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O ÊXTASE COMO SENTIDO DAS AÇÕES HUMANAS EM PLOTINO

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RHEMA, v. 17, n. 54, p. 25-37, ago./dez. 2019 - ISSN 2446-628X 25 Regina Lúcia Praxedes de MEIRELLES

Thobias Costa LOPES RESUMO

O presente artigo tem por objetivo analisar a experiência do êxtase enquanto finalidade da práxis humana, sob a ótica do filósofo neoplatônico Plotino na obra

Tratados das Enéadas (2000). Para se alcançar essa reflexão, este texto inicia

apresentando uma breve síntese do contexto filosófico em que Plotino está inserido, e do que se trata a sua obra magna. Em seus tratados, o filósofo estabelece um princípio que é causa de si mesmo e que dá origem a toda a realidade: o Uno. Este princípio portanto equivale a Deus. Dele derivam o Nous, a Alma e também a matéria sensível. Na processão a partir do Uno está inserido o homem enquanto alma que se ocupa de um corpo, e que precisa retornar à sua origem que está em Deus. Assim, o ser humano para alcançar o verdadeiro sentido da existência, deve percorrer um caminho de retorno ao Uno, se esvaziando de todo apego ao material e aspirando pelo eterno. A culminância desse retorno está na experiência do êxtase, a total união com Deus, que passa a dar sentido a toda prática humana.

Palavras-chave: Plotino. Êxtase. Metafísica. Ética. Neoplatonismo.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo pretende refletir sobre a experiência do êxtase na filosofia de Plotino (205-270 d.C.), filósofo grego e fundador da escola neoplatônica. Em um tempo em que o materialismo, o niilismo e outras tantas correntes se difundem com intensidade (REALE, 1999), a filosofia de Plotino se apresenta como um fundamento

Mestra em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2007). Coordenadora do curso de graduação em filosofia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF).

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místico e transcendental para aqueles que ainda acreditam na existência da verdade objetiva.

O precursor do neoplatonismo sempre teve uma inquietação forte: a busca pelo verdadeiro. Ao ouvir o platônico Amônio de Sacas (175-242 d.C.) e após ter tido interesse por várias culturas orientais, pôs-se a escrever com afinco sobre o Super-Bem, ou seja, o Uno. Este é o fundamento de toda a sua metafísica. Em Plotino, o Uno é Deus e do qual provém toda a realidade.

Seus escritos formam cinquenta e quatro tratados: os Tratados das

Eneádas. Estes foram organizados e divulgados por seu discípulo Porfírio (234

304 d.C.) em seis capítulos, cada capítulo constituído de nove (em grego ennéa) tratados, donde tem origem o termo Enéada. Tais escritos contribuíram com as escolas filosóficas gregas posteriores, bem como com pensadores cristãos medievais, entre eles, Agostinho (354-430d.C.).

O caminho traçado neste artigo procura refletir sobre a seguinte problemática: de que forma o êxtase enquanto experiência pode ser considerado a finalidade das ações humanas? Para elucidar tal problema, este texto se apoia no argumento plotiniano de que, a partir da experiência extática com o Uno, o homem contempla a verdade e age em conformidade com ela.

O trabalho aqui apresentado tem as Enéadas como base fundamental e utilizou como metodologia a pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo, que deu origem a um texto narrativo etnográfico sobre a temática selecionada. Para seu desenvolvimento foram traçados os seguintes objetivos: na primeira seção foi apresentada a teoria da processão a partir do Uno; na segunda seção discorreu-se sobre o retorno do homem ao Uno; na terceira seção abordou-se o conceito de êxtase em Plotino e nas considerações finais buscou-se apontar a pertinência do êxtase enquanto experiência filosófica e mística.

Como referenciais teóricos para a constituição deste artigo foram utilizadas, além da obra magna de Plotino, as obras: O saber dos antigos (1999) e Plotino e

o Neoplatonismo (2014) de Giovanni Reale, os artigos A processão em Plotino

(1995) e Plotino – O Retorno ao Uno (1996) de Renholdo Ullmann, A Metafísica

de Plotino (2014) de Jean-Marc Narbonne, e também o Dicionário de Filosofia

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2 A PROCESSÃO DA REALIDADE A PARTIR DO UNO

A originalidade do sistema de Plotino está justamente na afirmação da unidade, é esforço central no pensamento neoplatônico afirmar uma realidade una. De tal forma, seu sistema não se encaixa no dualismo platônico, que é a afirmação de “dois princípios originários e ativamente opostos uns aos outros” (NARBONNE, 2014, p. 133).

Em Plotino a realidade tem um único princípio que antecede a todas as coisas e até mesmo ao Ser, ele chama esse princípio de Uno. Todas as realidades inteligíveis e corpóreas têm a sua origem no Uno e a ele estão submetidas.

Utilizando da lógica aristotélica que influenciou o filósofo, pode-se afirmar que o Uno tem em si uma potência inesgotável que dá o ser a tudo que existe, e que também abarca tudo em si mesmo.

Como afirma Plotino (2000) em:

Antes de todas as coisas tem de existir o Simples, diferente de tudo o que dele advém, auto existente, e no entanto capaz de estar presente nessas outras ordens. Ele tem de ser uma autêntica unidade: não apenas algo elaborado em uma unidade, e que seria uma falsificação da unidade. Não é possível conhecê-lo ou falar a respeito dele. Ele é descrito “além do Ser” ou “Sobre Ser” (PLOTINO, 2000, p. 55).

O precursor do neoplatonismo não tinha em mente o viés criacionista, portanto, afirma que o Uno é ulterior ao Ser em sentido estritamente lógico. Ora, se Deus é anterior ao Ser e o mais Simples possível (já que nele não há nada de múltiplo) não se encaixa nas categorias humanas, dele só se fala com maior clareza através de metáfora ou de uma teologia apofática, ou seja, um conhecimento daquilo que ele não é.

Dessa forma, o princípio primeiro é causa sui (causa de si mesmo) e totalmente livre, nele a liberdade e a potência ativa (ato puro) coincidem. Por isso, ao gerar o que é posterior a si,Deus exerce a sua total liberdade e nesse sentido se constata o total poder do Uno.

Seguindo o modo como o filósofo nos indica para se falar do Uno, pode-se aqui fazer uma metáfora de maneira didática: o som é como a processão a partir do Uno, possui uma origem única que se espalha em ondas sonoras sobre o espaço,

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todavia, quem as escuta no extremo mais distante reconhece que se trata do mesmo e único som.

O poder do Uno de expandir em si mesmo não o enfraquece, mas o confirma, pois não há nada que exista que possa escapar de sua força infinita. Entendendo a concepção de Plotino, pode-se afirmar sem se contradizer que a processão é necessária porque o Uno é livre. Ao querer ser ele mesmo – ato puro – gera os demais seres.

Voltando-se para si mesmo, o Primeiro Princípio se pensa, e é justamente

nesse ato que reside a origem da segunda hipóstase1 da realidade: o Nous,

traduzido para o português como Espírito ou Inteligência. Será visto adiante que é nessa segunda hipóstase que reside o Ser e que ela deriva da contemplação do Uno em si mesmo, ao passo que também o contempla.

O professor Ullmann (1995, p. 162) a explica dessa maneira quando diz que “de uma parte contempla o Uno e, de outra parte contempla a si mesma desde toda a eternidade”. O Espírito parte de um querer de Deus de se contemplar e é justamente nesse querer que ele é gerado.

Torna-se oportuno aqui mais uma metáfora: quando o homem quer pensar, não consegue realizar esse movimento sem possuir um objeto do pensamento, não há como se pensar sem o conteúdo do pensamento. De tal forma que o Uno ao querer se contemplar tem necessariamente que se expandir, gerando o pensado.

Aquilo que o Super-Ser gera já não é mais Simples como ele o é. Utilizando

de linguagem aristotélica pode-se dizer que é a Díade2, primordialmente uma

matéria inteligível. Na processão, o Espírito é ainda incialmente algo de informe, não se tratando de um mundo suprassensível definido. (REALE, 2014).

Somente quando a Inteligência realiza a contemplação de si mesma, ao passo que contempla também o Uno, é que ela se entende como derivada dele e que já não é mais o princípio. Desse querer de pensar a si, o Nous se expande como múltiplo, mundo inteligível ou morada das ideias, e é justamente nesse fato que reside uma perceptível originalidade plotiniana.

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A transcrição latina desse termo é substância. Plotino considera assim a realidade composta por três hipóstases, ou seja, três substâncias (ABBAGNANO, 2007, p. 581).

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Ora, se Deus é a origem do Ser, aquilo que provém dele primeiramente é o próprio Ser. Plotino eleva as ideias e o mundo inteligível ao Ser, ou seja, a perfeição daquilo que é, está nele. Em Platão (428-348 a.C.) as coisas são na medida em que participam das ideias, já em Plotino as ideias já são o modo mais pleno de ser.

Dessa forma, no querer do Nous de pensar a si mesmo, gera-se mais um objeto do pensamento, que Plotino vai chamar de Alma (a terceira e última hipóstase). A Alma olha para a Inteligência e através dela para o Uno, sua essência consiste no dar vida a realidade sensível e em vivificar o existente.

No refletir da Alma sobre si mesma ela gera o seu objeto do pensamento de modo hierárquico, conceituando-se assim três níveis de Alma: a Alma Universal que é a dimensão que está em contato direto com o Espírito; a Alma do mundo sensível que é a dimensão que se comunica com o corpóreo e as almas particulares que dão vida aos seres.

Contudo, não pode se considerar a Alma como algo que é tangido pelo corpóreo, pelo contrário, nela só há o imaterial. A terceira hipóstase ocupa uma dimensão intermediária na filosofia de Plotino porque é incorpórea, mas também se comunica com o sensível.

Dessa forma, o neoplatônico altera completamente o conceito de natureza. Considerado até então, principalmente por Platão, como a matéria sensível sendo receptáculo das formas inteligíveis. Já em Plotino, não se trata mais de algo imanente ou marcado pelo material, mas sim, do extremo da expansão da Alma ao se comunicar com a matéria sensível, do lugar onde termina a veracidade dos seres. Posto isso, pode-seaqui abordar o sentido da matéria sensível plotiniana: ela é o extremo alcance da expansão do Uno através da Alma. Torna-se pertinente retornar à metáfora do som: ela (a matéria) seria o ponto em que a força das ondas sonoras se torna a mais fraca possível, ou seja, não tem o grau de ser pleno, mas é um reflexo do ser.

Na filosofia de Plotino o mundo sensível tem duas visões: é considerado como mal, mas também como marcado pelo Bem. Tem o sentido de mal porque é potência passiva (visto que o Uno é potência ativa infinita), não produz mais nada e apenas recebe a modelação a partir do Uno. Assim, é entendido como ruim no sentido da privação porque está privado de se expandir. O precursor do

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neoplatonismo não o afirma enquanto mal ontológico, visto que seria uma realidade oposta ao Uno e incorreria no dualismo radical.

Todavia, Plotino se distingue do outros filósofos antigos quando afirma que o mundo sensível é positivo. No sentido da positividade ela não pode ser entendida como contrária ao Bem, pois, mesmo que indiretamente, deriva dele e é por ele sustentada. Tal como Plotino (2000) afirma em:

Tudo que há de mais belo no Mundo Sensível, é uma imagem ou manifestação do que há de mais nobre no Mundo Inteligível. Os seres deste último compartilham com os daquele sua força e sua bondade. Deste modo, todos os seres, tanto os inteligíveis como os sensíveis constituem uma cadeia contínua: o inteligíveis existem por si mesmos, enquanto os sensíveis sempre recebem sua existência participando dos primeiros, imitando com todas as suas forças, a natureza inteligível (PLOTINO, 2000, p. 92).

Logo, o mundo corpóreo possui um caráter positivo sendo o rastro da perfeição do imaterial e eterno. Trata-se então do primeiro estágio do retorno ao Uno, como será visto adiante.

3 O CAMINHO DE VOLTA AO UNO

Como já tratado, na hipóstase da Alma se encontra também as almas particulares, e entre elas está a alma do homem. A Alma nesse caso se torna múltipla porque é um desenvolvimento da infinita potência do Uno, e quando entra em contato com a realidade sensível a vivifica. Essa mesma vivificação que é inerente a Alma do mundo corpóreo, se faz presente na alma humana.

Logo, para o fundador do neoplatonismo, o verdadeiro homem não é considerado como o composto entre corpo e alma, mas, é antes de tudo apenas a própria alma. Esta segue uma tripartição, como afirma Reale (2014):

[...] no sentido de que “três homens” podem ser considerados como três almas, ou melhor, “três potências” da alma, dado que o primeiro homem não é mais que a alma considerada na sua tangência com o Espírito (tangência que estruturalmente, nunca deixa de existir): o “segundo homem” é a alma ou pensamento discursivo, que está no meio entre o inteligível e o sensível, e o terceiro homem é a alma que vivifica o corpo terreno [...] (REALE, 2014, p. 105).

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É nessa segunda dimensão humana que encontramos a tendência para o melhor (que é o Espírito) ou para a imagem (que é a matéria), visto que o corpo também tem as suas afecções materiais. Entretanto, a tendência para o material não dever ser vista como um mal moral, ela deve-se ao fato de que quando a alma se ocupa de um corpo acaba por esquecer de si mesma. Assim, adquire uma visão débil e obscura do mundo.

Ora, se a alma provém do Absoluto, e tem apenas uma visão obscurecida pelo seu agir no mundo sensível, ela também tem a possibilidade de fazer um caminho de retorno para o seu princípio e encontrar a realização. Plotino afirma que esse é um processo natural e que pode ser feito já nessa vida.

Ao entrar em contato com as afecções físicas a alma as julga porque ainda tem contato com a origem perfeita, visto que a alma humana também está na dimensão imaterial, sendo direcionada ao Uno através da Alma Suprema. É na sua função vivificante que ela encontra no mundo material o rastro das formas inteligíveis e por meio deles pode se empenhar no regresso ao Absoluto.

Assim, pode-se afirmar que as belezas do corpóreo estimulam o homem nesse processo, contemplando o belo sensível o homem sente-se impelido ao belo inteligível e aspira por ele. O retorno ao Uno propõe uma busca incessante pelo imaterial, ou seja, pelo verdadeiro ser que não possui nenhuma debilidade.

Ullmann (1996) diz:

A beleza tem, pois, função iniciática. Ao Uno, Belo subsistente, a alma só logra alçar-se, se não mais tiver nenhuma alteridade, isto é, quando tiver abstraído, por completo da matéria. Por outras palavras, o homem deve fugir do mundo. Essas palavras soam como se foram de um cristão, com os olhos e o coração voltados exclusivamente para o alto. Essa fuga do mundo Plotino expressa-a metaforicamente com o retorno de Ulisses à pátria (ULLMANN, 1996, p. 29).

Tal reunificação com o Belo é o realizar-se da alma plenamente.Não se trata de um desprezo pelo sensível como totalmente negativo, pois, esse tipo de visão pessimista da matéria sensível foi totalmente contrariado por Plotino ao refutar os gnósticos (REALE, 2014). É antes de tudo, comparado a experiência de encontrar uma riqueza infinita e a partir desse encontro não ter apego aos bens anteriores.

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O homem além de usar sua inteligência é chamado também a usar de sua vontade para percorrer esse caminho.No uso da vontade ele deve praticar as virtudes,classificadas pelo neoplatônico como cívicas e catárticas.

As virtudes cívicas servem como uma ação motriz no controle das paixões corpóreas - um meio de moderação do homem - são elas: justiça, prudência, fortaleza e temperança. Já as virtudes catárticas3 são as mesmas que as cívicas, contudo, o diferencial está na aspiração pelo Espírito. Nelas a justiça tem como modelo o Espírito, a prudência tem aspiração pelo Espírito, bem como a fortaleza e a temperança as têm.

Todos os homens, porque procedem do Uno, têm condições de realizar o retorno a ele de maneira natural (aqui Plotino não aceita o papel da graça cristã), mas nem todos o percorrem completamente porque estão apegados a multiplicidade do mundo sensível e acabam por viver submergidos nele.

Desse modo o ser humano deve abster-se de qualquer pretensão de discurso ou conhecimento múltiplo a respeito da realidade, deve fugir de toda alteridade e abrir-se completamente ao Uno. O escritor das Enéadas aqui incute um viés religioso em sua filosofia, pois, afirma que o maior conhecimento está na contemplação silenciosa de Deus.

Entende-se essa fuga da multiplicidade sensível não como uma rejeição ao

material, mas, como um encher-se completamente da grandiosidade do Todo – do

infinito. Ao contemplar o ser, por consequência o homem toca no Absoluto que é o Uno.

Por linguagem apofática, o retorno ao Uno não é algo de antinatural nem um lançar-se irracional na crença do Absoluto, mas a finalidade da alma humana. Não é um caminho especulativo ou imaginativo, mas um abster-se de qualquer influência sensível para apegar-se unicamente ao Belo.

4 A EXPERIÊNCIA DO ÊXTASE PLOTINIANO

O ápice da volta humana ao Uno é a experiência do êxtase, melhor dizendo: a experiência de uma total e profunda união da alma com Deus, a qual Plotino

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Em Platão, o adjetivo catártico, ligado a catarse se refere àquilo que conserva o melhor e elimina o ruim. (ABBAGNANO, 2007, p. 137).

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também experimentou em vida. Para tal, não basta ao homem fazer uma volta puramente intelectiva ao seu princípio, mas, se torna necessário unir-se a ele por intuição pura, em que toda a diferença – sujeito e objeto – se perca na comunhão íntima.

Antes de tudo é preciso ressaltar que o êxtase em Plotino não é um estado irracional ou antinatural, não se trata de um transe ou sentimentalismo extremo. O contato estático com o Uno é ao contrário um abandonar de toda e qualquer multiplicidade, inclusive das sensações e conceituações objetivas do mundo sensível.

Essa união mística proposta pelo escritor das Enéadas é totalmente realizável, pois, não pode ser estranho à alma se unir com o princípio que ela contempla desde toda eternidade. Assim, o êxtase é o repouso do homem em Deus, como afirma Plotino (2000):

Na verdade, não se trata de uma contemplação no sentido comum, mas de uma contemplação de outra espécie, de uma saída de si, um abandono de si, uma simplificação, uma aspiração ao contato e ao repouso. No entanto isso é apenas uma imagem do que ocorre, e é assim, através de signos, que os sábios, entre os expositores das coisas sagradas, expressam a maneira como o Deus supremo é visto (PLOTINO, 2000, p. 144).

Como já abordado, ao Uno não pode ser atribuído nenhum conceito humano que o explique completamente, já que ele é a causa primeira do Ser. Portanto, também o homem não pode exprimir essa experiência por um discurso sistemático e muito menos indicar um método lógico para se tocar no Uno, assim, o êxtase é uma experiência inenarrável do contato com a eternidade.

A unificação com Deus não é entendida pelo filósofo grego como um encher-se de conteúdos supremos que dão ao homem uma sabedoria incomensurável. Todavia, unir-se ao Uno é um esvaziar-se completamente de si e de qualquer tentativa humana de permanecer enquanto multiplicidade, pois, a alma só se torna plena fugindo da sua individualidade e indo ao encontro do Todo.

Entretanto, corre-se o risco de considerar erroneamente o êxtase como uma anulação do homem (do indivíduo). A experiência unificante não é uma deificação, pois a alma, mesmo sendo uma processão a partir do Uno já está abarcada por ele. Se o ser humano ainda tivesse a necessidade de ser Deus enquanto parte dele, o poder do Uno não seria infinito.

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O êxtase, ao contrário é uma experiência de assimilação com o Todo, é um tocar na fonte primeira, para que na temporalidade o homem seja mais semelhante ao seu gerador. Assim, o neoplatônico (2000) deixa claro que ao unir-se a Deus ocorre uma co-presença com o divino:

Portanto, nesse momento, o vidente não vê, nem distingue, nem imagina que são dois: mas, tendo se tornado de certo modo outro, e não mais sendo ele mesmo, nem dele mesmo, pertence inteiro ao que está lá no alto, e possuído por ele, é uno com ele, como se o seu centro coincidisse com o Centro. Pois, mesmo aqui embaixo, dois centros que coincidem são um, mas tornam-se dois quando se separam (PLOTINO, 2000, p. 142).

Essa possibilidade da alma humana descrita pelo filósofo trabalhado serviu de contribuição para a teologia mística cristã que o sucedeu. No cristianismo o êxtase plotiniano é o excessus mentis medieval, ou seja, o ápice da experiência com o Deus Trino. Nota-se claramente que a estrutura mística apresentada por Plotino também contribuiu com a teoria da iluminação de Agostinho, todavia, o principal fator que o difere dos medievais é a desconsideração do papel da graça cristã (o homem não precisaria de auxílio divino para experimentar o Divino).

Torna-se imprescindível ressaltar também, que o contato extático com Deus não retira o homem do envolvimento social com a realidade. Ou seja, o êxtase plotiniano não é um abandonar do compromisso ético após a assimilação com o Uno, ao contrário, é a condição de possibilidade para uma ação ética mais perfeita. É interessante que o próprio Plotino tinha o desejo de fundar uma cidade (Platonópolis) onde as relações se estabelecessem fundamentadas na unificação com o Todo.

Pode-se assim afirmar que experimentar Deus plenamente não é desinteressar-se pelas coisas corpóreas, ou até mesmo se julgar superior a elas. Na metafísica neoplatônica o êxtase implica o compromisso de olhar o corpóreo como ícone (imagem que leva ao perfeito) e não como ídolo (imagem que basta por si mesma), em outras palavras, é viver neste mundo buscando o eterno. Em uma das passagens das Enéadas o filósofo grego (2000) deixa isso claro:

Aqueles que ainda não viveram essa experiência podem fazer uma analogia dela com os amores daqui debaixo: pensem naquilo que amam mais do que tudo neste mundo. Então, pensem que esses amores pelas criaturas são mortais e caducos, que têm por objeto apenas reflexos da realidade, pois não são o nosso verdadeiro amor, nem o nosso bem, nem o que buscamos.

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O nosso verdadeiro Amado está lá no alto. A ele podemos nos unir verdadeiramente, participando d’ele, possuindo-o realmente, e não apenas o envolvendo exteriormente com a nossa carne (PLOTINO, 2000, p. 140).

O agir humano sob inspiração do êxtase é possível porque o indivíduo não se esquece de seu contato com o Uno, apenas não consegue expressá-lo de maneira clara, visto que trata-se de uma experiência única e intransferível. Essa concepção de experiência mística se difere completamente com aquela do senso comum, pois não implica um desprezo pela vida terrena, mas, dá sentido completo a ela.

Plotino consegue através de um discurso filosófico unir a racionalidade com a dimensão religiosa, logo, a contemplação do mistério é a via ordinária do reto uso da razão. De tal forma, que tratar sobre o êxtase é também refletir sobre o papel da metafísica, antropologia e ética neoplatônica. Mais do que uma mera experiência, a

total unificação com o Uno é teleologia4 da práxis humana (ULLMANN, 1996).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Plotino encontra-se uma originalidade filosófica ao ligar a racionalidade à mística. Não se trata de um pensador que menospreza a visão religiosa do mundo, ao contrário, nele a religiosidade é indispensável para se acessar a verdade.

Na contemporaneidade muitas vezes se associou a razão a uma discordância com o mistério e com as experiências místicas, mas no filósofo aqui trabalhado constata-se a possibilidade de um discurso racional totalmente vinculado a esse viés. Portanto, o êxtase compreendido por Plotino não é meramente uma experiência irracional ou sentimentalista, mas um encontro com Deus (Uno) que permite ao homem dar sentido completo às suas ações.

Logo, a figura do filósofo que alcançou a verdade não está relacionada a um acúmulo de saber discursivo, mas, está estritamente ligada a um saber que se constata na sua maneira de viver. Tendo consciência de que há um primeiro princípio que extrapola as definições humanas, a sabedoria consiste então na contemplação deste.

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Se contrapondo também a outras perspectivas do senso comum, a unificação com o Uno não retira o homem de seu compromisso ético e político, mas, o impulsiona cada vez mais a ele. Plotino continua a seguir a teoria platônica ao afirmar que aquele que se encontrou com a Verdade tem por vocação aponta-la a cada homem, mostrando qual o caminho a ser trilhado.

Dessa forma, se unir a Deus e experimentá-lo é um caminho que deve ser percorrido de maneira individual, trata-se de uma experiência intransferível como já afirmado. O retorno ao Uno, portanto, é uma indicação daqueles que já o contemplaram.

O precursor do neoplatonismo estabelece assim nas Enéadas a condição primeira para se alcançar o êxtase: esvaziar-se de si para se encher do verdadeiro Amor da alma humana.

THE ECSTASY AS SENSE OF HUMAN ACTIONS IN PLOTINUS ABSTRACT

The present article aims to analyze the experience of ecstasy while purpose of human actions, from a perspective of the neoplatonic philosopher Plotinus in his Treaties of the Enneads (2000). In order to achieve this reflection, this text begins by approaching a brief synthesis of the philosophical context in which Plotinus is inserted, and what his great work is about. In his treatises, the philosopher establishes a principle which is the cause of itself and which gives rise to all reality: the One; this principle is therefore equivalent to God. From him derive the Nous, the Soul and also matter. In the procession from the One man is inserted as a soul that deals with a body, and that needs to return to its origin that is in God. Thus, the human being to obtain the meaning of life must go a way back to the process of emptying attachment to material and aspiring for the eternal. The culmination of the return is an experience of ecstasy, a total union with God, which gives meaning to all human practice.

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REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicolla. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

NARBONNE, Jean-Marc. A metafísica de Plotino. São Paulo: Paulus, 2014. 191 p. PLOTINO. Tratados das enéadas. Tradução Américo Sommerman. São Paulo: Polar, 2000. 188 p.

REALE, Giovanni.O saber dos antigos: terapia para os tempos atuais. São Paulo: Loyola, 1999.

______. Plotino e o Neoplatonismo. São Paulo: Loyola, 3ª ed. 2014. 210 p.

ULLMANN, Reinholdo. A processão em Plotino. Revista Veritas. Porto Alegre, v.40 n. 158 p. 157-164, jun., 1995.

______. Plotino: o retorno ao Uno. Revista Veritas. Porto Alegre, v.41 n. 161 p. 27-36, jun., 1996.

Referências

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