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Entre a estudante e a operária: dinâmicas capitalistas numa cidade do interior do Ceará / Between student and workman: capitalist dynamics in a city inside Ceará

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Academic year: 2020

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Entre a estudante e a operária: dinâmicas capitalistas numa cidade do interior

do Ceará

Between student and workman: capitalist dynamics in a city inside Ceará

DOI:10.34117/bjdv5n10-194

Recebimento dos originais: 20/09/2019 Aceitação para publicação: 15/10/2019

Marcos Andrade Alves dos Santos

Mestrando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará – PPGS/UECE.

Especialista em Gênero e Diversidade na Escola pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Licenciando em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual do Ceará, campus da Faculdade de

Educação de Itapipoca – FACEDI/UECE. Instituição: Universidade Estadual do Ceará/UECE.

Endereço: Programa de Pós-Graduação em Sociologia - Av. Dr. Silas Munguba, 1700, Campus do Itapery, Fortaleza-CE, Brasil.

E-mail: marcos.andrade@aluno.uece.br

Antônio Jefferson Teixeira Sousa

Licenciando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará, campus da Faculdade de Educação de Itapipoca – FACEDI/UECE.

Graduando em Análise e Desenvolvimento de Sistemas pela Universidade Cenecista de Osório – UNICNEC.

Técnico em Redes de Computadores pela EEEP Rita Aguiar Barbosa. Instituição: Universidade Estadual do Ceará/UECE.

Endereço: Faculdade de Educação de Itapipoca – AV. Monsenhor Tabosa, s/n° - Coqueiros, Itapipoca – CE, Brasil.

E-mail: sousa.jefferson@aluno.uece.br

Daniele Gruska Benevides Prata

Doutoranda em Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará. Mestra em Administração pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR.

Especialista em Terapias Tradicionais Chinesas pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Licenciada e Bacharel em Psicologia pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR.

Graduação em Enfermagem Universidade de Fortaleza – UNIFOR.

Enfermeira Concursada da Clínica Cirúrgica do Complexo Hospitalar da Universidade Federal do Ceará / UFC – Hospital Universitário Walter Cantídeo.

Instituição: Universidade Estadual do Ceará/UECE.

Endereço: Campus do Itapery - Bloco de Estudos Sociais Aplicados - CESA / Av. Silas Munguba, 1.700 - 60.714-903 - Fortaleza - CE - Brasil

E-mail: daniele.gruska@uece.br

Juliana Brito Cavalcante Assêncio

Mestra em Saúde Coletiva pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Especialista em Saúde Pública (2012) e Gestão de Urgências e Emergências (2013).

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Professora Substitua na Universidade Estadual do Ceará – UECE. Instituição: Universidade Estadual do Ceará/UECE.

Endereço: Campus do Itapery - Av. Silas Munguba, 1.700 - 60.714-903 - Fortaleza - CE - Brasil E-mail: juliana_brito_psicologia@hotmail.com

Antoniele Silvana de Melo Souza

Mestra em Educação pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Graduada em Pedagogia pela Universidade Regional do Cariri – URCA.

Integrante do Grupo de Pesquisa Práticas Educativas, Memórias e Oralidades (PEMO/UECE). Analista em Gestão Educacional – Pedagoga pela Secretaria Estadual de Educação de Pernambuco.

Instituição: Universidade Federal do Ceará/UFC

Endereço: Av. da Universidade, 2853 – Benfica, Fortaleza – CE, Brasil E-mail: antonielesouza@hotmail.com

Jarles Lopes de Medeiros

Doutorando e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Especialista em Psicopedagogia Institucional e Clínica (FALC).

Graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Licenciado em Língua Portuguesa e suas Literaturas – FGF.

Professor efetivo de Língua Portuguesa na Secretaria de Educação do Ceará – SEDUC. Instituição: Universidade Federal do Ceará/UFC

Endereço: Av. da Universidade, 2853 – Benfica, Fortaleza – CE, Brasil. E-mail: jarlelope@gmail.com

RESUMO

A educação constitui-se num campo de disputas, onde os grupos sociais tentam impor sua hegemonia. Este ensaio pretende tensionar algumas questões relativas ao cotidiano de estudantes universitários da FACEDI e trabalhadoras da DASS Nordeste Calçados em Itapipoca, no interior do Ceará. Partindo da compreensão de que a estudantes universitárias e operárias compartilham certas disposições, tratamos o problema da exploração das operárias e da precariedade da condição dos estudantes universitários. O trabalho de campo revelou que não é incomum que estudantes se vejam obrigadas a desistirem de seus cursos universitários para tornarem-se operárias. Como operárias estão ainda mais expostas à dinâmica capitalista da exploração. Essas realidades de desigualdades são possíveis dentro de um quadro de capitalismo hostil, que aprofunda desigualdades sociais e gera misérias para determinada classe ao tempo em que produz riqueza para outras camadas. Surge, portanto, a necessidade de pensar criticamente acerca do modo como esse capitalismo se desenvolve, estruturando regimes de alienação e expropriação que articula estudantes e operárias num plano social precário.

Palavras-Chave: Estudantes; Operárias; Disposições; Capitalismo; Precariedade.

ABSTRACT

Education is a field of dispute, where social groups try to impose their hegemony. This essay intends to stress some issues related to the daily life of FACEDI university students and DASS Nordeste Calçados workers in Itapipoca, in the interior of Ceará. Starting from the understanding that the university students and workers share certain dispositions, we deal with the problem of the exploitation of the workers and the precariousness of the condition of the university students. Fieldwork has revealed that it is not uncommon for students to be forced to give up their university courses to become workers. As workers they are even more exposed to the capitalist dynamics of

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exploitation. These realities of inequality are possible within a framework of hostile capitalism that deepens social inequalities and generates misery for one class while producing wealth for other layers. Therefore, the need arises to think critically about the way this capitalism develops, structuring regimes of alienation and expropriation that articulates students and workers in a precarious social plan.

Keywords: Students; Workers; Provisions; Capitalism; Precariousness

1. INTRODUÇÃO

Não faz muitos dias que me encontrei com as operárias da DASS Nordeste Calçados SA em Itapipoca, no interior do Ceará, e me impressionei com o que me narraram acerca de suas condições trabalho. A empresa está localizada, curiosamente, em frente à Faculdade de Educação de Itapipoca / FACEDI, campus da Universidade Estadual do Ceará / UECE. Por causa disso, o encontro e possível interação de estudantes universitários com as operárias ocorrem comumente, ainda mais se tivermos um conhecido ou amigo que desistiu da graduação e empregou-se na empresa.

Quando cheguei à FACEDI em 2015 para cursar Ciências Biológicas, me inseri numa numerosa turma. Recordo que no segundo semestre uma amiga muito próxima teve de desistir do curso superior e conseguir um emprego na DASS para contribuir no sustento de sua família. Os estudos universitários teriam que esperar outro momento ou serem esquecidos diante da ameaça de precariedade que marcava sua vida. Naquele momento isso não pareceu algo imediatamente inteligível. No curso de Ciências Biológicas da FACEDI não somos ensinados a estabelecer as devidas relações entre as condições materiais de nossa existência social e os conteúdos da Biologia. Dessa maneira, muitos colegas vão embora da FACEDI para a DASS – da condição de estudantes universitários passam a de operários – sem que nos questionemos quais as reais implicações da pobreza e do capitalismo em nossa Universidade e na vida das pessoas.

Enquanto a DASS, no segmento de calçados, oferece trabalho a uma grande massa de indivíduos em Itapipoca e região – sem atrasar salários, como me disseram as trabalhadoras com as quais conversei – a FACEDI oferece 04 cursos de licenciatura1 divididos entre o período diurno e o noturno. Entretanto, as diferenças sociais expressivas e as políticas púbicas de assistência estudantil na região do Litoral Oeste e Vales do Curu e Aracatiaçu são constitutivas do modo como alguns estudantes conseguem acessar e permanecer na Universidade.

Muitos estudantes, como eu, residem em outro município e necessitam viajar por 1 ou 2 horas até chegar às aulas na FACEDI e, por muitas vezes na semana, passar o dia na Universidade

1 Os cursos de Licenciatura oferecidos na FACEDI correspondem a Pedagogia e Ciências Sociais, no período noturno e

Ciências Biológicas e Química, no período diurno. Tem se constatado a baixa procura pelos cursos oferecidos pela instituição, sobretudo Pedagogia e Química. Notadamente algumas salas de aula se encontram com baixo número de estudantes. Em contrapartida, a DASS recebe muitos dos estudantes que se evadem da FACEDI e por muitos dias na semana é possível formarem filas de jovens na frente da empresa dispostos a entregarem seus currículos.

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comendo pouco ou não se alimentando, sem ter direito a um banho. Outro problema consiste em pagar o transporte para realizar o deslocamento até o campus, quando não existem bolsas de fomento à permanência universitária de estudantes carentes que sejam suficientes à demanda.

A Universidade Pública ainda não garante que todos os estudantes pobres consigam completar seus cursos. As privações que decorrem da pobreza e que impedem que os estudantes se mantenham em cursos nas Universidades Públicas, muitas vezes, destroem sonhos e acabam limitando as chances de proeminentes estudantes universitários pobres (ALVES 2002; ARAUJO 2003).

E o que o Capitalismo tem a ver com isso? Bem, essa pergunta requer certamente uma análise histórica que na perspectiva dialética de Marx (2017) permite enxergar que o desenvolvimento do capital ocorre mediante regimes induzidos de miséria para o trabalhador. O mercado de trabalho está à espera e induz as decisões nos âmbitos social e individual – obviamente que não existe espaço para todos, mas ele não tarda em absorver esses estudantes, lhes remunerando apenas com o suficiente para garantir sua subsistência e a da família e se esforçando para interditar quaisquer possibilidades que ele considere luxuosas para um trabalhador.

As condições políticas do Brasil atual e do desenvolvimento do capitalismo mundial levam a pensar que o trabalhador estudar além do que é requerido para operar tarefas simples caracteriza-se numa futilidade, a qual o capital tenta destruir ao impedir que este estudante da classe trabalhadora tenha acesso a Universidade Pública e Gratuita.

Alguns estudos tratam dos problemas da condição de estudantes pobres em Universidades Públicas no Brasil a fim de construir uma análise perspicaz das razões que colocam estes jovens em condições desfavorecidas em seus cursos universitários (ALVES, 2002; ZAGO, 2006; PORTES 2006; VASCONCELOS, 2011). Neste contexto, é possível perceber que as dificuldades que se impõem aos estudantes pobres em Universidades Públicas, com frequência, os induzem a despedir-se da instituição e submeter-despedir-se a competição hostil do mercado de trabalho, lutando por trabalho ainda que as condições sejam precárias.

Que razões justificam que um estudante da classe trabalhadora abandone um curso de licenciatura na FACEDI e procure emprego na DASS? E quais seriam as condições sociais suficientes para que estudantes pobres do interior sejam bem sucedidos no Ensino Superior numa Universidade Pública? É que, pelo menos a empresa DASS em Itapipoca não atrasa o salário – como me disse uma das trabalhadoras com as quais conversei – e ainda fornece uma cesta básica a seu operário. Enquanto isso, a Universidade com sua estrutura precária têm de formar pessoas em condições de falta de sala de aula e de auxílio permanência insuficientes para todos os estudantes carentes.

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O encontro com aquelas mulheres suadas e famintas me provocou algumas perturbações, sobretudo no sentido de buscar ferramentas teóricas que me permitissem pensar melhor a condição de estudante universitário pobre e, em destaque, a situação de exploração a qual estão expostas aquelas trabalhadoras, algumas das quais possivelmente haviam abandonado a Universidade para sobreviverem como operárias da DASS.

Esse quadro pode tangenciar tensões características da nova fase do desenvolvimento do capitalismo mundial, quando a Universidade Pública é alvo de ataques das elites e implanta-se no cenário brasileiro um conjunto de políticas públicas que inviabilizam a permanência de estudantes pobres na Universidade. O congelamento de investimentos da Educação, o corte de verbas das Universidades Públicas e dos Institutos Federais, o corte de bolsas de fomento à pesquisa, as ameaças de fechamento de Instituições de Ensino Superior Públicas, entre outras ações, são fatores que contribuem para tornar as Universidades ainda mais distantes da classe trabalhadora. Qual a contribuição da sociedade para formar intelectuais na classe trabalhadora?

O marxismo é uma chave relevante para a compreensão da realidade social. Seu alcance de explicação não se limitou à industrialização da Europa do final do século XIX e ao desenvolvimento do capitalismo no continente europeu. O marxismo transformou-se numa Teoria Social Crítica que buscou construir explicações para os problemas que decorriam da expansão do capitalismo em seus vários períodos. Esse projeto teórico fundamentou-se na compreensão de que nossas relações sociais partem da realidade, elegendo como ponto central a análise histórica para compreender essas relações. Neste sentido, é válido acrescentar que Marx (2011) realizou uma análise da sociedade em movimento, encontrando na dialética uma fonte criativa de interpretação. A leitura que Marx fez da sociedade possui importância singular, uma vez que os processos capitalistas que analisou se reproduziram e continuam a se reproduzir com certa regularidade, comportando, portanto no bojo de suas contradições duas características centrais: 1) o mercado ainda é o elemento organizador das relações sociais; 2) O objetivo da produção é o lucro capitalista, ou seja, a mercadoria produz a alienação do trabalhador. Nestas condições, o capital ainda media as relações entre os indivíduos e sua acumulação é o elemento organizador das relações sociais.

Neste contexto, a Teoria Social Crítica mostra seu poder de explicação para realidade histórica do presente, sobretudo quando se somou às proposições de Gramsci (2001) a respeito do mundo se constituir pela cultura e pela ideologia, além da produtividade. A fim de compor uma crítica do Capitalismo que dialogue com a Teoria Social Crítica, pretendo neste ensaio tensionar algumas questões relativas ao cotidiano de estudantes universitários da FACEDI e trabalhadoras da DASS Nordeste Calçados em Itapipoca, no interior do Ceará.

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2. RECORTES DO COTIDIANO DE OPERÁRIAS DA DASS E DE ESTUDANTES DA FACEDI

Recordo muito bem que no período noturno, assim que o alarme toca e o portão da empresa DASS se abre, uma massa de trabalhadores corre através dele em duas direções. Em primeiro lugar, os trabalhadores dirigem rapidamente suas motos e bicicletas no rumo de suas casas. E quando estes terminam de sair, então mulheres e homens que levam comida para o trabalho se preparam para comer na calçada da FACEDI ou no interior do campus. Quando essas trabalhadoras2 não levam comida, resta comprar a refeição fiado nas barraquinhas de comidas da calçada da Universidade. A comida geralmente é um creme de galinha acompanhado de arroz, farofa, frango assado e uma salada rala, com a opção de trocar arroz por baião de dois. As dívidas de comida são quitadas pelas operárias assim que o salário é depositado em suas contas pela empresa.

Essas barracas de venda de comida oportunizam um momento de interação e descontração para as operárias. O momento da refeição se torna também um ligeiro (porém intenso) espaço para a troca de experiências fabris ou domésticas. Angústias, cansaços, inseguranças, transtornos são compartilhados pelas mulheres. Mas também histórias engraçadas, desejos, seduções, aplicativos de compras pela internet e brincadeiras que suavizam o árduo tempo de esforço físico que se aproxima.

Essas aproximações acontecem mediadas principalmente por duas mulheres que vendem comida principalmente para as trabalhadoras noturnas, porém também vendem para os estudantes da FACEDI. As vendedoras de comida, que vou chamar de Neide e Patrícia3, possuem vínculos comerciais com as trabalhadoras. Entretanto, as relações não se limitam a estes termos, percebi que se relacionam como amigas. Elas compartilham a experiência de operárias, pois Neide já trabalhou na DASS no passado e conhece muito bem o ritmo, os benefícios e reponsabilidades de se está naquela empresa. Neide foi demitida por que fez um curso de Técnico em Segurança no Trabalho e ampliou sua formação. Quando seu gerente ficou sabendo a despediu, aconselhando que ela buscasse um emprego que fosse compatível com sua nova condição.

Este fato demonstra, por um lado, a fragilidade da relação firmada no contrato de trabalho, de modo que é mais fácil a operária a perder seu trabalho, caso sua formação se altere, do que ascender na empresa. Percebo que a condição de operária numa dinâmica capitalista que aprofunda as

2 Opto por chamar apenas trabalhadoras ou operárias, pois procurei pesquisar predominantemente com operárias

mulheres. Pode ser que essas sujeitas possuem questões diferentes que as dos operários homens, por exemplo, a queixa de realizarem uma dupla jornada de trabalho, quando são elas que ao chegar a casa assumem o serviço doméstico.

3 Esses nomes são fictícios e pretendem preservar as identidades das sujeitas com as quais conversei. Neide e Patrícia são

muito diferentes. Neide é branca, possui formação técnica, aparenta ter entre 30 e 35 anos, costuma ser identificada como calma e doce pelas amigas trabalhadoras e pelas estudantes. Patrícia é negra, aparenta ter entre 30 e 35 anos, não fala sobre sua formação, mas é letrada e conversa sobre assuntos complexos com estudantes, é identificada como agitada e mais grosseira no tato com as trabalhadoras e estudantes, porém é muito querida por todos.

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desigualdades de classe, é a única possível para certas categorias de pessoas. Caso algo ponha em dúvida essa posição, como uma formação superior, então se corre risco de ser desligada do quadro de funcionários.

Por outro lado, algo acontece quando uma operária conquista outro nível de formação. Esse fenômeno não se limita ao risco de ser demitida por ter posto em dúvida a condição de operária; o novo nível de formação demonstra que o campo de possibilidades de trabalho daquela operária se alterou, sua própria condição de operária transformou-se, como se vê no caso de Neide que foi demitida por que tornou-se Técnica em Segurança no Trabalho. Entretanto, neste caso, o desafio consiste em encontrar espaço na empresa DASS ou em outro empreendimento que aceite sua nova posição de trabalho, coisa difícil em Itapipoca – uma cidade do interior do Ceará, com limitadas possibilidades de emprego; como Neide me relatou, algum tempo depois dela todos os fiscais de segurança do trabalho haviam sido removidos por causa das novas deliberações do governo Bolsonaro, que desobrigam as empresas a oferecerem este tipo de supervisão por cada 100 funcionários, como aconteceu em outros governos.

Talvez seja pela dificuldade de se reintegrarem ao mercado formal de trabalho que Neide e Patrícia vendem comida para as trabalhadoras da DASS e aos estudantes da FACEDI. Mas não pretendo aprofundar este aspecto aqui. Neste ensaio quero analisar o momento em que estudantes e trabalhadoras se encontram por causa das relações que emergem no comer juntos. De partida, esse momento permite que algo interessante aconteça: o encontro de duas realidades que parecem opostas, mas que compartilham certas disposições.

Continuo a falar sobre as operárias um pouco mais.

Fiz um recorte de para facilitar o estudo. Embora o fluxo de operárias seja constante, procurei trabalhar com um grupo de 10 operárias, pois notei a frequência delas na barraca de Neide e Patrícia. Estas operárias são muito diferentes entre si. São mulheres de quatro gerações, com vidas diversificadas; Além disso, residem em diferentes bairros de Itapipoca e por morarem distante da fábrica são as que ficam para comer na barraca de Neide e Patrícia, por que assim reduzem o tempo de deslocamento. Enquanto comem conversam sobre assuntos diversos, demonstrando ter um nível íntimo de aproximação.

Possuem diferentes níveis de formação. Possuem diferentes status de relacionamento, identificando-se como solteiras, casadas ou divorciadas. Algumas têm filhos outras não. Sobretudo para as que têm filhos, a rotina de trabalho não termina quando chegam a casa e podem descansar como dizem que fazem os homens. Para elas: nós realizamos uma dupla jornada de trabalho, até tripla. Falam assim e depois riem.

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Essa economia do trabalho que afeta desigualmente as mulheres tem no trabalho doméstico um elemento central na reprodução da força de trabalho no sistema capitalista. Como aponta Gayle Rubin (2017)

O trabalho doméstico, portanto, é um elemento chave no processo de reprodução do trabalhador de quem se tira a mais-valia. Como são geralmente as mulheres que fazem o trabalho doméstico, já se observou que é por meio da reprodução da força de trabalho que as mulheres são articuladas no nexo da mais-valia, que é a condição sine qua non do capitalismo. Pode-se argumentar, além disso, que já que não há pagamentos de salários pelo trabalho doméstico, o trabalho das mulheres em casa contribui para o volume final de mais-valia realizado pelo capitalista (RUBIN, 2017, p. 14).

Neste contexto, percebo que o trabalho doméstico executado predominantemente pelas mulheres contribui de forma direta para os propósitos da mais-valia do capitalista ao mesmo tempo em que institui diferenças de gênero entre homens e mulheres. A queixa das operárias com quem conversei demonstra uma compreensão parcial do fenômeno, pois não conseguem elucidar a exploração de seu tempo de descanso pelo capitalista, apenas relacionando-a ao nível mais restrito de suas relações. No entanto, Rubin (2017) estava certa que a condição de utilidade do trabalho doméstico no sistema capitalista não explicava por si só a opressão das mulheres. Para a autora, é preciso ampliar as proposições de Marx, considerando, portanto, o elemento moral e histórico como potência para explicar as estruturas da opressão sexual.

Outro ponto: as mulheres desta pesquisa possuem uma jornada de trabalho que se inicia as 15h:00m e termina as 00h:30m, sem contar os períodos que trabalham além deste tempo, caso a produção não seja satisfeita como previsto. Estes períodos “especiais” são contabilizados num banco de horas, que podem ser usados depois pelas operárias. Quase sempre as trabalhadoras chamam esses períodos como horas extras, mesmo sem receberem remuneração por essas horas trabalhadas. Isso se justifica pela pouca clareza que possuem dos termos do contrato de trabalho e das obrigações que assumiram, sobretudo a respeito do cumprimento dos prazos de entrega de produção. Algumas sabem que a obrigação consiste em entregar a produção no prazo, embora precisem de “horas extras” para concluir o trabalho.

A jornada de trabalho consiste num aspecto singular que merece destaque; o horário do intervalo para o jantar demora 1 h, começando as 19h:30m. Isso significa que essas mulheres trabalham em média 8h:30m por dia, porém estando expostas a ampliar esse período caso não cumpram a produção nesta jornada de trabalho definida. Isso demonstra como essas trabalhadoras estão expostas ao fenômeno que Marini (2017) entende por superexploração. Na superexploração –

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fenômeno predominante Latino Americano analisado pela Teoria da Dependência4 – para que o capitalista aumente a massa de valor produzida, ele terá de aprofundar a exploração do trabalhador, combinando o pagamento da força de trabalho abaixo de seu valor real à intensificação do uso da mão de obra e ao aumento da jornada de trabalho.

Essas estratégias implicam em perdas para os trabalhadores, sobretudo quando o aprofundamento delas significa a redução do tempo necessário para que o trabalhador recupere sua força de trabalho e possa viver. Concomitantemente, são negadas à classe trabalhadora as possibilidades de consumo daquilo que é essencial para assegurar sua conservação. Trata-se de uma objetificação do trabalhador, operação pela qual o capital desumaniza o trabalhador ao tempo que se apropria de sua força como apenas mais uma mercadoria.

No pensamento de Marx (2017) estas circunstâncias expõem a classe trabalhadora à morte. Isso está em conformidade com o destaque de Marini (2017), o qual aponta que quando o trabalhador é mal remunerado ele não tem como sustentar sua família. A superexploração é possível por que o mercado degrada a condição humana do trabalhador, reduzindo-o à mercadoria, ou seja, a sua força de trabalho. Isso significa que a produção capitalista na América Latina não se apropria somente do seu produto, mas da força de trabalho por meio do aprofundamento da crueldade capitalista.

Tomando o caso do Brasil – embora isso seja possível de estender para outras economias periféricas e mesmo nos centros – as diferenças podem ser ainda mais expressivas de acordo com os sexos. Note-se que no Nordeste Brasileiro, a maior parte das famílias é chefiada por mulheres que se submetem de distintas formas ao subemprego. Entretanto, se no mercado formal de trabalho a crueldade capitalista pode ser sentida pelos homens, ela se aprofunda no caso das mulheres, que na economia brasileira recebem cerca 30% a menos que os homens, ainda que realizem funções semelhantes e possuam formação mais elevada. Essa foi uma conclusão da pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Previdência (CNP) em 2017 a partir dos dados colhidos pelo IBGE em 2015, a qual contribui para uma reflexão sobre as desigualdades de gênero e fomento de políticas públicas de equidade de gênero no pais.

Marx (2017) já tinha consciência de que a força de trabalho das mulheres e das crianças valia menos no mercado e embora não tenha desenvolvido maiores considerações sobre isso, como aponta Mehring (2014, p. 394) em O capital, ele demonstra que “a coisa mais importante para o capital não é o processo de trabalho em si, nem a produção de valores de uso, mas o processo de exploração, de produção de valores de troca, durante o qual ele pode extrair um valor maior do que investiu”. Nestas

4 A Teoria da Dependência constitui-se numa importante contribuição dos intelectuais latino americanos para a Teoria

Social Crítica; a construção teórica procurava demonstrar como o capitalismo latino americano se desenvolvia como subordinado, evidenciando ainda subordinação das nações umas às outras. Rui Mauro Marini foi um expoente dessa construção teórica, apontando o modo diferenciado como o capitalismo se desenvolveu na América Latina, para tanto, o autor instrumentalizou o conceito de superexploração e aprofundou as reflexões sobre sub-imperialismo.

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dimensões se situa o trabalho das mulheres, qual seja como fonte de expropriação no cerne da dinâmica capitalista.

Os estudantes dos cursos noturnos da FACEDI tem consciência desta realidade sobre a classe trabalhadora. Os cursos de Pedagogia e Ciências Sociais possuem disciplinas específicas voltadas a discussões sobre essas problemáticas, com relativa acentuação. Além disso, os estudantes geralmente compartilham o etos de classe com as operárias, comumente se deslocando da classe trabalhadora em direção a Universidade. Muitos deles conservam o sonho de mudar de vida através de uma formação superior.

Não é incomum, por exemplo, ouvir um professor FACEDI dizer que está numa Universidade do interior e conhece o perfil dos alunos, tentando afirmar que está lidando com alunos pobres. Por outro lado, no decorrer dos anos os alunos da FACEDI tem assumido uma postura política interessante através de seu movimento estudantil, sobretudo por encabeçar greves que procuram resolver questões com o Estado acerca do funcionamento da Universidade. Entretanto, não existem pesquisas que demonstrem detalhadamente as características do perfil socioeconômico dos alunos da FACEDI, bem como não existem estudos que investiguem como a realidade de classe interfere nas trajetórias destes universitários5.

De todo modo, há estudantes que também compram comida na barraca de Neide e Patrícia e nestes instantes se confrontam com uma realidade que persiste como uma sombra em suas trajetórias, isto é, tornarem-se operários. As dificuldades que advém de sua condição empobrecida, as limitações da assistência estudantil, expõem os estudantes a difícil decisão de continuar com seus cursos superiores ou interromperem sua trajetória acadêmica e render-se ao mercado de trabalho – pelo menos foram motivos semelhantes a estes que a colega apresentou a minha turma antes de se desligar da FACEDI e empregar-se como operária na DASS.

As realidades de uma operária ou de um estudante constituem-se em pontos para análises significativas, especialmente por que estamos situados no Brasil, pais latino americano que historicamente sofre as consequências do desenvolvimento desigual do capitalismo que aprofunda as desigualdades sociais, induzindo a precariedade contra determinados modos de vida – além disso, as realidades que procurei evocar remontam espacialidades do interior do Ceará, no Nordeste Brasileiro, assim possuem singularidades que podem ser apreciadas no intuito de construir um pensamento crítico.

Essas realidades não ocorrem desarticuladas de processos sociais mais amplos na América Latina, amplamente geridos pelo mercado internacional. Um exemplo dessa interferência do mercado

5 Procurei predominantemente por monografias de conclusão de curso na Biblioteca da FACEDI, que seriam produzidas

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mundial está compreendido nos relatórios do Banco Mundial sobre a Educação no Brasil, sobretudo quando recomendam reformas na educação do pais que estão longe da realidade social da população pobre, apontando que o governo deve cobrar mensalidades em Universidades Públicas.

Sofremos um fenômeno histórico de intercâmbios desiguais com os centros comerciais e isso também se reproduz nas relações econômicas entre as regiões dentro do pais subordinado. Concomitantemente, se propaga a superexploração do trabalhador, onde este não possui condições materiais de ser o consumidor de mercadoria que produz (MARINI, 2017).

Neste aspecto, os consumidores finais das mercadorias (tênis) produzidas pelas trabalhadoras da DASS não estão em Itapipoca, não são as operárias da empresa nem os estudantes da FACEDI. A mercadoria segue para o mercado em outros estados ou para fora do país. Mais uma vez a dinâmica da alienação atua sobre o operário que não se reconhece na mercadoria que produz e não se levanta contra o capitalista que lhe expropria o fruto de seu trabalho (MARX, 2017). Mantêm-se a situação de transferência de valor, quando as clasMantêm-ses trabalhadoras são impedidas de consumir as mercadorias que produzem e mais quando não encontram condições materiais suficientes de permanecerem nas Universidades Públicas como estudantes.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O atual contexto político brasileiro demanda que certas questões sejam feitas, especificamente por que a crise faz emergir questões que são suspensas num contexto de normalidade política. Uma destas questões é sobre a continuidade da Educação Pública e Gratuita na esfera superior. E se essa educação se manterá sob a tutela do governo, quais as condições que serão mantidas, estendidas e ou produzidas para garantir que os estudantes pobres continuem a ter acesso e permanência no Ensino Superior.

Certamente que estes questionamentos dizem respeito tanto a estudantes quanto operárias, sobretudo quando a educação se coloca como uma possibilidade de transformação de trajetórias particularmente influenciadas pela pobreza. A Universidade não é vivida de forma igual por todos, não quando estudantes têm de desistir de seus cursos universitários por causa de suas condições socioeconômicas ou como reflete Portes (2006) vivem preocupados com sua persistência na Universidade em razão dos complexos problemas familiares, que se traduzem nas condições de trabalho destas famílias no interior. Deste modo, a Universidade é um lugar que conserva desigualdades, isso significa que sua função histórica precisa ser questionada.

Essas realidades de desigualdades são possíveis dentro de um quadro de capitalismo hostil, que aprofunda desigualdades sociais e gera misérias para determinada classe ao tempo em que produz riqueza para outras camadas. Surge, portanto, a necessidade de pensar criticamente acerca do modo

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como esse capitalismo se desenvolve, estruturando regimes de alienação e expropriação que articula estudantes e operárias num plano social precário.

Outras articulações podem ser feitas no sentido de construir alianças que permitam enfrentar o regime de precariedade que marcam trabalhadoras e estudantes. É evidente que as problemáticas suscitadas nesta reflexão poderão ser objeto de análises mais aprofundadas.

REFERÊNCIAS

ALVES, J. M. A assistência estudantil no âmbito da política de Ensino Superior Pública. Serviço Social em Revista. v. 5, n. 1. jul./dez. 2002. Londrina-PR: UEL, 2002.

ARAÚJO, J. O. O elo assistência e educação: análise assistência/desempenho no Programa Residência Universitária alagoana. 2003. Dissertação (Mestrado em Serviço Social). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2003.

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. vol. 4, edição de Carlos Nelson Coutinho, com a colaboração de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001. MARINI, R. M. Dialética da Dependência. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 9, n. 3, p. 325-356, dez. 2017. ISSN 2175-5604. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/24648>. Acesso em: 02 Ago. 2019. doi:http://dx.doi.org/10.9771/gmed.v9i3.24648.

MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857- 1858 – esboços da crítica da economia política. SP: Boitempo; RJ: UFRJ, 2011.

____________ Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução Luciano Cavivi Martorano. – São Paulo: Martin Claret, 2017.

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Referências

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