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O jovem Trotsky: entre menchevismo e bolchevismo

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O jovem Trotsky: entre

menchevismo e bolchevismo

Gustavo Henrique Lopes Machado |

O pensamento e, sobretudo, as posições políticas de Leon Trotsky no período que antecede a Revolução Russa foram, desde muito cedo, objeto de grandes debates e polêmicas. E isto não se deu sem motivo. Gozando de grande prestígio pela sua atuação na revolução de 1917 e na direção do Exército Vermelho, Trotsky foi o alvo prioritário da burocracia stalinista quando se tornou o porta-voz de sua oposição. Nesse cenário, as polêmicas e disputas entre Lenin e Trotsky, que se seguiram desde pelo menos o segundo congresso da Social-democracia russa – 1903, quando se deu o seu fracionamento entre Bolcheviques e Mencheviques–, foram largamente difundidas. Com particular intensidade as duras críticas de Lenin à Trotsky realizadas no período entre 1909 e 1912. Não é preciso remontar aqui o que já fora dito e redito um sem-número de vezes. É suficiente mencionar que, com auxílio dessas antigas polêmicas, Trotsky fora convertido em menchevique e em inimigo número um do bolchevismo.

Não sem razão, os trotskistas e o próprio Trotsky se dedicaram, desde então, a mostrar o outro lado da moeda. Particularmente, a mútua admiração que sempre existira entre os dois principais dirigentes da revolução de 1917, a confirmação histórica da teoria da revolução permanente elaborada por Trotsky desde o início do século, seu papel de destaque na revolução de 1905, suas críticas precoces e certeiras a visão estapista da história dos mencheviques e assim por diante. Por outro lado, as diferenças com Lenin foram, regra geral, expostas do seguinte modo: a revolução de 1917 marcou a aproximação de Lenin da teoria da revolução permanente de Trotsky e a adesão desse último à concepção de partido sustentada pelo principal dirigente do partido

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Bolchevique, reconciliando-os.

Apesar desta conclusão não ser, em suas linhas mais gerais, falsa, distante está de dar conta do cerne das diferenças entre os dois. Em verdade, Lenin raríssimas vezes abordou o tema da teoria da Revolução Permanente. Trotsky, inclusive, sustenta, anos depois, que Lenin sequer havia lido seus escritos sobre o tema. Por outro lado, exceto por um antigo ensaio denominado Nossas Diferenças Políticas, a questão da concepção de partido em Lenin encontra-se praticamente ausente nos escritos conhecidos de Trotsky até a revolução. Qual seria, então, o motivo central do embate entre Trotsky e Lenin no período entre a cisão da social-democracia russa e a revolução de 1917?

Em função das calúnias a que foi sistematicamente submetido, da identificação caricatural do stalinismo com o leninismo, o próprio Trotsky não deixou de nuançar a real natureza de suas divergências com Lenin no período anterior a sua adesão ao bolchevismo. Tratava-se do conciliacionismo ou do centrismo de Trotsky que, em todo período precedente, batalhou pela unidade entre bolcheviques e mencheviques, entre revolucionários e reformistas. Não foi casual que somente em seu último e inacabado escrito, a biografia de Stalin, Trotsky dedicou um espaço considerável a este tema. Por isso, nesse artigo, nos centramos exclusivamente nesse texto, tendo em vista esclarecer o conteúdo central da polêmica de então. Sobretudo, hoje, passados 25 anos do sepultamento definitivo do aparato stalinista no leste europeu, já é chegada a hora de reexaminarmos a questão sem a interpenetração das caricaturas do passado, para dela retirarmos as devidas lições.

O conciliacionismo de Trotsky

É sabido que Trotsky, já na sua juventude, desenvolvera a tese de que somente o proletariado russo poderia assumir o papel dirigente em uma futura revolução nesse país. Mais ainda. Tal revolução, em função da posição social do proletariado,

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assumiria tarefas imediatamente socialistas. Sua concepção se opunha tanto a visão etapista menchevique-plekanoviana da necessidade de uma longa etapa liberal burguesa na Rússia, assim como a teoria do próprio Lenin que acenava, ainda que temporariamente, na direção de um governo operário-camponês nos marcos de uma República burguesa. Trotsky poderia, nesse caminho, ainda que grosseiramente, ser caracterizado como à esquerda dos Bolcheviques. Como explicar, portanto, o fato de ter batalhado tão persistentemente pela reconciliação entre bolcheviques e mecheviques?(1).

O próprio Trotsky nos explica: em sua antiga acepção, com o irromper de uma “nova Revolução, sob pressão das massas trabalhadoras, as duas frações iriam de qualquer maneira ser compelidas a assumir uma posição idêntica, como o haviam feito em 1905” (TROTSKY, 2012, 354). Em outro lugar, assinala o que s e r i a “ c a l c a n h a r d e A q u i l e s ’ d o ` t r o t s k i s m o ’ : “ o conciliacionismo, associado à esperança de uma reencarnação revolucionária do menchevismo” (TROTSKY, 2012, 376). Qual seria o pressuposto teórico dessa visão conciliacionista propugnada por Trotsky? Em que se baseava sua crença de que o menchevismo se envergaria para posições revolucionárias sob o influxo de um processo revolucionário?

Em outra passagem, o revolucionário russo esclarece seus pressupostos: a “política de conciliação crescia nas esperança de que o próprio curso dos acontecimentos pudesse proporcionar a tática necessária” (TROTSKY, 2012, 354). Ou seja, na acepção do jovem Trotsky, as táticas são “proporcionadas” pelo movimento, pelos acontecimentos e não em função do objetivo final, já que este último é engendrado espontaneamente pelo primeiro. Tratava-se unicamente de fomentar um bloco à esquerda e, feito isto, a realidade mesma se encarregaria do resto. Tática e estratégia, meios e fins são separados por um abismo. Tanto é assim que logo em seguida complementa:

“o otimismo fatalista significa, na prática, não apenas repúdio a luta fracional, mas da própria ideia de um partido,

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porque, se ‘o curso dos acontecimentos’ é capaz de, diretamente, ditar às massas a política correta, qual a utilidade de qualquer unificação especial da vanguarda proletária, da elaboração de um programa, da escolha de dirigentes, do prepara no espírito da disciplina?” (TROTSKY, 2012, 355).

O raciocínio empírico oculto sobre tal equívoco não é difícil de deduzir. Com a reação que se abateu a partir de 1909 na Rússia, a tendência à unidade a todo custo se acirrou nas fileiras da social-democracia. Como explica Trotsky: a “contínua fragmentação do Partido em pequenos grupos, que travam batalhas implacáveis no vácuo, despertou, em muitas frações, o desejo de acordo, de conciliação, de unidade a qualquer preço” (TROTSKY, 2012, 354). Parafraseando Bernstein, c o m o o m o v i m e n t o é t u d o e o o b j e t i v o f i n a l b r o t a espontaneamente desse movimento, a força das posições revolucionarias são medidas em função da dimensão quantitativa do bloco que se contrapõem à classe dominante, independente de seu programa específico. No entanto, a autocrítica de Trotsky foi completa. Destaca que certos “críticos do bolchevismo […] encaram o meu velho conciliacionismo como expressão de sabedoria. Contudo, o seu erro profundo já foi há muito demonstrado tanto na teoria como na prática” (TROTSKY, 2012, 354-355). Tal erro profundo consiste basicamente no seguinte:

Uma simples conciliação de frações só é possível ao longo de uma espécie de linha ‘média’. Mas onde há garantia de que

esta diagonal possa coincidir com as necessidades do desenvolvimento objetivo? A tarefa da política científica é

deduzir um programa e uma tática de uma análise da luta de classes, não do paralelogramo [sempre instável] de forças secundárias e transitórias, como frações partidárias. Na verdade, a posição da reação era tal que apertava a atividade política de todo Partido dentro de limites extremamente estreitos. A esse tempo, poderia parecer que as divergências não tinham importância e eram, artificialmente, inflamadas

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pelos dirigentes emigrados. Contudo, precisamente durante o período da reação, o partido revolucionário não poderia forjar os seus quadros sem perspectivas mais amplas” (TROTSKY, 2012, 354-355).

Como se vê, para o Trotsky pós-1917, a elaboração teórica de uma política não se baseia na somatória ou justaposição de partidos ou frações, não se funda em uma linha média tacejada na somatória de várias organizações de esquerda, mas nas “necessidades do movimento objetivo”. Por isso se deduz “um programa e uma tática de uma análise da luta de classes”. É interessante notar que, segundo Trotsky, é justamente em um período de reação que um partido precisa forjar seus quadros em perspectivas mais amplas, isto é, com uma delimitação programática clara e diferenciação permanente, no presente caso, com o menchevismo. Evidentemente, a pressão em sentido oposto foi muito grande. Tanto que, ao tratar da permanência de Stálin no partido Bolchevique naquele período de vacas magras, assinala que, durante os anos de reação, Stalin “não foi um entre as dezenas de milhares que desertaram do Partido, mas um entre as poucas centenas que, apesar de tudo, lhe continuaram fiéis” (TROTSKY, 2012, 357). Nessa altura, o partido Bolchevique que poucos anos antes organizava dezenas de milhares, se viu reduzido a algumas centenas, talvez menos. Isto tornou a posição de Trotsky mais razoável? A unidade com os mencheviques em função do reduzido número de integrantes do partido Bolchevique que, segundo a metáfora de Lenin, a época se assemelhava a uma “criança coberta de abscessos”?

Lenin pensava exatamente o oposto. Conforme nos explica Trotsky, o dirigente bolchevique escreveu em 1911 que, naquele período, numerosos social-democratas “mergulharam no conciliacionismo, partindo dos motivos mais diversos. Mais consistente que todos era o conciliacionismo expresso por Trotsky, por isso, foi o único a procurar uma ‘base teórica’ para essa política”. Isto fez Lenin ver em Trotsky “a maior ameaça para o desenvolvimento de um partido revolucionário”

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(TROTSKY, 2012, 355-356). Como se nota, Lenin não apenas combateu as posições de Trotsky, como viu nela a principal ameaça para o desenvolvimento de um partido revolucionário. Mais até que as posições explicitamente reformistas dos mencheviques. Em que se baseava um juízo tão severo?

Em seguida, Trotsky explica a posição de Lenin. “‘Aprendemos na época da Revolução’, escreveu Lenin, em julho de 1909, ‘a falar francês’, isto é, a despertar a energia e o ímpeto direto da luta de massa”. No entanto, o que fazer quando a revolução não está na ordem do dia? Lenin prossegue: “agora precisamos, na fase de estagnação, de reação, de desagregação, aprender a falar alemão, isto é, a trabalhar lentamente… conquistando o terreno polegada por polegada” (TROTSKY, 2012, 356). Seria este ‘falar alemão’, este trabalhar lentamente, a política do conciliacionismo de Trotsky? Da unidade com os mencheviques no intento de fortalecer o bloco político anti-czarista e de colher as migalhas do menchevismo? Absolutamente não. Esta era, na verdade, a posição de Martov, o principal dirigente Menchevique à época. Para Martov, continua Trotsky, “ ‘falar alemão’ significava a adaptação ao semi-absolutismo russo, na esperança de que, gradualmente, se ‘europeizasse’”. Por outro lado, para “Lenin, a mesma expressão queria dizer: a utilização, com ajuda de um partido ilegal, de todas as magras possibilidades legais, no trabalho de preparo de uma nova Revolução” (TROTSKY, 2012, 356-357).

Como se vê, para Lenin, mesmo em um período de reação, as tarefas legais e ilegais são hierarquizadas pelo “trabalho de preparo de uma nova Revolução” e não em um acumular forças de modo indeterminado. Para melhor alçarmos o sentido desse ‘falar alemão’ de Lenin, assim como seu rechaço a toda e qualquer conciliação, é esclarecedor as palavras de Trotsky a respeito da tática de Lenin frente as eleições da DUMA, particularmente no que diz respeito a relação entre partido Bolchevique e Mechevique nesse processo. Feito isso, podemos distinguir com clareza o abismo entre a concepção que procura

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extrair as táticas dos acontecimentos do dia que passa e àquela que, sem desconsiderá-los, deduz um “programa e uma tática de uma análise da luta de classes”, isto é, das “necessidades do desenvolvimento objetivo”.

A posição de Lenin diante das eleições da DUMA

Se Lenin rejeitava a unidade entre bolcheviques e mencheviques tal como defendera Trotsky, qual seria sua posição diante do processo eleitoral da DUMA? Nesse caso, seria ele adepto do bloco eleitoral em função da fragmentação do movimento revolucionário russo e, particularmente, da drástica redução numérica do partido Bolchevique? Assim Trotsky resume a plataforma eleitoral Bolchevique:

Os bolcheviques empenharam-se na luta eleitoral separados dos liquidadores[mencheviques], e contra eles. Os operários deviam reunir-se sob a bandeira das três principais palavras de ordem da revolução democrática: a república, a jornada de oito horas e a confiscação dos domínios territoriais. Libertar os pequenos burgueses democratas da influência dos liberais, arrastar os camponeses para o lado dos operários – tais eram as principais ideias da plataforma eleitoral de Lenin. (TROTSKY, 2012, 396)

Mesmo no processo eleitoral, em meio a uma ditadura autocrática, os bolcheviques não apenas marchavam separados dos mencheviques, mas contra eles. “Energicamente, combateu os liquidadores durante a campanha a fim de ter os seus próprios deputados: tratava-se de assegurar um importante ponto de apoio” (TROTSKY, 2012, 399). Teria Lenin lutado tão energicamente contra os mencheviques a fim de conseguir mais deputados? Sem dúvida, os deputados bolcheviques seriam “um importante ponto de apoio”, no entanto, “toda a sua política orientava-se para a educação revolucionária das massas. A luta da campanha eleitoral nada representava para ele se, após, os deputados social-democratas, na Duma, permanecessem unidos”

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(TROTSKY, 2012, 399). Ou seja, o critério fundamental não era a eleição de deputados, tampouco a quantidade total de votos, mas a educação revolucionária das massas, o que apenas pode ter como centro a clara distinção das posições dos mencheviques. Em resumo: “procurava proporcionar aos operários todas ‘as oportunidades – a cada passo, com cada ato – para convencerem-se de que nas questões fundamentais os bolcheviques distinguiam-se nitidamente de todos os demais grupos políticos’ “. (TROTSKY, 2012, 399-400).

Mas existe ainda outro aspecto fundamental, largamente explorado por Trotsky em sua autocrítica das posições de juventude em favor das posições bolcheviques. Além de ter sustentado uma posição conciliacionista, ao pressupor que a luta conduz por si mesma à posições revolucionárias, Trotsky não deu o peso devido a base social dos respectivos partidos. Diz ele que o “bolchevismo contava com a vanguarda revolucionária do proletariado e ensinou-lhe como arrastar atrás de si o camponês pobre. O menchevismo contava com a aristocracia operária e inclinava-se para a burguesia liberal” (TROTSKY, 2012, 376-377). Muito embora não exista um vínculo necessário e individualizado entre a composição social e o programa político, este fator produz inclinações em conformidade com as próprias características dos setores sociais envolvidos. Não sem razão, para Lenin, o processo eleitoral era tratado prioritariamente em função de seu trabalho na classe operária. Era nesse setor social que os bolcheviques escolhiam os seus candidatos e avaliavam sua influência. Tanto é assim que, após a eleição da quarta DUMA, os “sete mencheviques, quase todos intelectuais, procuravam colocar os seis bolcheviques, operários com pequena experiência política, sob seu controle”. Diante disso, a posição de Lenin foi a seguinte: se “todos os nossos seis são oriundos dos distritos operários, não devem se submeter em silêncio a um grupo de siberianos” (TROTSKY, 2012, 398). Os siberianos se tratavam, como é sabido, predominantemente de intelectuais.

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Por fim, a autocrítica das posições do jovem Trotsky e a síntese das lições extraídas da atuação dos bolcheviques naqueles anos entre 1909 à 1912, em que o partido passara de um restrito agrupamento de militantes a uma forte inserção na classe operária, é assim resumida:

“Todos grupos hostis ao bolchevismo – os liquidadores, os renuncistas, todas as matizes de conciliadores – mostraram-se absolutamente incapazes de lançar raízes na classe operária. Daí Lenin tirou a sua conclusão: ‘Unicamente no curso da luta contra tais grupos pode o verdadeiro Partido Social-Democrata dos operários constituir-se na Rússia’‘ (TROTSKY, 2012, 425)

Considerações finais

Como se vê, apeser do jovem Trotsky estar, desde o começo e em nossa opinião, correto a respeito do caráter e sujeito social da revolução russa, apesar de ter escrito uma das mais brilhantes análises particulares de um processo revolucionário – A revolução de 1905 –, apesar de ter se revelado muito precocemente um grande orador de massas, assim como propagandista; sua posição política se situa entre o menchevismo e o bolchevismo. Independente da maior ou menor justeza de várias de suas posições, mesmo em relação aos bolcheviques, de nada valeriam se, na sua efetividade, se apresentassem mescladas em uma linha média de um agrupamento político que congrega em seu seio revolucionários e reformistas.

É evidente que os bolcheviques tiveram êxito porque conseguiram corrigir a tempo os limites de um programa que acenava unicamente na direção de uma república democrática. No entanto, não teriam sequer a chance de se corrigir, se não estivessem fortemente enraizados na classe operária, com uma organização autônoma e programaticamente independente. Não apenas separados dos mencheviques, mas, sobretudo, “contra eles”.

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NOTAS

Cabe lembrar que, muito embora, formalmente, se tratasse de frações do Partido Operário Social-Democrata Russo, na realidade eram partidos diferentes, com seus núcleos dirigentes e estruturas independentes. Ainda que tenha ocorrido tentativas de reconciliação manifestas na realização de congressos em comum e, mesmo, por um curto período, a criação de um collegium do Comitê Central que congregava membros de ambas as frações.

REFERÊNCIAS

TROTSKY, Leon; COGGIOLA, Oswaldo. Stalin: Biografia – Estudo preliminar de Oswaldo Coggiola. Editora Livraria da Fisica, 2012, São Paulo.

Trabalho

Produtivo

e

Improdutivo:

O

Capital

Produtivo

Gustavo Henrique Lopes Machado

A tarefa da ciência consiste precisamente em explicar como opera a lei do valor. Consequentemente, se pretendemos explicar de uma só vez todos os fenômenos que parecem contradizer esta lei, seria necessário fazer ciência antes da ciência. Karl Marx

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Apresentamos aqui o quarto e derradeiro artigo da série proposta sobre trabalho produtivo e improdutivo em Marx. Qual a importância deste tema? Seriam meros apontamentos teóricos sem qualquer implicação maior nos embates reais que se desenrolam diariamente? Conceitos abstratos afastados das “tarefas políticas concretas”? Ora, é evidente que na luta cotidiana entre as classes sociais interferem inumeráveis aspectos de ordens diversas: políticos, ideológicos, históricos, conjunturais e assim por diante. A análise empreendida por Marx em O Capital não pretende, sob nenhum aspecto, eliminar este conjunto sempre variável e presente de influências. Não se trata disso.

Como se sabe, Marx repetiu e repetiu até a exaustão a necessidade de se compreender primeiro as determinações contidas naquele domínio que a tradição consagrou sob o nome de “infra-estrutura”, isto é, aquelas determinações relacionadas à forma de relacionamento entre os homens tendo em vista se apropriar da natureza. A vulgata stalinista, é sabido, colocou esta pedra basilar do pensamento marxista em termos de causalidade ou determinismo. Nessa acepção, todos demais aspectos da sociedade seriam deduzidos ou causados pelo fator econômico.

Em verdade, o termo economia não era tomado por Marx no sentido autonomizado e restrito atualmente em voga. Economia significa, para Marx, a forma social através da qual se efetiva as relações entre as pessoas no processo de produção. Não se trata, portanto, de reduzir as relações sociais à categorias econômicas, pelo contrário, trata-se de mostrar que as categorias econômicas são relações sociais. Mas se paramos por aqui não explicamos absolutamente nada. As relações econômico-sociais ou as relações de produção expressam um tipo e s p e c i f i c o e f u n d a m e n t a l d e r e l a ç õ e s s o c i a i s . A s especificidades destas determinações ditas econômicas ou infra-estruturais é que traduzem nexos, determinações ou

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características necessárias em uma dada forma de organização social. Diversamente da política, do Estado, da cultura que, em uma mesma forma de sociedade, podem se exprimir em formas diversas; as relações de produção expressam aqueles nexos fundamentais que fazem de uma dada forma de sociedade aquilo que é, aquilo que ela tem necessariamente que reproduzir para continuar a existir. Por isso, elas não determinam unilateralmente as demais esferas da vida social, mas constituem o ponto de partida para sua adequada compreensão. Isto é assim porque para se apropriar da natureza os homens se articulam sempre em uma forma social de produção específica, independente da vontade dos indivíduos, por se tratar de uma articulação social com a qual estes já encontram como dada e, para sobreviver, devem inexoravelmente se adequar e fazê-la reproduzir. Nesse sentido, as atividades das instituições que garantem organização da guerra, da política ou do direito, encarnadas na figura do Estado, não são passíveis de um tratamento isolado, já que integram um todo orgânico e articulado cujas partes não possuem uma natureza independente e, por esse motivo, constituem um todo econômico.

Explicar, portanto, a natureza das classes sociais, um período ou etapa histórica a partir de elementos puramente subjetivos, políticos ou ideológicos constitui, e sempre constituiu, na matriz das concepções burguesas e marxistas vulgares. Como na citação de Marx que usamos como epígrafe, os que assim procedem, procuram “fazer ciência antes da ciência”. Seguimos, nesse caso, as lúcidas palavras do economista russo Eugeny Preobrajensky:

Procurando justificar suas objeções, meus oponentes apoiam-se sobre uma frase que Lênin gostava de repetir, segundo a qual a política é a economia concentrada. Entretanto eles não mostram como, para compreender esta concentração, é possível evitar a análise prévia do que se concentra na política. De resto, se lhes agradam começar a análise onde habitualmente os marxistas a terminam, que tentem. Nós escutamos. De minha

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parte, permaneço no campo do marxismo e considero que é necessário começar a análise a partir da infra-estrutura, a partir das regulações da vida econômica e explicar, em seguida, a necessidade de determinada política. [… isto é,] para [somente] em seguida, tentar compreender por que a resultante da vida real segue precisamente tal linha e não outra. (PREOBRAJENSKY, 1979, p.70)

Compreender, desse modo, o papel social dos distintos setores do proletariado na produção da riqueza capitalista, não assegura de antemão como tais setores irão se comportar neste ou naquele cenário. No entanto, indica seu papel social tal como necessariamente se articulam no interior do modo de produção capitalista e, consequentemente, sua maior ou menor importância estratégica para um partido revolucionário que tem em mira exatamente revolucionar este modo de produção. Quem quiser analisar tal questão partindo de considerações subjetivas, meramente ideológicas ou políticas, separadas e autonomizadas de um todo econômico, dizemos com Preobrajensky, “vá que estamos te vendo”. De nossa parte, pretendemos continuar com o método de Marx e, antes de procurar explicar todos os fenômenos que se passam diante de nossos olhos justapondo artificialmente elementos superestruturais, necessário se faz alçar o papel social de cada um dos estratos que compõem o proletariado no interior do processo global de produção de capital.

Nessa direção, se é de grande relevância encontrarmos as determinações em comum entre o conjunto do proletariado, mostrando a possibilidade de uni-los em uma luta conjunta contra o capital; igualmente relevante é explicitar suas diferenças, indicando os setores chave nesse processo, assim como a especificidade de seu papel social. Comecemos então pelo capital produtivo.

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No livro primeiro de O Capital, Marx estuda o capital em sua pureza, abstraindo dos diversos tipos particulares de capital, da concorrência e da redistribuição da mais-valia entre eles. Somente assim é possível fazer ciência. Isto é, atingir as determinações fundamentais do modo de produção capitalista com suas tendências e contradições internas, para além das múltiplas oscilações particulares que nos fariam mergulhar em um oceano indomável de contingencias, decisões individuais e arbitrariedades. Nesse nível da análise temos apenas o proletariado industrial, produtor de mercadorias, contraposto ao capitalista industrial. Os indivíduos que compõem o proletariado se diferenciam apenas no interior do processo de trabalho de uma dada unidade produtiva, conforme a qualificação do trabalho e seus atributos técnicos. Mesmo neste nível absolutamente abstrato de análise, Marx já identifica um setor chave tendo em vista a contraposição ao capital. Segundo Marx, a “distinção essencial é entre trabalhadores que efetivamente estão ocupados com as máquinas-ferramentas” (MARX, 1996b, 53) e, ao “lado dessas classes principais, surge um pessoal numericamente insignificante que se ocupa com o controle do conjunto da maquinaria e com sua constante reparação, como engenheiros, mecânicos”. E acrescenta: é “uma classe mais elevada de trabalhadores, em parte com formação científica, em parte artesanal, externa ao círculo de operários de fábrica e só agregada a eles” (MARX, 1996b, p.54). Enquanto uma camada do proletariado melhor remunerada, numericamente pouco significativa no interior de cada unidade produtiva e, sobretudo, externa ao círculo de operários, este setor do proletariado não expressa a mesma força social que os primeiros. Sua consciência está propensa a oscilar entre os interesses do capitalista e da massa do proletariado.

Seja como for, ao abstrair dos demais trabalhadores assalariados e considerar, em todo livro primeiro, tão somente o proletário industrial, Marx assinala o setor chave da

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economia capitalista: o capital industrial ou capital produtivo, cuja riqueza produzida será redistribuída para todos demais setores com mediação do mercado. Várias são as formas desta redistribuição, como, por exemplo, o lucro industrial, o lucro comercial, o juro e a renda da terra, sem falar na mera transferência de renda como é o caso dos impostos estatais. A análise, portanto, dos demais setores do proletariado e sua correlação serão analisados nos Livros Segundo e Terceiro de O Capital. Vejamos, então, mais de perto estes setores que integram o capital improdutivo e produtivo, com os trabalhadores que lhes correspondem.

Capital Improdutivo versus Capital Produtivo

Compõem o capital improdutivo todos aqueles ramos não produtores de capital-mercadoria, ainda que realizem funções absolutamente necessárias do ponto de vista do processo de reprodução global do capital. Este é o caso, por exemplo, do capital comercial e financeiro que, conforme indicado por nós no artigo anterior, apenas se apropriam de parte da mais-valia produzida pelo capital industrial, sem participar de sua produção. Nas palavras de Marx: no “capital comercial e no financeiro há autonomia da fase de circulação do capital industrial, dissociada da produtiva, pois as formas e funções determinadas que este capital assume transitoriamente nessa fase passam a ser formas e funções autônomas e exclusivas de parte separada do capital” (MARX,1981, p.373). Ou seja, todos os momentos integrantes do capital comercial e financeiro estão efetivamente separados e autonomizados frente à produção, pertencendo única e exclusivamente a esfera da circulação. Para que fique claro, vejamos o que faz produtivo o capital industrial.

Segundo Marx, nos “estágios de circulação, o valor-capital assume duas formas, a de dinheiro e a de capital-mercadoria; no estágio de produção, a forma de capital produtivo. O capital que no decurso de todo o seu ciclo ora

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assume ora abandona essas formas, executando através de cada uma delas a função correspondente, é o capital-industrial” (MARX, 1980, p.53). Nesse sentido, não é o fato de participar da esfera da circulação que faz improdutivo um dado ramo do capital, mas o fato de estar excluído da esfera da produção. O capital-industrial, por sua vez, é o único que participa de todos os momentos do processo de reprodução de capital, se apresentando ora na capital-mercadoria, ora na forma de capital-dinheiro, e ora como capital de produção.

No entanto, em seguida, Marx faz a seguinte ressalva: “industrial aqui no sentido de abranger todo ramo de produção explorado segundo o modo capitalista” (MARX, 1980, p.54). Estaria Marx, com esta ressalva, incluindo o setor dos assim chamados serviços no interior do capital industrial? Evidentemente não. Marx explica em seguida o significado deste comentário. Por capital-industrial não se considera unicamente o momento isolado da produção, enquanto uma “espécie autônoma de capital”, mas o capital-dinheiro, capital-mercadoria e capital-produtivo como “formas específicas de funcionamento do capital industrial, que as assume sucessivamente”. Vejamos a questão mais de perto.

Como demonstramos nos artigos anteriores, os ditos serviços se caracterizam por não produzirem mercadorias e, por este motivo, não podem cumprir todos os momentos exigidos para o capital ser produtivo, são eles:

Capital investido na compra das mercadorias força de 1.

trabalho (FT) e meios de produção(MT).

Produção de uma nova mercadoria(M’) a ser levada ao 2.

mercado e trocada por dinheiro(D’).

Este processo é sintetizado na fórmula: D – M (MP; FT) …Produção… M’ – D’. Eis a fórmula geral do capital produtivo. Não existe nela nada de misterioso, apesar da complexidade aparente. Trata-se de um desdobramento da forma geral do capital: D – M – D’. No entanto, esta forma mais abstrata do

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capital em geral assinala que pertencem à esfera do capital todos os trabalhos que se trocam diretamente por dinheiro como capital, onde se inclui os serviços explorados por um capitalista. Já na fórmula do capital produtivo, tais serviços permanecem como capital, no entanto, não mais como capital produtivo. Além de produzir um excedente para o capitalista (D – […] – D’), o capital produtivo exige que ao fim do processo se produza uma mercadoria ou, mais precisamente, capital-mercadoria (Produção … M’). Não basta a mera compra e venda da força de trabalho e meios de produção (MP; FT).

Isto é assim porque o dinheiro, embora apareça na sociedade capitalista como sendo a riqueza por excelência, a riqueza absoluta e autonomizada, nada mais expressa que o valor das mercadorias em circulação. Não sem razão, o capítulo destinado ao dinheiro no Livro Primeiro de O Capital se denomina: “Dinheiro OU circulação de mercadorias”. Nesse capítulo Marx diz que embora “o movimento do dinheiro seja portanto apenas a expressão da circulação de mercadorias, a circulação de mercadorias aparece, ao contrário, apenas como resultado do movimento do dinheiro” (MARX, 1996, p.238). Todos àqueles que defendem as formas de trabalho que se vendem diretamente como serviços como sendo capital produtivo são, sem exceção, vítimas do fetiche do dinheiro.

Tanto é assim que em outra passagem, já no Livro Terceiro, Marx explicita os ramos que denomina constitutivos do capital industrial:

Do exposto ressalta absurdo considerar o capital mercantil, seja na forma de capital comercial ou na de capital financeiro, espécie particular de capital industrial, como, por exemplo, a mineração, a agricultura, a pecuária, a manufatura, a indústria de transporte, etc., que, em virtude da divisão social do trabalho, constituem ramificações determinadas do capital industrial (MARX,1981, p.372).

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Apenas atividades produtoras de capital-mercadoria são elencadas como sendo capital industrial e, por conseguinte, capital produtivo: a mineração, a agricultura, a pecuária, a manufatura e, mesmo, a indústria de transporte que, na acepção de Marx, altera espacialmente o produto conforme veremos mais adiante.

Mesmo neste caso, Marx está distante de nivelar todos estes distintos ramos do capital produtivo pelo simples fato de p r o d u z i r e m c a p i t a l - m e r c a d o r i a . P e l o m e n o s q u a t r o diferenciações substanciais são explicitadas por Marx no interior do próprio capital produtivo, explicitando os distintos papeis e peso social destes ramos no interior da dinâmica da reprodução global do capital. Indicamos aqui sumariamente estas diferenciações. Apenas indicamos, afinal, sua articulação com os demais capitais particulares e o papel desses diferentes ramos na formação da taxa média de lucro, está além do escopo deste artigo:

1 – Departamento I – Capital produtor de meios de produção: Aí se insere todo o ramo do capital que no produto final é representado sob a forma do capital constante. Desde o maquinário e as instalações da indústria até a produção de energia, matérias primas etc. Ou seja, todas mercadorias consumidas no próprio processo de trabalho. Recebe, segundo Marx, uma mais-valia extra do departamento II, cujos motivos não é possível explicitar neste espaço.

2 – Departamento II – Capital produtor de meios de consumo individual: Aqui se insere o setor produtor de mercadorias aptas a serem consumidas pelos trabalhadores e capitalistas. A relação entre estes dois departamentos serão tratadas no Livro Segundo de O Capital, mas precisadas na seção II do Livro Terceiro.

3 – Indústria extrativa: Compõe o departamento I, mas com especificidades que devem ser devidamente consideradas. Aqui se insere setores como a mineração, a pecuária e a

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agricultura. O grau de fertilidade da terra, a pureza natural do minério, dentre outros elementos que não estão diretamente associados ao trabalho, mas à propriedade, produzem um ganho extra denominado renda da terra, além da divisão da mais-valia produzida com o rentista fundiário. Ainda neste caso, existem diferenças fundamentais entre a classe trabalhadora minerária e agrícola como, por exemplo, a maior concentração de trabalhadores minerários em uma mesma unidade produtiva contraposta à dispersão característica do trabalho agrícola. Estes setores serão tratados por Marx na seção VI do Livro Terceiro.

4 – Indústria dos transportes: Os casos indicados acima integram, evidentemente, o capital produtivo, já que são evidentemente produtores de capital-mercadoria, ainda que, como no departamento I, destinadas a serem consumidas por outro ramo industrial como meio de produção. No entanto, existe um caso menos evidente: os transportes. Este caso é particularmente interessante para esclarecer a presente questão entre capital produtivo e improdutivo, particularmente o papel dos serviços. A este respeito diz Marx de maneira contundente: “Há, entretanto, ramos industriais autônomos em que o resultado do processo de produção não é nenhum produto, nenhuma mercadoria. Entre eles, o único setor importante, do ponto de vista econômico, é o de transportes e comunicações que abrange tanto o transporte de mercadorias e pessoas” (MARX, 1980, p.55). Como se vê, temos um ramo não produtor de mercadorias que integra o capital produtivo, nesse caso, como nos serviços, o “efeito útil só pode ser usufruído durante o processo de produção; não existe como objeto de uso diverso desse processo, objeto que funcionasse depois de ser produzido, como artigo de comércio, que circulasse como mercadoria” (MARX,1980 , p.56). E da mesma forma que nos serviços, “o valor de troca desse efeito útil é determinado, como o de qualquer outra mercadoria, pelo valor dos elementos de produção (FT e MP) consumidos para obtê-lo mais a mais-valia gerada pelo trabalho excedente dos trabalhadores

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empregados na indústria de transporte” (MARX, 1980, p.56). Assim considerado, o setor de transportes aparece como um mero serviço, em que o que se vende é o consumo direto da mercadoria força de trabalho, sem qualquer produção propriamente dita. Por que motivo, então, Marx coloca os transportes como capital produtivo?

Nas Teorias de Mais-Valia, Marx nos explica de modo claro: “ainda existe, na produção material, uma quarta esfera que passa também pelos diferentes estágios de empresa artesanal, manufatureira e indústria mecânica; e a indústria de locomoção, transporte ela pessoas ou mercadorias”. Mas em seguida acrescenta Marx: “produz-se aí alteração material no objeto de trabalho – alteração espacial, de lugar. Quanto ao transporte de pessoas, temos aí apenas serviço que lhes é prestado pelo empresário” (MARX, 1974, p. 405). Como se vê, no caso do transporte de pessoas a indústria de locomoção não se diferencia dos demais serviços, mas como transporte de mercadorias a coisa muda completamente de figura. Afinal, “se consideramos o processo no tocante às mercadorias, sucede então no processo de trabalho alteração no objeto de trabalho, a mercadoria. A existência espacial dele altera-se, e assim ocorre modificação em seu valor de uso, por se modificar a existência espacial desse valor de uso. Seu valor de troca aumenta na medida do trabalho exigido por essa alteração de seu valor de uso” (MARX, 1974, p. 405). Desse modo, quando “a mercadoria chega ao lugar de destino, essa alteração ocorrida no valor de uso desapareceu e se expressa apenas no valor de troca mais elevado”. Por esse motivo, “para essa indústria, como para as outras esferas da produção material, o trabalho se corporifica na mercadoria, embora não tenha deixado traço visível em seu valor de uso” (MARX, 1974, p. 405).

Claro está que o transporte agrega valor à mercadoria ao alterá-la espacialmente de lugar, sendo, portanto, parte integrante do capital produtivo tal como exposto até aqui. Apesar de não produzir diretamente uma mercadoria, o

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transporte altera sua determinação útil e também o valor das mercadorias produzidas em outros ramos de produção. Compreendido este elemento fica claro, por outro lado, que os serviços não pertencem ao capital produtivo e, não sem razão, Marx diz que, no interior de todas atividades não produtoras de mercadoria, “o único setor importante, do ponto de vista econômico, é o de transportes”. Do ponto de vista econômico, vale dizer, e não quantitativo, isto é, do ponto de vista da valorização do capital global e não da maior ou menor presença destas atividades na época de Marx como comumente tal questão é abordada pelos comentadores.

Ao mesmo tempo, compõem o Capital Improdutivo:

1 – O Capital Financeiro: Aquele especializado no comércio de dinheiro, diferenciando no seu interior o capital fictício e o crédito. Este último consiste no capital portador de juros ou capital bancário. O industrial capitalista recebe a sua parte da mais-valia gerada na produção sobre a forma de lucro, o banqueiro, por sua parte, recebe uma parte da mais-valia sobre a forma de juros. Em outras palavras, ainda que essencial para o curso rotineiro da reprodução global de capital, o capital financeiro apenas se apropria de parte da mais-valia produzida pelo capital produtivo na forma de juros. Mais ainda. Segundo Marx, este setor sequer integra o processo global de reprodução de capital, afinal, “é uma transação jurídica, que nada tem a ver com o processo real de reprodução, mas apenas o encaminha”. Este tema sera tratado por Marx na seção V do Livro Terceiro.

2 – O Capital Comercial: Diz respeito unicamente à fase de circulação, sem alterar ou criar valor. Este domínio é analisado no Livro Segundo de O Capital e retomado na seção V do Livro Terceiro.

3 – O Capital que explora diretamente o trabalho como serviços: Como vimos, Marx, coerente com sua afirmação no

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capítulo inédito de que os serviços empregados sob a forma capital “não devem ser tidos em conta quando se analisa o conjunto da produção capitalista” (MARX, 1975, p.103), sequer o analisa no Livro Terceiro de O Capital, reservando maior espaço a este em suas Teorias de Mais-Valia. Ocorre que, como se sabe, tal livro constitui um grande apêndice de O Capital, não propriamente o Livro Quarto. Nas Teorias de Mais-Valia, Marx remonta a história da teoria econômica desconstruindo-a com base na exposição dos três livros anteriores.

Não poderia ser de outro modo, afinal, este ramo, como insistimos, não é produtor de capital-mercadoria, mas apenas consumidor da mercadoria força de trabalho e de outras mais que o serviço considerado requer. Pode, portanto, produzir capital para o capitalista individual, mas, ao mesmo tempo, apenas consome o capital social na forma de renda, tal como desenvolvemos nos dois artigos anteriores. Como é possível um ramo do capital produzir e, ao mesmo tempo, apenas consumir o capital existente? Este aparente absurdo desaparece quando deixamos de considerar a questão a partir uma perspectiva unilateral e abstrata. Ainda que tratando de especificidades do capital fixo, uma importante citação no fim do livro terceiro explicita tudo que desenvolvemos no curso de toda nossa argumentação a respeito dos serviços:

as definições fixas de renda e capital permutam-se e trocam de lugar entre si, parecendo ser, do ponto de vista do capitalista isolado, definições relativas que se desvanecem quando consideramos o processo global de produção. […] É possível assim contornar a dificuldade se imaginamos que o que é renda para uns é capital para outros, e que essas definições nada tem por isso que ver com a particularização efetiva dos componentes do valor da mercadoria (MARX, 1981b, p.969).

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Encerramos aqui os quatro artigos que compõem a presente série sobre trabalho produtivo e improdutivo em Marx. Não realizamos a análise do entrelaçamento entre os diversos estratos do proletariado que compõem o capital produtivo e o capital improdutivo, com sua respectiva incidência na taxa média de lucro. Para tal, remetemos o leitor aos dois últimos livros de O Capital e, por esse motivo, indicamos nesse artigo os capítulos centrais da obra principal de Marx em que cada tema é abordado. Esperamos, ao menos, ter convencido o leitor de que é em O Capital que se encontra a análise central de Marx sobre as classes sociais, assim como o caráter improdutivo dos serviços tendo em vista a sociedade em seu conjunto.

Mas não somente. Claro está que a análise encerrada em O Capital sob nenhuma hipótese esclarece de antemão a correlação de forças entre as classes em um dado período histórico ou em um dado pais. No entanto, tais análises particulares e conjunturais, se se não quiser fazer ciência antes da ciência, deve pressupor a anterior compreensão dos elementos apenas tangenciados por estes artigos: a articulação total do modo de produção capitalista tomado, de início, em sua forma pura, com o papel social das classes e setores de classe que o compõem. Assim procedendo, fica explícito, por exemplo, para além das turbulências conjunturais, o papel central ocupado por todos aqueles setores do proletariado que integram o capital produtivo ou industrial. Ainda que por hipótese, em um dado cenário, este setor mostre-se, por razões diversas, com o nível mais rebaixado de consciência, com pouca tradição de luta ou em menor número; sua posição central, se se quiser fazer desmoronar o capital, continua a mesma. O proletariado industria ganha, portanto, papel estratégico para o movimento socialista. Não apenas por constituir o cerne e a base da valorização global do capital, mas também por ser o único setor que pode contrapor eficazmente as tendências burocratizantes resultantes da expropriação da propriedade privada, já que associado diretamente à produção e controle da

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riqueza, ao mesmo tempo que diretamente afetado pelos mecanismos de sua redistribuição.

Nesse caminho, já no final de sua vida, Nahuel Moreno, distante de reduzir a luta pelo socialismo à tomada do poder, diz que se “a classe operária não nos seguir, não chegaremos a lugar nenhum. Iremos nos burocratizar, capitular […]”. E mais adiante, baseado na experiência cubana, conclui que “é necessário continuar com a política revolucionária de classe, ainda que, para nós, isso signifique adiar a chegada ao poder em vinte ou trinta anos, ou o que seja” (MORENO, 2005, p.65). Não sem razão, para um marxista, as análises políticas e ideológicas se desprendem sempre da análise prévia de sua respectiva base social. Isto não significa que elas são unilateralmente causadas por esta base social, mas que somente através dela podem ser efetivamente compreendidas. Por esse motivo Marx se dedicou a escrever O Capital antes de qualquer outra coisa. No mesmo sentido, Leon Trotsky, ao se deparar com o fenômeno da burocratização do Estado soviético, apesar de inicialmente tê-la associado superficialmente ao regime interno do partido, logo se voltou para a busca de suas profundas raízes sociais e da sua conexão com os interesses e correlação entre as classes envolvidas.

Como se vê, qualquer organização que queira influir na história no sentido da revolução socialista deve, antes de mais nada, se assentar firmemente nas bases sociais que a possibilitam, antes e aquém de qualquer escolha ou impressão. Deve influir no oceano caótico dos fenômenos imediatos em consideração com sua unidade mais profunda. Deve buscar as bases sociais dos fenômenos ideológicos e políticos, antes de dar uma formulação teórica autônoma para estes domínios. Fazer ciência, portanto, não é, para Marx, enumerar acontecimentos históricos ao modo de um jornalista, tampouco criar conceitos autônomos ao modo de um acadêmico, mas encontrar sempre a base social dos fenômenos, para, somente então, extrair dela uma política revolucionária.

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MARX, KARL. O Capital: Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1996. Livro primeiro, Tomo 1.

MARX, KARL. O Capital: Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1996b. Livro primeiro, Tomo 2.

MARX, KARL. O Capital. Livro 2: O Processo de Circulação do Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

MARX, KARL. O Capital. Livro 3, Volume 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

MARX, KARL. O Capital. Livro 3, Volume 6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981b.

MARX, KARL. Teorias da mais-valia. História crítica do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. v. 1.

MORENO, NAHUEL. Conversando com Moreno. São Paulo: José Luis e Rosa Sundermann, 2005. Entrevista realizada por Daniel Acosta, Marco Trogo e Raul Tuny.

PREOBRAJENSKY, Eugênio. A Nova Econômica, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.

Trabalho

Produtivo

e

Improdutivo: o cerne da

questão

Gustavo Henrique Lopes Machado

Vimos nos dois artigos iniciais desta série o conceito preciso de mercadoria, assim como dos ditos “serviços”. Sendo que,

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estes últimos, considerados unicamente no caso em que são trocados diretamente por renda. Pretendemos, agora, examinar como as atividades produtoras de mercadorias e as atividades não produtoras de mercadorias se identificam e se diferenciam quando são ambas simultaneamente empregadas por um capitalista.

Trata-se de uma tarefa fundamental, com implicações político-programáticas. Afinal, o marxismo surge no século XIX procurando vincular a luta pelo socialismo ao proletariado e, particularmente, ao proletariado industrial, o “produto mais genuíno” da sociedade capitalista. Na atualidade, contudo, é c o m u m e n t r e a s o r g a n i z a ç õ e s m a r x i s t a s d i s s o l v e r a especificidade do proletariado industrial no conjunto dos assalariados. Para tal, toda a complexa teia de relações entre os diversos tipos particulares de capital são dissolvidas na abstrata noção de trabalho produtor de mais-valia. No entanto, a realidade não se transforma segundo a vontade dos intérpretes. De nada adianta dissolver artificialmente as múltiplas e objetivas diferenças entre os diversos estratos do proletariado. Elas continuarão a existir na realidade. Não sem razão, o esforço de Marx foi sempre em atingir as diferenças ocultas sob uma identidade aparente.

Mas todo o embaraço em torno do tema do trabalho produtivo e improdutivo tem sua razão histórica de ser. Até a segunda metade do século XX, a maior parte das organizações marxistas procuraram sempre, com maior ou menor êxito, o caminho da classe operária industrial. Poucos questionaram seu papel central no modo de produção capitalista enquanto classe produtora de toda riqueza e ponto de apoio fundamental da revolução socialista. Isto era verdade mesmo para as organizações reformistas. Após a Segunda Grande Guerra e a nova conformação da divisão internacional e social do trabalho que se seguiu, com maior participação do Estado na economia e a ampliação quantitativa do setor de “serviços”, não foram poucos os que procuraram dissolver as diferenças entre os

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diversos estratos do proletariado, tratando-os, agora, indistintamente como meros vendedores de sua força de trabalho. E ponto final. Faz-se necessário, portanto, colocar cada coisa em seu devido lugar. Para tal, cabe, de início, algumas considerações prévias sobre a noção de produtividade do trabalho.

Metafísica e Marxismo

Em primeiro lugar, a maior parte dos autores que trataram do presente tema, esqueceram-se de uma pergunta fundamental: produtivo em relação a que? Somente uma razão metafísica, ao possuir algum tipo de absoluto pressuposto, pode falar em algo produtivo em si mesmo, assim como absolutizar qualquer outra noção ou categoria. Antes de responder a questão de se tal ou qual trabalho é produtivo, é necessário esclarecer a que se refere tal produtividade.

Um exemplo ilustrativo, nesse sentido, é a noção de progresso. O modo de produção capitalista é progressivo frente àqueles precedentes? Depende. Se considerarmos a noção de progresso em função da relação homem e natureza, do domínio humano sobre os recursos e forças naturais, isto é, da perspectiva das forças produtivas, o sistema capitalista é o mais progressivo já produzido pelo homem e o que primeiro colocou historicamente as condições de possibilidade para uma sociedade emancipada. No entanto, se considerarmos a noção de progresso em função das relações que os homens estabelecem entre si para se apropriar da natureza não são poucos os domínios em que o modo de produção capitalista se afigura como mais obscuro, mais alienado, mais fútil que muitos daqueles que o precederam.

Parte expressiva da obra de Marx é construída justamente para dissolver estas abstrações gerais, explicitando as diferenças e contradições que se encontram em seu seio. Assim o fará com noções abstratas como propriedade no geral, trabalho no geral, democracia no geral e assim por diante. O termo produtivo, como o progresso, exige que se determine em relação a que,

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isto ou aquilo, é produtivo. Realizada esta pergunta fundamental, boa parte das confusões que envolvem a questão do trabalho produtivo e improdutivo em Marx desaparecem.

Por exemplo, em certa altura de O Capital Marx diz: “o consumo individual do trabalhador é para ele mesmo improdutivo, pois reproduz apenas o indivíduo necessitado”. No entanto, “ele é produtivo para o capitalista e para o Estado, posto que produz a força produtora de riqueza alheia” (MARX, 1996b, p.197). Como se nota, o consumo do trabalhador é improdutivo em relação a si próprio e produtivo em relação ao capitalista e ao Estado.

Nas Teorias de Mais Valia, temos outro exemplo elucidativo: os serviços vendidos diretamente por dinheiro, sem mediação de um capitalista, são, evidentemente, improdutivos tanto em relação ao capital, quanto em relação a produção de riqueza social, no entanto, todo “serviço é produtivo para quem o vende. Jurar falso é produtivo para quem o faz por dinheiro vivo. Falsificar documentos é produtivo para quem é pago por isso. Assassinar é produtivo para quem é pago pelo homicídio. O negócio de sicofanta, delator, malandro, parasita, bajulador é produtivo, desde que tais ‘serviços’ sejam remunerados” (MARX, 1974, p. 275).

No mesmo sentido, e começando a penetrar no âmago de nosso problema, diz Marx que os “serviços prestados, para seu produtor, são mercadorias. Têm determinado valor de uso[…] e determinado valor de troca” (MARX, 1974, p. 138). Trata-se, evidentemente, da mercadoria força de trabalho, cujo valor de uso pode ser “imaginário ou real”. Por outro lado, para “seu comprador, porém, esses serviços são meros valores de uso, objetos em que consome a renda” (MARX, 1974, p. 138). Logo adiante, Marx exemplifica com o caso de um hotel, cujos cozinheiros e garçons “são trabalhadores produtivos, porquanto seu trabalho se converte em capital para o dono do hotel” (MARX, 1974, p. 138). “Mas, de fato, também essas pessoas no hotel são para mim, na qualidade de consumidor, trabalhadores

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improdutivos” (MARX, 1974, p. 138). Claro está que os mesmos trabalhadores de um hotel, ao fornecer mais-valia ao seu proprietário, são produtivos, ao mesmo tempo, são improdutivos em relação aos clientes do hotel, já que estes apenas consomem sua renda ao usufruir de seus respectivos serviços.

Feita estas considerações iniciais, que retomaremos mais adiante, e tomando como pressuposto as noções desenvolvidas nos dois artigos anteriores, podemos, finalmente, mergulhar na questão do trabalho produtivo e improdutivo propriamente dito. Particularmente, em que sentido podemos afirmar que um trabalho não produtor de mercadorias, que não produz riqueza, mas apenas a consome na forma de renda, pode ser considerado produtivo.

O alargamento no conceito de trabalho produtivo

De fato, como já vinhamos assinalando, a determinação de produtividade do trabalho associada a produção ou não de mercadorias está distante de dar conta da especificidade do modo de produção capitalista. Menos ainda uma noção mais abstrata que toma a produtividade do trabalho em função de sua objetivação ou não em produtos materiais. Segundo Marx, já no Livro Primeiro de O Capital, esta “determinação de trabalho produtivo, tal como resulta do ponto de vista do processo simples de trabalho, não basta, de modo algum, para o processo de produção capitalista” (MARX, 1996, p.310).

Considerando a especificidade desse modo de produção temos, de início, um alargamento da noção de trabalho produtivo. Afinal, “o caráter cooperativo do próprio processo de trabalho amplia-se[…] necessariamente o conceito de trabalho produtivo e de seu portador, do trabalhador produtivo” (MARX, 1996, p.136). Agora, para “trabalhar produtivamente, já não é necessário[…] pôr pessoalmente a mão na obra; basta ser órgão do trabalhador coletivo, executando qualquer uma de suas subfunções” (MARX, 1996, p.136). No entanto, destaca Marx que a “determinação original, acima, de trabalho produtivo, derivada da própria

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natureza da produção material, permanece sempre verdadeira para o trabalhador coletivo, considerado como coletividade” (MARX, 1996, p.136-137). Mas individualmente, na “categoria de trabalhadores produtivos figuram naturalmente os que, seja como for, contribuem para produzir a mercadoria, desde o verdadeiro trabalhador manual até o gerente, o engenheiro (distintos do capitalista)” (MARX, 1974, p. 136).

Do modo como Marx toma a questão até o presente momento, figuram entre os trabalhadores produtivos todos aqueles que, de algum modo, “contribuem para produzir a mercadoria”, permanecendo “sempre verdadeira” a “determinação original […] de trabalho produtivo” “derivada da própria natureza da produção material”. Evidentemente, Marx não quer, com isso, eliminar as diferenças sociais existentes entre os múltiplos indivíduos que compõem este trabalhador coletivo. Eles se diferenciam entre si, por exemplo, em relação a qualificação do trabalho – trabalho simples e complexo – e, do ponto de vista técnico, em relação à função desempenhada. Ocorre que produtividade do trabalho não se define em função da natureza específica da atividade realizada, por exemplo, se intelectual ou manual, mas pelo fato de fornecerem trabalho excedente para o capitalista.

A restrição no conceito de trabalho produtivo

Na sequência, ainda no Livro Primeiro de O Capital, Marx dirá que por “outro lado[…] o conceito de trabalho produtivo se estreita. A produção capitalista não é apenas produção de mercadoria, é essencialmente produção de mais-valia” (MARX, 1996, p.136). Ora, o que garante a acumulação de capital por parte de um capitalista não é o tipo especifico de valor de uso que este oferece aos consumidores no mercado, tampouco a natureza específica do trabalho que comanda, mas a extração de mais-valia daquele que vende sua força de trabalho como mercadoria. Disso se segue que apenas “é produtivo o

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trabalhador que produz mais-valia para o capitalista ou serve à autovalorização do capital” (MARX, 1996, p.136).

Nas Teorias de Mais Valia esta questão é desenvolvida de forma mais precisa e com um número considerável de exemplos. Segundo Marx, quando empregado por um capitalista tendo em vista extrair mais-valia, o trabalho de um professor, um cantor, um palhaço de circo e toda e qualquer outra atividade, é produtivo. Em suma, “só o trabalho que produz capital é trabalho produtivo” (MARX, 1974, p. 136). “Assim, também fica absolutamente estabelecido o que é trabalho improdutivo. É trabalho que não se troca por capital, mas diretamente por renda, ou seja, por salário ou lucro” (MARX, 1974, p. 136). Em outras palavras, as definições de trabalho improdutivo e produtivo “não decorrem da qualificação material do trabalho (nem da natureza do produto nem da destinação do trabalho como trabalho concreto), mas da forma social determinada, das relações sociais de produção em que ele se realiza” (MARX, 1974, p. 136). Afinal, é “uma definição do trabalho, a qual não deriva de seu conteúdo ou resultado, mas de sua forma social específica” (MARX, 1974, p. 138). Assim considerado, “um ator por exemplo, mesmo um palhaço, é um trabalhador produtivo se trabalha a serviço de um capitalista (o empresário), a quem restitui mais trabalho do que dele recebe na forma de salário”. Por outro lado, ”um alfaiate que vai à casa do capitalista e lhe remenda as calças, fornecendo-lhe valor de uso apenas, é trabalhador improdutivo” (MARX, 1974, p.137).

Neste ponto, a maior parte dos comentadores encerram a questão. Trabalho produtivo é aquele produtor de mais valia para um capitalista, de onde se segue que não existe diferença social alguma entre o trabalho produtor de mercadorias e o trabalho não produtor de mercadorias, contando que produzam, ambos, mais-valia. Ou ainda, segundo alguns autores mais exóticos, tais atividades chamadas serviços produzem mercadorias “imateriais”. O professor não vende sua atividade

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de ensinar diretamente como valor de uso, mas produz uma mercadoria “imaterial” denominada “aula”. O palhaço não vende diretamente sua atividade como valor de uso, mas vende uma mercadoria imaterial chamada “palhaçada”. E por aí vai.

No entanto, o quadro se complica quando nos Livros II e III de O Capital Marx caracteriza os trabalhadores empregados no setor de comércio e crédito como improdutivos. Isto é assim ainda que estes exerçam sua respectiva atividade sob o comando de um capitalista, que deles se apropria do trabalho excedente. Por exemplo, no Livro Segundo, dirá que um funcionário empregado no comércio “trabalha como qualquer outra pessoa, mas o conteúdo de seu trabalho não cria valor nem produto. Figura entre os custos improdutivos mas necessários da produção” (MARX, 1980, p.135). Em seguida, Marx diz que esta relação não se altera pelo fato de o trabalhador mercantil ser um assalariado.

Ora, a maior parte dos interpretes procuraram explicar esta aparente contradição da seguinte maneira: o trabalho é produtivo quando produz capital para um capitalista, desde que este ocorra na esfera da produção, no interior da qual se insere os serviços. Assim, quando a força de trabalho é vendida para esferas externas à produção propriamente dita, ainda que em atividades necessárias, o trabalho será improdutivo. Este foi o caminho seguido, por exemplo, pelo grande mestre da crítica da economia política marxista: Isaak Rubin.

Rubin, cuja célebre obra: Teoria Marxista do Valor nos influenciou em cada linha, não deixa de reconhecer o caráter paradoxal e artificial da interpretação acima, que, no seu entender, correspondia à teoria de Marx. Ao final do capítulo de seu livro que trata desse tema, diz que “podemos lamentar que [Marx] tenha escolhido o termo ‘produtivo’ para seu tratamento das diferenças entre trabalho contratado pelo capital na fase de produção e trabalho contratado pelo capital na fase de circulação. […] Um termo mais adequado, talvez,

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teria sido ‘trabalho de produção’” (RUBIN, 1980, p.293). E admite, com certo espanto, que Marx tenha considerado produtivo tão somente o capital empregado na produção, dado que àquele empregado na circulação também produz mais-valia e acumula capital para o capitalista que o comanda. Tratava-se, evidentemente, de duas definições absolutamente contraditórias de trabalho produtivo.

O nó da questão: produtivo em relação a que?

De fato, a interpretação de Rubin e de muitos outros sobre esse ponto em particular do pensamento de Marx está equivocada. A questão é que, nos trechos em que trata das atividades não produtoras de mercadorias como produtivas, Marx se refere a produtividade do trabalho em relação ao capitalista individual que o emprega. Enquanto naquelas que trata do trabalho improdutivo dos assalariados empregados na atividade comércio ou do crédito, Marx se refere a produtividade em relação à sociedade em seu conjunto, ao capital total por ela produzido. Vejamos a questão detalhadamente.

Após precisar a noção de trabalho produtivo e improdutivo nas Teorias de Mais Valia tal como citamos acima, diz Marx: “Trabalho produtivo e improdutivo são sempre olhados aí do ângulo do dono do dinheiro, do capitalista” (MARX, 1974, p.137). E realmente. Do ponto de vista de um capitalista individual, pouca diferença faz se seu capital é empregado na indústria automobilística, em uma universidade privada ou em um circo. O que interessa é a mais-valia e o lucro que este consegue obter por meio da exploração do trabalho assalariado. Da mesma forma, para um trabalhador assalariado importa, antes de tudo, o salário que este recebe como equivalente pela sua força de trabalho, seja qual for a natureza da atividade que realiza. Esta diferenciação é fundamental, pois reflete a diferença abismal que existe entre as relações sociais que

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visam acumular capital, sejam ou não produtoras de mercadorias, e àquelas que visam a troca de equivalentes.

Ocorre que ser produtivo em relação ao capitalista individual não corresponde necessariamente a ser produtivo em relação à sociedade. No comércio, por exemplo, apesar de o capitalista acumular capital com a exploração dos trabalhadores que emprega, ele não produz um só átomo de valor e capital, apenas se apropriando de parte da mais-valia produzida na esfera da produção. Não sem razão, no trecho acima citado sobre a improdutividade do capital comercial, Marx por diversas vezes explicita que está se referindo a produtividade em relação à sociedade. Por exemplo, após ilustrar com o caso de um agente comercial que trabalha 8 horas para pagar seu salário, cedendo 2 horas excedentes ao seu empregador, diz que “a sociedade não paga essas duas horas de trabalho excedente, embora tenham sido gastas pelo individuo que o executa” (MARX, 1980, p.135). No entanto, “com isso não se apropria a sociedade de produto excedente nem de valor” (MARX, 1980, p.135). Claro está, portanto, que Marx se refere, aqui, a produtividade do trabalho em relação à sociedade e não ao capitalista individual.

Muito embora as atividades não produtoras de mercadorias possuam uma função social bem diversa daquelas típicas da circulação de mercadorias, como o comércio, são análogas no que diz respeito à produtividade social do trabalho. Ambas se subordinam apenas formalmente ao capital, propiciando acumulação ao capitalista individual, sendo produtivas para este, mas se apropriando de um valor que se origina da redistribuição dos valores já existentes na sociedade, sendo, para esta, improdutiva.

Isto fica claro no Capitulo Inédito d’Capital, quando Marx diz que: “um mestre-escola que é contratado com outros para valorizar, mediante seu trabalho, o dinheiro do empresário da instituição que trafica com o conhecimento é um trabalhador produtivo”. No entanto, complementa logo em seguida: mesmo

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“assim, a maior parte desses trabalhadores, do ponto de vista da forma, apenas se submetem formalmente ao capital: pertencem às formas de transição” (MARX, 1975, p.99). Ou seja, do ponto de vista da sociedade, do ponto de vista da relação entre universidade privada e os demais capitais individuais, temos apenas troca simples de mercadoria. Em suma, a “fábrica de ensino” não produz valor, mas recebe valor da sociedade pelo serviço que ela oferece. Em seguida, Marx diz de maneira ainda mais clara:

Em suma, os trabalhos que só se desfrutam como serviços não se transformam em produtos separáveis dos trabalhadores – e, portanto, existentes independentemente deles como mercadorias autônomas – e, embora possam ser explorados de forma diretamente capitalista, constituem grandezas insignificantes se os compararmos com a massa da produção capitalista. Por isso, deve-se pôr de lado esses trabalhos e tratá-los somente a propósito do trabalho assalariado que não é simultaneamente trabalho produtivo. (MARX, 1975, p.99)

Nesta passagem elucidativa, Marx não considera insignificante as grandezas advindas dos “trabalhos que só se desfrutam como serviços” em função do seu reduzido número na sociedade, como comumente se interpreta. Já demonstramos no artigo anterior que Marx jamais sustentou a redução quantitativa dos serviços empregados na forma do trabalho assalariado na sociedade capitalista, exceto aqueles trocados diretamente por renda. Sua grandeza é insignificante, conforme a argumentação da passagem, pelo fato desses trabalhos não se transformarem “em produtos separáveis dos trabalhadores”. Isto é assim, não tanto pela materialidade da mercadoria em si mesma, mas pelo fato desta constituir o suporte que permite a mercadoria expressar sua propriedade social de ser valor. Já no caso dos serviços, produção e consumo coincidem, de maneiras que “a forma do valor é posta como forma simplesmente evanescente” (MARX, 2011, p.383). Dito de outro modo, por não produzir mercadoria alguma, mas vender diretamente sua atividade na

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