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SOBRE O DESCENTRAMENTO DO SUJEITO: TRANSGREDINDO OS LIMITES KANTIANOS

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Academic year: 2021

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SOBRE O DESCENTRAMENTO DO SUJEITO:

TRANSGREDINDO OS LIMITES KANTIANOS

Suze de Oliveira Piza1

Izabela Loner Santana2

Resumo: O artigo que segue indica a presença de uma obra filosófica no interior de uma tarefa histórica compartilhada por grande parte da filosofia contemporânea, a saber, o descentramento da categoria de sujeito. Tal tarefa (im)posta pela filosofia moderna, em especial a partir de Kant, será realizada por Foucault em A Arqueologia do saber lançando mão dos próprios recursos kantianos em uma nova versão do projeto crítico e é base para a criação de uma nova imagem de nós mesmos delineada por diversos pensadores não só da filosofia, mas também da psicanálise.

Palavras-chave: Foucault – Kant – Lacan – descentramento do sujeito.

“Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo” Michel Foucault, A Arqueologia do saber.

A obra A Arqueologia do Saber de Michel Foucault se insere no quadro de uma tarefa histórica compartilhada por diversos filósofos contemporâneos, a saber, o empreendimento de descentramento da categoria de sujeito. Tal tarefa foi (im)posta pela filosofia moderna ao forjar uma noção de indivíduo, enquanto identidade permanente, com uma sensação de referencialidade e pertinência em um universo também centrado. A tarefa de descentrar é parte de uma crise cultural que questiona as fortes localizações sociais dos sujeitos e que se traduz em uma crise da própria noção de identidade moderna. O empreendimento anti-humanista de descentramento do sujeito foi assumido por pensadores de áreas distintas do saber com visões de mundo também distintas, mas que hoje podemos perceber como realizadores de uma tarefa que se mostrou muito frutífera.

Se Descartes, para muitos, inaugura o sujeito/indivíduo atomizado moderno, é com Kant que este atinge seu ápice, pois o sujeito kantiano passa a ser o grande protagonista de todas as esferas da vida. A criação dessa figura central deve-se a uma necessidade teórica do Iluminismo, mas funciona até hoje como uma espécie de recurso heurístico para resolver questões que vão da política à educação e à neurociência.

1 Professora de Filosofia da UFABC. 2 Mestranda em Filosofia pela UFABC.

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Do ponto de vista estritamente filosófico, Kant precisava da figura do sujeito transcendental para acabar com as pretensões vazias da Metafísica de seu tempo. O sujeito transcendental entra como solução perfeita para a realização da crítica da razão pura que colocaria limites aos discursos vazios de sentido, no entanto, muito poderosos de seu tempo. A razão teórica, especulativa e sem freios atravancava o progresso do conhecimento, ao qual os humanos tenderiam, segundo o filósofo. A solução kantiana vem da inspiração de uma inversão de perspectiva, posições e prioridades; Kant evocará a figura de Copérnico e sua revolução como metáfora para reposicionar o sujeito sobre si mesmo e com isso recriá-lo como protagonista das questões primeiramente concernentes ao conhecimento e sua produção e depois de outras esferas da existência.

Contudo, a solução kantiana, segundo Michel Foucault, criará outro problema, talvez até maior e mais difícil de resolver. Ao criar essa figura que colocará fim à chamada ilusão transcendental, a filosofia kantiana acabará sendo o início de outra grande ilusão, maior que a anterior: a ilusão antropológica. Essa tese foucaultiana de que Kant nos livra do sono dogmático, mas nos joga no sono antropológico é a base para o que estamos defendendo aqui, pois em larga medida, uma infinidade de teorias produzidas nos séculos XX e XXI parecem estar justamente querendo nos acordar, oferecendo recursos para nos livrar desta nova e poderosa ilusão. A obra A Arqueologia do saber cumpre de forma incisiva essa função.

1. UM PASSO ATRÁS: GÊNESE E ESTRUTURA DA ANTROPOLOGIA DE KANT

A tese de Foucault do desaparecimento do sujeito, apresentada em As Palavras e as

coisas, tem seu fundamento na leitura que faz da Antropologia do ponto de vista pragmático de Kant.

Em 1961, Michel Foucault defende como Tese complementar à sua tese principal, Histoire de la

folie à l’âge classique, uma introdução à Antropologia do ponto de vista pragmático de Kant, bem como

a tradução da obra para o francês. Toda a Tese complementar resulta em uma crítica às antropologias tradicionais e à própria instauração dessa temática antropológica no pensamento ocidental. Parece, portanto, que é no interior da criação dessa figura ‘homem’ na filosofia de Kant que Foucault verá todo um movimento teórico que teria uma finalidade antropocêntrica e, a partir disso, o desenvolvimento de uma discussão teórica que fundará o pensamento antropológico, assim como todas as ciências humanas, com impactos severos também nas ciências naturais.

“A Antropologia constitui talvez a disposição fundamental que dirigiu o pensamento

filosófico desde Kant até nós”, assegura Michel Foucault em As Palavras e as coisas (2007, p. 472). É nesse contexto teórico que Foucault alerta para o cumprimento da tarefa de Kant de nos livrar do sono dogmático, instaurando, no entanto, o novo sono que resultará na própria necessidade de uma arqueologia das ciências humanas e, desta feita, a descrição da fonte, do limite e da extensão de um dado tipo de homem que até então não existia.

Seguindo a argumentação de Foucault, a filosofia kantiana é uma das formas que configuram o acontecimento-aparecimento do homem, três grandes formas que a analítica da finitude tomou, a saber: a dobra entre o empírico e o transcendental, o cogito e o impensado, o retrocesso e o retorno da origem. Desde o momento em que a representação perdeu o poder de determinar por si só o jogo da análise e da síntese, isto é, com o desaparecimento da epistémê clássica, a Antropologia, como analítica da finitude,

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converteu-se nessa disposição fundamental. Apareceu assim, essa forma de reflexão mista em que os conteúdos empíricos (do homem vivente, trabalhador e falante) são submissos em um discurso a um campo transcendental.

Como afirma Foucault em As Palavras e as coisas:

A Antropologia como analítica do homem teve indubitavelmente um papel constituinte no pensamento moderno, pois que em grande parte ainda não nos desprendemos dela. Ela se tornara necessária a partir do momento em que a representação perdera o poder de determinar, por si só e num movimento único, o jogo de suas sínteses e de suas análises. Era preciso que as sínteses empíricas fossem asseguradas em qualquer outro lugar que não na soberania do “Eu penso”. Deviam ser requeridas onde precisamente essa soberania encontra seu limite, isto é, na finitude do homem – finitude que é tanto a da consciência quanto a do indivíduo que vive, fala, trabalha. Kant já formulara isso na Lógica quando acrescentara à sua trilogia tradicional uma última interrogação: as três questões críticas (que posso eu saber? que devo fazer? que me é permitido esperar?) acham-se então reportadas a uma quarta e postas, de certo modo, “à sua custa”: Was ist der Mensch? [“O que é o Homem?”] (FOUCAULT, 2007, 471).

As Palavras e as coisas é a obra em que Foucault se dedica a tematizar particularmente

o homem, compreendido como uma estranha “figura do saber”3, assim como o tipo de

conhecimento proporcionado por essa figura. Trata-se não mais de explicitar as condições de possibilidade destes ou daquele saber específico, mas antes, mapear a epistémê fundante do saber ocidental em sua forma moderna. Explicitar, por conseguinte, as condições de possibilidade da epistémê moderna.

Essa questão, como se viu, percorre o pensamento desde o começo do século XIX: é ela que opera, furtiva e previamente, a confusão entre o empírico e o transcendental, cuja distinção, porém, Kant mostrara. Por ela, constituiu-se uma reflexão de nível misto que caracteriza a filosofia moderna. A preocupação que ela tem com o homem e que reivindica não só nos seus discursos como ainda seu páthos, o cuidado com que tenta defini-lo como ser vivo, indivíduo que trabalha ou sujeito falante, só para as boas almas assinalam o tempo de um reino humano que finalmente retorna; trata-se, de fato — o que é mais prosaico e menos moral — de uma reduplicação empírico-crítica pela qual se tenta fazer o homem da natureza, da permuta ou do discurso como fundamento da própria finitude. (FOUCAULT, 2007, p. 471)

Em poucas palavras: estamos diante de um projeto de recusa clara da Antropologia como discurso estruturado ou saber constituído, bem como dos seus impactos na forma como vivemos e nos concebemos. Há na obra de Foucault (como um todo) um confronto com o humanismo que, segundo ele, teria brotado deste solo antropológico. Mas, o que

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queremos chamar à atenção é que em As Palavras e as coisas, e especialmente em A Arqueologia

do saber, há uma premissa metodológica de desantropologizar a história como um todo. Ou

seja, não é apenas um anúncio da fragilidade da centralidade da figura do sujeito soberano e autônomo e sim a explicitação de um projeto histórico.

2. O DESMONTE DAS FIGURAS DO SUJEITO MODERNO

O projeto de desantropologizar não começa com Foucault, pois já no fim da modernidade, contrapondo-se a figura do sujeito, emerge na filosofia contemporânea a partir de Hegel a tarefa de descentrar a categoria de sujeito, mostrando sua extensão e limites; Marx promoverá um descentramento do sujeito quando faz uma análise das relações de produção; Nietzsche com a sua filosofia quebra as estruturas desta noção e explícita a necessidade da tarefa que estava por vir; e Heidegger não se permite sequer usar o termo sujeito, humano, homem, tratando-nos como Dasein e, portanto como tempo-lugar longe de qualquer instância fundadora do quer que seja.

O empreendimento anti-humanista, por estar no limite da antropologia (LACAN, 1985, p. 96), não se restringirá à filosofia alemã ou germânica — ainda que um nome como Freud também a radicalize e escancare a farsa do centramento com a sua chamada ‘descoberta freudiana’, mas ressoa na filosofia francesa contemporânea e na psicanálise de Lacan.

Na obra Séminaire II, Le moi de 1954-1955, Lacan também emprega o termo revolução copernicana para qualificar a descoberta de Freud. A lembrança da revolução de Copérnico será mobilizada novamente como metáfora para a criação de teorias sobre o sujeito, todavia, neste momento no sentido contrário, afinal é a perda do centro que será efetivada. Enquanto Lacan usará a figura da revolução copernicana para descentrar o sujeito, Kant o fez para dar-lhe primazia. Neste artigo pretendemos demonstrar que o que foi feito seja por Kant, seja por Freud, como metáfora, será realizado por Foucault como método, principalmente em

AArqueologia do saber. A obra de Foucault realiza duas tarefas: uma crítica da razão

antropológica, necessária devido ao resultado da revolução kantiana ter nos livrado da ilusão transcendental e nos jogado na ilusão antropológica (tal como exposto amplamente em As

Palavras e as coisas), e o descentramento da categoria de sujeito assumido com Freud/Lacan4.

Nas palavras de Lacan:

Não que aquilo que não é copernicano seja absolutamente unívoco. Nem sempre os homens acreditaram que a Terra fosse uma espécie de prato infinito, acreditam também que tivesse limites, formas diversas, por vezes, a de um chapéu de senhora. Mas, enfim, tinham a ideia de que havia coisas que estavam por baixo, digamos no centro, e que o resto do mundo se edificava por cima. Pois bem, se não sabemos direito o que um contemporâneo de Sócrates podia pensar do seu eu, havia, contudo, algo que devia de estar no centro, e não

4 Com não no sentido de ser freudiano ou lacaniano, mas sim de compartilhar de uma mesma tarefa teórica de seu

tempo – o descentramento do sujeito é uma das tarefas empreendidas por diversos pensadores que pretendem fazer uma ontologia do presente.

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parece que Sócrates duvidasse disto. Este algo não tinha provavelmente o feitio do eu que começa numa data que podemos situar ao redor dos meados do século XVI, início do XVII. Mas estava no centro, na base. Com relação a esta concepção, a descoberta freudiana tem exatamente o mesmo sentido de descentramento que aquele trazido pela descoberta de Copérnico. Ela se expressa bastante bem na fulgurante fórmula de Rimbaud - os poetas, que não sabem o que dizem, corno é bem sabido, sempre dizem, no entanto, as coisas antes dos outros — [Eu] é um outro. (LACAN, 1985, p. 14)

Lacan, em seu segundo Seminário, ministrado entre os anos de 1954 e 1955, ao tratar da noção de “eu” tanto na psicanálise freudiana quanto na que queria empreender, afirma que “o homem contemporâneo cultiva uma certa ideia de si próprio que se situa num nível meio ingênuo, meio elaborado. A crença de que ele tem de ser constituído assim e assado participa de um certo medium de noções difusas, culturalmente admitidas” (LACAN, 1985, p. 10).

Se Lacan, no decurso de seu ensino, irá apontar para Descartes como autor paradigmático da subjetividade ocidental (como podemos ver em textos iniciais como “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, de 1957, e até mesmo em seu texto "A ciência e a verdade", mais adiante em seu seminário, no ano de 1965 — ambos presentes em seus Escritos), para Foucault, é com Kant que essa crença começa, pois é com a criação do sujeito transcendental que se questiona o que se pode conhecer, se deve fazer ou o que é permitido esperar; chega-se pela primeira vez, inicialmente como uma pergunta lógica e depois propriamente antropológica à pergunta: o que é o homem? Essa origem kantiana da pergunta antropológica no Ocidente, que posteriormente será convertida em uma espécie de antropologismo, é uma das motivações de Foucault para empreender o destronamento do humano e acabar com a farsa da existência de um sujeito que baliza e faz girar tudo à sua volta.

No âmbito da psicanálise, Lacan observa que o humano contemporâneo crê tanto em si mesmo como meio para operação de fins, que chega a imaginar que essa é uma propensão natural:

Ele pode imaginar que ela é oriunda de uma propensão natural, quando, no entanto, no atual estado da civilização ela lhe é ensinada, de fato, por todos os lados. Minha tese é a de que a técnica de Freud, em sua origem, transcende esta ilusão que, concretamente, exerce uma ação sobre a subjetividade dos indivíduos. A questão é, portanto, saber se a psicanálise vai pouco a pouco se relaxando até abandonar o que foi por um instante entreaberto ou se, pelo contrário, ela vai tornar a patentear seu relevo, e de maneira que o renove. (LACAN, 1985, p. 10)

Com Freud acontece uma irrupção, uma nova perspectiva que revoluciona o estudo da subjetividade e que mostra justamente que o sujeito não se confunde com o indivíduo (LACAN, 1985, p. 10). E é isso que permite a Lacan, ainda, afirmar que “a relação toda do homem consigo mesmo muda de perspectiva com a descoberta freudiana” (LACAN, 1985, p. 23).

Foucault e Lacan se empenham em trocar o sinal da revolução kantiana abandonando todo e qualquer “desenvolvimento unilinear”, recusando etapas ou sequências, priorizando o movimento de dispersão para pensar em subjetividades e não fazer psicologia ou

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sociologia, na medida que recusam a tarefa moderna de encontrar um fundamento antropológico, uma instância fundadora, ou mesmo a fixação de uma individualidade ou qualquer tipo de defesa de humanismos.

É analisando esta problemática, como tarefa de um tempo realizada por diversos movimentos teóricos distintos, e até divergentes em alguns aspectos, que conseguimos perceber o lugar privilegiado que ocupará a obra A Arqueologia do saber. Colocar a obra em perspectiva histórica ampla hoje possibilita uma abordagem vertical dos problemas que ela encerra seja construída, cujo escopo estará na elaboração das perguntas: o que há de novo entre Kant e Foucault acerca do sujeito e como esse período de tempo filosófico foi atravessado pela psicanálise pode nos ajudar a compreender a subjetividade em sociedades complexas como a nossa? O que podemos fazer de nós, hoje, a partir das revoluções ocorridas neste período?5

Ir contra o humanismo, contra a ideia de homem enquanto centro das teorias e da experiência humana, eis um imperativo comum entre Foucault e Lacan, apesar de seus outros muitos desencontros. Assim, apesar das divergências, ambos se colocam em uma só e mesma esteira teórica e de compreensão dos discursos sobre o homem e seus “cadáveres”.

Nas palavras de Lacan:

[...] hoje, como sempre, a palavra humanismo é um saco no qual vão apodrecendo devagarinho, amontoados em cima uns dos outros, os cadáveres destes surgimentos sucessivos de um ponto de vista revolucionário sobre o homem. E é o que está ocorrendo agora no nível da psicanálise. (LACAN, 1985, p. 262)

A revolução do descentramento do sujeito, aquilo que levaria à sua morte, ocorre na filosofia de diversas formas e, como dissemos, Foucault cumpre esse papel talvez melhor do que qualquer outro com A Arqueologia do saber. Este texto é certamente um dos melhores exemplares de todo esse movimento cultural reativo contra o protagonismo assumido na modernidade pelo sujeito racional, o trabalho teórico não se limita à denúncia, mas nela o empreendimento torna-se método: o método arqueológico.

3. A ARQUEOLOGIA DO SABER: SUJEITO COMO EFEITO

Com a multiplicação dos níveis de análise da filosofia e das ciências humanas ocorrido nas últimas décadas, é possível notar hoje, 50 anos depois de sua publicação, a obra

A Arqueologia do saber de Foucault de forma ainda mais inovadora. Afirmamos isso pelo fato

de que a rede de problemas que exigiram a criação da filosofia de Foucault e seus conceitos ainda existem e carecem de tratamento, razão suficiente para continuar a interpretá-la. A própria noção de acontecimento, primeiramente usada por Kant6, Foucault e Deleuze passa a

ser apropriada pela ciência histórica, quando essa começa a exigir mais que procedimentos que permitam rastrear a ‘história de algo’ e busca operar-se dirigida por novas interrogações

5 A pergunta: “O que o homem pode fazer de si?” é a quinta pergunta kantiana, colocada na Antropologia do ponto

de vista pragmático e que parece ter orientado toda a filosofia de Foucault de alguma maneira.

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que possibilitam, por exemplo, criar teses como as de Foucault sobre a loucura ou a doença mental. Em vez de categorizar as épocas, os séculos, os tempos lineares ou as cronologias, é na ruptura do acontecimento — como Kant fez com o entusiasmo pela Revolução Francesa, ou Hannah Arendt com a conivência das massas com o totalitarismo — que o olhar do filósofo e do historiador serão deslocados para as rupturas, para as dispersões e para as margens. O tratamento desse conceito de acontecimento pelos filósofos não está obviamente na origem cronológica desta forma de pensar a história, mas eles são uma ruptura simbólica de um processo fundamental do ponto de vista epistemológico que guiou a produção de pensamento no Ocidente por muito tempo.

A Arqueologia do saber de Foucault nos ajudou a valorizar a incidência das interrupções, nos impediu de organizar os tempos na forma do acúmulo dos conhecimentos, de procurar num dado período de tempo a lenta maturação dos processos (que só é possível, convenhamos, com a força de nossa imaginação que procura dar forma àquilo que não necessariamente tem). Permitiu demonstrar que a história de um conceito não pode ser descrita como uma progressão que exigiria uma espécie de racionalidade subjacente, concebida como obra de um plano determinado e sim como dispersão de diversos campos de constituição e, consequentemente, de validade e fez com que o problema de pensar a história não fosse mais o problema da tradição, da repetição e do padrão e sim de recorte e limite em que se criam campos semânticos com critérios próprios que faz com que as palavras correspondam às coisas.

Um dos feitos de Foucault em A Arqueologia do saber foi nos oferecer recursos epistêmicos para nos livrarmos de uma dada forma de pensar a história e os saberes, qual seja aquela forma de análise histórica que prima pelo discurso do contínuo e faz da consciência humana ou do sujeito histórico um soberano em que o tempo é concebido em termos de totalização, linearidade, sequência e agentes históricos.

Desde o século XVIII houve um empenho em salvar a soberania do sujeito individual como agente na produção e reprodução da vida, ao mesmo tempo e justamente por isso, surge o empreendimento contrário de desantropologização. A obra de Foucault como um todoé um grande projeto de descentramento do sujeito, sem, no entanto, deixar de tratar de questões que se referem ao humano, à consciência e à origem da forma do sujeito. Mas, trata de uma origem não como causa, mas como condição de possibilidade histórica, pois esses temas aparecem em um contexto de desconfiança sobre a forma como cada um destes foi sendo encadeado ao longo da história. O que Foucault faz é tratar desses e de outros temas como acontecimentos dispersos, notando recortes e agrupamentos, regras e esquemas institucionalizados, formações e práticas discursivas que merecem ser analisadas conjuntamente. Em suma, toma os acontecimentos como unidades discursivas e só por isso, já os dissolve.

Na obra A Arqueologia do saber, o filósofo nos mostra que sem procurar pela origem do discurso, mas fazendo uma arqueologia dos arquivos pode-se perceber suas condições de possibilidade, seus momentos, formas prévias de continuidade e com isso é possível trabalhar com um campo de acontecimentos discursivos, que é sempre o conjunto limitado de enunciados e por isso mesmo passível de análise.

Como afirma Foucault, a arqueologia descreve a constituição do campo, uma espécie de rede de conceitos, de espaço de possibilidade de emergência dos discursos:

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Empreguei o termo arqueologia para dizer que o tipo de análise que eu fazia estava deslocada não no tempo, mas no nível em que ela se situa. Meu problema não é estudar a história das ideias em sua evolução, mas, sobretudo ver debaixo das ideias como puderam surgir tais ou tais objetos como objetos possíveis de conhecimento. (FOUCAULT, 2000, p. 320).7

A descrição de acontecimentos do discurso possibilitará que se pergunte o que não é possível perguntar quando o sujeito é soberano e agente racional que simplesmente expressa com a linguagem os fatos. As questões ‘quem fala’ ou ‘o que é o homem, ou ‘quem é o sujeito que fala’ são deslocadas para ‘como se constituiu esse campo de acontecimentos discursivos e não outro campo qualquer em seu lugar’, ‘por que dizemos esses e não outros enunciados’. Como o foco não é o sujeito do discurso, mas o campo de acontecimentos discursivos do qual o próprio ‘sujeito’ é efeito, é falado, portanto, é possível compreender os enunciados, determinar suas condições de existência, fixar seus limites e sua extensão e por seu meio estabelecer o que não cabe em um determinado campo, ou seja, tudo que ele exclui. O resultado desta verdadeira revolução é que tudo o que era tomado como natural, universal, dado e imediato não sobrevive a esse processo.

Haverá, portanto, uma arqueologia das formações discursivas. Entendendo por formação discursiva, um conjunto de regras anônimas que “(...) determina uma regularidade própria de processos temporais: coloca o princípio de articulação entre uma série de acontecimentos discursivos e outras séries de acontecimentos, transformações, mutações e processos” (FOUCAULT, 2004, p. 83).

Com o conceito de formação discursiva, Foucault nos mostra que os enunciados diferentes em sua forma, dispersos no tempo, formam um conjunto e passam a se referir ao que posteriormente será a referência de um único e mesmo objeto. Neste sentido, ocorre o descentramento do sujeito (bem como de qualquer outra substância ou objeto), pois o que chamamos de sujeito nada mais é que uma unidade discursiva que foi constituída pelo conjunto de enunciados que nomeavam e recortavam algo. No entanto, não há nada que justifique que esses enunciados estivessem juntos, nenhuma força unificadora, a não ser o

espaço discursivo mesmo e as relações de poder de um dado campo. Isso significa dizer que

os discursos não se fundam na existência concreta de um sujeito e sim no próprio campo semântico que o instaurou e que depois será usado para validar ou não ontologicamente o que é ou o que não é o objeto de referência. A unidade do objeto, no caso o ‘sujeito’ é, pois, resultado de um jogo de regras também discursivas.

Posto isto, é permitido que concluamos com Foucault que a unidade do discurso deve ser buscada junto aos próprios ‘objetos’ e no processo que antecede a nomeação. É na relação intencional que caracteriza a própria prática discursiva que descobrimos um conjunto de regras que são imanentes a tal prática e a circunscrevem como singularidade. Os discursos não mais devem ser tratados apenas como conjuntos de signos, mas como práticas que constituem esferas de existência e de verdade, logo, dos próprios objetos a que se referem.

É importante dizer, portanto, que o sujeito que aqui aparece não é agente, mas efeito, é falado, é súmula descontínua de vários discursos. Isso não faz com que as figuras que

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representam campos discursivos desapareçam simplesmente, as perguntas ‘quem fala’, ‘quem tem o direito de falar’ permanecem, porém agora deslocadas, pois o sujeito do conhecimento desaparece, a ‘mentalidade’ por trás do discurso desaparece no descentramento, mas não desaparece a conjunção de subjetividades de poder que se fixam aqui e ali como figuras e como marcação de uma posição. O discurso está no espaço, nas regras de formação, mas alguém o articula, o exerce. Esse processo não o faz deste alguém um sujeito, pelo contrário, no discurso podemos buscar um campo de regularidade para diversas posições de subjetividade. O discurso assim concebido é um amálgama em que se podem marcar a dispersão do sujeito e sua descontinuidade consigo mesmo. Esses conjuntos de regras são demasiado específicos, em cada um destes domínios, para caracterizar uma formação discursiva singular e bem individualizada, sem sujeito, no entanto.

Vale acrescentar que as formações discursivas acontecem em domínios específicos, âmbitos onde circulam os discursos, os objetos e os sujeitos falantes. São domínios associados em que a unidade do discurso é fundada na permanência e persistência de determinados conceitos. Não sendo sempre o mesmo campo em que os discursos são pronunciados, cabe à arqueologia descrever tal domínio em que os enunciados aparecem e onde terão seus referentes. Cada domínio ou campo associado tem um sistema de axiomas e regras (FOUCAULT, 2004, p.75-84). Estes podem aparecer em campos semânticos diferenciados e por analogia colaborar na compreensão de uma dada formação discursiva.

4. ROMPENDO OS LIMITES KANTIANOS COM KANT

Foucault nega o sujeito kantiano e sua primazia de várias formas ao longo de seu percurso filosófico. Mas, nega mantendo uma relação formal com Kant, nega fazendo uma reprodução especular, pois no anverso do projeto crítico de Kant está um outro projeto crítico. Foucault continua o projeto kantiano quando produz AArqueologia do saber e faz a crítica com o intuito de livrar o pensamento de todo e qualquer enunciado vazio (agora antropológico) por meio do exame do que ele denomina arquivo, quer dizer, a existência acumulada de discursos.

Foucault quer

(...) designar um a priori que não seria condição de validade para juízos, mas condição de realidade para enunciados. Não se trata de reencontrar o que poderia tornar legítima uma assertiva, mas isolar as condições de emergência dos enunciados, a lei de coexistência com os outros, a forma específica de seu modo de ser, os princípios segundo os quais subsistem, se transformam e desaparecem (...) a razão do uso desse termo um pouco impróprio é que esse a priori deve dar conta dos enunciados em sua dispersão, em todas as falhas abertas por sua não-coerência, em sua superposição e substituição recíproca, em sua simultaneidade que não pode ser unificada e em sua sucessão que não é dedutível... (FOUCAULT, 2004, p. 144).

A busca por outro tipo de a priori, nesse caso histórico, que será condição de realidade para enunciados e isolar suas condições de emergência, sua forma específica será a contribuição de Foucault à tarefa crítica. Tal processo evidentemente crítico (de

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desantropologização) fica mais explícito com a compreensão do conceito de arquivo e sua importância para Foucault. O arquivo seria inicialmente a lei do que pode ou não pode ser dito, o sistema próprio que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Como afirma nosso autor:

O arquivo não é o que protege, apesar de sua fuga imediata, o acontecimento do enunciado e conserva para as memórias futuras, seu estado civil de foragido; é o que, na própria raiz do enunciado-acontecimento e no corpo em que se dá, define, desde o início, o sistema de sua enunciabilidade. O arquivo não é, tampouco, o que recolhe a poeira dos enunciados que novamente se tornaram inertes e permite o milagre eventual de sua ressurreição; é o que define o modo de atualidade do enunciado-coisa: é o sistema de seu funcionamento. Longe de ser o que unifica tudo o que foi dito no grande murmúrio confuso de um discurso, longe de ser apenas o que nos assegura a existência no meio do discurso mantido, é o que diferencia os discursos em sua existência múltipla e os especifica em sua duração própria (FOUCAULT, 2004, p.147).

A análise do arquivo, tal como explicitada em AArqueologia do saber, permite adentrar numa região privilegiada: ao mesmo tempo próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, é aquilo que fora de nós nos delimita, o tempo que cerca nosso presente. Os discursos não são nossos, fazem parte do que é exterior a nossa linguagem. Foucault ao dar vida aos enunciados retira o foco do sujeito.

A elaboração da crítica dessa nova razão que está mergulhada em uma ilusão será uma arqueologia. Foucault resgata esse conceito do próprio Kant, quando este usa o termo “arqueologia” ao se referir à história do que torna necessária uma forma de pensamento8.

O termo é kantiano, em vários aspectos, sem dúvida. A arqueologia não se ocupa dos conhecimentos descritos segundo seu progresso em direção a uma objetividade, mas da

epistémê em que os conhecimentos são abordados sem se referir ao seu valor racional ou à sua

objetividade. A arqueologia, inicialmente do saber9, é uma “história” das condições históricas

de possibilidade do saber.

Segundo Foucault, deve haver uma espécie de região (entre os códigos fundamentais de uma cultura) ou ordem intermediária,

8 Em Ditos e escritos III (edição brasileira), p. 323, Foucault afirma que o terreno kantiano é o da arqueologia, no

qual se inspirou, e não o de Freud como muitos afirmam.

9 Foucault entende por saber as delimitações das relações entre: 1) aquilo do que se pode falar em uma prática

discursiva (domínio de objetos); 2) o espaço em que o sujeito pode situar-se para falar dos objetos (posições subjetivas); 3) o campo de coordenação e subordinação dos enunciados, em que os conceitos aparecem, são definidos, aplicam-se e transformam-se; 4) as possibilidades de utilização e de apropriação dos discursos. O conjunto assim formado a partir do sistema de positividade e manifesto na unidade de uma formação discursiva é o que se poderia designar por saber. Este não é uma soma de conhecimentos, porque desses se deve poder dizer sempre se são verdadeiros ou falsos, exatos ou não, aproximados ou definidos, contraditórios ou coerentes. Nenhuma destas distinções é pertinente para descrever o saber, que o conjunto de elementos (objetos, tipos de formulação, conceitos e escolhas teóricas) formado a partir de uma única e mesma positividade, no campo de uma formação discursiva unitária (FOUCAULT, 2004, p. 203-206).

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anterior às palavras, às percepções e aos gestos incumbidos então de traduzi-la com maior ou menor exatidão ou sucesso (razão pela qual essa experiência da ordem, sem seu ser maciço e primeiro, desempenha sempre um papel crítico) mais sólida, mais arcaica, menos duvidosa, sempre mais “verdadeira” que as teorias que lhes tentam dar uma forma explícita, uma explicação exaustiva ou fundamento filosófico (FOUCAULT, 2007, p. XVII).

Trata-se, como podemos observar na passagem indicada acima, de uma espécie de experiência desnuda da ordem e seus modos de ser. A arqueologia se propõe a investigar exatamente essa experiência peculiar da ordem.

A época a que AArqueologia do saber se dedica a pensar não é a mesma época de As

Palavras e as coisas. Aqui o homem não tem mais seus rastros buscados, trata-se de um legítimo

processo de desantropologização. O documento, o arquivo, tem relevância isolada na medida em que não é signo de outra coisa, a arqueologia o descreve como prática. A arqueologia não é psicologia, nem é sociologia, pois ela não está ordenada para encontrar ali a expressão de uma individualidade ou de uma sociedade para encontrar a instância do sujeito criador. Também não é uma ciência histórica. O que se descreve na arqueologia são as práticas discursivas que atravessam um dado campo. É uma reescritura dos discursos em sua exterioridade, em que não se pretende saber quem disse, mas o dito e as regras que subjazem ao dito.

Foucault afirma no item “O a priori histórico e o arquivo”, em A Arqueologia do saber: A positividade de um discurso — como o da história natural, da economia política, ou da medicina clínica — caracteriza-lhe a unidade através do tempo e muito além das obras individuais, dos livros ou dos textos. Essa unidade certamente, não permite decidir quem dizia a verdade, quem raciocinava rigorosamente, quem se adaptava melhor a seus próprios postulados: Lineu ou Buffon, Quesnay ou Turgot, Broussais ou Bichat; ela não permite, tampouco, dizer qual dessas obras estava mais próxima de uma meta inicial ou última, qual delas formularia mais radicalmente o projeto geral de uma ciência (FOUCAULT, 2004, p. 143).

A obra se propõe fazer uma crítica da razão antropológica e da razão humanista, e se torna necessária considerando os equívocos cometidos pelos historiadores, principalmente do século XIX, que protegendo a soberania do sujeito acabam por criar o construto de uma história global que reduziria todas as formas de sociedade a uma forma única, num dado sistema de valores coerentes com um tipo específico de noção de civilização. O projeto de uma crítica antropológica torna-se possível quando Nietzsche denuncia que o fundamento originário, cujo telos da humanidade é a racionalidade, é uma farsa. A descentralização operada por Nietzsche é reiterada quando a psicanálise, a linguística, a etnologia, descentram o sujeito. Mas, quem faz isso à maneira kantiana é apenas Foucault.

(...) em relação às leis de seu desejo, as formas de sua linguagem, as regras de sua ação, ou aos jogos de seus discursos míticos ou fabulosos, quando ficou claro que o próprio homem, interrogado sobre o que era, não podia explicar sua sexualidade e

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seu inconsciente, as formas sistemáticas de sua língua ou a regularidade de suas ficções... (FOUCAULT, 2004, p.15).

No auge da crítica foucaultiana aparece o tema da continuidade da história, que é antes de tudo um tema enraizado na Antropologia. Foucault considera que há um uso ideológico da História, em que se tenta restituir ao homem tudo que nos últimos séculos lhe teria escapado. Mas, não é uma restituição de direito. O exame que aqui será realizado por Foucault é uma medição das mutações que se operam, que acontecem em geral no campo da História, a posição de questionamento dos métodos e limites, empresa que pretende desfazer as últimas sujeições antropológicas e as condições de possibilidade de seu surgimento: o campo em que aparecem as questões do ser humano, da consciência e do sujeito.

A proposta de Foucault é definir um método histórico-filosófico que seja livre do tema antropológico, um método isento de qualquer antropologismo (FOUCAULT, 2004, p.18). O filósofo sabe que os perigos que tenta evitar fazem parte da própria natureza da empresa a que se propõe. Se Kant faz uma crítica à razão pura com uma racionalidade com disposição metafísica, Foucault faz uma crítica que a cada instante denuncia a natureza dos perigos que tenta evitar, pois é a razão antropológica que faz a crítica à Antropologia.

Foucault pretende dispensar o sujeito falante, livrar o discurso de qualquer referência antropológica. Ao descrevê-lo, nosso autor não o relaciona a uma subjetividade. Sua intenção não era afirmar qualquer tipo de discurso universal, mas sim mostrar o discurso em outro âmbito. Em uma tese que não nega a História, mas a mantém em suspenso como a categoria geral e vazia da mudança, para fazer aparecer transformações de níveis diferentes. Há uma recusa de um modelo uniforme de temporalização para descrever os discursos e suas consequências diversas. É dessa forma que se delineia a crítica da razão antropológica empreendida por Foucault.

Algo curioso se instala na conclusão da obra A Arqueologia do saber; Foucault apresenta a visão de seus pares sobre seu pensamento, algumas críticas contundentes, mas certamente pertinentes a um intelectual que está aberto ao diálogo. Na leitura avaliativa (e lúcida) do pensamento foucaultiano, seus “oponentes” afirmam que a Filosofia de Foucault cuidou de abandonar todos os discursos que eram atribuídos a uma consciência, ou sujeitados a ela, e resgatam algo perdido: a interrogação fundamental, a saber, questionar pelas condições de possibilidade dessa razão que estabelece uma série de “verdades” e as coloca dentro dos limites transcendentais.

Num dado momento do texto, Foucault afirma que a interpretação que foi feita sobre seu pensamento indicaria que:

(...) a razão que estabelece todas essas “verdades” novas, temo-la sob grande vigilância: nem ela, nem seu passado, nem o que a torna possível, nem o que a faz nossa, escapa à delimitação transcendental. Será a ela, agora – e estamos firmemente decididos a jamais renunciar a isso – que colocaremos a questão da origem, da constituição inicial, do horizonte teleológico, da continuidade temporal. Será este

pensamento, que hoje se efetiva como nosso, que manteremos na dominância histórico-transcendental (FOUCAULT, 2004, p.227, grifo nosso.).

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Foucault responde a essa interpretação, que o coloca como um filósofo que mantém

a razão sob vigilância e que coloca os discursos em uma delimitação transcendental, mantendo

o pensamento numa dominância histórico-transcendental, da seguinte forma: “Ora, obstinei-me em avançar. Não que esteja certo da vitória (...) Mas, porque achei que no moobstinei-mento, era o essencial: libertar a história do pensamento de sua sujeição transcendental” (FOUCAULT, 2004, p. 227).

No detalhe percebemos o que se passa aí. Como se tratava de desantropologizar o pensamento, o que Foucault fez (metodologicamente) foi o que Kant fez quando quis livrar o pensamento de toda a Metafísica. O que Foucault cria nesse momento é uma espécie de materialismo transcendental. É um tipo de Filosofia que critica o idealismo transcendental, que critica a sujeição ao transcendental, mas o alvo é aqui o sujeito transcendental (universal). É disso que se trata. Foucault usa a crítica kantiana contra Kant, quando afirma que a crítica que realiza pretende libertar a história do pensamento de sua sujeição transcendental, fazer uma análise histórica que permita evidenciar não um sujeito, nenhuma constituição transcendental subjetiva, mas despojá-la do narcisismo antropológico (FOUCAULT, 2004, p. 227). Grande empreitada a de Foucault, fazer com a Antropologia o que Kant fez com a arrogante Metafísica e suas pretensões.

No prefácio à primeira edição da Crítica da razão pura (A VII-XII) Kant fala do poder dos dogmáticos e dessa pretensão que necessitava ser revista. Ele ainda afirma na sequência do texto que o dever da Filosofia era dissipar a ilusão proveniente de um mal-entendido, mesmo com risco de destruir uma quimera tão amada e enaltecida. A quimera kantiana é a Metafísica, a quimera foucaultiana é a Antropologia. A crise que Kant via em seu tempo devido às pretensões da Metafísica, Foucault vê-a no seu tempo em relação ao pensamento antropológico, que consagra todas as interrogações à questão do ser do homem (FOUCAULT, 2004, p. 229). A tarefa será a mesma, ainda que com objetos diferentes e, certamente, a segunda com um grau ainda maior de dificuldade.

A Arqueologia do saber está em um contexto de virada da Filosofia na direção da

linguagem que não resultará em mais um objeto para investigação filosófica, mas sim em uma maneira de entender a própria Filosofia e a forma de seu procedimento (OLIVEIRA, 1996, p.13). Certamente, a obra de Foucault inicia, mas está longe de ser a conclusão desta tarefa.

ON THE DECENTERING OF THE SUBJECT: BREAKING THE KANTIAN LIMITS

Abstract: The following article indicates the presence of a philosophical work within a historical task shared by much of contemporary philosophy, that is, the decentralization of the subject category. Such a task imposed by modern philosophy, especially Kant, will be performed by Foucault in The Archeology of Knowledge, using Kantian resources in a new version of the critical project, and that is the basis for creating a new image of ourselves made by diverse thinkers not only from philosophy but also from psychoanalysis.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. ______. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

______. Ditos e escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. ______. As Palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

______. Gênese e estrutura da Antropologia de Kant. São Paulo: Loyola, 2011. [Tese complementar]. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994.

______. Antropologia do ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2009.

______. LACAN, Jacques. O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

OLIVEIRA, Manfredo. Reviravolta linguístico-pragmática na Filosofia contemporânea. Rio de Janeiro: Loyola, 1996.

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