fora por contextos

sociais. A sociedade é um dado quase inato ao corpo” (UNO, 2007, p. 39). A arte era

para ele um estado de exceção permanente que se colocava contra a reificação e homogeneização da vida.

A obra inteira de Artaud era uma tentativa de abalar a biografia que se constituía vindo de fora e que na concepção dele o paralisava numa existência que o não permitia experimentar outras formas de vidas possíveis, outras dimensões. Era investir sobre si próprio; ele próprio inventar com a sucessão de posturas e gestos práticas diluidoras de normas estratificantes.

Pode-se levantar a hipótese que a busca de Artaud, era uma busca por “linhas

de fugas” no sentido deleuziano. Seus experimentos, não eram reproduções do

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Para o artesão do corpo sem órgãos:

[...] Uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a uma espécie de revolta virtual e que, aliás, só poderá assumir todo o seu valor se permanecer virtual, impõe às coletividades reunidas uma atitude heroica e difícil. (ARTAUD, 2006, p. 24).

Ao querer perturbar os sentidos, liberar o inconsciente ele não queria nada menos que descolonizar o pensamento e assim abrir-se para novas formas de relações.

Artaud buscando proporcionar outra apreensão estética que não fosse pela coerência do pensamento discursivo e lógico cria o teatro da crueldade. Ele tinha como projeto uma encenação que fizesse com que o espectador fosse submetido a um tratamento de choque emotivo, de maneira a libertá-lo do domínio discursivo e lógico para encontrar uma vivência imediata, uma experiência estética e ética singular. Uma arte interessada, assim como quer Nietzsche. Uma arte que é política porque é o espaço por excelência da possibilidade da experimentação da vida. Por que não se quer enquanto auto-conservação, representação, mas como resistência e por isso mesmo afirmadora da vida, do movimento de expansão dela.

A pesquisa está dividida em duas partes, sendo a primeira intitulada:

“Experimento Artaud: uma investigação política o teatro como prática de si”. Essa primeira parte gira entorno de como a obra de Artaud foi fundamental para que ele pudesse traçar uma vida que se colocava além ou aquém de uma certa perspectiva de vida vigente com seus mecanismos normalizadores.

A segunda parte intitulada: “Antonin Artaud entre Nietzsche e Foucault: a

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1 EXPERIMENTO ARTAUD: UMA INVESTIGAÇÃO POLÍTICA, O

TEATRO COMO PRÁTICA DE SI

“O teatro da revolução branca está no fim […]. Eu disse que os escravos não tem pátria. Isso não é verdade. A pátria dos escravos é a revolta [...]”.

Heiner Muller

“[...] E me parece indispensável afirmar que nenhuma conquista, que tenda a, e tenha como objetivo, uma realidade metafísica a mais rara e a mais densa, tem valor a não ser em função do plano físico, terrestre, material e humano no qual vivemos”.

Antonin Artaud

Em Artaud a busca com seu teatro sempre foi por uma “conquista” de si. Por

uma arte que religasse o homem a si próprio. Que o fizesse romper com os automatismos que lhes eram impostos. Grande parte de sua obra surgindo precisamente como uma tentativa de recriar e transformar sua própria história. Para isso, ele passou sua vida inteira buscando uma arte teatral que rompesse o teatro psicológico ocidental e seus procedimentos de representação (deixando de fora tudo que não obedecia a expressão através do discurso, das palavras ou mesmo do

diálogo6) na tentativa de encontrar um teatro que tocasse a vida, ou melhor, que a

produzisse. Um teatro, cujo verdadeiro programa fosse a encenação de uma máquina de produzir o real.

Artaud, homem de teatro – trabalhou como ator de cinema, foi dramaturgo, figurinista, cenógrafo, desenhista, crítico de arte- foi um ativo entre seus contemporâneos. Trilhando inicialmente a esteira das vanguardas históricas e de seus ideais, especialmente o dos surrealistas tinha como projeto revivificar a arte teatral para que a mesma fosse usada como o lugar de ação sobre a vida. Quando fala em ação, Artaud pensa em um acontecimento único, tão imprevisível quanto

6 Para Artaud, o próprio diálogo possibilitava infinitas maneiras sonorizações na cena, entretanto, o

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qualquer ato cujo valor é medido pelo grau de veracidade e não por verossimilhança. No artista francês o ponto crucial era que o teatro devesse remodelar a vida: “É preciso acreditar num sentido da vida renovado pelo teatro no qual o homem, impavidamente, torna-se senhor daquilo que ainda não existe, e que o faz nascer

[...]” (ARTAUD, 2006, p. 08).

Podemos situar suas propostas junto às diversas correntes que modificaram as artes cênicas europeias na primeira metade do século XX. Sua trajetória cruzou

com o “mais” importante da vida intelectual e cultural da época: Surrealismo, expressionismo, teatro, cinema, poesia, sem contar a experiência que vai ser fundamental na sua vida, a da loucura.

Artaud conviveu com artistas de diversas linguagens, transitou por diversos ateliês artísticos. Trabalhou nos anos 20 como ator com diretores importantes do

teatro francês, como Lugne Poé7, Charles Dullin e George Ptoeff, Jacques Copeau,

Louis Jouvet, Gaston Baty, além de participar por alguns anos das atividades do

grupo surrealista, no cinema participou de filmes como Napoléon (1926) de Abel

Gance, La Passion de Jeanne D'Arc (1927) de Carl Dreyer entre muitos outros.

Entre 1920 e 1936 Artaud trabalhou em dezenas de teatros e frequentou todos aqueles que contavam no mundo da cena. Escreveu projetos de encenações para peças de August Strindberg, além de diversos artigos sobre teatro, cinema, artes plásticas. Sua participação no campo artístico e cultural de sua época foi bastante intenso.

Experienciou o que tinha de mais potente na sua época, e vivenciou horrores dos mais cruéis possíveis. No entanto, não se pode deixa de chamar atenção para dois fatores que marcarão a vida do criador do teatro da crueldade. Um deles foi sua chegada a Paris ainda jovem, sendo confrontado em Paris com a sombra das duas figuras que influenciarão sua trajetória posterior: Alfred Jarry e Strindberg. O primeiro

7 A sua chegada em Paris nos anos 20 do século XX vai ser concomitante com ascensão da figura do

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dando nome a sua companhia de teatro anos depois. É no teatro Alfred Jarry que ele vai começar a fazer suas primeiras direções e a intensificar seus experimentos acerca do seu teatro da crueldade. O outro foi sua ida para o México à procura de outro sentido para o teatro, para o pensamento e para vida. A sua intenção era fugir das prisões da cultura racionalista presente em seu país buscando na experiência dos índios Tarahumaras refundar sua própria cultura.

1.1Teatro Alfred Jarry8

Segundo a biografa de Artaud, Florence de Mèredieu, olhar para a trajetória

de Artaud é retraçar “a vida intelectual da época que se estende do final do século XIX aos dias seguintes à Segunda Guerra Mundial. Época particularmente complexa e fecunda, atravessando duas guerras mundiais, que vê surgir o que em arte se denominará 'modernidade'. Teatro, música, literatura e artes plásticas conhecerão subversões radicais, enquanto nasce e se desenvolve a arte de massa que constitui

o cinematógrafo”.9

É nesse contexto que surge O teatro Alfred Jarry. O teatro é fruto da colaboração entre três personagens, Antonin Artaud, Robert Aron e Roger Vitrac. A colaboração entre Artaud e os companheiros, principalmente com Vitrac terá uma importância fundamental na trajetória de Artaud. Vitrac era escritor e dramaturgo. Sua relação com Artaud se intensifica após a expulsão de ambos da Central Surrealista fazendo-os retomar às fontes dadaístas. Na realidade, Vitrac já tinha participado ativamente do dadá. Daí vir da parte dele um gosto pronunciado pelo caráter demolidor da linguagem. Como Artaud não tinha participado de nenhum movimento, essa colaboração com Vitrac permitiu Artaud fazer elo com o anarquismo dadá. Com Victor ou As Crianças no Poder, Vitrac lhe dará, por esse

8Alfred Jarry entusiasmou toda uma geração de intelectuais. Os dadaístas e surrealistas,

principalmente, o saudaram como um dos seus precursores. A seu texto teatral Ubu Rei vai atingir Artaud profundamente, muito por conta da invasão do irracional, da destruição das principais convenções teatrais, sendo que ele vai inovar com a substituição da linguagem nobre por um estilo vulgar e o herói tradicional pelo seu 'duplo ignóbil'.

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motivo, uma lição magistral de rebelião e destruição da língua.

O Teatro Alfredo Jarry se constitui nessas bases como um teatro experimental e de vanguarda, conduzido por maioria de jovens atores na tentativa de romper com o teatro convencional. O Alfredo Jarry nas palavras do Jovem ator René Lef`evre era

um teatro que vinha “(...) Para manifestar, protestar. Éramos contestadores cênicos”10. (LEFEVRE apud MÈREDIEU)11. Isto corrobora diretamente com o pensamento de Artaud (2008) quando ele diz:

As convenções teatrais venceram. Tais como somos, somos incapazes de aceitar um teatro que continuasse a trapacear conosco. Temos necessidade de crer naquilo que vemos. Um espetáculo que se repete todas as noites segundo os mesmos ritos, sempre idêntico a si próprios, não pode conquistar nossa adesão.12 (2008, p34).

Ou seja, para Artaud o teatro tinha que ser um acontecimento, um espetáculo único, que desse a impressão de ser imprevisto, incapaz de se repetir quanto qualquer ato da vida.

Para tanto, o teatro teria que descartar tudo aquilo que o nutria e isso só seria possível para Artaud se o teatro reencontrasse sua verdadeira linguagem. Que era a linguagem espacial, de gestos, de atitudes, de expressões e mímica, de gritos, sonora, mas que teria a mesma importância intelectual e de significação sensível que a linguagem das palavras. A busca era por um teatro total, um espetáculo integrado. Por meio desses procedimentos o teatro se tornaria um espaço aonde nos serviríamos dele para remodelar a vida, um meio que possibilitaria tanto ator como espectador reatar com a vida em vez de separar dela, por conseguinte, o teatro era

um meio e não um fim em si. “O teatro Alfredo Jarry destina-se a todos que enxergam no teatro não um fim, mas um meio, a todos que se inquietam com uma

10 Ibdem. p. 330.

11 Durante a dissertação se notará um excesso de citações de Antonin Artaud por

apud, isso se deve

por ser citações que os autores transcrevem direto das obras em francês do artista. E como dessa dissertação não domina o francês achou por bem utilizar os apuds. Tentando ser o mais ao

pensamento de Artaud.

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realidade da qual o teatro é apenas signo. O teatro Alfredo Jarry foi criado para se

servir do teatro e não para servi-lo”. (ARTAUD, 2008, p. 49)”. O teatro Alfredo Jarry

nasce como uma reação ao teatro ocidental bem como por uma total libertação do mesmo. Artaud quer revivificar a noção de teatro e restituir-lhe o vigor perdido.

Com o teatro Alfredo Jarry, Artaud e seus companheiros se dirigiam não só ao espírito e os sentidos dos espectadores, mas a toda sua existência. A deles e a

nossa. Jogamos nossa vida no espetáculo que se desenrola sobre o palco. “(…) O

espectador que vem ver-nos sabe que vem oferecer-se a uma operação verdadeira, onde não somente seu espírito, mas também seus sentidos e sua carne estão em

jogo” (ARTAUD, 2008, p. 31). A tentativa era por sacudir o espectador, deixando-o arrepiado com o dinamismo interior do espetáculo atingindo, assim, o mais grave possível, não sua forma exterior, mas seu ser inato. Portanto, há nesta proposta uma necessidade de ser o mais voraz possível, desprezando mais uma vez, o teatro ocidental com suas encenações e se filiando a alguma coisa próxima do imponderável ou se quiser a um teatro ritualístico nos moldes do que se convencionou o nascimento do teatro ocidental, as festas pagãs, os rituais dionisíacos.

Contudo, é no teatro oriental, mas especificamente, no Teatro de Bali que Artaud vai encontrar bases para seus experimentos no Teatro Alfredo Jarry. O teatro físico e não verbal vivenciados por eles. Ele se encantou com a forma como o teatro estava contido no limite de tudo que pode acontecer num cena, independente de um texto escrito. E como isso acarretava a construção de um estado único por meio do transe acessado através da justaposição de todos os elementos. Mas não se deve entender o transe aqui como a perda total do controle, talvez por isso, Artaud não fazer menção ao rito de Dionisio quando pensava esse estado de êxtase, de participação e entusiasmo que o espetáculo fomentaria e sim a criação de um ritual onde os participantes passariam por uma ação controlada, pois o essencial aos seus olhos era os atores não serem apoderados pelo transe e sim dotados de um estatuto

rigoroso que permitiria a eles fazer nascer esse transe sem, contudo, imergir nele: “

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transes mágicos”.13 (ARTAUD apud VIRMAUX, 1990 p. 47).

O teatro nesse sentido seria uma arte do contágio e para que ele execute sua revolução, como pensava Artaud, ele teria que ascender ao caráter mágico14. Ele concebia o teatro como uma verdadeira operação de magia. Aonde permitiria vir à tona tudo quanto há de obscuro, de enfurnado, de irrevelado no espírito. Se aproximando do universo dos ritos o teatro pensado por Artaud seria um exercício de desestabilização de conceitos e referências, para se extrair daí um impulso criador e revitalizante. O seu ato mágico perturbaria o repouso dos sentidos e liberaria o

“inconsciente comprimido”, pois agindo sobre o homem, permitiria que emergisse outros “estados de ser” que permitiria a constituição de uma nova cultura e sociedade.

(…) sentido de modificação integral, e pode-se até dizer mágica, não do homem, mas daquilo que no homem é ser, porque o homem verdadeiramente cultivado traz o espírito no seu corpo; é o seu corpo que a cultura trabalha ao mesmo tempo o espírito (ARTAUD apud QUILICI, 2004, p. 49).

As experiências feitas no teatro Alfredo Jarry procurava, nessa acepção,

manifestar um estado de espírito atual, isto é, uma atitude em face de certas coisas da vida. As escolhas por textos que não traziam em si uma atualidade dos fatos, mas uma espécie de universalidade adequada às necessidades do seu tempo. Artaud entendia que o teatro não era lugar de resolver conflitos sociais ou psicológicos, batalhas às paixões morais, mas de exprimir objetivamente verdades

secretas.15 Artaud sonhava com um teatro que fosse esse momento de confronto, no

13 VIRMAUX, Alain. Artaud e o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1990.

14 Tanto o rito como a magia em Artaud terá Para Cassiano Sydow Quilici um caráter especifico uma

maneira própria de se apropriar deles. “O rito, pelo menos no sentido de Artaud, se aproximava mais ao sentido arcaico do rito. Designava sempre um modo distinto que se contrapunha ao comportamento distraído e rotineiro, intensificando a experiência do momento presente e possibilitando o afloramento de outros estados de ser. Desse modo, a ritualização opunha-se ao agir

profano, difuso e dispersivo”. (...) “'magia primitiva' tem também uma finalidade específica. Não se

trata apenas de reconhecer outra 'lógica', ou forma de 'pensar' o mundo, mas de 'usar' a magia como uma ideia provocativa dentro da própria cultura contemporânea, que nos obrigaria, por exemplo, a pensar a arte fora de seu enquadramento 'estético', ou seja, dentro de um campo de saber específico,

que foi se definindo no Ocidente a partir do século XVIII”. (QUILICI, Cassiano S.. São Paulo: Annablume, 2004, p 37 e 43)

15 Essas verdades secretas nada tem haver com uma essência que veria de uma ordem moral,

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qual toda a existência é colocada em xeque. Um teatro que revelasse para a comunidade suas 'forças obscuras' desencadeando uma crise que só se resolveria

pela destruição total ou 'purificação radical'. Eis que ele nos diz: “O verdadeiro teatro

sempre me pareceu o exercício de um ato perigoso e terrível, em que, aliás, a ideia de teatro e de espetáculo se elimina, bem como a ideia de toda ciência, toda a

religião e toda a arte” (ARTAUD, 2007, p. 145).

Do mesmo modo como Artaud insistia pela destruição do teatro ocidental como ele era feito e pensado, para daí retomar um teatro que tocasse a vida, ou melhor, que fosse a própria vida, ele também reivindicava outra atualidade que não era aquela a qual ele pertencia. Portanto, a função do teatro para ele era de fazer emergir outra atualidade, para isso, o teatro teria que ressuscitar velhos mitos e confrontando a atualidade a qual pertencia tocaria as inquietações do presente. Nessa direção o teatro não seria superado pelos acontecimentos que atingiriam o presente, nem a representação de tais acontecimentos, mas algo como a própria constituição de outro presente, de outra atualidade. Sendo assim, esse termo atualidade estaria bem próximo ao de crueldade, no que diz respeito, ao modo como se deveria agir sobre si próprio e sobre o meio a qual estava inserido.

Quando ele pensava a noção de atualidade e de presente e a relação desses termos com o teatro ficava claro que a função do último não era representar um fato da atualidade, do presente, mas um teatro que auxiliar-se a superar os estados promovidos pelos acontecimentos atuais. Como as festas teatrais da antiguidade ajudavam os homens a exorcizar seu medo dos deuses. O teatro sendo menos uma representação e mais um espaço de libertação das angustias e estratificações que

paralisava o homem diante do mundo. Ele nos diz: “(...) O homem rebelado contra a

fatalidade e que, em lugar de padecê-la, se insurge contra Ela e cria em função

dessa revolta”16. (ARTAUD apud ARANTES, 1988 p. 21). O teatro, portanto, não deveria ficar refém a imitação de uma dada realidade. Mas ser o espaço da insubordinação, gerador de conflito entre as duas dimensões, a teatral e a da

expor ou falar algo franco. A verdade aqui estaria mais próxima a veracidade, a veridição da vida enquanto experimentada e que constitui e afirma um estilo de vida que se orienta por critérios imanentes. É uma verdade que se quer enquanto afronta aos modelos.

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realidade exterior a do teatro, revelando, dessa forma, os limites estratificadores

impostos pela sociedade e seus dispositivo de controle: “nenhuma produção artística

é válida sem o sentimento dessa impotência, e a consciência exasperada e ativa

daquilo que, pelo fato de viver, foi perdido”. (ARTAUD apud ARANTES, 1988, p. 22).

Contudo, não se deve entender aqui “pelo fato de viver, foi perdido” algo de força

reativa ou de um niilismo paralisante, mas a necessidade17 de inventar maneiras de

viver diferentes, criar outras possibilidades de corpo e vida. Outras organizações possíveis.

A intenção com o Teatro Jarry (como também com outras práticas artísticas, já que como dito anteriormente, ele transitou por diversas áreas e linguagens), e com sua vida, era de não perdoar nada, de não fazer concessões para tudo àquilo que na visão Artaud soterrava o homem na mais profunda perda da vida, ou seja, de sua potência, fazendo com que o homem se apaziguasse diante do corpo orgânico com

suas funcionalidade e codificações. A sua “arte-vida” não era nada pacificadora, para

ele, elas deveriam ser um ato perigoso, um ato de enfrentar por si mesmo os riscos. E isto, em Artaud, se realizou na sua mais radical expressão, vide todas as formas de internamentos por quais ele passou e de tratamento, entre eles, o eletrochoque. Artaud fez por meio de sua arte emergir uma vida paralela. O verdadeiro teatro, em tais termos, deveria extrapolar as formas de normalização, negando o lugar que lhe

é destinado por uma dada ordem cultural: o da “produção de espetáculo”, que deverão ser consumidos como “bens simbólicos”, dentro do mercado do lazer e

entretenimento.

O histórico do teatro Alfredo Jarry, muito por conta desse radicalismo que propunha os seus participantes, se fez com a montagem de apenas quatro peças e de muitas dificuldades para encontrar lugares para suas encenações e de conseguir

17 Gilles Deleuze numa palestra para alunos de cinema atrela o ato de criação a uma necessidade. “É

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apoio financeiro para a continuidade do projeto. Mesmo os atores, por também não

serem tantos na sua época, tinha certo “medo” de embarcar em tal projeto. Artaud

queria ao seu lado não atores apenas com talento, mas atores que buscava em si uma sinceridade vital que fosse mais forte que suas convicções.

1.2O Teatro e seus duplos

Artaud (2006) inicia “O Teatro e seu Duplo” com o prefácio intitulado “ O teatro e a cultura” e no início ele diz o seguinte:

Nunca como neste momento, quando é a própria vida que se esvai, se falou tanto em civilização e cultura. E há um estranho paralelismo entre esse esboroamento generalizado da vida que está na base da desmoralização atual e a preocupação com uma cultura que nunca coincidiu com a vida e que é feita para reger a vida”18. (2006, p. 1).

Em conformidade com tal pensamento, poderia se dizer que, a civilização aparece para Artaud como uma regente das ações, mesmo àquelas mais sutis, promovendo assim a fabricação de certo comportamento e, por conseguinte, de um pensamento moldado e reduzido à esfera de mero objeto que se extrairia o modo de ser na vida. Nessas bases, o comportamento se constituiria como um a priori e seria tarefa dos indivíduos pertencentes a esse meio social extrair o pensamento dos seus atos ao invés de como queria Artaud identificar seus atos com seus pensamentos. Em outras palavras, o que Artaud não queria era que houvesse a cisão entre o que se pensa e o que se é na vida, mas que as coisas estivessem imbricadas. Decorrendo daí uma re-apropriação da vida, pelo menos, como ele entendia.

Uma das maneiras que acreditava ser a mais potente para obtenção dessa vida que ele acreditava ser fora de todas suas amarras cultural, era aquela que exige que de tempos em tempos produza-se cataclismos que incite a retornar a

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natureza, ou seja, que incite a se lançar a um estado de natureza próximo ao animalesco e que ainda não ganhou forma, que ainda não passou pela máquina civilizatória com seus códigos e funções, pelo seu processo de domesticação. Pois

segundo Artaud: “[...] tudo o que serve para captar, dirigir e derivar forças é, para nós, uma coisa morta da qual já não sabemos extrair senão um proveito [...] de

Fruidor”. (2006, p. 05). Daí ele exigir uma arte que exalte a animalização, criando assim uma atmosfera de tensão psíquica, de abalo das estruturas de sustentação de

uma certa forma cultural e social e, por consequência, de vida19.

O que ele busca nada mais é que uma ruptura com um mundo disciplinante que tem sua realização na unidade. Na perspectiva animista tudo é forma e força produzindo efeitos que são produção de estados de ver e sentir como efeitos do

mundo vivo. Abre-se um “troço” que não cabe com nada. Promovendo assim uma

espécie de estranhamento com seus hábitos. O corpo nesse sentido é tomado por uma fragilidade, um estado fundamental, pois é um estado convocado a fazer algo. Sustentar o momento de fragilidade onde o mundo provocou algo no meu corpo é buscar dar corpo a esse estado na forma de um gesto, um texto, uma obra. O que

19 Isto muito se aproxima, por exemplo, com

o conceito de animismo de Felix Guatarri para quem: “ De certo modo ocorreu um descentramento da subjetividade. E hoje me parece interessante voltar a uma concepção, eu diria, animista da subjetividade, repensar o Objeto, o Outro como podendo ser

portador de dimensões de subjetividade parcial: se for o caso, através de fenômenos neuróticos, rituais religiosos ou fenômenos estéticos por exemplo. De minha parte, não preconizo um puro e

simples retorno a um irracionalismo. Mas me parece essencial compreender como a subjetividade pode participar de invariantes de escala, ou seja, como ela pode ser ao mesmo tempo singular, singularizada num individuo, num grupo de indivíduos, mas também ser suportada por agenciamentos espaciais, arquitetônicos, plásticos um agenciamento cósmico inteiramente outro. Como a subjetividade se encontra ao mesmo tempo do lado do sujeito e do objeto, portanto. Sempre foi assim. Mas as condições são diferentes em razão do desenvolvimento exponencial das dimensões

tecnocientí cas do ambiente do cosmos. Sou mais inclinado (...) a propor um modelo de inconsciente que seria o de um curandeiro mexicano ou de um bororo, partindo da ideia de que espíritos povoam coisas, paisagens, grupos; de que há todo tipo de devires, de hecceidades que subsistem por toda parte, e, portanto, um tipo de subjetividade objetiva, se assim podemos dizer, que se encontra condensada, estourada, remanejada, no nível dos agenciamentos. O melhor exemplo estaria,

evidentemente, no pensamento arcaico”. (GUATARRI. Caderno de subjetividade, 2011, p. 07). Para Angela Melitopoulos e Maurizio Lazzzarato, ele opera um descentramento da subjetividade separando-a não apenas do sujeito, da pessoa, como também do humano. Segundo os autores “...

Seu problema é sair das oposições sujeito/objeto e natureza/cultura, que tomam o homem como a medida e o centro do Cosmos. Nessas oposições, a subjetividade e a cultura constituem a diferença especifica do homem não só em relação aos animais, plantas, rochas, mas também diante das máquinas e técnicas. As sociedades capitalistas produzem tanto uma hipervalorização do sujeito quanto uma homogeneização e um empobrecimento da subjetividade e de seus componentes (fragmentados em faculdades modulares como a Razão, o Entendimento, a Vontade, a Afetividade,

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move o gesto é o agenciamento com esse mundo. Portanto, não é um ato transcendental em relação ao mundo, uma recusa, como se existisse um ideal que desconheceríamos e que alcançaríamos, mas uma espécie de descolonização do pensamento, do corpo, uma abertura para afetos que possibilita novas percepções. E que tenha um efeito real de deslocamento da cartografia vigente.

Para isto o teatro deveria romper com a noção de bom comportamento e invadir os corpos e mentes do publico por meio da atmosfera atemorizante gestada durante aquele tempo-espaço de comunhão entre todos ali presente. O teatro como ato perigoso confrontaria o publico consigo próprio explicitando a impotência para possuir a própria vida. Por meio do teatro então o homem faria emanar formas intensivas até então adormecidas ou simplesmente docializadas no processo de

constituição de uma cultura (Ocidental)20 que privilegia a contemplação e que pensa

em sistemas, em formas, em signos, em representações.

Atingir diretamente o organismo para reconstruir o corpo. O projeto de Artaud, na verdade, era um projeto de base ontológico. O teatro e seu duplo e principalmente seus escritos dos últimos anos frisam incansavelmente essa

exigência de um corpo novo: “Não aceito o fato de não ter feito um corpo por mim mesmo”. Mudar o corpo, mudar o mundo, uma coisa não se faz sem a outra: “ Não

sou dos que acreditam que a civilização deva mudar para que o teatro mude: e acredito que o teatro, utilizado no seu sentindo superior e o mais difícil possível, tem

força sobre o aspecto e sobre a formação das coisas”.(ARTAUD apud VIRMAUX,

2009, p.16). Era o sonho de uma subversão radical, da qual o teatro seria o agente e o princípio.

Defendia, portanto, um teatro como um ente onde o Ser pudesse se revelar, um teatro capaz de propiciar o desvelamento, exercendo ao mesmo tempo um papel terapêutico e de recriação. Terapêutico pela crueldade, a cura pela destruição. Na

20 Quilici no seu livro sobre Artaud, já mencionado aqui, retoma esse trecho de Felix Guatarri e Suely

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recriação, o homem deveria submeter-se a uma transformação, a uma mudança do corpo para mudar o mundo, mas não do corpo físico, e sim de uma operação ontológica, a questão do Ser.

Não Obstante, Artaud sabia o quanto a vida era enraizada por uma linguagem e o quanto este lugar era marcado por uma opressão impossibilitando o sujeito experimentar aquilo que para ele era essencial, o pensamento ilimitado. Pois ao fazer, o homem faria ver e sentir um duplo dele mesmo, isto é, aquele que é inato a ele e que decorre da sua vida na relação com história e com o meio social a qual pertence e aquele que vai sendo deixado na virtualidade por conta de não reconhecer e, portanto, relacionar com os valores que sustentam e fomenta esse modo de vida.

O pensamento nessa perspectiva é cruel. É, porque ao conseguir pensar o homem seria invadido, penetrado, transformado num processo estranho, indeterminável que o faria romper com toda espessura de sua vitalidade, com o emaranhado de sua memória, de suas sensações, tudo que é gravado no corpo. Artaud sofria duas vezes, por um lado sofria por não conseguir pensar além do que a linguagem o permitia pensar e por outro por conta do pensamento escapar por todos os lados fruto do eletrochoque investido sobre ele. Referindo-se ao

pensamento, Artaud nos diz: “Pensar... é sentir sempre seu pensamento igual a seu pensamento... Mas meu pensamento para mim, ao mesmo tempo em que ele peca

por fraqueza, peca também por quantidade. Eu penso sempre numa taxa inferior”.

(ARTAUD apud FELÍCIO, 1996, p. 03)21.

Para o filosofo japonês Uno (2012):

Pensar é cruel, mas não poder pensar também é cruel e, finalmente, pensar, para Artaud, consiste em nunca conseguir pensar, na medida em que um pensamento nunca faz o espírito funcionar com algumas regras conhecidas, mas reencontra a cada vez materiais e corpos desconhecidos”. (2012, p. 35).22

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Em todos os escritos de Artaud aparece, quase como uma obsessão, a busca por reencontrar-se consigo próprio, que não é aquele que queriam que fosse. Daí ele poder dizer:

[...] Não sou Antonin Artaud, não nasci em Marselha em 4 de setembro de 1896, não nasci jamais, o corpo de Antonin Artaud vivo é somente uma captura de mim, mas essa caricatura feita quando eu não estava ali foi feita com uma coisa essencial que me pertence e é preciso retomá-la recuperando o curso do tempo”. (ARTAUD apud MERIDIEU, 2011, p. 35).

Tudo gira em torno do espírito que virá, do corpo, do devir. E é função da arte possibilitar este por vir. O teatro é o lugar privilegiado para isto já que ele seria para Artaud o espaço aonde viria à tona por meio de uma encenação ritualística, mágica o que há de mais obscuro, enfurnado, irrevelado. Pois, a encenação tornaria

possível a criação de certa emoção psicológica em que as “ molas mais secretas do

coração serão postas a nu”.

O teatro e seus duplos, não seria nada mais, nesse sentido, que o constante confronto consigo próprio, ou melhor, com aquilo que segmentarizou como sendo o EU, com o outro que não é o mesmo que ele, com o fora que o constitui, com aquilo que o impede de ser ele próprio. A finalidade dele era atingir a VIDA em seu estado bruto, isto é, num estado anterior aquilo que constitui o homem como homem.

A Vida e a obra de Artaud é uma busca constante para arruinar as segmentarizações, balizas pelos quais o corpo, a vida, passam, ou seja, é uma

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1.3O teatro e a peste

A arte para Artaud, como ele a experimentava e vivenciava, não podia carregar em seu estatuto a designação de uma ação pacificadora. Ela devia ser tudo, menos um instrumento representativo-pacificador. O ato teatral se realizava ao subtrair a barreira entre o palco e público. Com o encontro entre essas duas dimensões algo de perigoso passava entre elas promovendo assim certa inquietação na plateia. Um estado de expansão de si. Pois, segundo Arantes, ao estar “[...]

Estatelado ridicularizado na boca de cena, aquele corpo é o signo vivo do mal recusado. E um signo que, interrompendo o teatro, põe algo em movimento,

expande-se, desdobra-se na afirmação de si mesmo”. (ARANTES, 1988, p. 14).

Daí o teatro ser como a peste para Artaud. Pois ambos parecem manifestar sua presença nos lugares, afetar todos os lugares do corpo, todas as localizações do

espaço físico, em que, segundo Artaud, “a vontade humana, a consciência e o

pensamento estão prestes e em vias de se manifestar”. Nesses termos o teatro

como a peste dilaceraria não às ilusões da consciência que atribui um falso sentido à vida, mas a própria consciência e todos os sentidos, o corpo individual e o corpo coletivo.

Não obstante, Artaud (2007) tenta deixar claro nos seus escritos que assim como o pestífero que morre sem destruição da matéria, o ator como o espectador

penetrado e transtornado também por seus sentimentos promove uma “destruição”

não da matéria, mas da forma. “Pois a lógica anatômica do homem moderno é de não ter jamais podido viver, nem pensar viver, a não ser como possuído”23. (2007, p. 121). Existe nisso uma espécie de liquidação de certa forma dura que impede a expansão ou a presença de um estado outro, de uma força extrema.

Se o teatro é como a peste, para Artaud (2006):

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