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LITERATURA E POLÍTICA: A ESCRITA JORNALÍSTICA DE GEORGE ORWELL

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Academic year: 2020

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Nº 3, volume 11, artigo nº 8, Julho/Setembro 2016 D.O.I: http://dx.doi.org/10.6020/1679-9844/v11n3a8

ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 142 de 200

LITERATURA E POLÍTICA: A ESCRITA JORNALÍSTICA DE GEORGE

ORWELL

LITERATURE AND POLITICS: GEORGE ORWELL’S JOURNALISTIC

WRITING

Antonio Calors Silva Ribeiro1

1Pós-Doutorando em Letras (UFT/PPGL/CAPES)

antoniocarlosrib@gmail.com

Por um ano ou mais, o governo espanhol esteve efetivamente sob controle russo, em grande medida por ser a Rússia o único país que correu para ajudar... a verdadeira história da guerra espanhola deveria ser sempre lembrada como uma prova concreta da insensatez e da perversidade das políticas de poder

George Orwell (ORWELL:41) Resumo: A literatura de George Orwell é fundamentalmente uma leitura jornalística da política, feita de forma engajada, consciente dos seus limites - explorados ao extremo – calcada na vida fartamente experimentada, com faro para a humanidade negada, olhos abertos para a realidade e humor como recurso para abalar impérios. Sua narrativa tem uma intriga mediadora, que elabora o histórico nos eventos, de forma sensata e com caráter unificador. Palavras-chave: George Orwell – jornalismo – literatura – crítica – decência

Abstract: The George Orwell’s literature is fundamentally an engaged journalistic reading of politcs, aware of its limits - exploited to the extreme - grounded in widely experienced life, with nose for the denied humanity, open eyes to reality and humor as feature to shake empires. His narrative has a mediating intrigue, working out in the historical events, sensibly and unifying character.

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 143 de 200 Introdução

A escrita jornalística é aliada fidedigna do faro e do olhar do repórter. Estes são treinados, desenvolvidos e elaborados para a percepção do humano em meio às diversas situações que se coloquem à sua frente. A relação de confiança do público se sustenta pela narrativa que reconfigura o texto jornalístico para a instância destinatária, possibilitando o agenciamento dos fatos e a configuração do mundo, e que elabora o detalhamento de situações que integram o enredo no texto literário.

A análise da narrativa do presente em Orwell implica no papel do discurso de articular a temporalidade ao tornar presente o que se passou, pela memória, presentificar o porvir na atualidade, por meio da antecipação. (RICOEUR: 27) Entre a rememoração e a antecipação é que a narrativa do presente se articula na sua interface jornalismo-literatura.

Além do senso do ‘nariz apurado’ e do ‘olhar atento’ do repórter no relato do fato, sua intermediação de cada fato num contexto plural, seguida da descrição da sucessão de eventos, e elaborada de forma sensata e comprovada na unificação de conclusões que a transformam numa narrativa.

Orwell elabora de tal forma a tessitura dessa intriga mediadora, que consegue estabelecer a mediação entre os acontecimentos e a narrativa histórica. Segundo Ricoeur (1994:103), desse fato vem sua criatividade na construção do texto, sua capacidade de extrair a configuração do conjunto de fatos e construir uma narrativa confiável. Seja no texto jornalístico (fato), seja no literário (ficção).

O segundo momento é quando a narrativa se integra de forma coerente, inclusive com o cuidado de estar aberta para assimilar diversos tipos de incidentes – dos lamentáveis, dos assustadores e até do reconhecimento do que era negado – que acabam sendo um elemento integrador, capaz de tornar a narrativa inteligível e fazê-la mediadora entre os acontecimentos e a história contada. É quando a negação insistente dos envolvidos acaba por confirmar a narrativa.

A terceira indicação da qualidade da intriga narrativa são os caracteres temporais, necessários ao processo dinâmico de constituição da narrativa.

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 144 de 200 (RICOEUR: 104) Nesse caso, as dimensões temporais, a cronológica – que se refere à perspectiva episódica, segundo a qual a história é constituída de acontecimentos – e a não-cronológica – que tem a capacidade de configuração ao transformar os acontecimentos em história. O tempo semiotizado é resultado desse processo que põe em relação os incidentes da história e, a partir da diversidade de ocorrências, está habilitado para retirar a unidade de uma totalidade temporal. Esta passa “a ser o tempo da narrativa, ou o tempo narrado, com elemento unificador do plano narrativo, ou tempo semiotizado”. (DALMONTE: 2010)

O olhar orwelliano – palavra usada para a percepção apurada e crítica de qualquer prática social autoritária ou totalitária (McCRUM: 13) – é, possivelmente a mais genuinamente representativa e capaz de dar densidade textual ao drama humano que ele absorve. Capta sem pressa os gestos, os sons, os efeitos, o impacto na realidade humana. É um olhar que paga um alto custo para ser mantido. Exige anos para ser elaborado, burilado, aperfeiçoado. Consegue a destreza de não piscar, quase sucumbindo ao golpe na vítima, mesmo sendo “considerado demasiado calunioso para imprimir neste país até 1968”. (CRICK: 722)

O repórter desenvolveu a coragem de manter seus olhos bem abertos – não para exibir coragem – mas para ver com exatidão, fixar a memória dos fatos e construir o relato a ser publicado. Porque o público demanda a força do fato! Isso é o que deduzimos do ensaio de Susan Sontag sobre fotografia, que ela descreve como o ato desesperado para impedir a morte do momento. (SONTAG: 112)

Se, para o teólogo e filósofo alemão Paul Tillich, ser é uma atitude só possível aos seres humanos quando em comunhão com The Ground of Being (o fundamento do ser), que lhe exige a Courage of be (coragem de ser) (TILLICH: 96), no caso dos repórteres, se expressa como a coragem de ver. Com Orwell descobrimos que defrontar-se visualmente com as mais impactantes mazelas humanas não é fácil e nem suave. Supõe a disposição de olhar, movido pela obrigação de descrever. Porque naquele momento eles serão os olhos de todos que ali não estiveram mas que lerão o seu texto. E em nome da informação destes, ele precisa ver para narrar.

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 145 de 200 como pode ser para as demais pessoas. Ele se incumbe do dever de informar, lembra dos olhos dos que só saberão do ocorrido pelo seu texto. É uma oportunidade e uma tarefa a que não pode faltar, mesmo em tempos em que a consciência do dever (δέον "dever, obrigação" + λόγος "ciência") não se impõe, mas o profissional sabe que o fato demanda uma notitia, com todos os impactos que ela tem para as demandas da sociedade.

A novidade está na gênese da narrativa jornalística, tendo-se em vista o apelo que o ‘novo’ tem para operacionalizar mecanismos por meio dos quais possa irromper o desconhecido na ordem do dia. Afirmar a novidade como termo fundamental no jornalismo significa dizer que a notícia surge historicamente para dar conta da tarefa de prover a sociedade com um relato padronizado sobre novas ações, situações, debates e opiniões, entre outros, que tenham relevância para uma coletividade. (FRANCISCATO: 147)

Lembra o repórter brasileiro Joel Silveira, dos Diários Associados, que aos 26 anos, foi escalado para cobrir a atuação das tropas do General Mascarenhas de Morais na Itália, no lugar de Carlos Lacerda, ouvindo do editor Assis Chateaubriand: ‘Não me morra! Repórter não é para morrer, mas para mandar notícias!' Eis a razão da densidade do texto jornalístico: a verdade do relato é o fato!

1. Uma vida a serviço da escrita e da linguagem

Eric Arthur Blair nasceu numa família de nobres, com um avô que foi clérigo anglicano, indo junto com sua mãe em 1904 para Henley on Thames, tendo sido criado por ela e suas irmãs. Só voltando a rever seu pai, Richard Walmesley Blair, numa uma visita em 1912, pelo seu trabalho como funcionário do governo britânico no Serviço Civil Indiano.

Sua família queria que ele recebesse uma boa educação, mas não tinha recursos para as taxas, levando-a a buscar uma bolsa de estudos com o irmão de sua mãe, para que recebesse uma formação na Escola de São Cipriano, em Eastbourne, Sussex, pagando apenas a metade das taxas. (TAYLOR: 98) Com o passar do tempo, ele se desenvolveu e se destacou, chegando a escrever poemas que foram publicados no jornal Henley and Souths Oxfordshire Standard e

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 146 de 200 ganhando o Prêmio Harrow de História, com elogio do examinador externo, e bolsas de estudo para o Wellington College e o Eton College, conhecidos internatos ingleses.

Blair se tornou ‘Bolsista do Rei’ no Eton College, onde esteve de 1917 a 1921, tendo como tutor A. S. F. Gow, do Trinity College em Cambridge, que o ajudou em outros momentos de sua carreira. Foi aluno de Aldous Huxley, durante o tempo que este foi professor de francês em Eton.

Depois desse período, por causa de uma ideia romântica de Blair sobre o Oriente, foi decidido que ele faria parte da Polícia Imperial Indiana, função para a qual era necessário ser aprovado num exame de admissão. Com o pai já aposentado e vivendo em Southwold, Suffolk, Blair se matriculou no curso e estudou arte e cultura clássicas, inglês e história. Foi aprovado em sétimo lugar no exame.

No mês de outubro do ano seguinte, estava a bordo do navio SS Herefordshire, se dirigindo à Ásia para assumir um posto na Polícia Imperial Indiana na Birmânia. Em Insein, manteve longas conversas com Maria Elisa Langford Era, uma jornalista amiga. (SHELDEN: 34) Em 1926 mudou-se para Moulmein, onde residia sua avó. Contraiu dengue e foi autorizado a voltar para casa, entrando em licença no ano seguinte.

Reavaliou o conjunto de sua vida e decidiu se demitir da Polícia Imperial Indiana e se tornar escritor, segundo ele, renunciou “para escapar não meramente do imperialismo mas de todas as formas da dominação de homem sobre homem". (CRICK: 722) Desse período de sua vida resultou o ensaio A Hanging (1931), as obras Burmese Days (1934) e Shooting an Elephant (1936).

Nesse momento é que uma guinada na vida de Orwell lhe impõe a perspectiva em que a percepção do tempo muda todo o seu horizonte de leitura, resultante da nova construção social que os fatos lhe impõem, dando a capacidade de elaborar nova imagem mental de eventos sucessivos reconhecidos como não simultâneos, como ensinou Norbert Elias.

A percepção de eventos que se produzem 'sucedendo-se no tempo' pressupõe, com efeito, existirem no mundo seres que sejam

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 147 de 200 capazes, como os homens de identificar em sua memória acontecimentos passados, e de construir mentalmente uma imagem que os associe a outros acontecimentos mais recentes, ou que estejam em curso. Em outras palavras, a percepção do tempo exige centros de perspectiva - os seres humanos - capazes de elaborar uma imagem mental em que eventos sucessivos, A, B e C, estejam presentes em conjunto, embora sejam claramente reconhecidos como não simultâneos. (ELIAS: 33)

Após retornar à Inglaterra, viveu na casa da família em Southwold, retomou amizades e reencontrou colegas ex-alunos do Eton College. Visitou Gow, seu antigo tutor, na Universidade de Cambridge, com a finalidade de se tornar escritor, decidindo se mudar para Londres. Na capital do Império, fez caminhadas nas favelas. Na primeira viagem esteve na Limehouse Causeway, passando a noite num alojamento popular, vindo depois a viver como nativo em seu próprio país, nas condições de vida das pessoas que viviam naqueles bairros.

Mudou-se para Paris na primavera de 1928, cidade que tinha um baixo custo de vida à época, sendo atrativa para os que pretendiam as artes, inclusive como escritor. Residiu na Rue du Pot de Fer, sendo ajudado por sua tia. Foi bem sucedido como jornalista, publicando artigos no Monde, na G. K.’s Weekly e Le Progress Civique. Sua produção literária foi publicada em The Spike, seu primeiro ensaio publicado, e em seu livro Down and Out in Paris and London, de 1933.

Desenvolveu uma doença grave e teve seu dinheiro roubado na casa de hospedagem, passando a viver de trabalhos domésticos e como lavador de pratos num hotel de luxo, “em uma série de empregos mal pagos em um estado de ‘pobreza bastante grave’”. (CRICK: 722) Sem perder o faro, o olhar arguto e a capacidade de registro. Depois desses fatos, ele se juntou ao Partido Operário de Unificação Marxista, de tendência trotskista e foi lutar na Guerra Civil Espanhola, quando foi ferido no pescoço, tendo a bala danificado suas cordas vocais.

Em sua segunda “novela, A Clergyman’s Daughter (1935), ele descreve as aventuras de Dorothy, que através da perda de memória escapa a vagabundos e catadores”. (CRICK: 722) Em Keep the Aspidistra Flying (1936), que Orwell “escreveu, enquanto trabalhava em uma livraria Hampstead, narra as aspirações literárias, humilhações financeiras e espingardas do casamento de Gordon

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 148 de 200 Comstock, o assistente do livreiro”.

Numa jornada ao norte em 1936, “produziu seu vívido e apaixonado documentário do desemprego e vida proletária em The Road to Wigan Pier" (1937, publicado pela Left Book Club). (CRICK: 722) Já tinha começado a se destacar ao publicar resenhas, obras de ficção, artigos jornalísticos, crítica literária e poesia, até que participa como combatente voluntário do lado republicano na Guerra Civil Espanhola, da qual surgiu Homage to Catalonia.

2. Entre o factual e o ficcional - a paixão pela escrita

A escrita quando colocada a serviço da narrativa implica sempre no recurso à memória. Do autor e dos seus leitores. Para tanto entra em cena a capacidade imitativa, que não implica no ato da imitação em si mesmo, mas recortar elementos da realidade e usá-los para a composição da história a ser contada. Nessa perspectiva, a narrativa se constitui num ato da imitação da realidade.

Para entender a atitude humana de narrar é preciso voltar a Aristóteles para chegar à essência da veia narrativa nas diversas expressões artísticas, mas considerando especificamente a poesia. O filósofo explica que "o imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador e, por imitação, apreende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado". (ARISTÓTELES: 106-107)

A construção do conhecimento no campo da arte se inicia com a imitação, já que ela implica da leitura atenciosa da realidade, a reelaboração dos diversos elementos constitutivos e a produção de um novo discurso, que reinventa o enredo, agrega novos elementos, altera as circunstâncias do ambiente narrativo e cria nova história, com nova intriga narrativa, geradora de novas possibilidades no enriquecimento do relato sensato a ser contado.

Para tanto a escrita e a linguagem colaboram, tornando-se instrumentos valiosos nas mãos do autor, sem as quais a capacidade discursiva embalada pela elaboração de saberes, imagens e conexão de ideias aparecem na construção da

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 149 de 200 intriga narrativa e sua expressão no texto. A língua é o elemento pelo qual o narrador relata, se posiciona em relação ao fato e apresenta o novo relato. O resultado é o fato narrado, construído a partir do que foi reportado a partir do real, pela capacidade narrativa e apropriado a partir da qualidade de imitação.

O conjunto da obra de Orwell ganha consistência no estágio a partir do qual sofreu a mobilidade do texto factual para o ficcional, voltando sempre ao factual, e assim o autorizando como um escritor político, um socialista democrático que evitou rótulos partidários, odiou o totalitarismo e que viria a se tornar cada vez mais desiludido com os métodos do comunismo; sua planície, o louco estilo coloquial foi altamente eficaz como panfletário e jornalista quando “ele foi editor literário do

Tribune, 1943 a 1945, e contribuiu regularmente para este e outros jornais”. (CRICK:

722)

Esse conjunto de elementos o fizeram bastante consciente das injustiças sociais, da rejeição ao totalitarismo, com uma inteligência perspicaz e bem humorada e desenvolvendo certa paixão pela clareza da escrita, sempre com muita intensidade. Esse foi, possivelmente, um momento de articular a temporalidade pela memória, tornando presente o ocorrido e presentificando o porvir na atualidade, por meio da antecipação. Rememoração e antecipação se articulam na interface jornalismo-literatura. Sua coleção de ensaios incluem Inside the Whale (1940) e Critical Essays (1946).

Mas seus escritos mais populares foram indubitavelmente suas sátiras políticas Animal Farm e Nineteen Eight-Four, que o eternizaram na literatura após as muitas notícias e artigos, (CRICK: 722) e em que demonstra uma consciência anarquista, socialista não-autoritária e autônoma, transferindo essas texturas sócio-político- econômicas para a literatura. Essas duas publicações são representativas da obra de Orwell, porque têm relatos baseados no contexto plural, numa leitura intermediada dos fatos, encadeando a sucessão de eventos e apresentando-os numa perspectiva sensata, com unificação de conclusões que a transformam numa narrativa.

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 150 de 200 ele, após conhecer e desenvolver uma bem elaborada crítica ao modelo imperial britânico, denuncia e satiriza agora a União Soviética e o modelo comunista. A obra traz uma história de corrupção e traição, na qual Orwell recorre às imagens dos animais para descrever as fraquezas humanas, ajudando a demolição do paraíso comunista da Rússia de Stálin.

Trata-se da revolta de animais contra humanos liderada pelos porcos Bola de Neve e Napoleão, que levam os demais a tentar criar uma sociedade utópica. Mas Napoleão se sente seduzido pelo poder, afasta Bola de Neve e cria uma ditadura tão corrupta como a sociedade dos humanos, que quiseram subverter.

Os sete mandamentos dos animais ajudam a entender a configuração política do controle estabelecido sobre a cidadania, estabelecendo uma leitura estética do corpo, da indumentária do poder, da prática do comportamento e da medida da igualdade, sendo:

1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo

2. Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo 3. Nenhum animal usará roupas

4. Nenhum animal dormirá em cama 5. Nenhum animal beberá álcool

6. Nenhum animal matará outro animal 7. Todos os animais são iguais.

Após a vitória dos revoltosos, o poder é surrupiado pelo porco Napoleão, que toma a tutela de um casal de dobermanns, mais tarde transformados em sua guarda pessoal. À medida em que o porco vai controlando o conjunto da situação, manipula a verdade a seu favor, se livra dos próprios aliados, torna-se um ditador personalista. Neste momento sua estética sofre uma mudança, passando a vestir casaca, fumar charuto, andar sobre as patas traseiras e perder o rabicó.

Os porcos passam a viver na casa do proprietário e logo modificam os mandamentos, colocados na porta do celeiro:

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 151 de 200 Nenhum animal beberá álcool em excesso;

Nenhum animal matará outro animal sem motivo;

Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais que os outros.

Começa a decadência com o banimento do hino da revolução, o porco Napoleão é declarado líder por unanimidade, as condições de trabalho se degradam, os animais recebem ataque humano – e isso os faz duvidar se na época em que estavam submissos ao humanos era mesmo pior – mas se lembravam da liberdade proclamada, dos discursos suínos, do porco Napoleão celebrando a produtividade da Fazenda dos Animais e dos outros animais trabalhando arduamente em troca de pouca ração. Um arremedo da sociedade humana.

A frase das ovelhas é ligeiramente alterada: “quatro pernas bom, duas pernas melhor”, porque agora os porcos andavam sobre as duas patas traseiras. No final, os animais, ao olhar para dentro de casa, já não conseguem distinguir os porcos dos homens. Orwell faz uma sátira fina e cáustica à política stalinista, que ele entendia ter traído os princípios da revolução russa de 1917.

3. A narrativa como instrumento contra os poderosos

Para entender a narrativa de autores que obtêm alto padrão de qualidade ao utilizarem o relato factual e o ficcional é preciso compreender o movimento pelo qual fazem a transposição de um estilo ao outro. A distinção entre o estilo factual e o ficcional está na interpenetração do fato e da história a ser contada, com o autor conseguindo explorar ao máximo a contribuição específica de cada um. Assim, é possível acercar-se dos detalhes, do registro do tempo no fato, dos resultados dramáticos do acontecimento do mesmo modo como se narra o figurino da época, o requinte da linguagem - dos vocábulos e verbos às expressões regionais, do pano de fundo político e das paixões humanas, como atesta um conhecido repórter, com passagem nos grandes jornais e assessoria de um político, do tempo do sindicato até a presidência da República:

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 152 de 200 Não basta, porém, saber – ou pensar que sabe – escrever. Ser repórter é bem mais do que simplesmente cultivar belas-letras, se o profissional entender que sua tarefa não se limita a produzir notícias segundo alguma fórmula ‘científica’, mas é a arte de informar para transformar. (KOTSCHO: 8)

Narrar um fato ou uma ficção exige um pouco mais do que o texto decorado ou a história conhecida. É preciso oratória – como ensinada pelos clássicos, e por isso ainda obrigatória nos cursos de direito – um nível de exposição que informe, esclareça e exprima o que há a ser dito, e paixão – que Aristóteles afirmou ser a maior expressão da verdade – porque toca os corações.

Assim, os grandes jornalistas mesclaram o factual e as conclusões ficcionais, com estilo memorável, se destacaram. De Pero Vaz de Caminha a Paulo Moreira Leite, na realidade política brasileira, da Colônia à República. É com eles que aprendemos o que o retórico

Agostinho de Hipona já tinha descoberto na passagem do 3º para o 4º séculos: Não é possível falar de três tempos, isoladamente:

Agora está claro e evidente para mim que o futuro e o passado não existem, e que não é exato falar de três tempos - passado, presente e futuro. Seria talvez mais justo dizer que os tempos são três, isto é, o presente dos fatos passados, o presente dos fatos presentes, o presente dos fatos futuros. (AGOSTINHO: 344)

Ao entender essa situação, compreendemos como a tessitura da intriga da obra de Orwell é efetivamente mediadora. Ele consegue estabelecer relação entre os acontecimentos fortemente difundidos pelos jornais da época e a narrativa histórica da Rússia, transformada em União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Ele elabora um texto de grande criatividade, extrai a configuração metafórica do conjunto de fatos e apresenta uma narrativa confiável. A obra foi um sucesso na literatura, no teatro e no cinema, tirando o foco do conflito ideológico contra o Império Britânico.

Dois anos após a publicação desta obra, Orwell publica o ensaio ‘Why I write’ (Porque eu escrevo), em que avalia sua obra, “reconhecendo a influência decisiva

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 153 de 200 do impulso histórico e do propósito político na sua produção literária”. (MARTINS: 51) Numa “era definitivamente política, encontrou na fábula um subgênero literário ideal para discutir temas polêmicos e incômodos como a injustiça, a desigualdade social e a perseguição política numa época de francos constrangimentos ideológicos”, (MARTINS: 52) a partir da qual se descobre o papel do autor em regimes autoritários.

O escritor deve lutar contra as manipulações das máquinas de propaganda dos regimes de força, assumindo um papel relevante na história, a fim de evitar as mitificações, distorções e silêncios da historiografia que ocorrem consoante as necessidades das classes dirigentes nas ditaduras. (MARTINS: 53)

A outra obra a eternizá-lo é Nineteen Eighty-Four (1949), que é prototípica para a descrição das revoluções sendo instrumentalizadas por ditadores – em detrimento de todos os demais, da vigilância dos corpos, da anulação da identidade individual, do controle da alimentação, da corrupção da linguagem através da manipulação ideológica, da falsificação e da perda de identidade histórica pelo controle estatal e dos meios de comunicação de massa.

O roteiro se baseia num partido único que se apodera das mentes, as controla e as entrega impotentes a um Estado onipotente. (HUXLEY: 2) Há uma guerra permanente entre as superpotências que mantém viva a psicose do terror, que consome inteiramente os produtos da máquina, sem elevar o padrão de vida, gerando uma queda na lição de vida para as massas humanas, que devem permanecer pobres e ignorantes, para serem sempre dominadas. Umberto Eco é taxativo ao afirmar que três quartos da obra 1984 não é distopia, mas História. Alguns conceitos aderiram ao vocabulário cotidiano como novilíngua, duplipensar e Grande Irmão.

As imagens do filme, de meados dos anos 80, parecem quase descritivas do clima da guerra fria, com a angústia da formação de blocos políticos, dentro da qual a revolução russa se degenera como uma tirania.

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 154 de 200 da ideologia dominante, da adulteração da história e do uso de estratégias alienadoras e opressoras para a manutenção do poder trazem de volta os grandes pesadelos. A recepção acadêmica de Orwell que atingiu um ponto de cristalização precisamente na época da Guerra Fria, foi permeável às tendências políticas dominantes (em particular nos Estados Unidos) e constitui ainda o principal meio de propagação da imagem predominantemente conservadora. (SAMPAIO: 61)

A narrativa dá o segundo passo quando se integra de forma coerente, se mantém aberta a diversos tipos de incidentes, da ameaça a indivíduos ou ao conjunto da população até a refutação por parte dos que perdem – dos lamentáveis, dos assustadores e até do reconhecimento a disputa pela narrativa – significando que diante dos olhos do grande público há fundamento no discurso e verdade na denúncia, que a compreensão do público mostra que ela foi entendida e, ainda melhor, que se tornou protótipo de mediação entre os acontecimentos e a história. Quando chega a este estágio, até a negação dos atores sociais envolvidos, acabam confirmando a narrativa.

A crítica tem sido unânime em considerar Animal Farm e Nineteen Eighty--Four os expoentes máximos da obra de Orwell. Na primeira, a versão fabulada da Revolução Russa e, na segunda, a história do sofrimento atroz de Winston Smith, sob o braço de ferro do Big Brother. (SAMPAIO: 62) Os dois universos se tocam na denúncia do controle da vida humana pelos superpoderes. E “a grande questão que

Animal Farm coloca é, sem dúvida, ‘por que é que a revolução falhou?’”. (SAMPAIO:

65) Essa sensibilidade o fez assegurar o segundo lugar entre "Os 50 maiores escritores britânicos desde 1945” (Times: 5 Jan 2008).

A qualidade da intriga narrativa orwelliana aparece nos caracteres temporais, necessários à efetivação da constituição da narrativa. A grande conquista da leitura e narrativa do jornalista e autor britânico é que tempo acabou por consolidar sua perspectiva para seu povo. As dimensões cronológica, que se refere à perspectiva episódica, registrando a história pelos acontecimentos; e a não-cronológica, que configura ao transformar os acontecimentos em história, mostram também sua força. Após as disputas pela narrativa, os grandes atores sociais avaliam conquistas

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 155 de 200 e perdas. O que resulta desse processo é o tempo semiotizado – analisado a partir dos símbolos deixados pelos fenômenos culturais que o precederam e os sistemas sígnicos que deixaram – a partir do qual os pesquisadores buscarão retirar a unidade de uma totalidade temporal e seu elemento unificador do plano narrativo. (DALMONTE: 2010)

Orwell morreu em Londres vítima de tuberculose, aos 46 anos de idade (New York Times: 22 jan 1950), sendo enterrado na All Saints' Churchyard, Sutton Courtenay, Oxfordshire, no dia 21 de janeiro de 1950.

Conclusão

A grande contribuição da escrita e da linguagem de George Orwell se fixam nos impactos que provocaram por sua opção política sempre assumida como escritor. Ele se recusou a colocar sua capacidade de comunicação jornalística e literária a serviço dos nobres e sua intervenção na cultura. E renunciou ao posto na Polícia Imperial para afastar-se do majestático, com seu desejo e disposição públicos de dominação dos seres humanos. Ao agir assim como jornalista e intelectual, fez a mesma opção por jornalismo de qualidade dos leitores do seu tempo.

A opção por dirigir-se a homens e mulheres, sequiosos por informações claras num país regido pelas liturgias do Reinado, descobriu o humano como centro da perspectiva, tomado como medida para as demais sequências de imagens mentais, permitindo segui-las distinguindo a simultaneidade nas sequências.

Escolheu uma caminhada simples, entre as pessoas comuns, para aperfeiçoar a linguagem direta e clara, com o risco de perda de vantagens em troca da denúncia das falhas do sistema, que grande parte dos ingleses de seu tempo admitiam, a partir da grande ingenuidade. Esteve submetido às vicissitudes da vida, passou graves dificuldades financeiras e não se recusou às tarefas comuns. Sem perder o faro apurado e o olhar agudo.

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 156 de 200 Sua narrativa se constitui da capacidade de ler a realidade de seu tempo e devolvê-la em forma de escrita e linguagem a seus contemporâneos. Aprendeu da capacidade humana de imitar a realidade, até mesmo quando a deslocava de seu centro para o centro da cena, onde se tornava visível a todos.

Por esta mesma razão, escrita e a linguagem se transformaram em instrumentos de transformação da realidade – agora não mais vistas como as geradas pela simples presença de membros da família real – mas pelos membros das diversas famílias, incluídas as inglesas, também elas destinadas aos saberes elaborados dos intelectuais, atores e participantes com saberes, imagens e conexão de ideias, integradas à narrativa e sua expressão textual.

Os estilos factual e ficcional se integram no processo interpretativo do fato e da história, especialmente guiados por quem sabe explorar ao máximo suas contribuições específicas. Sua preocupação com as pessoas comuns o levou a ver na fábula um gênero literário para debater temas polêmicos e incômodos, mostrando a injustiça, a desigualdade social e a perseguição política do seu tempo.

Referências

AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulus, 2006. ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Imprensa Nacional, 2000.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Saraiva,2001.

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DALMONTE, Edson Fernando. Presente: o tempo do jornalismo e seus desdobramentos.História, v. 29, nº 1, 2010. Disponível em

http://dx.doi.org/10.1590/S0101-90742010000100019. Acesso: 23.04.2015. ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

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ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 157 de 200 FRANCISCATO, Carlos Eduardo. A fabricação do presente: como o jornalismo

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Referências

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