A criança, a educação e a infância no pensamento anarquista.
Nome: Jonas Nogueira Figueiroa Orientador(a) Prof(a). Dr(a): Anete Abramowicz Mestrado Linha de Pesquisa: Educação, Cultura e SubjetividadeResumo
O projeto busca estudar as concepções de criança e de infância presentes no pensamento pedagógico do movimento anarquista europeu no final do século XIX e início do século XX. Os pressupostos conceituais serão perscrutados nas obras de importantes filósofos/ativistas do movimento anarquista, como Pierre-Joseph Proudhon e Mikhail Bakunin. Ao estudar a obra desses filósofos, a pesquisa busca compor uma espécie de genealogia no sentido de verificar em que momento, em qual debate e de que maneira surgem no interior dessa filosofia as noções de educação, de criança e de infância. Remonta a filósofos liberais e aos pensadores do chamado ‘socialismo utópico’. O trabalho de natureza teórica pretende apontar a partir dos livros e artigos estudados uma configuração do campo da infância no interior do anarquismo, procurando indicar de que maneira este campo se constitui e ao mesmo tempo apontar lacunas e possibilidades de pesquisa na área.
Palavras Chaves
Delimitação do tema
Segundo o estudo iconográfico de Phillipe Ariès (1981), o sentimento moderno de infância apareceu predominantemente na Europa apenas no final do século XVII e início do século XVIII. Antes desse período, a criança era uma figura marginal do mundo adulto, sobretudo pela indiferença da época as especificidades próprias da infância. A criança era entendida como um adulto em miniatura e compartilhava a vida social dos adultos, acompanhando-os no trabalho ou nas festividades. Outra prática comum na Europa anterior as “luzes” era o envio das crianças às amas-de-leite, o abandono ou mesmo o infanticídio. Tampouco existia um termo próprio para designar a criança e não se sabia com exatidão a sua idade.
Foi inicialmente com a reforma protestante, e mais intensamente com a ascensão da burguesia e de suas instituições, entre elas a escola, que as crianças passaram a ter maior relevância frente à sociedade. Num certo sentido, as crianças representavam o futuro da sociedade, seja para a transformação social, seja para a manutenção dos antigos costumes. A educação da criança passou a ser um campo de disputa política e a criança se tornou um objeto de saber sobre o qual se produziu uma série de discursos e dispositivos. É o surgimento da Pedagogia e de novas concepções de criança. Educadores, médicos e filósofos passaram a tratar da criança, contribuindo para a formação dessa nova imagem da criança e do sentimento de infância. É o início da separação do mundo adulto e do mundo infantil.
Essas práticas discursivas que aparecem, sobretudo, no século XVIII operam a partir de mecanismos e dispositivos na produção dos corpos das crianças, estabelecendo novos domínios de saber sobre a criança em direção a uma infância. Esses novos discursos e práticas visam produzir a verdade sobre a criança, tornando-se autorizados para falar sobre ela, para dizer como essa deve ou não deve ser, como deve se desenvolver, enfim, produzindo uma normatividade sobre a criança (Foucault, 1997).
Essa mudança de paradigmas na educação e na concepção da criança na Europa, entre os séculos XVII e XVIII, promovida em parte pela ascensão do liberalismo, teve em John Locke e em Jean Jacques Rousseau uns de seus principais influxos. Locke em sua obra
Algumas reflexões sobre a educação (1693), encoraja uma atitude mais simpática do adulto
em relação à criança, depositando na educação um elemento empirista explícito e radical, contrapondo-se a todo inatismo e a toda predestinação, tão caros ao pensamento tradicional. Seria por intermédio da educação que se produziria o Homem civilizado (gentleman).
Rousseau, que nasceu e viveu no século XVIII (1712/1778), sofreu certa influência de Locke em seu modelo político-pedagógico, mas inovou em sua concepção de criança e de infância e exerceu grande influência no pensamento educacional moderno. Segundo Franco Cambi (1999), Rousseau operou uma verdadeira “revolução copernicana” na pedagogia, ao colocar a criança no centro de sua teorização. Elaborou uma nova imagem da infância, vista como pura e boa por natureza. Na perspectiva rousseauniana, todo homem nasce livre e é a sociedade que o corrompe. Desse modo, a infância é marcada pela espontaneidade, pelo desenvolvimento de suas tendências naturais e de sua curiosidade.
A noção de natureza infantil e o respeito as suas características particulares, na forma de pensar, agir e sentir abriu caminho para o aparecimento de uma psicologia da criança com vocação científica e inverteu a imagem que se tinha dela. Até então, o ponto de vista tradicional sobre a infância considerava que a criança não apresentava nenhum caráter específico e se definia senão por suas insuficiências (Charlot, 1983).
Além dos escritos de Locke e Rousseau, outros fatores influenciariam as concepções e o debate pedagógico dos anarquistas. O advento da sociedade industrial se acentua em toda a Europa na transição do século XVIII para o XIX, ainda que em intensidades diferentes. A sociedade passa a se reorganizar e as instituições burguesas se consolidam de forma cada vez mais predominante nos centros urbanos. Ocorre um processo de laicização das instituições e dos discursos, notadamente com o aparecimento do que depois viria a ser designado por Marx e Engels como ‘socialismo utópico’ e também pela sociologia e pelo positivismo de Auguste Comte (1798/1857). Essas transformações atingem a pedagogia, que passa a ser exigida em termos de maior rigor científico e epistemológico, além de se estabelecer como campo de luta por mudanças na sociedade.
Já na primeira metade do século XIX, encontramos nos escritos de Pierre-Joseph Proudhon (1809/1865), o primeiro a se assumir publicamente como anarquista, críticas aos pressupostos da filosofia e das concepções liberais. Do ponto de vista pedagógico, Proudhon centra suas críticas ao modelo proposto por Rousseau, denunciando a “hipótese mentirosa, depredadora, homicida, que somente o indivíduo é bom e que a sociedade o corrompe” (Proudhon apud Codello, 2007, p.93). Embora Proudhon tenha mantido um contato restrito com a filosofia hegeliana e seu pensamento não incorporasse a dialética em voga entre os filósofos de sua época, para ele o homem só se realizava enquanto tal na medida em que se socializava com seus pares, pois "o homem mais livre é aquele que possui o maior número de relações com seus semelhantes”. (Ibdem, p.94)
Outro personagem que exerceu grande influência nas concepções educacionais anarquistas foi Mikhail Bakunin (1814/1876), revolucionário russo que, embora tenha esparsa produção teórica, contribuiu muito para a constituição do movimento anarquista e de suas concepções, já que dispunha de excelente oratória e disposição para aglutinar pessoas. Bakunin não escreveu muito sobre a educação infantil, mas o pouco que escreveu, em conjunto com as contribuições de Paul Robin, serviu de alicerce para diversas teorizações e experiências em educação de crianças promovidas pelos meios anarquistas no final do século XIX e começo do século XX.
Diferentemente de outras correntes filosóficas como, por exemplo, o marxismo ou a psicanálise, o anarquismo não possui um “pai” ou uma figura que tenha dado “início” ao que hoje se configura como pensamento ácrata. Constatado isso, optamos por estudar aqueles que se notabilizaram dentro do anarquismo por tratar das questões educacionais. Portanto, além dos autores citados até aqui, a pesquisa percorrerá as contribuições teóricas de: William Godwin; Max Stirner; Piort Kropotkin; Sébastien Faure; Élisée Reclus; Ricardo Mella e Francisco Ferrer, com o intuito de abordar as distintas concepções que atravessaram o debate pedagógico anarquista e tentar compreender, em cada uma delas, o lugar ocupado pela criança e pela infância.
Tendo em vista o permanente interesse que as postulações e experimentos anarquistas em educação suscitam, principalmente quando se constata não apenas o aumento do número de pesquisas sobre a temática nos últimos anos, mas também insurreições descentralizadas em diferentes países com inspirações anarquistas, parece-nos relevante compreender a constituição das categorias de criança e de infância no interior deste pensamento, já que isto incide diretamente sobre suas concepções de educação e sociedade. Isso pode trazer repercussões interessantes sobre algumas de suas teses, levantando novas questões. Seriam a criança e a infância entendidas como construções sociais? Eram as crianças entendidas como atores plenos, ou simplesmente como seres em devir? Qual o efeito disso no debate anarquista sobre a educação das crianças? São algumas das questões que nosso estudo visa abordar.
Objetivos
Geral:
Contribuir para uma formulação do pensamento sobre a história e os estudos sociais da criança e da infância a partir do pensamento anarquista.
1. Expor os principais conceitos que definem a educação dentro da filosofia anarquista. 2. Descrever e analisar os discursos e os saberes que constituem as noções de criança e
infância no interior do pensamento anarquista.
3. Identificar a maneira pela qual a criança e a infância estão apresentadas nas obras estudadas e de que maneira elas estão relacionadas ao projeto pedagógico anarquista. 4. Contribuir com o estudo e a pesquisa da história e dos estudos sociais da criança, da
infância e da educação.
Metodologia
O método analítico centrado na pesquisa documental e bibliográfica comporá esta pesquisa a partir de um esforço em realizar uma espécie de genealogia do pensamento dos principais filósofos do anarquismo europeu.
A estratégia de pesquisa busca, a partir da análise bibliográfica, compreender quando e de que maneira surgem no interior desse pensamento as noções de educação, criança e infância. Optamos por centrar o estudo no período entre o final do século XIX e início do século XX, pois esse é o momento em que se cristalizam, no interior do anarquismo, suas principais teses acerca da educação, e que vieram a inspirar, posteriormente, diversas experiências de educação libertária pelo mundo. Todavia, entendemos ser necessário remontar a filósofos que precederam o anarquismo, pois são esses os interlocutores dos autores ligados a filosofia anarquista. Pretendemos verificar os escritos pioneiros do anarquismo, bem como artigos e pesquisas contemporâneas sobre anarquismo, educação, criança e infância.
A pesquisa se ocupará do levantamento e análise dos artigos, dos livros, e das teses especializadas. O levantamento bibliográfico será realizado inicialmente pela análise dos títulos visando identificar aqueles que estiverem dentro da temática da pesquisa, bem como pela utilização dos conceitos-chave: criança, infância, anarquismo e educação. Realizaremos as leituras dos artigos, e a elaboração dos resumos para a diagramação do campo de estudos da criança e da infância no pensamento anarquista.
Assim, para o desenvolvimento da análise documental pretende-se o seguinte percurso: realização do levantamento bibliográfico (quantitativo e qualitativo considerando em relação ao primeiro, a realização de uma classificação e, em relação ao segundo, a consideração dos assuntos recorrentes); organização do material (leitura e fichamentos); seleção de temáticas e termos-chave; identificação da epistemologia, das metodologias, a análise dos dados deve considerar os termos-chave identificados anteriormente buscando
assim, formar unidades de análise (que podem ser compreendidas como núcleos de significado que operacionalizam um conjunto de assuntos).
Por fim, espera-se divulgar e publicar os resultados obtidos por meio da dissertação de mestrado e de artigos para apresentação em congressos e publicação em periódicos.
Resultados esperados
Espera-se como resultado:
- Ampliar e aprofundar o pensamento social em relação à criança e a infância.
- Colaborar com a identificação das concepções de criança e de infância no interior da filosofia anarquista e a forma pela qual essas concepções estão relacionadas ao projeto político-pedagógico anarquista.
- Contribuir com a divulgação e reflexão das produções anarquistas em educação.
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