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O DIA EM QUE CHAYANOV VISITOU O DESPRAIADO OU DINÂMICAS

DE TRABALHO FAMILIAR ENTRE CAMPONESES NEGROS NO

LITORAL NORTE DO RIO GRANDE DO SUL (PRIMEIRA REPÚBLICA)

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Rodrigo de Azevedo Weimer2 O Morro Alto é uma comunidade que, no início da década de 2000, foi identificada com base na categoria legal de “remanescentes de quilombos”, assegurada pelo artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988. Tal identificação deve-se a luta política étnica iniciada na década anterior. As demandas coletivas continuam, já que o reconhecimento não assegura a legalização da terra; assim, hoje se reivindica a titularização fundiária. A equipe de Daisy Barcellos, encarregada da construção de relatório referente àquela comunidade, constatou a existência de um “território de ocupação histórica”, ou seja, uma presença negra naquele espaço que extrapola as balizas cronológicas e simbólicas do período escravista.3

Neste paper, acompanharemos as formas de produção familiar dos camponeses negros da região durante a Primeira República, utilizando como recurso narrativo a hipotética e ilustre visita do economista russo Alexander Chayanov (1888-1937). Datemos sua incursão dos anos finais da década de 1920 – antes, portanto, de cair em desgraça com Stálin, que certamente lhe teria vedado a possibilidade de passeios pelo Litoral Norte do Rio Grande do Sul, que, de fato, era mais agradável que um gulag siberiano. Seu olhar, talvez, possa nos servir para uma melhor compreensão de um segmento social que vivia em uma situação dual. Era negro e padecia das agruras do racismo e do estigma de um passado escravo. No entanto, do ponto de vista das atividades produtivas, tinha um comportamento como outros agricultores autônomos quaisquer.

Eram muitas e diversas as famílias negras lá pras bandas do Morro Alto. Caso nosso célebre visitante se perdesse em meio à beleza das paisagens de encostas de morros, faxinas e lagoas, poderia pedir informações a qualquer “moreno” da localidade, que prestativamente poderia

1

Texto apresentado no 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba (UFPR), de 13 a 16 de maio de 2015. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/

2 Doutor em história – UFF. Analista pesquisador na Fundação de Economia e Estatística – RS. E-mail:

rod_weimer@hotmail.com. Pesquisa financiada com recursos do CNPq, CAPES e FAPERGS.

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BARCELLOS, Daisy M.; CHAGAS, Miriam de Fátima, FERNANDES, Mariana Balen; FUJIMOTO, Nina Simone; MOREIRA, Paulo Roberto Staudt; MÜLLER, Cíntia Beatriz; VIANNA, Marcelo; WEIMER, Rodrigo de Azevedo.

Comunidade negra de Morro Alto. Historicidade, identidade e direitos constitucionais. Porto Alegre: Editora da

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lo: “nas Barranceiras, margem da lagoa da Pinguela, mora o pessoal do tio Hortêncio. Pros lados do Faxinal, fica o velho Merêncio, parece até que foi escravo, que nem o pessoal da dona Tereza e do tio Romão, na costa do Morro Alto, onde de vez em quando aparece fantasma. Seguindo um pouco mais em direção ao Ribeirão, tem a casa do seu Tibério. No Borba, à beira da lagoa do Ramalhete, vêm os Fortes, e já pras bandas do Despraiado é a Felisberta. Adiante tem a negrada da Prainha!”

“Tia Felisberta, viúva do velho Manoel Inácio. O pessoal da Tia Bebeta. Dizem que foi escrava dos Marques, ela e o falecido, mas a família não gosta que toque no assunto. O filho mais velho, Deodício, ficou cuidando do rancho, cuidando dos mais novos, o Ladislau e o José, morreu criança, e em nome das irmãs que aos pouquinhos foram casando e indo embora, dona Maria, dona Pulquéria, dona Mercedes. Dona Rosalina foi pra Osório. E as solteironas, Dona Angélica e Dona Raquel, essas ouvi dizer que nasceram no tempo do ventre-livre. Tudo senhora direita. Ficaram pra tias. Quer dizer, dona Angélica é mãe solteira, teve aquela guria, já morreu, Deus que me perdoe, que era doente. Seu Deodício tem a senhora dele, dona Clara, e uma carrada de gurias. Gente trabalhadora, diz que compraram um pedacinho de chão só dois anos depois da forraria. Os vizinhos na maior parte também foram do cativeiro, só que muitos não querem dizer. Uns plantavam cana ou na roça, outros criavam os bichos, outras cuidavam da casa do sinhô, teve quem tropeasse: juntando dinheirinho, alguns compraram terreno, outros ganharam, outros foram ficando onde os antigos sempre estiveram.”

Chayanov, desconfiado que era – em parte porque seus preconceitos o levaram a não dar muita fé à palavra de seu informante –, resolveu procurá-los nos arquivos locais, esses mesmos que consultei. Deve ter chegado a resultados semelhantes aos meus: antes de constituírem família, Felisberta e Manoel Inácio haviam tido filhos com outros parceiros; em 2 de abril de 1874 a escrava Libânea, pertencente a Clara Marques da Silveira – uma prima do senhor de Manoel Inácio – deu à luz um menino de nome Belizário.4 A paternidade desse rapaz de “ventre livre” é atribuída a Manoel Inácio.Os descendentes de Belizário reconhecem os filhos de Felisberta como tios e primos e vice-versa.5 Igualmente, em 1º de março de 1881, nasceu Pulquéria, filha de Felisberta e de pai

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Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, doravante IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 6, livro de filhos livres de mães escravas de Conceição do Arroio, f. 26v, ano de 1874.

5 Entrevista com dona M. O. C. no dia 23 de janeiro de 2009; Entrevista com dona E. M. C. no dia 14 de janeiro de

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ignorado.6 O casal reuniu-se entre 1881 e 1883, já que neste ano nasceu Angélica, em 28 de novembro, a primeira menina lembrada como filha do casal.7 A filha seguinte, Raquel, nasceu livre, no dia 18 de fevereiro de 1886,8 a exemplo de Rosalina, de data de nascimento estimada em 1885,9 Maria, nascida a 15 de janeiro de 1890,10 Manoel, de 1º de novembro de 1894,11 Mercedes, de 8 de dezembro de 1896,12 Ladislau, de data de nascimento estimada em 1898,13 e José, nascido depois de 1898 e falecido entre 1904 e 1906.14

Apesar de uma presença comprovada documentalmente – textos escritos ou orais – e uma permanência de ocupação territorial de mais de século,15 os camponeses negros que haviam adquirido terrenos não foram recenseados em 1920, quando foi realizado um levantamento dos imóveis rurais do Rio Grande do Sul.16 Descendentes dos antigos senhores – os Marques – foram devidamente cadastrados, o que descarta a possibilidade do distrito ter sido esquecido e sugere ter havido um recorte racial na escolha de quais propriedades registrar; mesmo aqueles que eram efetivos proprietários, e não posseiros (como Manoel Inácio), foram esquecidos.

O “esquecimento” presente no censo pode ser inserido, de uma forma mais ampla, em silenciamentos discursivos acerca da existência e das práticas sociais de lavradores autônomos negros ao longo do século XX, inseridos que estão em uma invisibilização histórica mais ampla

6 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 6, livro de filhos livres de mães escravas de Conceição do Arroio, f. 79-79v, ano de

1881.

7

IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 6, livro de filhos livres de mães escravas de Conceição do Arroio, f. 97, ano de 1883.

8 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391100, It. 4, livro 13 de batismos de Conceição do Arroio, f. 88, ano de 1886

9 De acordo com o inventário de seu pai, nascida em 1885 (APERS, doravante Arquivo Público do Estado do Rio

Grande do Sul, Cartório de Órfãos e Ausentes - Conceição do Arroio, estante 159, caixa 027.0335, Auto n. 814, inventário de Manoel Inácio Osório Marques, ano de 1906).

10 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391100, It. 6, livro 15 de batismos de Conceição do Arroio, f. 75, ano de 1890. 11 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 1, livro 16 de batismos de Conceição do Arroio, f. 83, ano de 1894. 12 IJCSUD - CHF, Mcf. 1391101, It. 2, livro 17 de batismos de Conceição do Arroio, f. 79, ano de 1896. 13

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, doravante APERS, Cartório de Órfãos e Ausentes - Conceição do Arroio, estante 159, caixa 027.0335, Auto n. 814, inventário de Manoel Inácio Osório Marques, ano de 1906.

14 APERS, Cartório de Órfãos e Ausentes - Conceição do Arroio, estante 159, caixa 027.0335, Auto n. 814, inventário

de Manoel Inácio Osório Marques, ano de 1906.

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BARCELLOS, Daisy M.; CHAGAS, Miriam de Fátima, FERNANDES, Mariana Balen; FUJIMOTO, Nina Simone; MOREIRA, Paulo Roberto Staudt; MÜLLER, Cíntia Beatriz; VIANNA, Marcelo; WEIMER, Rodrigo de Azevedo.

Comunidade negra de Morro Alto. Historicidade, identidade e direitos constitucionais. Porto Alegre: Editora da

UFRGS, 2004.

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MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, INDÚSTRIA E COMÉRCIO. Recenseamento do Brasil realizado em 1º de

setembro de 1920. Relação dos proprietários dos estabelecimentos ruraes recenseados no Estado do Rio Grande do Sul.

Volume I. Rio de Janeiro: Tipografia da Estatística, 1927, pp.379-395. Biblioteca da Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser.

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como segmento social.17 Na perspectiva de ruptura com a omissão da população negra rural, neste artigo dedico-me ao estudo das práticas produtivas familiares nas parcelas dos pequenos proprietários negros, tomando como exemplo o último dos núcleos domésticos arrolados. Através, é claro, da jocosa hipótese de uma visita de Chayanov ao Despraiado.

Quando destaco o caráter negro, incluo uma variável não prevista pelo autor. A especificidade racial dos sujeitos estudados não foi considerada um fator relevante no contexto do estudo dos camponeses russos no início do século XX; no caso brasileiro, porém, essa questão levou a trajetórias distintas, pelo acesso dificultoso a recursos e diante do grau de arbitrariedade sofrida por parte dos fazendeiros brancos, em virtude de um racismo que jamais deixaram de sofrer. Sei disso através de quase quinze anos de entrevistas com os descendentes dos ex-escravos mencionados por quem deu as orientações a nosso visitante.

Certa feita, na apresentação de um trabalho em que empregava a categoria “campesinato negro”, fui indagado quanto à existência deste segmento social. Meu interlocutor, obviamente, sabia da existência de negros que labutavam na terra. Sua questão era se havia alguma especificidade que permitisse classificá-los como um grupo distinto. Sob um ponto estritamente econômico, eram poucas as diferenças, ainda que existissem hiatos do ponto de vista da formação sócio-histórica da unidade econômica por parte da geração que transitou entre escravidão e liberdade. No que toca aos constrangimentos sociais, contudo, as diferenças eram abissais. Na região do Morro Alto, brevemente percorrida no início do paper, havia um descendente da família senhorial que tinha por hábito, contam os relatos, passar atirando sempre que via um negro, porque, assumidamente, não gostava deles. Contando com possibilidades menores de inserção social, portanto, o alcance da atuação deste setor social era distinto. Creio que não deveria ser tão difícil, aos historiadores, entender a existência de um campesinato brasileiro com segmentos etnicamente diferenciados. “Não é por serem campesinas que tais comunidades deixam de ser étnicas”, alertou uma antropóloga.18

Através de pressupostos explicitados no texto, acompanharei, por meio de um grupo familiar considerado exemplar, a evolução da mão-de-obra disponível para o trabalho em seu terreno conforme as formulações do teórico russo. Com isso, não pretendo “testar” suas teorizações no

17 LEITE, Ilka B. Negros no sul do Brasil. Invisibilidade e Territorialidade. Florianópolis: Letras Contemporâneas,

1996.

18

MÜLLER, Cíntia Beatriz. Comunidade Remanescente de Quilombos de Morro Alto. Uma análise etnográfica dos campos de disputa em torno da construção do significado da identidade jurídico-política de “remanescentes de quilombos”. 2006. 285 p. Doutorado em Antropologia Social. Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre, p. 18

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grupo por mim estudado, e tampouco conferir-lhe o poder de certificação sobre o caráter camponês do núcleo examinado. Trata-se de algo mais simples. Chayanov, nas estratégias demonstrativas de suas teorias, ordenou anualmente, em uma tabela, o número de integrantes de uma família de lavradores típica-ideal junto com sua idade; com isso, objetivava descrever comportamentos, especialmente ao descobrir quais eram os momentos de maior ou menor disponibilidade de mão-de-obra e, portanto, as ocasiões em que havia maior fadiga ou conforto para o núcleo doméstico / produtivo. 19 É suficientemente destacado pela bibliografia pertinente o quanto a definição de ritmos e intensidade própria de traballho era característica do “projeto camponês” almejado pelos ex-escravos (Machado, 1994, Rios e Mattos, 2005).

Percebi ser esse um fértil caminho para conhecer o campesinato negro em sua especificidade, isto é, descobrir no que ele se aproxima e no que se afasta do modelo chayanoviano. Não se trata de tomar os agricultores russos como parâmetro (mas como Chayanov é nosso visitante, ele certamente o fará), mas de uma oportunidade metodologicamente rica de conhecer melhor a vida e a economia doméstica destes sujeitos sociais tão esquecidos. É possível que este seja um mérito de minha pesquisa: uma ideia mais detalhada das atividades destes agricultores, cuja atuação social por vezes se nos revela fugidia. Ao mesmo tempo, foi possível uma leitura mais panorâmica, já que aquele núcleo campesino foi acompanhado por quatro décadas20. Ainda que restrinja-me à proporção entre as variáveis consumidores/trabalhadores (doravante C/T), índice central no pensamento chayanoviano, tornou-se possível abranger duas gerações de lavradores: o casal de ex-escravos e seus filhos, seus filhos e seus netos.

A proporção (C/T) é fundamental na ótica chayanoviana. Na definição de campesinato, conta muito o fato de tratar-se de um pequeno empreendimento agrícola, no qual o empresário e o trabalhador são a mesma pessoa. Isso permite a definição do tempo e da intensidade da labuta, na qual o núcleo doméstico se vê implicado, em um mecanismo de autoexploração.21 Isso permite à família balancear maiores ou menores graus de fadiga em contraponto a maiores ou menores graus

19 CHAYANOV, A. V. La organización de la unidad económica campesina. Buenos Aires: Editora Nueva Visión,

1974, p. 52.

20

Desta maneira, tomaremos como marco inicial 1890, coincidente com a aquisição de seu terreno por Manoel Inácio Marques, e final, 1930, quando terminou a Primeira República .

21 CHAYANOV, A. V. La organización de la unidad económica campesina: introducción. In: PLAZA, Orlando.

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de satisfação de suas necessidades: “El balance trabajo-consumo que hemos analizado es la expresión del mecanismo que limita las tendencias consumidoras de la familia campesina”.22

A correlação numérica (C/T) apresenta-se como decisiva na determinação desse balanço: um número muito grande de crianças, idosos ou incapazes, sustentados por braços trabalhadores, pode colocar em risco o bem-estar e, no limite, a viabilidade ou sobrevivência do núcleo doméstico. Por este motivo, aquele índice expressa a definição das possibilidades de desenvolvimento e o delineamento de momentos mais prósperos ou mais agudos para a sobrevivência. O momento em que as crianças são pequenas ou em que os velhos pais arranjam-se por si só são de dificuldades. Um número elevado de filhos adultos, por sua vez, até o momento de seus casamentos, pelo contrário, representa bonança para o núcleo campesino.

O índice ideal seria a mesma quantidade de pessoas a serem alimentadas e disponíveis para o trabalho. No cálculo (C/T), decisivo, se aspira ao número ideal de 1, isto é, todos que comem trabalham e portanto não há integrantes não-produtivos a serem sustentados pelos demais. Inversamente, relações superiores a 1 – e quanto mais elevadas forem – (isto é, pessoas não-produtivas a sustentar), maior o grau de fadiga e autoexploração do núcleo; mais difíceis eram as condições de sobrevivência, pela falta de braços para a labuta e o excesso de bocas para alimentar.

Ao avaliar a trajetória de uma família, conforme faremos, tomamos este problema como fator central a ser levado em conta nos termos deste paper. Considerando os índices ao longo do tempo, é possível perceber os momentos em que ela enfrentou dificuldades de maior ou menor monta. Tabulei, ano a ano, os integrantes daquela unidade produtiva com sua idade, indicando a correlação entre o total dos moradores que deveriam ser alimentados, e aqueles capazes de trabalhar (em itálico).23 Manoel Inácio, Felisberta e sua descendência, sob certo viés, são representativos da coletividade a que pertencem, já que são camponeses negros “normais”, do ponto de vista das atividades econômicas desempenhadas, a exemplo dos demais que foram indicados a Chayanov no terceiro parágrafo; sob outro viés, porém, ela representa um segmento mais bem localizado nas hierarquias locais – a exemplo da narrativa, escutada por Chayanov, sobre a rapidez com que

22 CHAYANOV, A. V. La organización de la unidad económica campesina. Buenos Aires: Editora Nueva Visión,

1974, p. 133.

23 Tabela similar, e inspirada, naquela apresentada pelo economista russo, porém em uma duração mais longa.

CHAYANOV, A. V. La organización de la unidad económica campesina. Buenos Aires: Editora Nueva Visión, 1974, p. 52.

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adquiriram terrenos depois de 1888.24 Conforme veremos, foi bastante difícil fazer o levantamento necessário à elaboração da tabela no que toca a um núcleo doméstico. Número superior seria inviável, o que impossibilitou qualquer abordagem comparativa.

São necessárias algumas ressalvas metodológicas. Chayanov (1974, p. 36) jamais se propôs a uma análise empírica do desenvolvimento histórico das unidades familiares; e sim a um modelo. Ao defender-se de críticas, o autor afirmou ser seu sistema calcado na observação do comportamento econômico na produção agrícola doméstica, e não em uma abstração teórica.25 Mesmo assim, sua perspectiva é formalista e estática, ainda que o autor destaque que o estudo morfológico pode servir para a realização de estudos da dinâmica.26 Desta maneira, podemos utilizá-lo como ferramenta de análise, não para “confrontá-lo” com a realidade empírica estudada, mas sim para buscar nele a inspiração para uma análise mais qualificada do caso analisado.

São grandes os potenciais de uma avaliação desta natureza, mas há imprecisão em estabelecer todas as variáveis necessárias ao cômputo, já que não temos os dados precisos constatados por Chayanov por meio de trabalho de campo. Dada a sua fertilidade, porém, não convém desistir do empreendimento analítico. Quando não se pode reunir, no conjunto, todas as variáveis necessárias para dar conta das proporções entre (C/T), é possível ultrapassar estas limitações com alguns “admitindo que...”.

O historiador de pretensões científicas certamente – e, provavelmente, nosso parceiro de viagens também – franzirá a fronte e, talvez com razão, questionará quanto à possibilidade de produção de dados numéricos a partir de referências fugidias ou suposições. Ora bolas, como tabular aquilo que se “admite”? Ocorre que não se pretende traçar um retrato exato e positivo, o que talvez esteja além do alcance deste estudo, talvez além do alcance de qualquer pesquisa – novas testas franzidas. Esses aspectos imprecisos, porém, não nos devem desencorajar de ambicionar a percepção de tendências gerais. De diversos aspectos específicos em minha tabela não tenho e nunca terei certeza – por exemplo, do ano de migração de Rosalina. Posso, isso sim, fazer inferências a partir da idade de nascimento, em Osório, de seus filhos, o que garantirá que minhas

24 WEIMER, Rodrigo de Azevedo. A gente da Felisberta. Consciência histórica, história e memória de uma família

negra no litoral rio-grandense no pós-emancipação. (c.1847 – tempo presente). 2013. 467 p. Doutorado em História. Universidade Federal Fluminense, Niterói.

25

CHAYANOV, A. V. La organización de la unidad económica campesina: introducción. In: PLAZA, Orlando.

Economía campesina. Desco, Centro de Estudios y Promoción del Desarrollo, 1979, p. 101.

26 CHAYANOV, A. V. La organización de la unidad económica campesina: introducción. In: PLAZA, Orlando.

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estimativas sejam, se não exatas, tampouco disparatadas. A tabela como um todo, porém, ouso assegurar, não deve fugir muito à correspondência com a realidade, porque os indícios reunidos indicam que o que não é certo é bastante aproximado.

Respondo com Ginzburg àqueles questionamentos, quando ele avalia a dimensão conjectural do conhecimento histórico: “A orientação quantitativa e antiantropocêntrica das ciências da natureza a partir de Galileu colocou as ciências humanas num desagradável dilema: ou assumir um estatuto científico frágil para chegar a resultados relevantes, ou assumir um estatuto científico forte para chegar a resultados de pouca relevância”.27

Ao realizar a opção pela primeira alternativa – a fragilidade do estatuto científico associada à relevância dos resultados soa-me mais atrativa –, admito que estas pressuposições, devida e honestamente explicitadas pelo historiador, poderão ser avaliadas pelos leitores, que decidirão se as consideram convincentes ou não. A criação do historiador seria desonesta se não fosse explicitada como tal; devidamente evidenciada, porém, pode ajudar na construção do conhecimento.

É o que quer dizer o autor quando fala em imaginação histórica. Em análise crítica d’ “O retorno de Martin Guerre”, Ginzburg propõe que a capacidade imaginativa não é apenas possível e desejável ao historiador, mas ainda necessária.28 Impossível não praticá-la. Todavia, não deve se imaginar disparates. Sua imaginação é rigorosamente controlada, amparada nas evidências disponíveis e explicitada como tal, a fim de não impingir embustes ao leitor, que poderá avaliar, por si, quão convincentes elas são.

Em alguma medida, portanto, meu quadro é ficcional. Mesmo no meu caso, tão grave, tão fugidio, a imaginação obedece a certos quesitos! Ao explicitar os critérios arbitrários estabelecidos, fundamentados em documentação e história oral, minha ficção torna-se passível de controle pelos leitores, que poderão avaliar sua verossimilhança. Estimo que as crianças começassem a labutar na roça aos dez anos. Chayanov avalia a idade de quinze, mas dez pareceu-me mais adequado para meu caso, amparado nas entrevistas realizadas com integrantes da família e em uma avaliação mais realista das agudezas da vida de ex-escravos. Os chefes daquele terreno, afinal, poucos anos antes haviam saído da condição cativa. Em documentos do período escravista, há referências a crianças no eito já aos oito anos.

27

GINZBURG, Carlo. Sinais. Raízes de um paradigma indiciário. In: _________. Mitos, emblemas e sinais. Morfologia

e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 78.

28 GINZBURG, Carlo. Provas e possibilidades à margem de “Il ritorno de Martin Guerre” de Natalie Zemon Davis. In:

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É provável que em momentos extremamente agudos de demanda de mão-de-obra, isto é, com proporções (C/T) muito superiores a 1, crianças menores tenham ido à roça – como na última década do século XIX e o primeiro lustro do XX. Não contabilizei essas atividades como “trabalho” por duas razões: em termos culturais, era uma situação encarada como “aprendizado” e não “produção” propriamente dita. Por outro lado, o auxílio dado pelos pequenos fazia, certamente, diferença, mas era apenas uma ajuda, já que sua capacidade produtiva não podia ser comparada à dos adultos. Parti também do princípio de que as filhas que casaram o fizeram com 20 anos, amparado na idade média de casamento da geração seguinte e na data de matrimônio de Clara – 19 anos (isso não se trata de suposição; pelo contrário, encontra amparo em fontes documentais).29

Estimo que Angélica teria tido Beta aos 20 anos (equiparando à idade de casamento das irmãs), e amparado no relato de que ela “era doente”, não se a contabiliza como mão-de-obra; amparado em relatos semelhantes, aproxima-se sua morte aos 15 anos. A partir de uma lista de matrículas de escravos, avalia-se em 1857 o ano de nascimento de Felisberta.30 A partir do nascimento de seus filhos, em Osório, supõe-se que Rosalina partiu do Despraiado em 1915, aos 30 anos. Tomando a idade de suas irmãs Diva e Aurora, estimou-se o nascimento de Benta em 1916, de Amélia em 1921 e de Maria em 1928. Avalia-se que os integrantes da família trabalharam na roça até os 60 anos. Finalmente, supus o nascimento e morte de José em 1900 e 1905, a partir do intervalo constante no testamento e no inventário de seu pai. Os documentos dão a entender que nascera depois de 1898 e falecera entre 1904 e 1906.31 Proponho o nascimento de Honorata, uma filha que Pulquéria tivera antes de casar-se, em quatro anos antes do matrimônio, ou seja, aos 17 de sua mãe.

O leitor reparará que temos assim um quadro bastante conjectural. Porém, em nada descabido (e é isso que me interessa), dado que construído a partir dos indícios disponíveis para este núcleo doméstico. Apela-se aos leitores para que, o considerando conjectural, porém não descabido, avaliem as conclusões que a partir dele tirarei como, elas também, conjecturais, porém não descabidas. Caso o considerem conjectural e descabido, azar é do autor. O quadro registra a idade

29 IJCSUD – Centro de História da Família, microfilme. 1444093, item. 10, livro do registro civil do estado do Rio

Grande do Sul – Cartório Distrital de Maquiné – Conceição do Arroio – 5º Distrito – Matrimônios 1914-1928, f. 7v-8, ano de 1915.

30

APERS, Cartório de Órfãos e Ausentes - Conceição do Arroio, caixa 027.0338, Auto 883, Estante 159, inventário de Thomaz Osório Marques, Ano 1885

31 APERS, Cartório de Órfãos e Ausentes – Conceição do Arroio, estante 159, caixa 027.0335, Auto n. 814, inventário

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dos presentes à unidade produtiva; sua ausência, expressa a partir de determinado momento por lacunas que indicam morte (+), migração (M) ou casamento e partida do terreno familiar (C).

Quadro – Proporção entre consumidores e produtores na gleba familiar de Manoel Inácio Marques (1890-1930)

An o M an o el In ác io F eli sb erta P u lq u éria Ho n o ra ta An g éli ca B eta Ra q u el Ro sa li n a M aria M an o el Clara Be n ta Am éli a Au ro ra M aria Div a M erc ed es Lad islau Jo sé Co n su m id o re s Trab alh ad o re s C/T 1890 43 33 9 7 4 5 1 7 2 3,5 1891 44 34 10 8 5 6 2 7 3 2,3 1892 45 35 11 9 6 7 3 7 3 2,3 1893 46 36 12 10 7 8 4 7 4 1,75 1894 47 37 13 11 8 9 5 1 8 4 2 1895 48 38 14 12 9 10 6 2 8 5 1,6 1896 49 39 15 13 10 11 7 3 1 9 6 1,5 1897 50 40 16 14 11 12 8 4 2 9 6 1,5 1898 51 41 17 1 15 12 13 9 5 3 1 11 6 1,83 1899 52 42 18 2 16 13 14 10 6 4 2 11 7 1,57 1900 53 43 19 3 17 14 15 11 7 5 3 1 12 7 1,71 1901 54 44 20 4 18 15 16 12 8 6 4 2 12 7 1,71 1902 55 45 C 19 16 17 13 9 7 5 3 10 6 1,66 1903 56 46 20 1 17 18 14 10 8 6 4 11 7 1,57 1904 57 47 21 2 18 19 15 11 9 7 5 11 7 1,57 1905 58 48 22 3 19 20 16 12 10 8 6 11 8 1,37 1906 59 49 23 4 20 21 17 13 11 9 + 10 8 1,25 1907 + 50 24 5 21 22 18 14 12 10 9 8 1,12 1908 51 25 6 22 23 19 15 13 11 9 8 1,12 1909 52 26 7 23 24 20 16 14 12 9 8 1,12 1910 53 27 8 24 25 C 17 15 13 8 7 1,14 1911 54 28 9 25 26 18 16 14 8 7 1,14 1912 55 29 10 26 27 19 17 15 8 7 1,14 1913 56 30 11 27 28 20 18 16 8 7 1,14 1914 57 31 12 28 29 21 19 17 8 7 1,14 1915 58 32 13 29 30 22 19 20 18 9 8 1,12 1916 59 33 14 30 M 23 20 1 C 19 8 6 1,33 1917 60 34 15 31 24 21 2 20 8 6 1,33 1918 61 35 + 32 25 22 3 21 7 5 1,4 1919 62 36 33 26 23 4 22 7 5 1,4 1920 63 37 34 27 24 5 23 7 5 1,4 1921 64 38 35 28 25 6 1 24 8 5 1,6 1922 65 39 36 29 26 7 2 25 8 5 1,6 1923 66 40 37 30 27 8 3 26 8 5 1,6 1924 67 41 38 31 28 9 4 27 8 5 1,6 1925 68 42 39 32 29 10 5 28 8 6 1,33 1926 69 43 40 33 30 11 6 1 29 9 6 1,5 1927 70 44 41 34 31 12 7 2 30 9 6 1,5 1928 71 45 42 35 32 13 8 3 1 31 10 6 1,66 1929 72 46 43 36 33 14 9 4 2 1 32 11 6 1,83 1930 73 47 44 37 34 15 10 5 3 2 33 11 7 1,57

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A partir do índice (C/T), é possível demarcar quatro períodos. Entre 1890 e 1894, quando Manoel Inácio estabeleceu sua gleba no Espraiado, já com filhos pequenos, houve um momento crítico de desequilíbrio. No primeiro ano, o casal alimentava sete pessoas. Ali, é quase certo que crianças menores de dez anos se tenham juntado à lavoura para viabilizar a sobrevivência familiar. É provável que antes da aquisição de seu terreno, Felisberta e Manoel Inácio usufruíssem de roças próprias no terreno senhorial. Admitindo esta hipótese, também é plausível que as filhas nascidas “de ventre livre”, isto é, Angélica e Pulquéria, tenham ajudado no sustento dos irmãos. Esse sobre-esforço foi necessário para o sucesso do projeto familiar de uma gleba própria, ambição máxima dos pequenos lavradores negros naquele período.32 Para isso, porém, no primeiro momento a auto-exploração chegou a um ponto agudo. É incerto generalizar esta situação ao conjunto do campesinato negro da região, mas ela exemplifica os sacrifícios enfrentados por descendentes de escravos, em seus primeiros anos, ao se tornarem pequenos lavradores autônomos.

Ao longo do tempo seus filhos foram entrando em idade produtiva, de forma que a assimetria entre o número de trabalhadores e consumidores foi-se atenuando. No pouco mais de década entre 1895-1906, o índice (C/T) descresceu de 1,66 a 1,25, ainda que com picos entre 1898-1901, devido ao abrigo, no terreno familiar, da nenê de Pulquéria. Raquel, Rosalina, Maria, Manoel e Mercedes, aos poucos, passaram a labutar na roça, o que lentamente reequilibrou a proporção. O período tem fim, ainda, com a morte do patriarca. Se seu falecimento ensejou uma crise quanto à definição da liderança daquela unidade familiar – que, afinal, veio a ser compartilhada pela viúva e pelo primogênito do sexo masculino –, do ponto de vista da mão-de-obra disponível sua morte não deve ter representado um ônus tão grande à economia doméstica, dado que morreu próximo ao momento em que, é provável, deixaria de desempenhar atividades produtivas.

Quando os filhos de Felisberta ficaram adultos – ou, ao menos, habilitados a trabalhar – a família conheceu um equilíbrio de correlação (C/T) próxima a 1, que perdurou entre 1907 e 1915. Isso é mais significativo quando avaliamos que a estabilidade foi obtida apesar da presença de uma criança incapaz e do momento de estimado afastamento de duas filhas que contraíram núpcias. Aliás, é possível que se tenham “aproveitado” tais momentos de prosperidade para “liberar” a

32 MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico. Os movimentos sociais na década da Abolição. Rio de Janeiro:

Editora UFRJ, EDUSP, 1994. RIOS, Ana L. e MATTOS, Hebe Maria. Memórias do cativeiro. Família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

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de-obra de Mercedes e Maria; cedo ou tarde elas deveriam se casar e o melhor era que isso acontecesse em um momento de fartura, quando o impacto de sua retirada não seria tão perigoso.33

Nem a chegada de uma adulta que poderia ajudar na lavoura, Clara, esposa de Manoel Inácio Filho, em 1915, foi suficiente para descaracterizar um novo (mas menos agudo) período (1916-1930) de desequilíbrio (C/T) naquele terreno. No mesmo ano parecem ter partido Mercedes, para casar-se, e Rosalina, que foi embora para Osório. Neste novo momento, uma nova geração de crianças, os filhos de Manoel Inácio Filho e Clara, ainda não podia ajudar. Um ciclo completava-se. O grau de desequilíbrio foi muito menos dramático do que em fins do século XIX, quando a auto-exploração da mão-de-obra familiar deve ter se tornado de tal maneira acentuada, a ponto de crianças provavelmente terem trabalhado abaixo de uma idade mínima. A diferença estava no fato de a unidade produtiva já se encontrar em funcionamento, e não em processo de montagem.

É claro que não se pode imputar aos sujeitos sociais o cálculo que a análise sugere.34 A atribuição de padrões se dá a posteriori. As soluções foram definidas na dinâmica do jogo social. A definição do ritmo de atividades como casamentos, por mais que correspondessem a necessidades vitais, pode ter sido condicionada a situações especiais, e não exatamente conforme construções racionais. Por exemplo, Mercedes pode ter esperado o casamento de seu irmão para fazer o mesmo;35 ou ainda, os ritmos poderiam estar relacionados a circunstâncias do calendário agrícola ou a ritos cristãos. O certo é que não consultaram o visitante russo para tomar suas decisões. As ferramentas analíticas são precárias e diversas da complexidade do vivido. Ainda assim, conforme repararia o agrônomo viajante, a carência de braços para a lavoura era um fator objetivo a considerar; era visualizado e percebido pelos agricultores.

Ainda que, como dito, não fosse a proposta deste esforço intelectual submeter o teórico russo “à prova” dos camponeses negros de Osório (ou vice-versa), pode-se perceber uma

33 Vale lembrar que tudo indica que foram estes os casamentos sobre os quais a família pôde exercer algum tipo de

arbítrio e, portanto, algum tipo de planejamento: Raquel e Angélica permaneceram solteiras (mas a última foi mãe solteira, o que certamente deve ter frustrado expectativas parentais de matrimônio); Rosalina migrou para Osório, não se sabe se à revelia ou não de seus pais (onde também teve filhos naturais); e Pulquéria, por não ser filha de Manoel Inácio, pode ter se casado de acordo com critérios próprios, e não submetida à vontade do padrasto.

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“não são, como a linguagem inevitavelmente empregada para descrevê-las poderia levar a crer, procedimentos que a imaginação jurídica inventa para contornar o direito, nem mesmo estratégias sabiamente calculadas, à maneira dos “golpes” de esgrima ou do xadrez. É o habitus que, como o produto das estruturas que tende a reproduzir e porque, mais precisamente, implica a submissão “espontânea” à ordem estabelecida e à ordem dos guardiões dessa ordem (...)” (BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 264-265. Grifos originais).

35 WEIMER, Rodrigo de Azevedo. A gente da Felisberta. Consciência histórica, história e memória de uma família

negra no litoral rio-grandense no pós-emancipação. (c.1847 – tempo presente). 2013. 467 p. Doutorado em História. Universidade Federal Fluminense, Niterói, p. 259-261.

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convergência entre alguns resultados apresentados com conclusões de Chayanov (1974, p. 54). Seja entre negros, seja entre eslavos, a proporção (C/T) passa por um crescente, elevando-se cerca de quinze anos após a constituição da família (no exemplo em tela, 1,83 em 1898, oito anos após a aquisição do terreno por Manoel Inácio, decaindo posteriormente). 36 A defasagem entre o estimado pelo teórico e o momento encontrado nesta pesquisa, quinze ou oito anos, decerto deve-se à probabilidade da unidade não ter sido montada “do zero” em 1890, mas com diversas bocas para alimentar e, como visto, possivelmente avizinhando-se a fome. Se admitirmos uma história deste núcleo familiar prévia à aquisição do terreno no Despraiado, tomando como ponto de início 1883, nascimento de Angélica, filha em comum de Manoel Inácio e Felisberta, encontraremos, exatamente, quinze anos em 1898.

É uma situação que decorre da peculiaridade de recente aquisição de um terreno, após a constituição de uma família. Quando ali chegaram, já havia bocas a alimentar. A ocupação do terreno se deu quando da montagem da unidade produtiva do Despraiado por parte de um casal de escravos que trazia consigo vários infantes; isso implicou em uma relação (C/T) mais elevada. Essa diferença parece, portanto, ser mais sócio-histórica, vinculada à formação do campesinato negro na região. Havia, não há dúvidas, diferenças etnicorraciais, mas elas se manifestavam em planos (nem sempre) mais sutis.

A partir de determinado momento, o número de trabalhadores começou a crescer, na medida em que os filhos tornaram-se mão-de-obra. No que diz respeito a Manoel Inácio Filho, temos o auge da carência de braços (1,83 em 1929) para o sustento da unidade catorze anos depois de seu casamento com Clara, em 1914, exatamente de acordo com a expectativa do visitante. Não se acompanhou a trajetória da família depois de 1930 até a venda do terreno em meados do século XX, mas é possível que essa proporção tenha diminuído conforme o prognóstico de Chayanov e nos mesmos termos ocorridos na lavoura de seu pai: o nascimento de novas crianças foi compensada pela entrada dos mais velhos em idade produtiva – é o que já havia acontecido com Benta e Amélia. Desta maneira, o índice (C/T) provavelmente deve ter decaído.

Chayanov, que talvez nunca tivesse visto um negro, deve ter sido surpreso, como alguns historiadores contemporâneos, ao descobrir que eles configuraram um conjunto populacional com lógicas próprias depois do fim da escravidão. Pode ter ficado admirado, não apenas pelas paisagens,

36 No entanto, no início da organização da unidade, a família já se encontrava constituída; era anterior àquela. Daí,

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recantos e clima exóticos do litoral norte gaúcho, mas também reparado na surpreendente recorrência de comportamentos daquela categoria que ele identificava como “campesinato”. Quando ele, bem acolhido no casebre familiar, de chão batido, convidado para um cafezinho, se recusou, contudo, a comer a “mistura” oferecida, um cuscuz feito por dona Felisberta porque viu-a manipular os alimentos, veio à tona outra faceta daqueles lavradores negros: comportamentos econômicos parecidos, sim; mas estatutos sociorraciais diferenciados. Certamente, para nosso hipotético Chayanov em sua hipotética desfeita a Felisberta, nada havia de excepcional. Havia que desconfiar, talvez tenha pensado, de comida exótica de gente exótica. Para a idosa ex-escrava, todavia, era um tipo de constrangimento sofrido por ela e “por seu parentesco” do qual vizinhos alemães e italianos de mesma condição sócio-econômica – os Scherer, os Gatelli – estavam isentos.

Fontes

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, Cartório de Órfãos e Ausentes – Conceição do Arroio, estante 159, caixa 027.0335, Auto n. 814, inventário de Manoel Inácio Osório Marques, ano de 1906.

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, Cartório de Órfãos e Ausentes – Conceição do Arroio, estante 159, caixa 027.0335, Auto n. 814, inventário de Manoel Inácio Osório Marques, ano de 1906.

IGREJA DE JESUS CRISTO DOS SANTOS DOS ÚLTIMOS DIAS – Centro de História da Família, Microfilme 1391101, Item 1, livro 16 de batismos de Conceição do Arroio; Item 2, livro 17 de batismos de Conceição do Arroio; Item 6, livro de filhos livres de mães escravas de Conceição do Arroio.

IGREJA DE JESUS CRISTO DOS SANTOS DOS ÚLTIMOS DIAS – Centro de História da Família Microfilme 1391100, Item 4, livro 13 de batismos de Conceição do Arroio; Item 6, livro 15 de batismos de Conceição do Arroio, f. 75, ano de 1890.

IGREJA DE JESUS CRISTO DOS SANTOS DOS ÚLTIMOS DIAS – Centro de História da Família, microfilme. 1444093, ite. 10, livro do registro civil do estado do Rio Grande do Sul – Cartório Distrital de Maquiné – Conceição do Arroio – 5º Distrito – Matrimônios 1914-1928, f. 7v-8, ano de 1915.

LABORATÓRIO DE HISTÓRIA ORAL E IMAGEM – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE – Acervo de entrevistas realizadas com idosos negros do litoral norte do Rio Grande do Sul por ocasião da pesquisa de doutoramento de Rodrigo de Azevedo Weimer – doado por este.

MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, INDÚSTRIA E COMÉRCIO. Recenseamento do Brasil realizado em 1º de setembro de 1920. Relação dos proprietários dos estabelecimentos ruraes

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recenseados no Estado do Rio Grande do Sul. Volume I. Rio de Janeiro: Tipografia da Estatística, 1927, pp.379-395. Biblioteca da Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser.

Bibliografia

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