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FUI TESTEMUNHA OCULAR : MEMÓRIA E REPRESENTAÇÃO NA HISTÓRIA EM QUADRINHOS MAUS A HISTÓRIA DE UM SOBREVIVENTE

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Academic year: 2021

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“FUI TESTEMUNHA OCULAR”: MEMÓRIA E REPRESENTAÇÃO NA HISTÓRIA EM QUADRINHOS MAUS – A HISTÓRIA DE UM

SOBREVIVENTE

Kathiane Thaís Facenda. Mestranda do programa de Pós Graduação em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, bolsista CAPES/DS.

kathifacenda@gmail.com

Resumo: O presente artigo busca analisar como a principal especificidade das Histórias

em Quadrinhos, ou seja, seus recursos literários e gráficos, se constituem como recurso para a representação de eventos históricos extremos. Para tal, nos utilizaremos de duas obras do famoso quadrinista estadunidense Art Spiegelman; Maus – A história de um sobrevivente (2009), que retrata os momentos de terror vivenciados por sua família e em especial por seu pai, Vladek Spiegelman, um judeu polonês, durante o Holocausto, e Metamaus - A look inside a modern classic, Maus, (2011), que apresenta ao leitor o processo de criação de Maus. Nosso principal objetivo é compreender como seu estilo de escrita e de ilustração, assim como outros elementos da linguagem quadrinística se constituem como ferramentas para a reconstituição o passado traumático vivenciado por seus pais. Nesse sentido, nosso recorte temporal se situa entre o período de produção e publicação das obras, entre os anos de 1980 a 2011. Como aporte metodológico, utilizaremos da história cultural, principalmente dos estudos sobre memória, juntamente com a semiologia.

Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos; Memória; Trauma.

Introdução

O presente estudo tem como objetivo apresentar as potencialidades do uso de Histórias em Quadrinhos como fonte para pesquisa historiográfica, dando ênfase em como a junção da linguagem verbal e não verbal se constitui como ferramentas para representação de passados sensíveis, como aqueles vivenciados por sobreviventes de genocídios, ditaduras e guerras.

O Holocausto é nesse sentido, o evento histórico com maior número de debates sobre os impactos e a produção de memórias sensíveis. Para Huyssen (2000, p, 13) “É precisamente a emergência do massacre como uma figura de linguagem universal que permite à memória do Holocausto começar a entender situações locais específicas, historicamente distantes e politicamente distintas do evento original.” Ainda segundo o autor, no movimento dos discursos da memória, o Holocausto perde sua condição de índice de evento histórico específico e passa a funcionar como uma metáfora de outras

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memórias (HUYSSEN, 2000. p.13).

Sendo assim, os estudos ligados às memórias de testemunhas de eventos históricos extremos, cresceram consideravelmente desde a década de 1960. Esse interesse pela memória está ligado principalmente à retomada dos debates acerca da história do Holocausto. Segundo Huyssen (2000), o crescente interesse pela memória e consequentemente pelo esquecimento é explicado pelo avanço do século XX e a morte daqueles que testemunharam tais acontecimentos. Concordando com Huyssen, Jay Winter (2006) afirma que o timing se tornou crucial. Segundo ele, nos anos 1940 e 1950 os sobreviventes do Holocausto estavam lá, entretanto suas vozes eram marginais nos discursos sobre a Segunda Guerra Mundial, uma vez que as narrativas heroicas de resistência recebiam destaque, entretanto, durante as décadas de 1960 e 1970 esse trabalho narrativo já havia realizado sua tarefa, abrindo espaço para as vozes dos sobreviventes entrarem em cena.

É durante o fim dos anos 1970 e envolto nesse contexto de retomada dos debates sobre o Holocausto e das histórias de seus sobreviventes que ocorre parte do processo de criação do objeto de estudo da presente pesquisa. Para tal, serão utilizadas a História em Quadrinhos Maus – A história de um sobrevivente de 20091 e o livro Metamaus - A look inside a modern classic, Maus, de 2011, ambas do escritor e quadrinista estadunidense Art Spiegelman.

A quadrinização de histórias de vida

Muitas vezes, ao pensarmos em Histórias em Quadrinhos (HQs) imaginamos os velhos gibis que lemos na infância, recheados de super-heróis e histórias de aventura. É inegável que as temáticas infanto-juvenis compõem parte importante do mercado editorial de Histórias em Quadrinhos, entretanto, tais temas não se constituem como os únicos a serem abordados nesse tipo de mídia.

Desde seu advento no fim do século XIX, as chamadas HQs passaram por algumas mudanças, a mais significativa delas talvez tenha sido em relação às suas temáticas. Ao fim dos anos 1970, o quadrinista estadunidense Will Eisner, populariza o uso do termo

1 A obra em questão foi publicada entre os anos de 1980 e 1991, entretanto a presente pesquisa se utiliza

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“Graphic Novel”, que passa a fazer referência a Histórias em Quadrinhos com temáticas consideradas adultas. Esta troca de nomenclatura está ligada a uma tentativa de mudança de como os Quadrinhos eram vistos pelo grande público e editoras. Já que segundo Eisner (2005, p.138), ler HQs era visto como uma atividade destinada exclusivamente a crianças. Nesse contexto,

Temas complexos referentes à política, guerra, conflitos étnicos e problemas sociais passaram a compor as temáticas de diferentes histórias em quadrinhos, rompendo com o padrão convencional infanto-juvenil e inaugurando um perfil adulto extremamente crítico, e, em alguns sentidos, existencial e pessimista. (SILVA JUNIOR, 2017, p.56)

Ao se abrir a esse tipo de temática, as Graphic Novels se tornam ferramentas para a quadrinização2 de histórias de vida, nesse sentido, suas páginas se constituem como espaço para pessoas que passaram por momentos históricos sensíveis retratem suas histórias, trazendo aos Quadrinhos caráter autobiográfico. Assim sendo, a obra analisada pelo presente estudo se constitui como um clássico. Maus de Art Spiegelman foi a primeira obra da categoria a vencer um prêmio Pulitzer, marcando assim o sucesso das Graphic Novel como gênero literário.

Em Maus - A história de um sobrevivente, Art Spiegelman narra situações vividas por sua família e em especial por seu pai Vladek Spiegelman, um judeu de origem polonesa, durante a Segunda Guerra Mundial. Dando destaque, à perseguição que o mesmo sofreu por ser judeu e a vida nos campos de concentração. A obra foi inicialmente publicada como parte da revista RAW durante 1980 e 1991, ganhando sua primeira edição encadernada do volume I em 1986 e do volume II em 1991.

Figura 1: Capa da edição brasileira de Maus

2 Para Mendonça (2008, p.4), o termo quadrinização, designa a criação e/ou a adaptação de quaisquer

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Fonte: SPIEGELMAN, Art. Maus: A história de um sobrevivente. 2009.

Quase vinte aos depois do lançamento de Maus, Art Spiegelman apresenta ao público a obra Metamaus - A look inside a modern classic, Maus. Publicado no ano de 2011, o livro construído a partir de entrevistas com Hillary Chute, se constitui como uma reflexão de Art sobre a própria vida, como filho de sobreviventes do Holocausto, como quadrinista e consequentemente de sua obra. Além de detalhes sobre o processo de criação da HQ, o livro expõe ao leitor um compilado de dados, fotografias e histórias de sua família, possibilitando o leitor de Metamaus adentrar no universo de criação de Maus.

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Fonte: SPIEGELMAN, Art. Metamaus – A look inside a modern classic, Maus. 2011.

Como vimos, em sua obra Spiegelman busca retratar os momentos de angústia pelos quais sua família passou entre 1930 a 1945, entretanto, além do espaço proporcionado pela inserção de temas adultos, por que as HQs se constituem como importante espaço para a representação de eventos históricos extremos?

O dilema da testemunha

Antes de nos aprofundarmos na resposta de nosso questionamento anterior, cabe-nos contextualizar os tipos de consequências que eventos históricos extremos podem causar a seus sobreviventes, para tal, nos valemos dos debates em torno dos testemunhos daqueles que sobreviveram ao Holocausto, evento que como já mencionamos, se constitui como espaço universal para os debates sobre passados sensíveis.

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, após a saída dos campos de concentração, o sobrevivente do Holocausto deparou-se com as dificuldades de transformar em palavras os horrores vivenciados. Tal impossibilidade, do ato de testemunhar, é conhecida como o “dilema da testemunha”, compreendido por nós como a dificuldade ou impedimento em expressar os acontecimentos extremos vivenciados. Como os sofridos em momentos

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crises, ditaduras, guerras e massacres. Esta dificuldade em falar sobre um passado traumático gerado pelo Holocausto é evidenciada por autores que passaram pela experiencia dos campos de concentração, como Primo Levi (1988) e (1990), Robert Antelme (1957) e Dori Laub (1995).

Em um de seus relatos, o poeta e jornalista francês Robert Antelme (1957, p.9) expressa que:

Há dois anos, durante os primeiros dias que sucederam ao nosso retorno, estávamos todos, eu creio, tomados por um delírio. Nós queríamos falar, finalmente ser ouvidos. Diziam-nos que a nossa aparência física era suficientemente eloquente por ela mesma. Mas nós justamente voltávamos, trazíamos conosco nossa memória, nossa experiência totalmente viva e sentíamos um desejo frenético de a contar tal qual. E desde os primeiros dias, no entanto, parecia-nos impossível preencher a distância que descobrimos entre a linguagem de que dispúnhamos e essa experiência que, em sua maior parte, nos ocupávamos ainda em perceber nos nossos corpos. Como nos resignar a não tentar explicar como havíamos chegado lá? Nós ainda estávamos lá. E, no entanto, era impossível. Mal começávamos a contar e sufocávamos. A nós mesmos, aquilo que tínhamos a dizer começava então a parecer inimaginável. Essa desproporção entre a experiência que havíamos vivido e a narração que era possível fazer dela não fez mais que se confirmar em seguida. Nós nos defrontávamos, portanto, com uma dessas realidades que nos levam a dizer que elas ultrapassam a imaginação. Ficou claro então que seria apenas por meio da escolha, ou seja, ainda pela imaginação, que poderíamos tentar dizer algo delas (apud, SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 70).

Em seu relato, Antelme expõe algo vivenciados por muitos que experimentam situações traumáticas. Em sua fala, é possível notar como a literatura de testemunho se relaciona:

[...]de um lado, a necessidade premente de narrar a experiência vivida; do outro a percepção tanto da insuficiência da linguagem diante dos fatos (inenarráveis) como também – e com um sentido mais trágico – a percepção do caráter inimaginável dos mesmos e da sua consequente inverosimilhança. (apud SELIGMANN-SILVA, 2003, p.46)

Nesse contexto, Seligmann-Silva (2008, p. 70) discorre que a imaginação se estabelece como meio para enfrentar a crise testemunhal, arquitetando-se assim, como ferramenta para defrontar o buraco negro do trauma. O autor continua dissertando que “o trauma encontra na imaginação um meio para sua narração. A literatura é chamada diante do trauma para prestar-lhe serviço” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p.70).

Em Maus, Art Spiegelman se utiliza desses elementos literários para dar sentido ao relato testemunhal de seu pai, mas, por se tratar de uma Graphic Novel, também faz uso de elementos gráficos, ou seja, de ilustrações para representar os momentos de horror

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vivenciados por Vladek. Veremos a seguir alguns desses recursos visuais e os sentidos de seu uso na representação do trauma.

A ilustração como recurso de representação de memórias do Holocausto

Logo, ao iniciarmos a leitura de Maus – A história de um sobrevivente, nos deparamos com três elementos marcantes, são eles: o antropozoomorfismo; a presença de dois tempos narrativos distintos e a ausência de cores. Serão esses três elementos que analisaremos a seguir.

O primeiro elemento a ser analisado, se constitui tanto como um recurso gráfico, quanto como um recurso literário. A chamada narrativa moldura3 ou frame story é utilizada por Art Spiegelman para a criação de dois tempos narrativos distintos. A criação de desses dois tempos narrativos, permitem ao leitor vislumbrar como foram as entrevistas que o quadrinista realizou com seu pai, entre os anos de 1978 e 1979, compondo assim, o presente narrativo da obra. Como podemos observar na figura abaixo, em que o autor conversa com seu pai sobre a participação do mesmo na guerra e seu treinamento militar.

Figura 3: Narrativa moldura.

Fonte: SPIEGELMAN, 2009, p. 47

3 Para Medeiros (2012, p.4) A narrativa moldura se constitui como “uma narrativa ou acontecimento

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Além do presente narrativo, o autor se utiliza também do passado narrativo. Nele são representados os acontecimentos vividos por Vladek entre os anos de 1930 a 1945, período no qual as memórias traumáticas são produzidas. Como por exemplo, na imagem a seguir onde é representada a primeira vez que seus pais, Vladek e Anja Spiegelman se deparam com uma bandeira nazista, tal fato ocorre no ano de 1938, durante uma viagem do casal a Tchecoslováquia.

Figure 4: Passado narrativo.

Fonte: SPIEGELMAN, 2009, p. 34

Dessa forma, a utilização de dois tempos narrativos, permite ao autor representar o passado vivenciado por seu pai, assim como o processo de rememoração pelo qual Vladek passou durante as entrevistas concedidas. Nesse sentido, para Medeiros (2012, p.3), “além de sua função interna na composição da obra literária, a narrativa moldura serve também como procedimento retórico que empresta um caráter mais intenso, uma atmosfera de verossimilhança ao narrado”

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A natureza acentuada e a atmosfera de credibilidade ao narrado, podem ser visualizados em momentos como os representados na figura a seguir. Nela, ocorre um diálogo entre Vladek e Art, eles conversam sobre o desejo de Art de transformar em HQs a história de vida do pai. Vladek responde ao filho que sua vida daria muitos livros, mas que ninguém apreciaria tais histórias.

Figura 5: Ninguém gostaria de tais histórias.

Fonte: SPIEGELMAN, 2009, p. 14.

A ilustração acima evidencia as cicatrizes físicas, como o número de identificação tatuado na pele de Vladek, mas também, as marcas que a passagem por Auschwitz deixara em sua memória. Para Spiegelman (2011, p. 208) a presença dessa justaposição entre passado e presente possibilitou a criação de inúmeros flashbacks. Ao se inserir na trama como um dos personagens, Art deixa de agir como uma mão invisível, algo que na sua

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opinião deixaria sua obra com um aspecto fraudulento.

Além do uso da narrativa moldura, a ausência de cores também se caracteriza como elemento de destaque na HQ. O uso do preto e branco se constitui como recurso utilizados por Histórias em Quadrinhos que desejam apresentar um tom austeridade ao representado. Para Umbach e Gerhardt (2013, p.54), “nas civilizações ocidentais, o preto tem significado de aflição, morte, tristeza e solidão. A cor preta é associada a objetos pesados, sons desagradáveis, angústia, opressão, medo, pânico, inibição e ódio. É depressiva, solene, profunda e dominante.”

Sentimentos como angústia e tristeza são representativas na HQ, como demonstra a imagem 6. Nesse trecho da HQ, Vladek conta ao filho os eventos que aconteceram no momento em que um trem carregado de judeus de origem húngara chega a Auschwitz, devido a superlotação dos campos, os prisioneiros eram jogados vivos em grandes valas. Em seguida, fogo era ateado ao buraco, fazendo com que aquelas pessoas fossem queimadas vivas. Segundo Vladek, tinha sorte quem morria na câmara de gás (SPIEGELMAN, 2009, p. 232).

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Fonte: SPIEGELMAN, 2009, p. 232.

Em outro trecho de Maus, encontramo-nos com a representação de outro momento de horror. Neste ponto Vladek narra ao filho lembranças relatadas por outro sujeito:

Um dia, na primavera, os alemães levaram mais de mil pessoas de Srodula para Auschwitz, na maioria, crianças – algumas de 2 ou 3 anos. Algumas crianças gritavam, não podiam parar. Os alemães os arrebentavam contra a parede... e eles não gritariam nunca mais. (SPIEGELMAN, 2009, p.110)

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,

Fonte: SPIEGELMAN, 2009, p.110

Como podemos observar nas imagens acima, a ausência de cores traz tom melancólico a representação dos acontecimentos narrados por Vladek. “Essa não utilização de cores nos desenhos imprime, pois, um sentido intrínseco à história de Vladek, demonstrando o quão terrível foi o período do nazismo em sua trajetória” (UMBACH, GERHARDT 2013, p.54). Acerca da inexistência de cores, Spiegelman (2011, p.145) afirma que a utilização de cores não se fez necessária, uma vez que não alteraria a proposta biográfica de sua obra. Ainda segundo ele, após anos “olhando fotos documentais eu inconscientemente acreditava que a guerra ocorreu em preto e branco”4 (SPIEGELMAN,2011, p.145).

O próximo elemento que analisaremos, talvez se constitua como aquele que mais chama a atenção do público. A representação gráfica baseada no antropozoomorfismo

4 Tradução da autora: “[...] looking at documentary photos I unconsciously believed the war took place in

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que consiste na representação de personagens que ao mesmo tempo possuem características humanas e animais.

Em Maus, os judeus são representados como ratos; os alemães como gatos; franceses como sapos; poloneses não-judeus como porcos; estadunidenses como cachorros; e os ciganos como mariposas. O próprio título da obra, Maus, significa em alemão ratos. Abaixo temos exemplos do antrozoomorfismo na obra de Spiegelman:

Figura 8: Ratos e porcos Figura 9: Gatos

Fonte: SPIEGELMAN, 2009, p. 149. Fonte: SPIEGELMAN, 2009, p. 53.

A ideia de representar judeus como ratos, surge a Art após o mesmo assistir ao filme Alemão O Eterno Judeu5, o filme da década de 1940, dirigido por Fritz Hippler, foi

encomendado por Josef Goebbels, ministro da propaganda durante o regime nazista, com o objetivo de mostrar a população alemã como os judeus são uma praga que assolam o país. Logo no início do filme, o público é avisado que as cenas exibidas a seguir são cenas autênticas. O texto narrado apresenta frases categóricas, não deixando espaço para questionamentos, muitas vezes se busca conceder aspecto científico aos comentários. Nesse sentido, a desumanização de judeus, comparando-os a animais, serve de legitimação do extermínio (ENGSTER, 2020).

Figura 10: Cartaz e cenas do filme “O Eterno Judeu”

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Fonte: SPIEGELMAN, 2011, p 114.

Ao recorrer ao uso da antropozoomorficação, o autor representa essa desumanização pela qual o povo judeu foi submetido. Para ele, essa desumanização estava no cerne do projeto de assassinato (SPIEGELMAN, 2011, p. 115). Assim, representar alemães como gatos se faz uma escolha óbvia, uma vez ratos e gatos são considerados instintivamente inimigos. Evidenciando assim, a aposição natural entre os gatos, considerados superiores, e ratos, considerados pragas dignas de extermínio.

Conclusão

Em cerca de 1500 quadros, Art Spiegelman dedica-se a atribuir sentido as situações hediondas pelas quais sua família viveu durante o Holocausto. Devido ao teor de irrealidade das situações vividas, muitos dos sobreviventes, desta e de outras situações traumáticas tornam-se emudecidos. É no bojo da dificuldade em articular sentenças capazes de expressar toda a barbárie pela qual foram acometidos, que a literatura e imaginação surgem como subsídios para tentar transmitir narrativas consideradas inenarráveis.

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Por tratar-se de uma Graphic Novel, além dos recursos literários, o trabalho de Spiegelman apropria-se de recursos gráficos, na tentativa de outorgar significação ao que fora experienciado por seu pai entre 1930 e 1945. Ao realizar esse trabalho narrativo, o autor transgride o “lugar habitual” das Histórias em Quadrinhos.

Notamos assim, que em seu trabalho, os recursos narrativos, tanto verbais quanto não verbais, se constituem como ferramentas importantes para a representação de passados sensíveis. Os diferentes tempos narrativos, permitem ao leitor observar os momentos em que as lembranças traumáticas foram produzidas e quais os impactos das mesmas na vida de Vladek. A ausência de cores almeja evidenciar a complexidade e horror do evento vivido. Enquanto a antropozooficação, retrata a desumanização imposta aos judeus. Juntos, todos esses elementos possibilitaram que Maus impactasse o leitor com os horrores pelos quais milhões de pessoas passaram. Com sensibilidade, Spiegelman se apropria das lembranças de seu pai e transmite ao mundo sua história, ganhando assim o coração das críticas, mas principalmente dos leitores.

Percebemos ainda, que como filhas do seu tempo, as Histórias em Quadrinhos refletem parte da realidade na qual estão inseridas, sendo assim pesquisas historiográficas que se apropriam de suas páginas podem contribuir imensamente com uma historiografia social da contemporaneidade.

Referências

Fontes

SPIEGELMAN, Art. Maus: A história de um sobrevivente. Trad. Antônio de Macedo Soares. Companhia das Letras: São Paulo, 2009.

SPIEGELMAN, Art. Metamaus. New York: Pantheon, 2011.

Bibliografia

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MENDONÇA, Márcia Rodrigues de Souza. Ciência em quadrinhos: recursos didáticos em cartilhas educativas. 2008. 295 f. Tese (Doutorado) - Curso de Letras, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008.

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