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Violência e educação : da razão filosófica à razão pedagógica

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Academic year: 2021

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Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Violência e Educação

- Da razão filosófica à razão pedagógica

Dissertação de Mestrado em Filosofia da Educação Orientador: Professor Doutor Adalberto Dias de Carvalho

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Agradecimentos

A todos os que acreditaram que eu seria capaz. Foram eles que, muitas vezes sem o saberem, serviram de incentivo ao meu trabalho.

Aos professores do Mestrado, e em especial ao Professor Dr. Adalberto Dias de Carvalho, pela forma carinhosa com que foi corrigindo as minhas falhas e pelo encorajamento que sempre me deu.

A todos os colegas do Mestrado, particularmente para a Guilhermina e para a Alexandra, que me acompanharam mais de perto.

Por fim, um agradecimento à minha família, especialmente à minha mãe - um exemplo de perseverança - e à minha irmã Lena, pelo apoio dispensado e sem o qual não teria tido condições para fazer este trabalho.

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Violência e Educação

- Da razão filosófica à razão pedagógica

índice

Introdução *

Ia parte: Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil 22

1.1- Eric Weil - um Kantiano Pós-Hegeliano 23 1.2-0 Homem como Razão - o Homem como Violência 32

1.3 - A Relação da Lógica Formal com a Filosofia 44 1.4 - A Lógica da Filosofia, a Violência, a História e o seu Fim 58

1.5 - Atitudes e Categorias 65

2a parte: A Educação como Meio de Superar a Violência 86

2.1 - Educação e Violência 8 7

2.2 - A Razão da Modernidade como Símbolo da Violência 95 2.3 -Da Razão da Modernidade à Razão Comunicacional 101 2.4 - Entre a Razão e o Sonho - O Papel das Imagens na Educação 105

3a parte: Dimensão Antropológica da Utopia 110

3.1 - Da Utopia à Antiutopia e Até aos Nossos Dias 111 3.2 - Utopia e Pedagogia - O Lugar da Utopia na Educação 118

3.3 - Paulo Freire - Uma Pedagogia Utópica e Esperançosa 124

3.4 - Da Utopia à Violência 132

Considerações Finais 137

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ao Alfredo João e às nossas filhas Maria João, Teresa e Inês

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- Da razão filosófica à razão pedagógica

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Da razão filosófica à razão pedagógica

Com este trabalho propomo-nos reflectir, em termos filosóficos, sobre o tema da violência, já que os problemas que ela suscita à sociedade, à moral e à própria filosofia nos deixam um leque alargado de interrogações. De forma mais ou menos camuflada, ela atingiu muitas vezes os extremos da barbaridade, o que nos mostra a incapacidade do homem em controlar as suas acções violentas. É o escândalo relacionado com a violência exercida por homens sobre outros homens e a certeza de que esse mal não deveria existir que provocou em nós a necessidade desta reflexão.

A violência não é, certamente, um fenómeno exclusivo do nosso tempo; pelo contrário, parece ser um fenómeno persistente, tanto no tempo como no espaço. Se olharmos a História, constataremos que ela acompanha todo o percurso do género humano e parece pesar sobre ele como uma fatalidade. A violência existe e está inteiramente ligada ao homem e à sua evolução.

Vivemos numa época em que a violência impera de uma forma assustadora, apesar de a consciência dos valores e do respeito pela vida parecerem ser afirmados em todos os domínios. O século XX é, mau grado todas as lições do passado, um século de guerras e de revoluções e, por conseguinte, feito de muita violência que se considera, aliás, ser habitualmente o seu denominador comum. Nos nossos dias, a violência é, na verdade, matéria banal de notícia, imagem frequente do quotidiano, sendo a sociedade testemunha permanente - e permanente vítima - de fenómenos violentos. A violência cultivada e acumulada e a sua exorcização tornaram-se elementos doentios e perversos nas sociedades contemporâneas.

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Da razão filosófica à razão pedagógica

A violência de ontem é, na sua essência, a violência de hoje, apesar das suas formas e técnicas terem acompanhado o próprio desenvolvimento socio-económico. De facto, os instrumentos da violência têm atingido um tal ponto de perfeição técnica que se torna impossível conceber um fim que seja susceptível de se opor ao seu poder destruidor ou que possa justificar a sua utilização. É a utilização destes instrumentos que torna a violência distinta da autoridade, da força, do poder. A este propósito, refere Hannah Arendt:

Nos nossos dias, termos como poder, força, autoridade e violência, são utilizados indiscriminadamente mesmo por grandes pensadores, o que denota não só uma certa insensibilidade quanto à sua significação linguística, mas também uma ignorância lamentável das realidades às quais esta linguagem se refere.

A acção violenta é, assim, inseparável dos meios que tomam muitas vezes uma importância desproporcionada relativamente aos fins que os deveriam justificar. Por outro lado, os homens mostram-se, muitas vezes, incapazes de controlar as consequências das suas acções violentas.

A geração que cresceu com os horrores dos campos de concentração e com a destruição causada pelo emprego da bomba atómica guardou a experiência da geração precedente e a primeira reacção foi um sentimento de indignação e de repulsa pela violência, sob todas as formas, bem como uma adesão quase natural a uma política de não violência. A juventude do pós-guerrajá não queria ouvir falar de fanatismo. Parecia estar farta, de uma vez para sempre; parecia-lhe pouco inteligente utilizar a violência em nome

de uma religião, de uma nação ou de uma causa.

Mas, entretanto, muitas coisas mudaram; em breve, a revolta veemente, espontânea mas não-violenta, contra a injustiça e a violência deu lugar ao culto dessa

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Violência e Educação Introdução

Da razão filosófica à razão pedagógica

mesma violência. Como declara George Wald, "encontramo-nos perante uma geração que não está de modo nenhum certa de ter um futuro."

A prática da violência tem-nos conduzido a um mundo cada vez mais violento. É por isso que cabe, a todos aqueles que têm consciência da situação, a tarefa, a responsabilidade primordial de alertar a consciência universal, de não se calar no momento em que os valores fundamentais estão em perigo.

Haverá, então, uma justificação filosófica para a violência? Poder-se-á dar à violência um significado que legitime a sua presença no mundo humano? Será ela um fim?

A violência da guerra laica, por exemplo, na Idade Média, justificava-se como meio de combater o mal. Nessa época havia uma dualidade entre o bem e o mal que podia ir até ao maniqueísmo. O bem era colocado no plano do positivo, mas sendo sempre atormentado pelo mal. Daí que a violência apareça justificada porque tinha por fim o ataque ao mal. Tratava-se, portanto, da negação de uma negação. Esta violência não cria nada e, por isso, a sua justificação é puramente negativa. Apenas pretende a irradiação do mal.

Mas, quando se olha melhor e se interroga o sentido que as várias violências veiculam, as diferenças aparecem. A violência dos cruzados assaltando Constantinopla, ou dos Turcos retomando-a com a mesma violência, autojustificava-se aos olhos das seus autores como um meio de extirpar o mal. Pon>entura não há expressão mais odiosa e menos aceitável do que aquela que ao longo dos séculos os homens exerceram em nome ou à sombra de Deus, mas essa convicção, em idades de grande fé ou de crença, integrava a violência no espaço da ética, mesmo trans\>iada. 2

Diferentemente, para alguns autores, o uso da violência no mundo contemporâneo aparece ligado à ideia do bem, do positivo, parecendo que o Ser não se pode realizar, não

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Violência e Educação Introdução

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adquire a sua plena positividade, se não for acompanhado de violência. Depois da Revolução Francesa vimos aparecer um certo número de filósofos que deram à violência um estatuto positivo que ela não tinha tido até aí.

Um dos filósofos que tentou justificar a violência foi Hegel. A sua filosofia política ilustra de maneira particularmente significativa a tese dominante, segundo a qual a violência é o motor da história.

A grandiosidade de Hegel residiu no facto de ter introduzido a História no Ser, já que até ele o Absoluto viveu à parte. O mundo histórico, abandonado aos acasos da contingência, era o que nascia e que morria, tendo até então, um estatuto inferior. Para Platão, por exemplo, o Absoluto vive no Mundo das Ideias, e estas, como são eternas e imutáveis, subsistem à parte das transformações da História. Por outro lado, o conceito central da metafísica hegeliana é a História.

Isto basta para colocá-la na mais aguda oposição possível frente a toda a Metafísica anterior que, desde Platão, busca a verdade e a revelação do Ser eterno em toda a parte, excepto na esfera dos problemas humanos, de que Platão fala com tanto desprezo, precisamente porque nela não se poderia achar

nenhuma permanência, não se podendo pois esperar que desvelasse a verdade. 3

Hegel faz redescer o Absoluto na História e mostra que os diferentes fenómenos históricos, que os grandes momentos da História, que os grandes homens da História, que toda esta massa de que é feita a vida das pessoas e das nações é igual à vida do Absoluto, já que, "ao colocar o Ser divino fora das coisas humanas, adquire-se a facilidade de nos

abandonarmos às suas próprias representações." 4

A filosofia, que se tinha constituído no conflito bipolar entre o mundo das aparências e o mundo das ideias verdadeiras perdeu parte do seu significado quando Hegel

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Da razão filosófica à razão pedagógica

procurou demonstrar a identidade ontológica da ideia e da matéria, em movimento dialéctico. "O real é racional e o racional é real." Esta divisa da filosofia hegeliana pretende mostrar que a razão é tudo e está em tudo, mesmo quando se trata do indivíduo humano, que deve ser pensado na sua individualidade. Mas não é ele, enquanto indivíduo determinado, que pensa; é a razão nele. O sentido da sua existência não é para criar, mas para descobrir, já que ele existe na História, na sociedade e no Estado, nas e para as instituições às quais ele pertence e onde ele é universalizado. Hegel pretende fazer uma crítica radical do individualismo moral em que o homem se quer refugiar para cultivar a sua própria virtude, ao abrigo dos furores da História.

Para Hegel, o Absoluto é, antes de mais, um Absoluto insuficientemente desenvolvido, que deve evoluir, progressivamente, através da História. No prefácio da Fenomenologia do Espírito, diz que o Absoluto deve ser concebido como resultado, quer dizer, que ele não se separa deste movimento, pelo qual vai desenvolvendo os seus diferentes aspectos. "Há que dizer do Absoluto que ele é essencialmente resultado, que unicamente no fim é aquilo que na verdade é; e precisamente nisto consiste a sua natureza de ser efectivo, sujeito ou devir de si mesmo." 5 Mas este desenvolvimento efectua-se por

crises. "A existência de Deus e o conhecimento divino podem, portanto, se quisermos, exprimir-se como um jogo do amor consigo mesmo; esta ideia desce até um virtuosismo que chega a ser insípido se nela faltam a seriedade, a dor, a paciência e o trabalho do negativo" 6 - trabalho do negativo que, no plano lógico, se chama "contradição", mas que,

numa perspectiva mais existencial, é, no fundo, a violência e a morte. A morte, as guerras, as lutas entre indivíduos ou civilizações são os meios da manifestação progressiva da vida

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Violência e Educação Introdução

Da razão filosófica à razão pedagógica

do Ser: "a razão não se pode eternizar junto das feridas infligidas aos indivíduos porque os fins particulares perdem-se no fim universal".

Yves Michaud considera que as filosofias que reconhecem no Ser os princípios da contradição ou da negatividade admitem a realidade da violência e vêem mesmo nela a manifestação do Ser.

É exemplarmente o caso da filosofia de Hegel. O Ser, segundo Hegel, (ou ainda o que ele chama a substância) é sujeito: ele não se torna efectivo, não se realiza senão no movimento do seu desenvolvimento; este movimento não se pode fazer sem dor nem dilaceração [...] Este movimento é o da dialéctica concebida (num espírito heraclitiano mais que platónico) como o jogo dos contrários, conduzido

o

até ao fim da sua reconciliação - até ao fim da história.

A violência ganha aqui uma justificação dialéctica. É necessária a violência porque sem ela o Absoluto não se desenvolverá. A violência aparece, assim, ligada ao desenvolvimento do Absoluto e, por consequência, da Criação.

Nietzsche é também um filósofo da violência, mas não tem esta perspectiva de um progresso dialéctico na humanidade e o que repudia é a sonolência, é a mediocridade, a satisfação desenxabida do último homem, que é evocado no prólogo do Zaratrusta. Este último dos homens, ele descreve-o vivendo numa existência pobre:

Falar-lhes-ei do que mais desprezível existe no mundo, isto é, do Ultimo Homem [...] o Último Homem que torna pequenas todas as coisas [...] terão o seu pequeno prazer para de dia, o seu pequeno prazer para de noite...

Com este autor dá-se a oposição ao conceito do homem como ser racional, insistindo ele na produtividade da vida e na vontade do poder do homem. A vida tem de dominar o conhecimento: não é o conhecimento que tem de dominar a vida.

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Nietzsche preocupa-se, em primeiro lugar, com a elevação do homem a um tipo superior. A sua filosofia moral é uma filosofia exortatória e dinâmica. Pretende uma transmutação de valores com o fim de conseguir aquilo que julga ser a verdadeira cultura, que não significa simplesmente saber, ciência, mas que deve também incluir um elemento vital e essencial - esse elemento vital e essencial seria simplesmente o autodomínio, a vida, o que significa luta e vontade forte. O fim da cultura, de acordo com Nietzsche, é a produção do génio; é o génio, o grande homem, que dá sentido à vida.

Anti-darwiniano, Nietzsche concebe a civilização como domesticação dos fortes e proclama no seu Zaratrusta (1891) ou no Ecco Homo (1908) a chegada do

super-homem com o seu amor reencontrado do risco e dos perigos, com a sua afirmação superior da vida, com a sua vontade de poder.

A função da violência é aqui diferente. Nesta perspectiva nietzscheniana, a força ou a violência já não podem ser julgadas unidas, como quando o evolucionismo aí via a afirmação natural da vida.

Doravante, é necessário distinguir entre a força repressiva, domesticadora, a dos fracos e dos homens de ressentimento, e a força dos fortes, a força afirmativa.

Mesmo no interior da violência, produz-se por conseguinte uma clivagem entre uma violência boa e uma outra perversa, desfigurada, mascarada porque voltada contra a vida.

Encontramos em Nietzsche uma justificação heróica da violência, já que é ela que nos arranca da moleza, do igualitarismo e do conforto moderno e nos lança num mundo de conflitos, onde cada uma encontrará a coragem e a firmeza exaltante de uma ultrapassagem de si: "Chamo heroísmo ao estado de espírito de um homem que se esforça por atingir um fim para além do qual ele mesmo não interessa; o heroísmo é a vontade absoluta com a qual se aceita a própria destruição."

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Da razão filosófica à razão pedagógica

Nietzsche refere várias vezes, na obra Assim Falava Zaratrusta, que o homem só existe para ser ultrapassado.

Venho anunciar-vos o Super-homem. O homem só existe para ser ultrapassado. Que tendes feito para o ultrapassar? [...] Mais deixai que vos prescreva eu o vosso pensamento mais alto; ei-lo: o homem é aquilo que deve ser ultrapassado.

Pensamos poder concluir que nos encontramos perante duas espécies de justificações: uma, a justificação dialéctica, para a qual a violência aparece como um lugar

de desenvolvimento do Absoluto e, por consequência, da Criação; outra, a heróica, que tem por fim estimular e fazer surgir protótipos de humanidade notáveis. No entanto, ambas as noções se podem encontrar nos dois autores citados.

Na Fenomenologia do Espírito, na parte que se intitula O Mundo Ético, Hegel apela várias vezes à violência como meio de impedir o homem de se estagnar numa rotina, numa mediocridade, onde perderá de vista o que é a sua consciência. Isto quer dizer que, pela guerra, pela violência, o espírito acorda de uma espécie de entorpecimento confortável, no qual teria adormecido, para tornar a tomar consciência de si.

Para não os deixar enraizar-se e endurecer neste isolamento, logo para não deixar desagregar-se o todo e evaporar-se o espírito, o governo deve, de tempos a tempos, abaná-los na sua intimidade pela guerra.

A guerra é, assim, considerada como um momento necessário da história que, apesar das crises e contradições que podem momentaneamente entravar o seu curso, caminha para o seu fim.

Por outro lado, o super-homem, que surge através da violência, é somente superior enquanto criador de valores. Por conseguinte, também em Nietzsche, é a ideia de

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Violência e Educação Introdução

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criação que permite justificar a violência, já que, para criar, é preciso primeiramente destruir.

O homem nobre quer criar de novo, quer criar uma nova virtude [...] Criar - eis o que nos liberta da dor, eis o que aligeira a vida. Mas, para que nasça o criador, é necessário muita dor e grande número de metamorfoses [...] aquele que cria destrói sempre primeiro.

Pegando nestes dois autores, julgamos que, justificando a criação, eles justificaram a violência. Parece existir uma espécie de assimilação entre ambas. Por um

acto de violência, o homem foi agarrado pelo seu ser animal. Há um destino que se realiza através do homem, absolutamente dominado por estas forças. No fundo, ele não pode fazer grande coisa para as impedir de o conduzirem a estes actos de violência. A ontologia escamoteia a antropologia e justifica a violência.

Mas como poderá a filosofia moral aceitar tais justificações para a violência? Podemos dizer que não há filosofia da violência, mas isto é talvez dizer que a violência é aquilo que o filósofo refuta e que, finalmente, o objecto que ele toma como tema de reflexão e de justificação não é seguramente ela.

No fundo, é o que se passa com Hegel. Parece ser um "filósofo da violência" e que a justifica mas, afinal, o que procura nela é a criação e é isso que permite justificá-la. A prova disso é o facto de ele distinguir a boa e a má violência, sendo esta última apelidada de "fúria de destruição", que é terror porque não produz nenhuma obra positiva. Esta violência Hegel não a justifica: "A liberdade universal não pode, por conseguinte, produzir nem uma obra positiva, nem uma operação positiva; só lhe resta uma operação negativa; ela é somente a fúria de destruição."

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Da razão filosófica à razão pedagógica

Há uma mistificação própria nestes "filósofos da violência" que os leva a perder de vista a essência da mesma e que é, antes de mais, o modo de relação entre os homens. Mas, se a violência é um objecto de reflexão antropológica, ela exprime-se pela dominação, pela brutalidade, pelo sofrimento infligido ao outro ou a si mesmo. A violência não tem relação com a criação, mas com a morte.

Ela parece, muitas vezes, fruto da animalidade do homem ou de uma força estranha que se apodera dele. Analisando melhor, vemos que há na violência humana, características inteiramente especiais.

O que caracteriza antes de mais a violência humana é que ela vai além das suas necessidades porque é, de certa forma, desinteressada, transcende-se a ela mesmo. E eu irei mesmo até ao ponto de dizer que a violência humana se ilimita. Há, assim, na violência humana, o infinito que marca o homem. Outra das suas características é ser sistemática (os campos de concentração são disso exemplo) o que é também uma das características mais reconhecidas ao homem (o espírito de colocar em ordem, de sistematizar). Ela também é radical, porque é uma violência que não se contenta apenas em suprimir o que é superficial, mas que suprime verdadeiramente aquilo sem o qual nada mais existe. Este aspecto de radicalidade também é comum ao homem e ao seu espírito, que procura ir à a raiz de todas as coisas.

Na violência encontram-se todos os atributos positivos do homem, mas completamente subvertidos. É lá, por conseguinte, que talvez haja uma possibilidade para o homem agir; mas esta possibilidade é extremamente reduzida, porque o que nela é fundamental é a presença da morte.

Thomas Hobbes foi, talvez, o maior filósofo da violência. Para ele, o estado da natureza é justamente o estado de violência. É o estado sem regra, sem moral, é o estado de todos contra um. Na guerra, cada um procura exterminar o outro para o dominar. Há, em

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Da razão filosófica à razão pedagógica

Hobbes, uma reflexão que só encontramos nele e que é espantosa: ao dizer-nos, na sua obra Do Cidadão, que "os homens são iguais porque cada um pode matar o outro. O mais miserável dos homens, o mais fraco, o mais inferior, o mais idiota, pode expor-se a matar o maior deles." A liberdade natural é "a guerra de todos contra todos",18 por conseguinte, o

estado de violência é o homicídio generalizado.

Hobbes dá-nos, deste modo, o essencial da violência. É a presença da morte no interior da violência que explica também a sua importância e os esforços que, por vezes, se fazem para a justificar. A atitude do homem em relação à violência é largamente determinada pela sua atitude em relação à morte. Na parte mais recôndita de si mesmo, o homem conhece o medo, o seu, o do outro, o do futuro, o do desconhecido que ele imagina cheio de ameaças e de perigos. Mas o medo do homem enraíza-se sempre no seu receio de morrer. Assim, decididamente, parece que aquilo que para o homem justifica a violência é o facto de ela surgir como o único meio de se proteger contra a morte.

A filosofia de Hobbes pode servir, e tem servido, para legitimar a violência repressiva e condenar os ataques à ordem. O direito natural, anterior ao nascimento da sociedade, é a liberdade de usar a força para garantir a sua conservação, direito total, que se estende a tudo. A força converte-se assim em direito.

Toda a doutrina que legitima nos seus princípios a violência repousa sobre confusões de análise, o mais das vezes exigidas pelas circunstâncias ou apenas toleradas. Por outro lado, nada justifica a exclusão completa da violência; ela é uma perspectiva de toda a acção. Assim, a legitimação da violência assenta em análises erradas, enquanto a sua recusa absoluta é somente arbitrária; é sempre possível que um objectivo necessite de

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meios violentos, restando-nos, então, a possibilidade de recusar esses objectivos, quer dizer, de deixar a acção morrer.

Mas, se em todos os casos há uma justificação para a violência, ela não poderá fundamentar-se senão nos seus objectivos. Ora, só existem objectivos particulares e momentâneos: uma violência justificável será, portanto, local, momentânea e particular, aqui e agora num caso preciso. Dito de outra forma, a violência deve ser objecto de uma casuística. O exame casuístico minucioso deve, assim, opor-se ao terrorismo dos grandes princípios. Cada caso deve ser estudado e analisado o valor dos seus objectivos.

A justificação do emprego da violência será tanto mais sólida quanto mais próximos estiverem os seus objectivos (por exemplo, a legítima defesa). Todo o emprego prolongado, organizado e sistemático da violência torna-se, mais cedo ou mais tarde, injustificável, porque é desumano, qualquer que seja o fim que se pretenda servir ao utilizá-la.

Para Eric Weil, autor com que iremos encetar a análise filosófica do problema da violência, a filosofia surge como uma forma de superar a violência que caracteriza o homem enquanto animal.

Na obra A Lógica da Filosofia, Eric Weil tenta, sem jamais o conseguir completamente, pensar uma totalidade coerente de todas as atitudes humanas; as suas categorias articulam-se em torno de conceitos como os de verdade, não-sentido, verdadeiro e falso, certeza, discussão, objecto, eu ("moi"), Deus, condição, consciência, inteligência, personalidade, absoluto, obra, finito, acção, sentido, e sabedoria.

Não se pode demonstrar que é necessário filosofar (que se tem de filosofar); é livremente que a tal se decide alguém, já que é absurdo querer impor o discurso a um

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indivíduo dado, porque tal seria impô-lo pela violência. Filosofar é decidir-se a pensar, num mundo violento onde a própria ideia de discurso coerente pode desaparecer em benefício de convicções concretas incapazes de dialogar.

A filosofia é científica na medida em que recusa a incoerência, mas não é uma ciência: desta, não possui a abstracção, considera o homem não como um objecto, mas sim (a exemplo da história) como um sujeito que se põe a si mesmo em jogo. Porque fundada em engajamentos livres, a filosofia é histórica, mas sem estar submetida a um determinismo histórico, a um "sentido da história".

O filósofo quer um mundo com sentido, no qual reinem a liberdade, a justiça, o respeito pela personalidade humana. Eric Weil pensa, sobretudo, que a humanidade chegou a uma fase da sua evolução em que se lhe tornou possível transpor uma etapa decisiva para o cumprimento da não-violência. A não-violência pode substituir cada vez mais a violência, para realizar o sentido da história.

Trata-se, doravante, de realizar um mundo onde a moral possa viver com a não-violência, um mundo em que a não-violência não seja simples ausência de sentido - desse sentido que a violência procurava na história sem saber aquilo que procurava, que ela criou deforma violenta, e que continua a procurar por meios violentos. A tarefa é construir um mundo em que a não-violência seja real sem ser supressão e contra-senso da violência e de sentido positivo para a vida

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dos homens.

Ele chega mesmo a pensar que a sociedade pode entrever a realização do ideal que lhe foi consignado desde sempre pelo homem que optou pela razão e, logo, pela não-violência.

O direito da sociedade moderna tenderá sempre a reduzir o papel dos factores históricos, para chegar, no ideal, a um sistema puramente racional, regulando as

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relações entre os indivíduos de tal maneira que toda a violência seja excluída das 20

mesmas.

Existe, portanto, uma filosofia moral e uma filosofia política: "convicção prévia do autor é que a acção humana, considerada enquanto política, é sensata; ela possui estruturas essenciais, conceitos próprios que fazem coincidir o histórico e o racional."

Nas obras de Eric Weil trespassa uma grande fé na razão do homem que se tornou moral porque recusou a violência que contradiz radicalmente a exigência de razão que o homem tem em si e que funda a sua humanidade (ele deve, no entanto, renovar continuamente esta recusa porque, sendo naturalmente imoral, quer dizer, violento, deve sempre moralizar-se); mas, de qualquer forma, a filosofia não nos pode garantir que a humanidade não virá um dia a sucumbir na barbárie, porque neste mundo "sensato" o absurdo e a violência são ainda omnipresentes.

Assim, como A. Dias de Carvalho, pensamos ser de relevar em todo este processo de educação do homem o papel que cabe actualmente à filosofia da educação enquanto protectora da coerência e da abertura dos pressupostos filosóficos dos propósitos educativos.

Coerência racional do discurso e abertura (difícil e vigilante) à singularidade indesejável (mas possível) da violência ao nível da negatividade do homem, inadmissível no plano antropológico. De onde a necessidade da filosofia como conhecimento do «que resiste e ameaça», de uma filosofia onde «a razão não saberá ser para o homem senão no meio da violência, porque o homem nunca sai do domínio onde a violência e o medo são possíveis».

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Poderemos, então, nutrir a esperança de que a educação e a filosofia da educação sejam, elas também, uma saída para a transformação do homem violento em homem sábio? Julgamos que sim.

O indivíduo finito que, ao filosofar, recusa a violência como algo de universal (mas, apesar de tudo humano), entrega-se, com certeza, a uma «tarefa infinita» em que a educação é indispensável. Era-o, aliás, já em Kant, para quem a inclinação do homem para o mal desafiava a sua disposição para o bem.

Na opinião de Anne-Marie Drouin-Hans, a educação, como socialização, é um meio de tornar possível a vida em comum, estabelecendo regras que limitam a expressão da violência: "já que existem em todo o ser humano forças de desejo, tendências de destruição, ou de possessão, que têm necessidade de ser reguladas, a educação deve desempenhar este papel de amansar a violência".

Também para Roger Dadoun, tratar a violência, tratar com a violência, tal é a função antropológica fundamental, fundadora da humanidade, da educação:

A função antropológica da educação, o que ela busca às cegas, por obscuros caminhos, é cumprir a integração do homem na humanidade, é construir, reconstituir cada dia a humanidade com os materiais humanos de que ela dispõe; é, mais precisamente, trabalhar e tratar a estrutura humana do homem violento de forma a manter, através de des\>ios, de loucuras, de insucessos, a ponte que conduz ao homem sábio.

Tal como Olivier Reboul, pensamos que, de facto, se o conteúdo da educação é variável, a necessidade de ser educado é universal, porque ela também faz parte da natureza humana. Esta natureza humana é que exige ser educada; mas é também ela que faz com que a educação não possa tudo. Inversamente, se a educação não pode tudo, nós

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nada pudemos sem ela e por isso ela atravessa todas as civilizações, apesar das suas diferenças.

A educação tem desempenhado, ao longo dos anos, uma função antropológica central, ao integrar o homem na humanidade, em vista do bem, afastando-o, em princípio, da violência que lhe é inerente. Educar é modificar condutas com a intenção de melhorá-las, como afirma Octavi Fullat. É desta sua função antropológica que nos ocuparemos na segunda parte do nosso trabalho.

Na terceira parte abordaremos a dimensão antropológico da utopia. Ao longo da história, a utopia tem tomado diferentes aspectos, que correspondem, em geral, à

necessidade de transformação, individual e colectiva, que o homem experimenta, à exigência de esperar inscrita na sua natureza, à capacidade de extrapolar realidades e de recriar mundos pela acção conjugada da imaginação e da razão.

Procuraremos ver qual a relação da utopia com a pedagogia, uma vez que nos parece que entre ambas sempre existiu uma relação estreita, de "cumplicidade", já que como afirma Octavi Fullat, "enquanto desejo compensador da facticidade, todo o acto educador é teleológico, é indicação da utopia".26 De qualquer forma, esta constatação

leva-nos a levantar outras questões.

Será que, de uma forma geral, a utopia e, mais concretamente, a utopia pedagógica, poderão ser consideradas como formas de violência, já que, como afirma o mesmo autor, na medida em que é uma acção todo o acto educativo é violência? "A violência é uma categoria de todo o acto educativo. A violência entre duas consciências - a do educador e a do educando - é a categoria que especifica a educação humana" 21. Ou

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será que existe a possibilidade de uma não-violência, ou da diminuição da violência na educação? Neste sentido, refere A. Dias de Carvalho:

A utopia poderá mesmo representar a brecha pela qual a filosofia da educação, como tal, interfere, ainda que de uma forma diferida, através dos sistemas utópicos que se inserem na história, com o processo de formulação de projectos pedagógicos. A filosofia asseguraria assim, para além do ser, o constante apelo da alteridade antropológica. Afirmar-se-ia, desta maneira, por acréscimo, como

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resistência aos fundamentos da violência...

Analisaremos, neste contexto, a obra de Paulo Freire, filósofo e teórico da educação, portador de um projecto pedagógico utópico e esperançoso, como o próprio o intitula, ao mesmo tempo carregado de preocupações éticas, sociais e políticas, em que o profundo respeito pelo outro, a quem reconhece e atribui o direito à palavra e à sua diferença, surge como uma forma de combater a violência dos que pretendem impor o seu projecto.

O primado da relação sujeito-objecto [...] cede lugar à relação sujeito-sujeito, à relação eu-tu, como diria M. Buber, à relação intersubjectiva ou interpessoal, à intercomunicação. É no entre da relação sujeito-sujeito, mediatizada naturalmente pelo mundo a desvelar, que se dá o verdadeiro conhecimento e uma educação humanizadora. A educação e o conhecimento tornam-se, assim, o resultado sobretudo de um encontro, de um diálogo, interpessoais, perante a realidade.

Os princípios de que se encontra imbuído o seu projecto pedagógico enquadram-se numa pedagogia filosófica, como esta é definida por A. Dias de Carvalho, na medida em que pretende interceptar os processos educativos repercutindo neles sentidos típicos da reflexão filosófica

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Introdução Violência e Educação

Da razão filosófica à razão pedagógica

A pedagogia inaugura, então, um espaço de diálogo profundo com a filosofia que, sem lhe retirar a qualidade pedagógica, lhe empresta importantes patamares de abertura e de radicalidade crítica num espaço que, sendo operativo, é adjacente à

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filosofia.

Por fim, tentaremos compreender as relações perversas entre utopia e violência. O utopismo e a sua generosidade excessiva desculpam, e por vezes até justificam, a violência e o terror daqueles que pretendem realizar por estes meios as mesmas promessas que as inquietações teóricas do pensamento utópico levantam: a emancipação geral da humanidade, uma sociedade cada vez mais justa, mais feliz... Ainda nos nossos dias, muitos regimes políticos, à sombra de ideais utópicos, instauram ditaduras, espalhando o terror e a violência.

Vivemos num mundo de conflitos sociais, políticos, ideológicos. Tais conflitos e confrontos não eliminam os sonhos e os imaginários sociais. Pelo contrário, estimulam a produção de esperanças quanto à possibilidade de criar outra sociedade mais transparente, coerente, lógica. Pensamos que, afinal, a utopia não pode ser esquecida, desde que percebida no contexto do possível e do desejável.

De facto, nós podemos visualizar futuros alternativos, cuja divulgação pode, por si mesma, ajudar a que eles se realizem. O que é necessário é a criação de modelos de realismo utópico [...] Este utopismo realista deverá possuir

sensibilidade sociológica - estar alerta às transformações institucionais imanentes que a modernidade abre constantemente sobre o futuro; [...] deve criar modelos de sociedade desejável [...] e deve reconhecer que a política emanapatória precisa de estar ligada à política da vida ou a uma política de auto-realização.

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Violência e Educação Introdução

Da razão filosófica à razlo pedagógica

Defendemos, assim, uma doutrina de esperança e um projecto de sociedade realista, com base nos valores universais da paz, da tolerância, da solidariedade e da justiça, e subscrevemos Ricoeur quando este afirma:

Temos uma memória dos sonhos não resolvidos do passado, para descobrir o sonho do futuro. É preciso saber mudar à medida que a realidade muda. Ou há coragem de fazer certas reformas ou é a falta dessa coragem que conduz à violência.

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Da razão filosófica à razão pedagógica

1 Hannah Arendt - Du Mensonge à la Violence, p. 152 2 Eduardo Lourenço - O Esplendor do Caos, p. 49 3 Hannah Arendt - Entre o Passado e o Futuro, p. 101 4 Hegel - Leçons Sur la Philosophie de L'Histoire, p. 25 5 Hegel - La Phénomologie de L Esprit, p. 19

6 Idem, p. 18

7 Hegel cit. por Yves Michaud in La Violence, p. 111 8 Yves Michaud - La Violence, p. 111

9 Frederich Nietzsche - Assim Falava Zaratrusta, p. 16 e 18 10 Yves Michaud, op cit, p. 112

11 Ibid

12 Jules Chaix-Ruy - Pour Connaître la Pensée de Nietzsche, p. 30 13 Frederich Nietzsche, op cit, p. 12 e 51

14 Hegel - La Phénomologie de L Esprit, p. 23 15 Frederich Nietzsche, op cit, p. 46 e 91 16 Hegel - La Phénomologie de L Esprit, p. 135

17 Lucien Mugnier Pollet - "Violence et Moral" in La Violence dans le Monde Actuel, p. 37 18 Hobbes, op cit, p. 33 e 38

19 Eric Weil - Philosophie Politique, p. 234 20 Idem, p. 83

21 Paul Ricoeur - Lectures Autour du Politique, p. 95

22 A. Dias de Carvalho - "Education et Violence" (documento cedido pelo autor), p. 8

23 A. Dias de Carvalho - "O Estatuto da Filosofia da Educação: Especificidades e Perplexidades" (documento cedido pelo autor), p. 15

24 Anne-Marie Drouin-Hans - L Éducation, une Question Philosophique, p. 73-74 25 Roger Dadoun - La Violence - Essai sur /' «homo violens», p. 38.

26 Octavi Fullat - La Peregrinación Del Mai, p. 11 27 Idem, p. 28

28 A. Dias de Carvalho - "O Estatuto da Filosofia da Educação: Especificidades e Perplexidades" (documento cedido pelo autor), p. 15

29 J. Neves Vicente - "Educação, Diálogo, Crítica e Libertação na Acção e no Pensamento de Paulo Freire" in Revista Filosófica de Coimbra, n.° 8, p. 395

30 A. Dias de Carvalho - "O Estatuto da Filosofia da Educação: Especificidades e Perplexidades" (documento cedido pelo autor), p. 22

31 Giddens cit. por António M. Magalhães m A Escola na Transição Pós-Moderna, p. 46

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- Da razão filosófica à razão pedagógica

I

a

parte:

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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil

- Da razão filosófica à razão pedagógica

1.1 - Eric Weil - um Kantiano Pós-Hegeliano

Para que possamos compreender toda a filosofia ou, melhor dizendo, todo o "filosofar" de Eric Weil, teremos que recorrer a Kant e Hegel, já que é ele próprio que se intitula um kantiano pós-hegeliano e toda a sua obra é marcada por esta dupla influência.

Da filosofia kantiana aceita a consciência da finitude, já que é somente nesta perspectiva que podemos compreender "a nossa resignação diante da finitude e na finitude se nos quisermos compreender a nós mesmos." 1 Mas não faz da finitude um postulado e

ultrapassa Kant e a grande descoberta do facto de "que não haveria nenhuma razão de falar da realidade, de a querer pensar, se ela não fosse contraditória, se, noutros termos, ela se prestasse imediatamente ao discurso."

Para Kant, o homem não é somente finitude mas também vontade racional e, enquanto tal, ele pensa o infinito embora não o conheça como conhece o sensível. Assim nasce a dialéctica entre um ser finito e racional que procura o infinito, o absoluto, a totalidade da realidade (mas que, como ser finito, não pode deixar de finitizar o infinito) e este infinito finitizado que é a causa da verdadeira dialéctica, que é a projecção da dupla natureza do homem - ser finito e racional ao mesmo tempo.

Na filosofia alemã, de Kant a Hegel, a tese da identidade do sujeito e do objecto aparece como o pressuposto necessário da existência da verdade. Isto faz supor que o sujeito que a si se conhece deve, segundo a concepção ideal, ser ele próprio pensado como idêntico ao absoluto; deve ser infinito.

Daí que, na dialéctica, não se trate de uma relação sujeito-objecto, mas de uma relação do finito com o infinito, do conhecimento com o pensamento, do entendimento

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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil

- Da razão filosófica à razão pedagógica Eric Weil - um Kantiano Pós-Hegeliano

com a razão. Isto significa que a verdadeira dialéctica é a da razão, dialéctica não do conhecimento mas do pensamento: "uma dialéctica do finito na sua totalidade com o infinito."

O homem não pode deixar de procurar a totalidade, procurando, assim, ao mesmo tempo, escapar à limitação do seu discurso indefinidamente finito. E, no entanto, o mundo é o mundo, "ele presta-se ao discurso, permite à ciência constituir-se; ainda mais, permite ao homem orientar-se, escolher, decidir; ele acolhe a acção da vontade livre, da vontade racional de liberdade."

O mundo é racional e uno: tal foi a descoberta da 3acrítica kantiana, segundo Eric

Weil, que explica:

A totalidade não é contraditória, mas nada do que ela contém é consistente, precisamente porque nada é a totalidade [...] E, no entanto, o Todo é verdadeiramente tudo, ele é o mundo e mostra-se como mundo ao pensamento que não o procura, porque eleja o encontrou sem saber.

Kant hesitou perante tais resultados, pois não podia admitir que o sentido da vida e do mundo, sem ser finito, repousasse, para aqueles que o pensam, sobre factos que o são, que a realidade funda tudo e que o finito não é pensado senão sob o ponto de vista do infinito.

O kantismo de Eric Weil é, segundo Paul Ricoeur, "mais a fazer do que a repetir".5 O filosofar weiliano parte do fim do itinerário kantiano - a unidade do sentido e

do facto - para o ultrapassar, passando de uma filosofia do ser para uma filosofia do sentido; "para Eric Weil o problema do sentido não é ontológico mas antropológico: o sentido é uma tarefa e não um acontecimento".6 Na opinião de M. Perine:

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Violência e Educação _ Kmúan0 pós.Hegeliano - Da razão filosófica a razão pedagógica

Não se trata de um kantismo naïf (supondo que tal fosse possível), de um kantismo ignorante das suas insuficiências, das suas lacunas, das suas fendas, da sua falta de conclusões últimas. Trata-se de um kantismo que pretende compreender Kant melhor do que ele se compreendeu a si próprio, conduzindo a bom termo a segunda revolução do seu pensamento, pela elaboração de uma filosofia crítica do sentido.

Esta revolução consiste na descoberta de que o sentido existe e é imediatamente compreendido.

W. Kluback situa a Lógica da Filosofia na sua origem kantiana [...] W. Kluback vê na Lógica da Filosofia a resposta de Eric Weil à Crítica da Faculdade de Julgar de Kant, evocando a única descoberta revolucionária da história da filosofia: o homem, ser finito, pode pensar e pensar ele mesmo o finito e o infinito. A Lógica da Filosofia é, por conseguinte, a referência a Kant mais significativa da filosofia contemporânea.

Por outro lado, Eric Weil é também um grande conhecedor da filosofia hegeliana, aceitando assumir a vontade hegeliana de constituir a filosofia em saber absoluto, ou seja, a pretensão a um discurso absolutamente coerente e exaustivo na sua materialidade, um discurso único que compreenda o todo da realidade natural e intelectual (o que obriga a que tal discurso seja concebido como um discurso divino).

De qualquer forma, é na dialéctica e na ideia de saber absoluto que Eric Weil mais ataca Hegel.

Weil diz que será supérfluo insistir sobre a identidade da dialéctica hegeliana e da ontologia: «Se a razão existe, se o mundo é racional, se a totalidade do que é real e age é compreensível e se a compreensão compreende o que dá a todo o particular a sua consistência, a sua essência e a sua verdadeira substância, o discurso é necessário nele mesmo - ele não saberá ser outro sem deixar de ser coerente - e revela o que a realidade contêm de necessário».

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Violência e naucaçao _ K a n t i a n o Pós.Hegeliano

- Da razão filosófica a razão pedagógica **

Em relação à pretensão de Hegel de constituir a filosofia em saber absoluto, Weil afirma que, para ele, o finito conhece-se desde então como tal no infinito e a ontologia é verdadeiramente "o pensamento de Deus antes da criação do mundo, antes da queda do conceito na realidade empírica, neste Dasein que é uma das categorias mais primitivas, das mais pobres e, por isso, de um pensamento que ainda não foi compreendido em todo o seu poder." 10

Face a esta alternativa da filosofia face ao ponto de vista de Deus e à resignação perante a finitude, Eric Weil escolheu a filosofia sob o ponto de vista do Homem, o único a partir do qual a filosofia pode existir e ter um sentido. Para Eric Weil, a filosofia define-se integralmente pela vontade do sentido, pela escolha em favor do discurso coerente.

O discurso absoluto, do qual Hegel é o representante adequado, não pode reconhecer nem o facto nem o sentido da violência radical que se exprime na recusa do discurso. É pretensão de Eric Weil elaborar um sistema filosófico que, sem renunciar à razão, sem renunciar à ideia hegeliana do sistema, saberá também reconhecer a irredutibilidade da liberdade à razão e colocar a questão do sentido deste facto.

Ser pós-hegeliano é, neste sentido, pôr em causa a articulação dos conceitos de razão e liberdade, que é suposto o sistema hegeliano ter identificado de uma forma redutora, e dar lugar à "finitude irredutível do sujeito filosofante". Ele é pós-hegeliano

porque recusou continuar na simples oposição entre "a razão separada da vida" e "a vida recusando a razão". É por isso que o filosofar weiliano, inseparavelmente teórico e prático, problemático ao mesmo tempo que sistemático, (embora tratando-se, segundo G. Kirscher, de um sistema aberto, uma vez que de Hegel retém mais a ideia de sistema do que a sua

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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil

- Da razão filosófica à tazão pedagogic. Eric Weil - um Kantiano Pós-Hegeliano

realização efectiva), coloca verdadeiramente um ponto final à filosofia, continuando contudo a filosofar.

A tese hegeliana da unidade do Absoluto e da História é, assim, substituída pela unidade da Filosofia e da História, tornando-se esta uma filosofia humana e não divina: por isso, a razão é uma tarefa que deve ser realizada pelo homem no mundo. "Eric Weil quer ultrapassar Hegel, uma vez que coloca questões que Hegel não tinha colocado, mas sem

11 renunciar à filosofia. Sem desesperar da razão".

Há uma ideia de saber absoluto, mas não existe, ao mesmo tempo, saber absoluto e humano. Eric Weil ultrapassa uma concepção ontoteológica e substitui-a por uma compreensão antropológica.

Para Labarrière, um dos intérpretes de Eric Weil, parece característico do seu hegelianismo a inteligência das coisas e cita uma passagem do próprio autor para a ilustrar: "É sinal daquilo que existe verdadeiramente prestar-se ao discurso, não parcialmente e relativamente, mas absolutamente e na sua totalidade."

Esta proposta coloca em questão, segundo Labarrière, toda a tentativa que queria separar o viver do dizer, referindo este autor que é aparentemente impossível separá-los, assim como separar o discurso lógico da sua efectuação. Do que existe até à teoria, e desta de volta até ao agir moral e político, não pára a continuidade, e é isto a que chamamos liberdade. É por isso que a decisão pela filosofia é essencialmente uma decisão pela coerência; e isto, diz Labarrière, sem nenhuma restrição; a tal ponto que Eric Weil não hesita em retomar de Hegel o conceito de que a filosofia é sistemática por essência.

No entanto, para Labarrière, este projecto, embora tão claramente afirmado, nem sempre se apresenta seguro de si e, às vezes, até parece envolto de um certo

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V i o l ê n c i a e t a u c a ç a o Weil - um Kantiano Pós-Hegeliano

- Da razão filosófica a razão pedagógica j_*iv

arrependimento; isto porque Weil, que está especialmente atento ao problema da violência, encontra relativamente a Hegel algumas divergências nesta matéria.

Nasceu nele a suspeita, ténue mas insistente, que Hegel tinha sentido o dever de forçar um pouco as coisas para que todo o conteúdo da história fosse assumido

na inteligência global que ele tinha querido apresentar dela.

Certamente que há quem se decida pela filosofia, escolha a razão e procure, por todos os meios teóricos e práticos, reduzir, em si e fora de si, a parte de violência irracional que encontra. Mas esta não é a única opção possível, já que, face a ela, encontra-se o homem da violência, que recusa a linguagem e que realiza a sua essência de homem, subvertendo a ordem das coisas, tal como ela é entendida pelo homem do discurso.

O homem do discurso constata, assim, que ele não representa nem o único tipo, nem mesmo o único modelo de humanidade e a violência coloca-o face a uma aporia:

ele não pode renunciar a dizer que o discurso que desenvolve tem um valor universal, sem renegar-se a si mesmo, mas deve confessar, no entanto, que tal fenómeno escapa de repente e talvez definitivamente à sua compreensão das

coisas. A grandeza de Eric Weil é de não ter querido renunciar nem a uma nem a outra destas afirmações.

Tal facto fá-lo balançar entre duas posições, segundo Labarrière: por um lado, achar que cabe ao filósofo a tarefa de reduzir a violência em todas as situações onde a venha a encontrar; mas, por outro lado, a indicação de que encontra aí um limite intransponível à leitura e à execução das coisas, leva-o à tentação suprema de apresentar o discurso com uma clareza tal que as partes obscuras que a experiência comum envolve, particularmente sob a forma de violência, seriam eliminadas.

Assim, referindo o discurso como o lugar necessário e qualificado de uma especificação do infinito, ele entende defender-se contra os excessos de um tal

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Violência e fc,aucaçao _ ^ K a n t i a n 0 Pós.Hegeliano - Da razão filosófica á razão pedagógica

desejo e nunca deixar de sustentar interesse pela irredutibilidade finita do mundo. Retomando em boa parte uma palavra irónica de Hegel - uma palavra que parece fazer crer, injustamente sem dúvida, dirigida contra Kant - Eric Weil impõe então a si próprio o objectivo de nunca querer perder «o amor das coisas finitas». E é por esta razão que, tendo-se detido em Hegel e continuando a fazê-lo, ele se coloca como o defensor de um retorno a Kant, definindo de uma forma agradável a sua posição como um «kantismo pós-hegeliano». 16

Poderemos concluir que, escolhendo a consciência kantiana, Eric Weil opta pela autonomia e pelos limites da razão, pela consciência da sua universalidade em ser finito, pelo pensamento humano que quer compreender e compreender-se mas que, por isso, não pode renunciar à procura de um Absoluto, fundamento de toda a realidade humana e mundana. Optando pela consciência do homem de Kant, que é um ser que conhece a necessidade porque é interesseiro, que deseja e espera no além uma justiça verdadeiramente divina, porque, já neste mundo e nesta vida, ele reconhece o valor absoluto de todo o indivíduo, opta pela razão que pensa o mundo e visa a acção, que é teórica enquanto prática.

Mas Eric Weil é kantiano de maneira pós-hegeliana - não somente porque Hegel é historicamente posterior a Kant, e Weil a Hegel, "mas também porque o nosso tempo não seria o que é se Hegel não tivesse existido, e porque Hegel não teria podido pretender à compreensão total se, antes dele, Kant não tivesse compreendido o que era compreender" - e pós-hegeliano de maneira kantiana, já que é certo que, onde há filosofia há discurso

coerente, quer dizer, a ideia de absoluto "é a ideia que produz a filosofia", embora o discurso absolutamente coerente seja somente uma ideia no sentido kantiano do termo.

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- Da razão filosófica à razão pedagógica Eric Weil - um Kantiano Pós-Hegehano

O sentido do projecto da Lógica da Filosofia é "unir o pensamento e a acção, a filosofia e a vida, o infinito e o finito, no círculo de uma compreensão activa e de uma acção compreendida."

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V i o l ê n c i a e n a u c a ç a o E n c _ ^ K a n t i a n o pós.Hegeliano - Da razão filosófica à razão pedagógica

1 Eric Weil cit por M. Perine in Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil, p. 13

2 Ibid 3 Idem p. 14 4 Ibid

5 P. Ricoeur cit por M. Perine in Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil, p.134

6 A. Wiel in "Comptes Rendus" -Archives de Philosophie 53, p. 685

7 M. Perine - Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil, p. 134 8 A. Wiel in "Comptes Rendus" -Archives de Philosophie 53, p. 684

9 M. Perine - Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil, p. 125

10 Eric Weil cit por M. Perine in Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil, p. 12

11 Gilbert Kirscher - Revue Philosophique de Louvain - Tome 87, Quatrième Série, N° 76, p. 664 12 Gilbert Kirscher cit por Labarrière in "Après Weil, Avec Weil" -Archives de Philosophie 53, p. 663 13 Eric Weil, cit por Labarrière in Le Discours de L 'Altérité - Une logique de l'expérience, p. 87 14 Labarrière - Le Discours de L Altérité - Une logique de I 'experience, p. 87

15 Idem, p. 88 16 Ibid

17 M. Perine -Philosophie et Violence -Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil,p. 134 18 A. Wiel in "Comptes Rendus" -Archives de Philosophie 53, p. 682

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- Da razSo filosófica à razïo pedagógica

1.2 - O Homem como Razão - o Homem como Violência

A definição de homem mais enraizada na nossa civilização e que é consagrada pela tradição filosófica e religiosa é a que o considera como animal dotado de razão e de linguagem racional. É também esta definição de homem que Eric Weil retém, ao afirmar claramente que a violência contradiz radicalmente a exigência de razão que o homem tem em si e que funda a sua humanidade.

Igualmente sob o ponto de vista da ciência, o homem deve merecer este título em sentido humano, isto é, no sentido consagrado por essa mesma tradição. Claro que o homem não se exprime e não se comporta naturalmente conformando-se às exigências da razão, mas deve esforçar-se por atingi-las para se tornar plenamente um homem.

Para ele próprio ser o que deseja e para que o outro possa ser considerado seu igual, deve ser racional. Ora, embora dotado de razão e linguagem, ele encontra-se sempre a um nível inferior ao da razão; "ele é mesmo o ser que não é, já que é essencialmente a sua própria transformação, e que essa transformação não é natural e descritível, mas o seu próprio fazer-se. "

O homem é um ser vivo como os outros, mas com a diferença de não ter só necessidade mas também desejos, que não fazem parte da sua natureza, mas que ele criou como necessidades - o homem procura o que ele apelida de sua negatividade. Ele ignora o que quer mas sabe o que não quer.

O homem é um ser que, com a ajuda da linguagem, da negação do dado [...] procura a satisfação, mais exactamente - porque não temos a menor ideia do que poderá ser a satisfação - procura libertar-se do descontentamento [...] Ser com

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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil

- Da razão filosófica à razão P=dagóg.ca O Homem como Razão - o Homem como Violência

negatividade, não somente dizer não ao que existe, mas produzir do que existe aquilo que ainda não há, um novo objecto, um novo procedimento, ambos isentos daquilo que era incómodo na natureza.

O homem é, assim, razão cativa num corpo de animal, tendo necessidades, interesses, desejos, paixões e que, como tal, está naturalmente predisposto à violência para com os seus semelhantes. Assim sendo, o verdadeiro trabalho humano consiste em transformar este ser composto, reduzindo, tanto quanto possível, o que não é racional, para que todo ele seja razão. Ele nunca será totalmente razão, mas será capaz de se fazer razão, isto é, será capaz de se transformar pela razão e para ela. É esse esforço do homem para pensar, para falar e para viver racionalmente que caracteriza a filosofia.

Para Weil, ao contrário do homem comum, o filósofo é o homem que nasce com esse estatuto, com sabedoria, o animal negador que acabará por negar a animalidade em si próprio; a razão não lhe dá satisfações imediatas porque ela é sabedoria, contentamento. Ora, todo o homem quer estar contente, noutras palavras, procura o bem, porque o bem é o que contenta o homem.

Nenhum sistema filosófico, (a menos que queiramos reconhecer como sistema filosófico conjuntos doutrinários que apenas pretendem formular as regras da ciência e organizar a actividade transformadora do homem na natureza), nenhum sistema faz excepção, e todos tendem unicamente para o contentamento.

É evidente que ao homem comum não lhe interessa o que dizem os filósofos, já que, para ele, é mais importante viver do que ser. De qualquer forma, a consciencialização de tal posição é fruto da influência dos filósofos e dos seus discursos, já que sem eles tal via não lhe seria visível, porque estaria imerso somente na sua vida.

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- Da razão filosófica à razão pedagóg,ca O Homem como Razão - o Homem como Violência

Assim, o homem comum pode tornar-se filósofo; podemos admitir tal possibilidade, mas o mais natural é que, uma vez possuidor da linguagem racional que o filósofo lhe ensinou, se ocupe das suas tarefas, que não são as do filósofo, de uma forma racional.

Épara um ser que fala, que, falando, persegue o sentido, para um ser que já deu um passo na discussão e que sabe qualquer coisa da racionalidade, que a violência é problema, que a violência acontece como problema. Assim, a violência tem o seu sentido no seu outro: a linguagem. E reciprocamente. A palavra, a discussão, a racionalidade obtêm também a sua unidade de sentido no

desejo que elas têm de reduzir a violência. A violência que fala éjá uma violência que procura ter razão; é uma violência que se coloca na órbita da razão e que começa já a negar-se como violência. 4

De qualquer maneira, esta "razão" não é a razão do filósofo, embora tenha sido a sua exigência de um discurso racional que levou os conhecimentos tradicionais a transformarem-se em afirmações e, de seguida, em teses demonstráveis.

O que parece estranho aos filósofos é que os homens não aproveitem tais conhecimentos para se tornarem cada vez menos animais e mais racionais, mas que os aproveitem, pelo contrário, para dominar outros homens, com a ajuda das suas paixões e reacções inconscientes, tornando-se também eles próprios cada vez mais inconscientes e somente mais fortes e mais hábeis para perseguir os seus fins, que são os menos racionais para o filósofo.

É, então, com a ajuda da obra do filósofo, que o homem sabe o que faz e sabe dizer porque o faz (e já não é somente instinto). Ele não deseja "o contentamento" do filósofo, porque prefere a vida com todas as suas facetas (boas e más) e, por isso, o filósofo

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- Da razão filosófica à razão pedagógica O Homem como Razão - o Homem como Violência

considera que ele não é racional. O filósofo compreende, no entanto, que, embora a filosofia (ou a razão) seja uma possibilidade para o homem, ele pode realizá-la ou não.

Se se trata da linguagem racional, é inegável que existe um discurso que nega a linguagem racional, a razão da filosofia, mas que, nem por isso, é um discurso incompreensível, um discurso de loucos.

A escolha da razão é uma escolha, não só não racional (porque o racional e o insensato se opõem no interior dos limites da razão), mas sobretudo uma escolha a-racional ou, num sentido que não exclusivamente temporal, pré-racional.

O homem comum obriga o filósofo a admitir que a procura da razão tem a sua origem na negatividade primitiva, nesse desejo que é a natureza humana. Isso é ponto assente. No entanto, mostra também que não é a negatividade simples e natural que o filósofo refuta, mas uma outra forma. Não é a negatividade primitiva do homem pelo desejo, nem de tudo o que nasce do desejo e da negatividade transformadora Qk que se assim fosse, ele rejeitaria também a filosofia), mas uma forma determinada de desejo. Ao mesmo tempo que o homem-filósofo decide optar pela razão, ele toma consciência do que nele o impede de se tornar racional. O filósofo não tem medo dos perigos exteriores, nem mesmo da morte; o filósofo tem medo do que em si não é racional, tem medo da violência. Essa violência que o filósofo descobre em si e que o leva a uma atitude não racional entrava a realização da sua própria humanidade.

Quando e se todos os homens quiserem apenas o contentamento, quando ninguém procurar mais a satisfação e o prazer, quando já ninguém seduzir nem ameaçar mais ninguém, quando todos em conjunto correrem em socorro do que sofra de paixão, então, e somente então, o filósofo poderá viver sem medo do medo; a

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Violência e naucaçao _ como violência

- Da razão filosófica à razão pedagógica «-» ™m™ lAmJV' "■

Graças ao discurso antifílosófico, a filosofia revela o seu segredo: o filósofo quer que a violência desapareça do mundo e, por isso, para ele, é ilegítimo tudo o que a faça aumentar. Está assim determinada, para o filósofo como para todos os outros, a máxima moral que deve orientar a atitude do homem em todas as circunstâncias:

O filósofo quer que a violência desapareça do mundo. Ele reconhece a necessidade, admite o desejo, concorda que o homem continue a ser animal, sendo ao mesmo tempo ser racional: o que importa é eliminar a violência. E legítimo desejar aquilo que reduz a quantidade de violência que entra na vida do

7 homem e é ilegítimo desejar aquilo que a aumenta.

Uma vez que a razão é constitutiva da própria humanidade do homem, de qualquer homem e de todos, "o principal dever (do homem moral) é respeitar a razão em todo o ser humano e respeitá-la em si mesmo respeitando-a nos outros".8 E isso significa,

em primeiro lugar, que deve abster-se de violentar quem quer que seja. "Ele não pode esquecer as consequências dos seus actos [...] não tem direito de querer aquelas, por

exemplo, que transformariam outros homens em coisas."

Para Eric Weil, existe uma estrutura do discurso que nunca coincide com ele, já que este é inesgotável. Há, assim, qualquer coisa definitivamente irredutível ao homem e que não é a razão mas que está na sua origem, uma realidade que limita o domínio de toda a universalização possível, porque ela é "a negação universal e absoluta do Universal e do Absoluto." Esta realidade é a Violência. Por isso, como a razão não existe fora da violência, há que enfrentá-la.

Toda a filosofia de Eric Weil é uma enorme meditação sobre esta dualidade da existência humana que mostra as suas possibilidades extremas - Filosofia (a busca de um

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- Da razão filosófica à razão pedagoga O Homem como Razão - o Homem como Violência

discurso coerente para a realidade total) e Violência, sendo que ambas estão intimamente ligadas e que uma não se pode compreender sem a outra:

compreender como pode a razão reencontrar dentro de si mesma a exterioridade radical da violência e da razão - exterioridade essa que Hegel pensa ter superado, que Kant descobre como um facto incontornável, para reflectir

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sempre.

A violência é, na perspectiva do autor, o não razoável irredutível ao discurso, é a recusa, definitiva e sem apelo, da autoridade da razão, e não uma arma ao serviço da razão ou instrumento da sua manha.

Razão e Violência são os contrários fundamentais da existência humana e só se separam, para o homem, depois da sua opção pela razão; por isso, ao filósofo não lhe interessa o indivíduo que conhece as possibilidades do discurso absolutamente coerente, mas o homem que, conhecendo-as, o recusa.

O homem pode assim escolher entre razão e não-razão, o que parece uma escolha livre mas não-racional, ou seja, do ponto de vista do discurso absolutamente coerente, uma escolha absurda. A liberdade não se confunde com o discurso da razão. Antes da razão, a humanidade exige a precedência ontológica da liberdade.

Se, para Hegel, a liberdade se confunde com o discurso da razão, Weil enfoca a possibilidade de existir a liberdade de dizer tanto não como sim ao discurso e à razão. O discurso não é o destino da liberdade. A recusa da razão é a outra possibilidade íntima da liberdade. A escolha da filosofia, por seu turno, não é

mais do que uma possibilidade face a outra. A esta outra, Weil chama violência Violência e razão têm a mesma origem: a liberdade.

A razão e a violência, a filosofia e o seu outro têm a mesma origem: a liberdade. A liberdade é, de facto, o verdadeiro princípio antropológico como princípio pré-racional.

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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil

- Da razão filosófica à razão pedagógica O Homem como Razão - o Homem como Violência

Assim, não é somente a liberdade que define o homem, mas também a violência, porque é original e irredutível. Este é o único estatuto que permitirá a coerência da escolha primordial entre a filosofia (expressão suprema da razão) e a violência. Tal escolha também não tem justificação, já que, para tal, era necessário um discurso anterior a outro para a justificar.

A natureza do homem é designada por dois termos diferentes: razão e liberdade. O homem, enquanto visa a universalidade, é racional; enquanto é capaz de universalidade, é liberdade; sendo capaz de razão, mas não sendo razão, é também capaz de optar contra a universalidade e a razão.

Neste sentido, pode dizer-se que o homem é liberdade indeterminada e sempre determinando-se: a liberdade pode aceitar como pode recusar a violência; pode colocar-se do lado da animalidade, da mesma forma que pode afastar-se dela. "A liberdade escolhe entre a razão e a violência". n Assim, para Eric Weil, o problema fundamental da filosofia

já não é a oposição entre discursos - já que, se assim fosse, o discurso absolutamente coerente teria absolutamente razão e o homem, qualquer que ele fosse, realizá-lo-ia sempre totalmente ou em parte - mas a oposição entre a filosofia consciente de si mesma e a atitude do homem que, embora conhecendo-a, a recusa.

Daqui se conclui que o homem não é essencialmente discurso e razão, mas somente capaz de razão, o que significa uma possibilidade do homem, sendo que a outra é a violência.

A razão é uma possibilidade do homem: possibilidade, isto designa o que o homem pode, e o homem pode certamente ser racional, pelo menos querer ser racional. Mas isto é apenas uma possibilidade, não é uma necessidade, e é a possibilidade de um ser que possui pelo menos uma outra. Sabemos que esta

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- Da razão filosófica à razão pedagóg.oa O Homem como Razão - o Homem como Violência

Mas a violência não é apenas a outra possibilidade do homem, ela é a possibilidade realizada em primeiro lugar.

É evidente que o discurso absolutamente coerente é importante do ponto de vista do filósofo, que fala no interior de um discurso não violento, mas não para o homem comum, para quem ele é apenas uma possibilidade entre outras, uma vez que para si, a ideia de coerência absoluta não tem sentido. Assim, aquele que escolheu o discurso racional contra a violência pode esbarrar na violência do homem que não aceita esse discurso e que "procura o contentamento lutando pelo seu próprio discurso, que pretende seja único, não só para ele, mas para toda a gente, e que tenta tornar realmente único por meio da supressão real de todos aqueles que têm outros discursos."

A violência só se compreende pela reflexão, isto é, depois de o homem ter realizado uma retrospectiva da sua própria violência. Ele só descobre e compreende a violência que existe nele, na sociedade e na história, porque já tem a ideia de não-violência.

O homem não se compreende como violência, porque ele não é apenas violência. Tudo o que é violência para o homem é-o porque ele já tem a ideia da não-violência e, por esta razão, pode ver a violência na natureza [...]Não existe não-sentido senão do ponto de vista do sentido.

O resultado paradoxal é que a violência só tem sentido para quem a recusa pela filosofia. Como reflexão da realidade, a filosofia nasce da negatividade do homem em busca do contentamento. Fruto de uma escolha da razão, ela surge como a possibilidade de superar a violência que caracteriza o homem enquanto animal. É por isso que a origem, o segredo e o fim da filosofia consistem na eliminação progressiva da violência, dado que esta só pode impedir o contentamento do ser finito e racional, porque ela é a recusa da

Referências

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