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Sobre a Crítica de Van Fraassen ao Raciocínio Abdutivo 12 Stathis Psillos 3

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Academic year: 2021

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Sobre a Crítica de Van Fraassen ao Raciocínio Abdutivo12 Stathis Psillos3

É verdade também que existem muitas coisas que nunca descobriremos sem arriscar nosso pescoço. Eu descobri isto subindo num penhasco: amiúde, não se pode realmente descobrir se algo é, de fato, um apoio, sem se comprometer com ele. Mas, se ele não for um apoio, você cai.4

RESUMO: O objetivo deste texto é avaliar alguns dos argumentos recentes de van Fraassen contra a abdução e sugerir que ele não ofereceu razões boas e convincentes para que esta não seja considerada confiável. Na seção II, eu descrevo a atitude cética seletiva de van Fraassen com relação a formas de IBE que envolvem afirmações acerca de inobserváveis. De acordo com alguns recentes argumentos de Menuge5, percebo que este ceticismo parcial não pode ser justificado com base na identificação feita por van Fraassen dos inobserváveis com o epistemicamente inacessível. A seguir, discutirei dois argumentos recentes de van Fraassen contra IBE. Na seção III, eu examino seu argumento do conjunto defeituoso (argument from the bad lot), e mostro que tanto os realistas científicos quanto os empiristas construtivos precisam apelar a algum tipo de privilégio a fim de obter julgamentos fundamentados dos bens epistêmicos (epistemic goods) que eles requerem das teorias científicas. A questão que está em jogo entre em eles, eu sustento, é a extensão deste privilégio. Finalmente, na seção IV, eu trato do argumento da indiferença (argument from indifference) de van Fraassen, e sustento que julgamentos de verdade aproximada não são mais afetados por este argumento do que os julgamentos de adequabilidade empírica. Ao final do texto, eu espero, o leitor poderá entender como razoável acreditar que van Fraassen falhou em seu ataque contra o raciocínio abdutivo.

ABSTRACT: The aim of this paper is to evaluate some of van Fraassen’s recent arguments against abduction and to suggest that he has not offered good and compelling reasons to distrust it. In section II, I outline van Fraassen’s selective attitude towards forms of IBE that involve claims about unobservables. In line with some recent arguments by Menuge, I note that this partial scepticism cannot be justified on the basis of van Fraassen’s identification of the unobservable with the epistemically inaccessible. Then I move on to discuss two of arguments against IBE. In section III, I examine argument from the bad lot, and show that

1

2 [Nota dos tradutores: artigo originalmente publicado em The Philosophical Quarterly, volume 46, número

182, janeiro de 1996, pp. 31-47, com o título “On van Fraassen’s Critique of Abductive Reasoning”. Agradeçemos a Blackwell Publishers a autorização para a tradução deste artigo em língua portuguesa.] 3 [Nota dos editores: Stathis Psillos é professor no Departamento de Filosofia e História da

Ciência na Universidade de Atenas. É autor de Scientific Realism: How Science Tracks Truth (Routledge, London,1999).]

4 B. van Fraassen, ‘Discussion’ in J. Hilgevoord (ed.), Physics and our World View (Cambridge UP, 1994), p.

270. Refiro-me a outras obras de van Fraassen da seguinte forma: The Scientific Image (Oxford: Clarendon Press, 1980) [SI]; ‘Glymour on Evidence and Explanation’, Minnesota Studies in the Philosophy of Science, 10 (Univ. of Minnesota Press, 1983) [GEE]; ‘Empiricism in the Philosophy of Science’, in P. Churchland and C. Hooker (eds), Images of Science (Univ. of Chicago Press, 1985), pp. 245-308 [EPS]; Laws and Symmetry (Oxford: Clarendon Press, 1989) [LS].

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both scientific realists and constructive empiricists need to appeal to some sort of privilege in order to have grounded judgements of the epistemic goods they demand from scientific theories. The issue at stake between them, I argue, is the extent of this privilege. Finally, in section IV, I take on van Fraassen’s argument from indiffference, and argue that judgements of approximate truth are no more affected by this argument than judgements of empirical adequacy. By the end of this paper, I hope, the reader will find it reasonable to believe that van Fraassen has failed to undermine abductive reasoning.

I. INTRODUÇÃO

A inovadora defesa do empirismo na filosofia da ciência por parte de van Fraassen (SI; EPS; LS) colocou um problema prima facie para a idéia de que uma atitude epistemicamente otimista com relação às afirmações teóricas, atitude esta tipicamente vinculada ao realismo científico, não é nem pode ser garantida (warranted). A crença na verdade teórica, ele proclama, é ‘superrogatória’ (EPS p. 255).

A novidade da estratégia de van Fraassen consiste em sua franca investida contra a uma das formas aparentemente mais poderosas para ir além dos fenômenos e formar crenças teóricas, a saber, a inferência da melhor explicação (doravante, IBE*). Os realistas científicos sempre sugeriram que IBE é o modo de raciocínio utilizado pelos cientistas para constituir suas crenças teóricas, e têm argumentado que ela pode, de forma confiável, produzir e sustentar crenças (aproximadamente) verdadeiras sobre o mundo. De fato, várias linhas de defesa do realismo científico contra o instrumentalismo tradicional não passavam de variantes de IBE6. Van Fraassen corajosamente desafiou esta tradição, e deixou-nos todos em dúvidas quanto à confiança que podemos depositar em nossas práticas abdutivas.

Eu utilizarei o termo geral ‘abdução’ (abduction) para o tipo incerto de raciocínio no qual se infere a verdade (aproximada) da melhor explicação da evidência, na medida em que a melhor explicação provavelmente é suficiente para permitir a elaboração de uma inferência. O objetivo deste texto é avaliar alguns dos argumentos recentes de van Fraassen contra a abdução e sugerir que ele não ofereceu razões boas e convincentes para que esta não seja considerada confiável. Na seção II, eu descrevo a atitude cética seletiva de van Fraassen com relação a formas de IBE que envolvem afirmações acerca de inobserváveis. De acordo com alguns recentes argumentos de Menuge7, noto que este ceticismo parcial não pode ser justificado com base na identificação feita por van Fraassen dos inobserváveis com o epistemicamente inacessível.

A seguir, discutirei dois argumentos recentes de van Fraassen contra IBE. Na seção III, eu examino seu argumento do conjunto defeituoso (argument from the bad lot), e mostro que tanto os realistas científicos quanto os empiristas construtivos precisam apelar a algum tipo de privilégio a fim de obter julgamentos fundamentados dos bens epistêmicos (epistemic goods) que eles requerem das teorias científicas. A questão que está em jogo entre em eles, eu sustento, é a extensão deste privilégio. Finalmente, na seção IV, eu trato

* Nota dos tradutores: em inglês, Inference to the Best Explanation.

6 Ver J.J.C. Smart, Philosophy and Scientific Realism (London: Routledge & Kegan Paul, 1963); G. Maxwell,

‘The Ontological Status of Theoretical Entities’ Minnesota Studies in the Philosophy of Science, 3 (Univ. of Minnesota Press, 1962); H. Putnam, Mathematics, Matter and Method (Cambridge UP, 1975).

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do argumento da indiferença (argument from indifference) de van Fraassen, e sustento que julgamentos de verdade aproximada não são mais afetados por este argumento do que os julgamentos de adequabilidade empírica. Ao final do texto, eu espero, o leitor poderá entender como razoável acreditar que van Fraassen falhou em seu ataque contra o raciocínio abdutivo.

De início, gostaria de fazer uma nota geral. A intenção deste texto é crítica antes de construtiva. Ele não oferece uma teoria positiva da estrutura e da substância (substance) do raciocínio abdutivo8. Também não oferece uma defesa geral da abdução contra todos possíveis argumentos céticos. Antes, a única proposta deste texto é demonstrar que van Fraassen não obteve sucesso em debilitar a abdução em certos contextos. Os defensores (friends) do raciocínio abdutivo certamente têm muito mais trabalho construtivo a fazer. Contudo, se os argumentos deste texto estiverem justificados, os defensores do raciocínio abdutivo estarão livres de um fardo extra em sua escalada.

II. EMPIRISMO CONSTRUTIVO E ABDUÇÃO

Van Fraassen aceita que IBE possa operar como um modo de inferência na ciência, embora tenha insistido que a conclusão de tal inferência, isto é, a hipótese admitida como a melhor explicação da evidência, é aceita apenas como empiricamente adequada (todos os fenômenos observáveis são como as hipóteses afirmam que são), e não como aproximadamente verdadeira. Como ele afirma (SI pp. 71-2)

o poder explicativo é certamente um critério para a escolha de teorias. Quando decidimos escolher entre uma série de hipóteses, ou entre teorias apresentadas, nós avaliamos cada uma delas pelo modo como ela explica a evidência disponível. Não estou certo quanto a esta avaliação sempre decidir a questão, mas ela pode ser decisiva no caso de escolhermos aceitar a teoria que é a melhor explicação. Contudo, acrescento, a decisão de aceitar é uma decisão de aceitar como empiricamente adequada. A nova crença não é de que a teoria é verdadeira (nem que fornece um quadro verdadeiro do que existe e do que ocorre somados a informação numérica aproximadamente verdadeira) mas que a teoria é empiricamente adequada.

Na perspectiva de van Fraassen, a adequabilidade empírica substitui a verdade como o objetivo da ciência. No entanto, quando a teoria refere-se apenas ao mundo observável, a adequabilidade empírica e a verdade coincidem. Portanto, afirmar que a teoria é empiricamente adequada é afirmá-la como verdadeira (ibid.). Segue-se que quando a hipótese explicativa alcançada através de IBE é acerca de observáveis, então qualquer reivindicação de que esta hipótese é empiricamente adequada eqüivale a uma reivindicação da verdade da hipótese.

Van Fraassen não coloca em dúvida que IBE opera de forma confiável em muitos ‘casos ordinários’ que envolvem entidades inobserváveis, como o bem conhecido caso do rato no lambril (ver SI pp. 19-21). Mas então, ele afirma, casos ordinários referem-se a coisas observáveis, como ratos; e portanto, ‘ “Há um rato no lambril” e “Todos os fenômenos observados são como se existisse um rato no lambril” são totalmente eqüivalentes; um implica o outro (dado o que sabemos sobre ratos)’.

8 Ver S. Psillos, ‘Science and Realism: a Naturalistic Investigation into Scientific Enquiry’ (Ph.D.

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O problema surge quando a explicação potencial envolve referência a entidades inobserváveis. A adequabilidade empírica e a verdade não mais coincidem. Uma dada hipótese explicativa e sua versão como se (as-if version) não se implicam. Desta forma, faz diferença inferir que H é verdadeiro (por exemplo, ‘Existe um elétron na câmara de nuvem’) a inferir que H é empiricamente adequado (‘Todos os fenômenos observáveis são como se existisse um elétron na câmara de nuvem’). Se alguém infere que H é verdadeiro, compromete-se com a presença de elétrons na câmara de nuvem; mas isto não ocorre se a inferência limitar-se à adequabilidade empírica de H.

Assim, quando o problema em questão diz respeito às hipóteses explicativas que excedem o domínio dos observáveis, van Fraassen começa a colocar IBE sob suspeita. Sua dúvida se origina, como ele sustentou recentemente, de seu ceticismo acerca das ‘teorias e explicações gerais’ que pretendem fornecer um relato do mundo observável em termos de entidades e processos inobserváveis (LS p. 178). Em sua perspectiva, em um problema abdutivo, onde alguns inobserváveis estão envolvidos, a hipótese mais explicativa deveria ser a escolhida, mas deve ser, no máximo, recebida como empiricamente adequada. Nenhuma reivindicação acerca de sua provável verdade está garantida, e nem deveria ser colocada.

Claramente, van Fraassen mantém uma atitude seletiva com relação a IBE. Esta é uma forma de ir além do domínio do que realmente foi observado e de constituir crenças garantidas acerca de coisas ou processos inobservados. Contudo, IBE não é uma forma de constituição de crenças garantidas acerca do domínio de coisas ou processos inobserváveis. Em outras palavras, van Fraassen sustenta que IBE não garante a crença quando a explicação potencial da evidência se estende ao mundo inobservável.

Deve-se notar aqui que van Fraassen não é um popperiano. Ele não deseja excluir a crença da ciência, nem deseja dizer que crença alguma é garantida pela evidência. Antes, ele sugere que apenas a crença na adequabilidade empírica das teorias pode ser, e freqüentemente é, garantida pela evidência (ver EPS pp. 246-7, 276-81). Portanto, quando a adequabilidade empírica coincide com a verdade, a crença na verdade também pode estar garantida. Não podem ser garantidas, porém, a crença na verdade teórica, isto é, nas afirmações acerca de inobserváveis.

Por conveniência, faço a seguir uma distinção entre dois casos de raciocínio abdutivo. Denominarei IBE horizontal a espécie de raciocínio abdutivo que envolve apenas hipóteses acerca de entidades observáveis mas ainda inobservadas, e IBE vertical a espécie de raciocínio abdutivo que envolve hipóteses acerca de inobserváveis. Dado que van Fraassen não questiona IBE horizontal, pode-se colocar a seguinte questão: qual é de fato sua objeção contra a IBE vertical e a formação de crenças garantidas acerca do mundo inobservável?

Uma origem bastante discutida da preocupação de van Fraassen com relação à abdução vertical se encontra na sua imposição da dicotomia entre observáveis e inobserváveis (ver SI p. 16). Ele não deseja apenas ressaltar que algumas coisas são visíveis a olho nu enquanto outras não são. Sua distinção entre observáveis e inobserváveis é traçada com o objetivo de desempenhar um papel epistêmico. Sua insistência na observabilidade - a despeito de tê-la dissociada da velha demanda empirista de uma descrição em um vocabulário observacional - tem sido motivada pela perspectiva empirista de que ‘nossa opinião acerca dos limites da percepção deveria ocupar um papel em nossa formação de atitudes epistêmicas em relação à ciência’ (EPS p. 258). Ele então sugere que a distinção observável/inobservável traça as fronteiras entre o que é epistemicamente

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acessível e o que não é, e que todos enunciados acerca do mundo inobservável são indecidíveis, de forma que nenhuma evidência pode garantir a crença em afirmações teóricas acerca do mundo inobservável.

Este aspecto do ceticismo de van Fraassen tem sido amplamente discutido e intensamente criticado por muitos filósofos da ciência. De minha parte, estarei satisfeito em utilizar o resto da seção para algumas observações gerais. A objeção central para a alegada relevância epistêmica da distinção observável/inobservável tem sido exatamente a seguinte: é um erro supor que o status epistêmico de nossas crenças acerca de observáveis é, de alguma forma, superior ao de nossas crenças acerca de inobserváveis. Sentidos sem auxílio (Unaided senses) nada podem concluir a não ser uma pequena fração de coisas - ainda que sejam coisas observáveis - sobre as quais temos a impressão de possuir crenças garantidas (por exemplo, sentidos sem auxílio não podem concluir a afirmação bastante elementar de que planetas localizados fora de nosso sistema solar são extremamente frios)9.

Além disso, como Menuge energicamente tem sustentado, é um erro supor que crenças observacionais são de algum modo justificadas imediatamente (ou, o que é pior, não necessitam de justificação), de um modo que crenças teóricas não podem ser. A questão que Menuge traz para a discussão é que qualquer razão plausível para pensar que um tipo diferente de justificação é sempre exigido para crenças não-observacionais (por exemplo, crenças baseadas em instrumentos), acabaria por exigir este mesmo tipo de justificação para crenças observacionais. Suponha-se, por exemplo, que alguém argumentasse que, a fim de obter que uma crença baseada em instrumentos que estivesse justificada, alguém deveria, primeiramente, estar justificado em crer que um determinado instrumento opera de forma confiável. Contudo, exatamente a mesma exigência pode ser colocada sob a justificação putativa de crenças baseadas na visão, visto que o próprio olho humano é um instrumento complexo que, sabidamente, é falível. Dessa forma, como podemos sustentar que crenças baseadas na visão são imediatamente justificáveis enquanto também se sustenta a posição de que crenças baseadas em instrumentos exigem alguma justificação extra? Ou deveríamos considerar ambos os tipos de crenças como sendo justificáveis de forma mediata ou deveríamos negar que observações com instrumentos sempre requerem uma justificação extra (ver Menuge p. 68). O que Menuge corretamente conclui (p. 66-7) é que que não há diferença qualitativa entre a evidência de sentidos sem auxílio e a evidência de instrumentos. Ambas podem garantir a crença e, por vezes, crenças baseadas em sentidos sem auxílio são menos garantidas do que crenças baseadas em instrumento10.

Penso que van Fraassen está correto em afirmar que ‘se escolhemos uma política epistêmica para governar sob quais condições iríamos além da evidência de nossas crenças (e até onde iríamos) estaríamos demarcando certas fronteiras’ (EPS p. 254). Contudo, o que ele não conseguiu estabelecer é que esses limites justificadamente incluem apenas

9 Ver P. Churchland, ‘The Ontological Status of Observables: in Praise of Super-empirical Virtues’ in P.

Churchland and C. Hooker (eds.) Images of Science, pp. 35-47; A. Musgrave, ‘Realism vs Constructive Empiricism’, também em Churchland and C. Hooker (eds.), pp. 197-221; W. Salmon, ‘Empiricism: the Key Question’ in N. Rescher (ed.), The Heritage of Logical Positivism (Lanham: Univ. Press of America, 1985); W. Newton-Smith, ‘Realism and Inference to the Best Explanation’ Fundamenta Scientiae, 7 (1987), pp. 305-16; A. Grobler, ‘Van Fraassen’s Metaphysical Move’, International Studies in the Philosophy of Science 5 (1991), pp. 21-34.

10 Exemplos apropriados são fornecidos em C. and C. Chihara , ‘A Biological Objection to Constructive

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afirmações acerca de inobservados-mas-observáveis (unobserved-yet-observables) e que eles deveriam excluir todas as afirmações acerca de inobserváveis. Como já sustentei alhures11, é um erro afirmar que todas as crenças acerca de inobserváveis não são sustentáveis pela evidência. Algumas afirmações téoricas são melhor sustentadas pela evidência porque, por exemplo, são utilizadas de forma decisiva (centrally) na derivação das predições e explicações dos fenômenos, ao passo que outras afirmações não são sustentadas adequadamente pela evidência, porque, por exemplo, elas são peças ‘inúteis’ de uma teoria científica, ou servem apenas como visualizações de causas putativas, incapazes de produzir quaisquer predições. Creio então que os limites das crenças suportáveis pela evidência não estão circunscritas de modo tal que envolvem apenas entidades observáveis.

A moral geral a ser extraída até aqui é a seguinte. Uma coisa é a necessidade de cautela com relação a pretensões de conhecimento (knowledge-claims) acerca do mundo inobservável, especialmente à luz do fato de que os cientistas, por vezes, adotam crenças equivocadas sobre este mesmo mundo; outra coisa bastante diferente é adotar uma posição implausível que exclua do conhecimento qualquer afirmação que exceda o que pode ser observado a olho nu, pelos sentidos, etc. Filósofos céticos, e van Fraassen em particular, estão corretos em ressaltar a necessidade de cautela, mas estão errados na medida em que a demanda pela cautela os conduzem a condenar qualquer tipo de conhecimento do mundo inobservável. Dizer que nenhuma evidência pode garantir a crença em uma afirmação que envolve entidades inobserváveis, dizer que todas as afirmações acerca de inobserváveis são em si mesmas insustentáveis, não é aderir ao empirismo; isto é dogmatismo12. Isto eqüivale à tese do murro na mesa (desk-thumping thesis), pois se algo é muito pequeno, ou demasiado fraco para ser visível a olho nu, então estará para sempre além de nosso alcance epistêmico.

Entretanto, van Fraassen recentemente produziu dois interessantes argumentos no sentido de que a verdade não se coloca em qualquer tipo de problema abdutivo vertical, ainda que os cientistas sejam capazes de especificar e escolher a melhor explicação. Considerarei os dois argumentos sucessivamente.

III. VAN FRAASSEN E O ARGUMENTO DO CONJUNTO DEFEITUOSO

O primeiro argumento, que eu denominarei de argumento do conjunto defeituoso, é o seguinte:

Admitamos que os cientistas tenham disposto um conjunto de teorias T1 ...., Tn, sendo que todas elas oferecem potenciais explicações da evidência e, e tenham escolhido como a melhor explicação de e, digamos, T1. Para que eles afirmem que T1 é a explicação aproximadamente verdadeira de e, eles devem dar ‘um passo além com relação ao juízo comparativo de que [T1] é melhor do que suas rivais atuais’. Eles devem dar um ‘passo ampliativo’. Este passo envolve a crença de que a verdade provavelmente já esteja presente dentro do conjunto de teorias disponíveis aos cientistas, mais do que a crença de

11 S. Psillos, ‘A Philosophical Study of the Transition from the Caloric Theory of Heat to Termodynamics:

Resisting the Pessimistic Meta-Induction’, Studies in History and Philosophy of Science, 25 (1994), pp. 178-83.

12 Salmon, op. cit., e também em ‘Carnap, Hempel e Reichenbach on Scientific Realism’in W. Salmon e G.

Wolters (eds), Logic, Language and the Structure of Scientific Theories (Univ. of Pittsburgh Press, 1994), tem sustentado de forma convincente que o empirismo de Reichenbach era consistente com sua crença de que as entidades inobserváveis existem e podem ser conhecidas.

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que a verdade não estaria presente no conjunto. Não obstante, nossa melhor teoria talvez seja ‘a melhor de um conjunto defeituoso’. Portanto, para que o defensor de IBE sustente que ela nos conduz à verdade, ele deve assumir um Princípio de Privilégio. Isto é, ele deve assumir que ‘a natureza nos predispõe a encontrar a série certa de hipóteses’ (LS pp. 142-3).

Em resumo, a posição de van Fraassen é a de que, a menos que se apele a um privilégio não garantido (unwarranted), é bastante provável que a verdade esteja no espaço das hipóteses ainda não criadas.

Qualquer modelo razoável de abdução não deve excluir a possibilidade de que a verdade possa estar além do conjunto de teorias que os cientistas têm em mãos. Pois, certamente, não existe uma garantia a priori de que os cientistas encontrarão a verdade. Mas uma das questões aqui em discussão é esta: dever-se-ia inicialmente eliminar a possibilidade de que a verdade poderia estar além das teorias que os cientistas têm em mãos, antes mesmo de se argumentar a respeito da existência de boas razões para acreditar que a verdade se encontra no interior desta série de teorias? Se esta é a exigência de van Fraassen, então devo dizer que ele opera com uma noção muito forte de garantia; tão forte a ponto de tornar não-garantidas mesmo crenças sobre a adequabilidade empírica. Pois é logicamente possível que uma teoria de fato empiricamente adequada esteja fora do espectro de teorias que os cientistas têm em mãos. Assim, van Fraassen poderia dizer que, a menos que esta possibilidade esteja excluída, nenhuma crença na adequabilidade empírica de uma teoria está garantida? Não há nada de errado com esta resposta, a não ser o fato de que ele nos leva a um árido ceticismo: poucas crenças, se é que alguma, poderiam ser garantidas, se garantia envolvesse eliminação da possibilidade de que a crença pudesse ser falsa. Não acredito que van Fraassen possa oferecer uma tal noção robusta de garantia da crença sem ser de todo um cético.

Todavia, existe um ponto que os defensores da abdução devem conceder. A história da ciência sugere que a verdade total (seja lá o que isto signifique) regularmente está além da série de teorias que os cientistas consideram num determinado período. Mesmo as nossas teorias sustentadas da melhor maneira podem apenas ser aceitas como aproximadamente verdadeiras. Contudo, esta admissão, embora legítima, não debilita a abdução. Tudo o que ela concede é que, em qualquer estágio da investigação científica, os cientistas têm em mãos apenas uma parte da verdade, e verdades ulteriores deverão ser descobertas. Portanto, o que os defensores da abdução, via de regra os realistas científicos, precisam mostrar, é que, ao contrário da sugestão de van Fraassen, podemos crer, garantidamente, na melhor hipótese explicativa como sendo aproximadamente verdadeira. Nos próximos parágrafos eu defenderei exatamente este ponto.

Como vimos, o argumento do conjunto defeituoso sugeriu que, a menos que se apele a um privilégio não-garantido, é mais plausível acreditar que a verdade está além do espectro de teorias que os cientistas têm em mãos. Penso que a melhor defesa de IBE vertical consiste em partir para a ofensiva. Em resposta a van Fraassen, o realista pode enunciar que existe um sentido no qual somos privilegiados, isto de forma garantida. Isto é o que denominarei de privilégio do conhecimento de fundo (background knowledge privilege).

Deve-se observar que o argumento do conjunto defeituoso funciona apenas sob a seguinte suposição: de alguma forma, os cientistas têm em mãos um conjunto de hipóteses que implicam a evidência - sendo que sua única informação relevante é de que estas

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hipóteses apenas implicam a evidência - e eles desejam saber qual destas hipóteses é verdadeira, se é que alguma delas é. Se esta situação fosse representativa do que ocorre em um problema abdutivo, então, admitidamente, os cientistas não teriam a menor pista de se qualquer dessas teorias deveria ser aproximadamente verdadeira. Mesmo se eles pudessem especificar qual teoria é a melhor explicação da evidência em função de algum critério do que seja o melhor (bestness), eles não poderiam associar a melhor explicação com a mais provável. Contudo, tanto Boyd quanto Lipton têm sustentado persistentemente13 que é no

mínimo duvidoso e no máximo absurdo sustentar que a escolha de teorias opera na ausência de um conhecimento. Antes, a escolha de teoria opera dentro de uma rede de conhecimento de fundo (background knowledge) e é por esta conduzida. Um exemplo científico real pode ilustrar esta afirmação.

Após a descoberta e a explicação bem-sucedida dos fenômenos da interferência e difração, a teoria ondular da luz começou a superar, em poder explicativo, a teoria da emissão. Acreditava-se que a luz era constituída por ondas; contudo, a teoria ondular deixava em aberto a questão de se as ondas eram longitudinais ou transversais, ou ambos. Em particular, dado o sucesso da teoria ondular do som, foi sustentado que as ondas de luz eram longitudinais, da mesma forma que as ondas de som - isto ocorreu, por exemplo, com Young e Poison. Antes da descoberta do fenômeno da polarização da luz, a hipótese de que as ondas de luz fossem longitudinais explicava alguns fenômenos da propagação da luz. Mas o fenômeno da polarização forçou os cientistas a acreditar que as ondas de luz exibiam a lateralidade, o que não poderia ser explicado a menos que se aceitasse a hipótese de que as ondas de luz tinham ao menos um componente transversal.

Em 1816, Fresnel e Arago descobriram14 que dois raios de luz polarizados em ângulos retos não interferiam um no outro, ao passo que dois raios de luz paralelamente polarizados produziam franjas de interferência. De acordo com Fresnel, dada a teoria ondular da luz como background, este fenômeno poderia ser explicado a partir da pressuposição de que ondas de luz são puramente transversais. Entretanto, havia uma hipótese alternativa que implicava a evidência, a saber, a de que a luz consistia tanto de ondas transversais quanto longitudinais. Esta hipótese fornecia uma explicação potencial dos fenômenos, mas esta explicação era mais pobre do que a oferecida pela hipótese de que as ondas de luz eram exclusivamente transversais. E era mais pobre pela razão de que, ainda que implicasse os fenômenos observados da interferência, ao se postular ondas longitudinais se criavam também novas dificuldades explicativas intratáveis:

Nós dois sentimos que estes fatos seriam explicados de forma bastante simples, contanto que as vibrações (movimentos oscilatórios) das ondas polarizadas estivessem no mesmo plano das ondas [isto é, contanto que elas fossem transversais]. Mas no que se transformam as oscilações longitudinais ao longo dos feixes de luz? Como eram estas oscilações destruídas pelo fenômeno da polarização e qual a razão de seu

13 R. Boyd, ‘The Current Status of the Realism Debate’, in J. Leplin (ed.), Scientific Realism (Univ. of

California Press, 1984); e ‘Lex Orandi est Lex Credendi’ in P. Churchland e C. Hooker (eds), Images of

Science (Univ. of Chicago Press, 1985), pp. 3-34; P. Lipton, Inference to the Best Explanation (London:

Routledge, 1991); e ‘Is the Best Good Enough?’, Proceedings of the Aristotelian Society, 93 (1992-3), pp. 89-104.

14 F. Arago e A. Fresnel, ‘On the Action of Rays of Polarized Light upon Each Other’ Annales de chimie et de

physique, 10 (1819), p. 288, traduzido em F. Crew (ed.), The Wave Theory of Light (New York: American

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reaparecimento quando a luz polarizada era refletida ou refratada obliquamente num prato de vidro?15

De fato, a ênfase de Fresnel se encontra na hipótese que as ondas de luz tinham tanto um componente transversal quanto um longitudinal, e que isto também deveria servir para fazer desaparecer a onda longitudinal após a onda de luz ter passado pelo polarizador. A hipótese contrária, de que a propagação da luz é um processo puramente transversal, não teria esta carga extra: ela explicava o fenômeno da polarização de forma mais simples, completa e sem necessidade de qualquer manobra ad hoc. Assim, Fresnel aceitou o que ele chamou (p. 786) de ‘hipótese fundamental’, a saber, a de que a propagação da luz é um processo única e exclusivamente transversal. Esta hipótese foi escolhida como a melhor explicação do fenômeno da polarização e foi aceita como uma explicação correta deste fenômeno. Como mostrei alhures16, a ‘hipótese fundamental’ de Fresnel tornou-se parte do novo conhecimento de fundo que limitou as explicações de outros fenômenos da luz.

Este exemplo ilustra dois importantes aspectos do que antes chamei de ‘o privilégio do conhecimento de fundo’. O primeiro aspecto é de que o conhecimento de fundo pode limitar drasticamente o espaço das hipóteses que fornecem uma explicação possível da evidência disponível. (No caso anterior, Fresnel acabou com duas explicações potenciais do efeito Arago-Fresnel.) O segundo aspecto é de que, quando o conhecimento de fundo não sugere apenas uma hipótese teórica, então as considerações explicativas que são partes da prática científica, são chamadas para selecionar a melhor dentre as hipóteses que implicam a evidência. (Aqui, as considerações explicativas de Fresnel favoreceram dramaticamente a hipótese de que as ondas de luz são unicamente transversais.) Penso que ambos aspectos do ‘privilégio do conhecimento de fundo’ tornam plausível que, ao contrário da afirmação de van Fraassen, os cientistas podem possuir fortes evidências para a crença que a melhor explicação é o relato correto dos fenômenos.

Van Fraassen poderia desafiar meu recurso ao conhecimento de fundo com relação ao problema abdutivo, sustentando que as crenças de fundo podem não ser aproximadamente verdadeiras: no fim das contas, elas poderiam ter sido as melhores de um conjunto defeituoso. Contudo, a interpelação de van Fraassen residiria numa suposição duvidosa, e, acredito, incorreta, a saber, a de que a evidência nunca pode orientar os cientistas na constituição de crenças teóricas (aproximadamente) verdadeiras. Ainda que a evidência não acarrete crenças teóricas, ela pode dar o suporte para algumas crenças teóricas em alto grau, de forma que seria improvável - como ocorreu no exemplo discutido - que as crenças fossem completamente falsas sendo a evidência o que é. É verdade que a probabilidade de (e, eu penso, o grau de confiança em ) uma crença teórica seria, no máximo, tão alta quanto a probabilidade da evidência que ela implica. E é também verdadeiro que a probabilidade associada a uma crença teórica dificilmente possa ser coerente (unity). Mas isto não significa que nunca possa ser alta. Portanto, o fato de que a probabilidade de uma afirmação teórica possa, no máximo, ser tão alta quanto a probabilidade da evidência que ela implica não significa que os cientistas nunca possam ter um alto grau de confiança numa afirmação teórica à luz da evidência que a sustenta. As

15 A. Fresnel, ‘Considérations méchaniques sur la polarisation de la lumière’, in Ouevres complètes, Vol. I

(Paris: Imprimerie Impériale, 1866), p. 629.

16 S. Psillos, ‘Conceptions and Misconceptions of Ether’, in M.C. Duffy (ed.), Physical Interpretations of

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crenças para as quais os cientistas adquirem uma evidência esmagadoramente apoiada aumentam a quantidade de crenças de fundo garantidas e tornam-se os sustentáculos para novas crenças garantidas17.

A esta altura, o leitor poderia objetar que a questão em jogo talvez seja se os cientistas operam dentro de um meio de crenças de fundo aproximadamente verdadeiras; meus argumentos parecem fugir à questão.

Para bem tratar desta objeção, parece-me relevante distinguir entre (i) o cético geral (humeano) que se inquieta em reivindicar um modo ampliativo de inferência tal como a indução ou IBE sem petição de princípio, uma vez que um tipo de circularidade está envolvida em tal reivindicação; e (ii) o cético particular de van Fraassen que se preocupa com a utilização do raciocínio abdutivo vertical por parte dos defensores da abdução, pois eles (ao mostrarem que ele tende a crenças gerais aproximadamente verdadeiras), devem se permitir a si próprios um privilégio não garantido.

Providenciar um argumento positivo para a confiabilidade da IBE que leve em conta a preocupação humeana é uma tarefa árdua (mas, acredito, não mais difícil do que defender a confiabilidade das inferências indutivas habituais), que foge aos objetivos deste texto18. Contudo, embora eu realmente creia que os defensores da abdução devam, em última análise, referir-se à preocupação cética geral, também acredito que eles possam se defender contra o argumento do conjunto defeituoso de van Fraassen. Pois como mostrarei agora, a questão em jogo entre van Fraassen e os realistas não é se os cientistas absolutamente operam dentro de um ambiente de crenças de fundo corretas; antes, a questão em jogo é a extensão de suas crenças de fundo corretas. O próprio van Fraassen precisa de crenças de fundo para sustentar suas afirmações de adequabilidade empírica. Assim, penso que, até aqui, meus argumentos não desviam-se da questão nos debates com van Fraassen. Todos meus argumentos sugerem que os cientistas são mais privilegiados do que pensa van Fraassen.

Para que se perceba que a questão em jogo diz respeito à extensão do conhecimento de fundo dos cientistas, coloco a seguinte questão: o privilégio do conhecimento de fundo é excesso de bagagem que apenas o realista parece precisar? Ou as afirmações de van Fraassen sobre a adequabilidade empírica também não requerem um tipo similar de privilégio?

O privilégio que se afirma como necessário ao realista é o de que parte da verdade já está nas crenças de fundo a partir das quais os cientistas escolhem sua melhor teoria explicativa. Suponhamos, para fins de argumento, que os cientistas não estão interessados em escolher a teoria que provavelmente seja a mais verdadeira, mas como van Fraassen gostaria, a teoria que provavelmente é a mais empiricamente adequada. Como eles podem saber que a melhor teoria alcançada não é a mais empiricamente adequada de um conjunto defeituoso? Em outras palavras, como eles sabem que a real teoria empiricamente adequada não está no espaço de hipótese ainda não criadas?

Há uma simetria entre o realismo e o empirismo construtivo com relação ao argumento do conjunto defeituoso. A noção de adequabilidade empírica do empirismo

17 Discuti estas questão detalhadamente em meu texto em SHPS 1994. Idéias similares são encontradas em J.

Norton, ‘The Determination of Theories by Evidence: the Case for Quantum Discontinuity 1900-15’Synthese, 97 (1993), pp. 1-31; P. Forrest, ‘Why Most of Us Should Be Scientific Realists: a Reply to van Fraassen’, The

Monist, 77 (1994), pp. 47-70.

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construtivo é de que uma teoria é empiricamente adequada se e somente se ela salva todos os fenômenos do passado, presente e futuro, e se enquadra com todas observações atuais e possíveis. É perfeitamente possível que a melhor teoria agora disponível, que se enquadre com um número finito de observações e fenômenos, possa deixar de fazer isto com os fenômenos futuros, ou com possíveis observações nas regiões espaço-temporais onde não tenham sido ainda efetuadas, ou com possíveis dados que não tenham sido ainda testados. À luz desta possibilidade, o empirista construtivo diria que uma teoria que salva os dados atuais já testados é empiricamente adequada simpliciter? Se for assim, isto violaria seu próprio entendimento de adequabilidade empírica. Assim, para sustentar que a melhor teoria atualmente disponível é empiricamente adequada, uma afirmação ampliativa se faz necessária, sustentando que os cientistas já alcançaram uma teoria empiricamente adequada. Em especial, deveria-se sustentar que é improvável que uma teoria até agora enquadrada com observações o deixará de ser no futuro, ou em regiões espaço-temporais ainda não exploradas. Isto forçaria a um apelo à existência de regularidades universais entre os fenômenos, e a algum princípio de privilégio que afirme que a teoria descobriu estas regularidades: isto em virtude do fato de que a teoria que salva uma determinada série de fenômenos é empiricamente adequada. Por tudo isso, o empirismo construtivo teria de apelar a um privilégio de conhecimento de fundo, do tipo negado ao realismo. Portanto, o empirismo construtivo não pode negar a existência de um privilégio de conhecimento de fundo, e deve desta forma conceder que, de alguma forma, os cientistas operam em um ambiente de crenças de fundo corretas. O que está em disputa é a extensão do privilégio. É por esta razão que penso que meus argumentos não fogem à questão.

O empirismo construtivo pode ser parcimonioso aqui: poderia ser argumentado que é necessário algum tipo de privilégio para fundamentar o julgamento de que as teorias atuais são empiricamente adequadas, mas que isto envolveria um risco epistêmico menor do que asserir o privilégio exigido pelo realismo. Van Fraassen poderia dizer que (ver SI p. 72), em minhas práticas inferenciais, se eu serei enforcado, por quê deveria ser por um carneiro e não por um cordeiro? Obviamente, é menos arriscado asserir que existem regularidades universais entre fenômenos - e se existem, a teoria os descobriu - do que asserir que uma teoria é aproximadamente verdadeira.

Problemas de risco epistêmico são interessantes porque contrastam com os problemas de segurança: quanto maior é o desejo de acreditar, maiores são as formas de errar. É muito importante que alguém esteja seguro em relação às suas crenças, no sentido de se ter boas garantias para o que se acredita. Mas não se segue disto que a crença de alguém na verdade aproximada das teorias científicas de fundo não seja segura. Ela seria, na melhor das hipóteses, tão segura quanto as crenças em meras regularidades (uma vez que a verdade aproximada das teorias de fundo implica a existência de regularidades universais). Entretanto, a crença na verdade aproximada de teorias de fundo pode ser segura o suficiente para garantir o risco extra que alguém assume quando afirma que as teorias de fundo são aproximadamente verdadeiras.

Note-se que o risco epistêmico também contrasta com a ignorância: de forma a minimizar a probabilidade de erro, pode-se desejar uma parcimônia na crença, mas ao preço de aumentar as fronteiras da ignorância. Inegavelmente, os realistas assumem um risco epistêmico extra quando dizem que as teorias de fundo são aproximadamente verdadeiras; mas assumir um risco extra é a conseqüência necessária da aspiração de ir além das fronteiras da ignorância e chegar a saber mais coisas, em particular, coisas sobre causas inobserváveis dos fenômenos. Ao assumir este risco extra, o realista deseja saber

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mais sobre as teorias científicas do que os empiristas construtivos. Assim, os empiristas construtivos não estão justificados em sugerir que este risco, por questões de segurança, não deve ser assumido, por duas razões: primeiro, eles também estão assumindo um risco indutivo, pois excedem a evidência atual; segundo, se o risco é o preço a pagar para superar as fronteiras da ignorância, então, como a divisa deste texto sugere, é um preço que vale a pena ser pago.

Em termos gerais, evitar a ignorância é tão importante quanto evitar o erro. Desta forma, a tarefa desafiadora não é evitar o erro ao preço de uma ignorância permanente mas encontrar um meio-termo entre evitar o erro - isto é, tornar as crenças de alguém tão seguras quanto seja possível - e evitar a ignorância - isto é, adquirir crenças garantidas sobre mais coisas.

IV - VAN FRAASSEN E O ARGUMENTO DA INDIFERENÇA

Passo agora ao segundo argumento de van Fraassen contra IBE (LS p. 146). Eu denomino este argumento, ‘o argumento da indiferença’:

Admitamos que escolhemos a teoria T que explica melhor a evidência e. Um grande número de hipóteses ainda não criadas, inconsistentes com T, explicam e no mínimo tão bem quanto T. Somente uma teoria é verdadeira, T ou uma das hipóteses ainda não criadas. Todas as outras são falsas. Assim, devemos tratar T como ‘um membro qualquer desta classe’, pois não conhecemos nada em relação ao seu valor-de-verdade, exceto que pertence à (provavelmente infinita) classe de teorias que explicam e. Mas então podemos inferir que T é bastante improvável.

Armstrong apropriadamente afirma, respondendo a uma versão anterior do argumento da indiferença: ‘Eu tomo isto como uma troça de van Fraassen’19. Penso que Armstrong está

absolutamente correto. O argumento de van Fraassen se sustenta numa suposição bastante controversa, a de que a única coisa que sabemos a respeito da melhor teoria explicativa T é que ela pertence à (provavelmente infinita) classe de teorias que explicam e igualmente bem. Mas isto é absurdo. Observe-se que van Fraassen concede que T tenha superado testes severos e se qualificado como a melhor explicação de e. Desta forma, ele sustenta que T (a melhor explicação disponível da evidência) é tão provável quanto outras explicações possíveis não criadas de e. Contudo, para afirmar isto, deve-se inicialmente mostrar que existem sempre outras hipóteses potencialmente explicativas a serem descobertas, deixando de lado que elas explicam igualmente a evidência. Mas como sabemos disto antecipadamente? De fato, não é surpreendente sustentar que sempre existem alternativas triviais a T que implicam a evidência, por exemplo, variações notacionais de T, ou teorias que são formadas apenas para acrescentar coisas a T. Mas dificilmente isto poderia sustentar a afirmação de que T é tão provável quanto estas hipóteses alternativas. De qualquer forma, T seria tão provável quanto estas alternativas apenas se a probabilidade da teoria implicar a evidência fosse a única coisa importante. Todavia, por quê se deveria aceitar em primeiro lugar esta teoria hipotética-dedutiva da confirmação? De forma relacionada, mesmo se concedêssemos que sempre existem explicações possíveis ainda não criadas de e, o que nos mostra que elas são tão boas explicações da evidência quanto a oferecida por T? E se elas não são tão boas, então não são tão prováveis quanto T.

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Penso que é apenas razoável exigir que quaisquer alternativas a T devam ser cientificamente interessantes, no sentido de que a comunidade científica tem razões teóricas independentes para aceitá-las como genuínas rivais empiricamente eqüivalentes a T. Pois então existe apenas uma questão séria de como e porque os cientistas deveriam acreditar em uma teoria, preferencialmente à outra. Imagine um caso onde existam duas teorias rivais, T e T’, que não podem ser diferenciadas, seja pela evidência atual ou pelas considerações explicativas. Portanto, a suspensão temporária do juízo definitivamente deveria ser a atitude correta, enquanto se procura por evidência discriminatória adicional. No entanto, o argumento da indiferença excede essa atitude justificada. O argumento da indiferença procura estabelecer que uma suspensão permanente do juízo é a atitude correta em relação a uma teoria que fornece a melhor explicação da evidência, pois existem hipóteses não criadas que, no mínimo, explicam igualmente a evidência. Contudo, esta é uma suposição que não podemos tomar como estabelecida. Van Fraassen precisaria de um argumento para essa suposição. Ele deve mostrar, de modo particular, que para qualquer teoria existe uma alternativa não trivial, de forma que as duas teorias são indefinidamente indiscrimináveis por qualquer evidência e pela aplicação de qualquer método.20

O que dizer da afirmação de que a história da ciência está repleta de casos onde uma teoria T, que era explicativa, ter sido substituída por outra que ainda não tinha surgido na época em que T foi apresentada? Penso que esta afirmação sustentaria o argumento da indiferença apenas se as teorias abandonadas fossem caracteristicamente falsas. Mas como mostrei alhures (ver notas 7, 12 acima), há um exemplo poderoso a ser utilizado em favor da verdade aproximada de algumas teorias científicas maduras do passado.

Van Fraassen poderia sempre apelar à sua própria teoria da explicação para defender seu argumento da indiferença. Inicialmente, ele poderia nos remeter à diferença entre virtudes informacionais e confirmacionais das teorias: o fato de que uma teoria T é mais informativa do que T’ não torna T mais provável do que T’. Ele poderia então sustentar que, embora o poder explicativo seja de fato uma virtude que vai além da habilidade de uma teoria para se enquadrar com os fenômenos e oferecer razões para aceitar uma teoria, ele é uma virtude informacional de uma teoria. Assim como nenhuma virtude informacional aumenta o grau de confiabilidade que devemos depositar em uma teoria, o poder explicativo também não o faz (ver GEE pp. 166-9; EPS pp. 247,280; LS pp. 185,192).

Jogar a explicação para debaixo do tapete da informação, desta maneira, é aqui algo controverso. Certamente van Fraassen tem razão ao perceber que uma explicação potencial oferece informações sobre as causas putativas dos fenômenos, e que isto não torna, ipso facto, uma explicação provável. Não obstante, adquirir esta informação putativa é apenas a primeira etapa na busca dos cientistas por crenças teóricas bem confirmadas. Se a hipótese explicativa é suficientemente rígida, de modo tal que ela não pode ser o produto de ajustes ad hoc, se ela é coerente com outras crenças de fundo que são sustentadas adequadamente pela evidência, e se, além disso, ela implica novas predições ou unifica fenômenos ainda não relacionados, então pode-se argumentar que esta hipótese é melhor sustentada do que outra que permanece em silêncio ou fornece uma explicação mais pobre.

Consideremos, por exemplo, um caso onde há dez teorias T1 ... T10, cada uma explicando um fenômeno singular ei (i = 1 ... 10). Imaginemos também que um cientista

20 Para uma discussão mais completa destas questões, ver L. Laudan e J. Leplin, ‘Empirical Equivalence and

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propõe uma grande teoria T*, que unifica todas essas teorias diversas e explica todos os fenômenos que elas explicavam. T* poderia também ter mais implicações do que as teorias individuais. Com efeito, T* é mais informativa que cada teoria singular, e mais informativa que a mera conjunção [das outras teorias], e isto é, definitivamente, uma virtude de T*. Contudo, é discutível21 o fato de que T*, ao unificar fenômenos (ou domínios) ainda não relacionados e implicar novas predições, tenha também valor confirmacional significante. O fato de que a probabilidade de T* - sob fundamentos puramente probabilísticos - é menor ou igual às probabilidades de cada teoria individual T1 ... T10 (desde que T* implique cada uma delas) não mostra que a probabilidade de T* não possa ser alta o suficiente para garantir a crença.

Portanto, não é apenas o fato de que uma teoria exprima um argumento informativo que a torna provável. Antes, são algumas características da explicação potencial que, tendo valor confirmacional, aumentam a probabilidade da teoria. Van Fraassen é bastante rápido para jogar as características de uma explicação embaixo do tapete das virtudes informacionais e, sem hesitação, rejeitar a relevância daquelas características da confirmação.

É também digno de nota que o argumento da indiferença, se de todo interessante, é simétrico com respeito tanto ao realismo científico quanto ao empirismo construtivo. Como antes ressaltei, van Fraassen espera obter julgamentos fundamentados da adequabilidade empírica. Ele deseja afirmar que as teorias atuais são empiricamente adequadas; contudo, van Fraassen suspende seu juízo em relação ao valor-de-verdade dessas teorias. Todavia, julgamentos de adequabilidade empírica não são menos suscetíveis ao argumento da indiferença do que os julgamentos sobre a verdade. Pois, suponhamos que tomemos a melhor teoria Tea que agora entendemos como empiricamente adequada. De fato, existe uma infinidade de outras teorias que são consistentes com os dados finitos que são salvos por Tea. Todas essas teorias diferem de Tea apenas com relação a alguns aspectos observacionais; por exemplo, T’ea afirma que na boca do primeiro buraco negro a oeste de nossa galáxia existe um corvo branco (ou inclusive que T’ea é uma variante de Tea que envolve predicados medonhos (gruesome)). Não obstante, apenas uma destas teorias é, de fato, empiricamente adequada, pois a única coisa que sabemos em relação à adequabilidade empírica de nossa melhor teoria Tea é que ela pertence à classe (provavelmente infinita) de teorias que salvam os dados disponíveis, de modo que podemos considerar Tea como um membro qualquer dessa classe, e concluir que é improvável que ela seja empiricamente adequada.

Empiristas construtivos não estão mais à vontade do que os realistas no que toca ao argumento da indiferença. Eles desejam evitar o árido ceticismo e preservar os julgamentos fundamentados sobre a adequabilidade empírica. Eles precisam ainda, resistir à afirmação de que a melhor teoria disponível Tea - que atualmente salva os fenômenos - é apenas um membro qualquer da classe de teorias (muitas das quais ainda não foram criadas) que também salvam os fenômenos. Mas para que se coloque Tea em uma posição privilegiada vis à vis com suas rivais não criadas, os empiristas construtivos devem mostrar que Tea é provavelmente muito mais empiricamente adequada do que suas rivais ainda não criadas. Contudo, tal julgamento não pode apenas estar baseado na evidência disponível, uma vez que, por esta hipótese, Tea salva exatamente a mesma evidência que suas rivais não criadas. Assim, a crença de que Tea é provavelmente mais empiricamente adequada que suas rivais

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não criadas deveria estar baseada na afirmação de que Tea possui alguma virtude teórica potencialmente confirmatória (por exemplo, simplicidade ou poder explicativo) que suas rivais não possuem. Os empiristas construtivos poderiam afirmar que isto se segue do fato de que eles estão justificados em acreditar que Tea tenha agarrado (has latched on) regularidades universais e portanto poderiam usar essa afirmação para sustentar o julgamento de que Tea é empiricamente adequada. Mas como eles podem fazer uso de tais virtudes teóricas, enquanto negam essa mesma possibilidade ao realismo?22

Penso que a posição do empirismo construtivo vis à vis em relação ao argumento da indiferença difere apenas em grau da posição dos realistas. Para estes últimos, é absurdo afirmar que a melhor teoria disponível é provavelmente tão (aproximadamente) verdadeira quanto todas as hipóteses ainda não criadas, ao passo que para os primeiros é absurdo afirmar que a melhor teoria disponível é provavelmente tão empiricamente adequada quanto hipóteses ainda não criadas. Mas, a fim de obter julgamentos fundamentados das virtudes epistêmicas que demandam das teorias científicas, ambos precisam apelar a algumas virtudes teóricas não-empíricas, mas potencialmente confirmatórias. Penso que, como na diferença de risco envolvida nas respectivas afirmações, já tenha tratado dessa objeção na seção anterior.

Concluo, então, que o argumento da indiferença fracassa em estabelecer que se deva tratar a melhor explicação disponível como um membro qualquer da classe de explicações potenciais (em grande parte não criadas) da evidência. De fato, se esse argumento se mostrasse justificado, ele provaria muito, pois poderia ser igualmente eficiente contra a tentativa de van Fraassen de sustentar julgamentos fundamentados de adequabilidade empírica.

V. CONCLUSÃO

Como afirmei na Introdução, este ensaio teve a preocupação de mostrar que van Fraassen não ofereceu boas razões para abalar a confiança na IBE vertical. Persegui esse objetivo mostrando a fragilidade de alguns de seus argumentos centrais contra a IBE vertical. Particularmente, estou de acordo com Menuge e notei que os escrúpulos de van Fraassen em relação à inobservabilidade não garantem a inacessabilidade epistêmica às partes do mundo que não podem ser acessadas pelos sentidos sem auxílio. Além disso, tanto o argumento do conjunto defeituoso quanto o argumento da indiferença fracassam ao debilitar o raciocínio abdutivo. O primeiro fracassa ao mostrar que os defensores da IBE devem apelar a um privilégio não garantido a fim de defender o raciocínio abdutivo, enquanto o segundo fracassa ao mostrar que é mais provável, sobre fundamentos a priori, que uma teoria alcançada por meio de raciocínio abdutivo deva ser falsa do que verdadeira. Além disso, se esses dois argumentos são interessantes, eles cortam para os dois lados. Eles colocam em perigo a habilidade do empirismo construtivo de sustentar julgamentos fundamentados de adequabilidade empírica e o empurram ao árido ceticismo.

Ainda assim, os defensores da abdução se defrontam com a árdua tarefa de fornecer argumentos positivos em defesa da abdução. Mas, se minhas críticas à posição de van Fraassen são justificadas, então eles têm menos com que se preocupar.23

22 Uma questão similar é feita por Musgrave, em Churchland and Hooker (eds), pp. 202-3.

23 Quero agradecer a Aspassia Daskalopulu, Steven French, Adam Grobler, Keith Hossack, Peter Lipton,

David Papineau, Andrew Powell e Scott Sturgeon pelas valiosas discussões e comentários aos rascunhos deste artigo. Suas idéias influenciaram profundamente este texto, conquanto elas não estejam necessariamente de

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Tradução: Marcos Rodrigues da Silva (Departamento de Filosofia, Universidade Estadual de Londrina) e Alexandre Meyer Luz (Departamento de Filosofia, Fundação Educacional de Brusque).

acordo com o texto. Agradeço também aos avaliadores anônimos de The Philosophical Quarterly pelo encorajamento e pelas sugestões produtivas.

Referências

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