• Nenhum resultado encontrado

A desobediência em Calabar: o elogio da traição

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A desobediência em Calabar: o elogio da traição"

Copied!
93
0
0

Texto

(1)

INSTITUTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA

A DESOBEDIÊNCIA EM CALABAR: O ELOGIO DA TRAIÇÃO

Júlia Tavares Bessa

Niterói 2020

(2)

A DESOBEDIÊNCIA EM CALABAR: O ELOGIO DA TRAIÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Literatura: subárea: Literatura Brasileira e Teoria da Literatura. Linha de pesquisa: Literatura, História e Cultura.

Orientador: Prof. Dr. André Dias

Niterói 2020

(3)
(4)

A DESOBEDIÊNCIA EM CALABAR: O ELOGIO DA TRAIÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Literatura: subárea: Literatura Brasileira e Teoria da Literatura. Linha de pesquisa: Literatura, História e Cultura.

Aprovada em:

Banca Examinadora:

______________________________________________________________________ Professor Dr. André Dias (UFF – Orientador)

______________________________________________________________________ Professora Dra. Claudete Daflon dos Santos (UFF)

______________________________________________________________________ Professor Dr. Márcio Scheel (UNESP – São José do Rio Preto)

______________________________________________________________________ Professora Dra. Stefania Rota Chiarelli (UFF) - Suplente

______________________________________________________________________ Professor Dr. Felipe Gonçalves Figueira (IFF) - Suplente

Niterói 2020

(5)

Para meus pais Adriana Tavares e Márcio Bessa meus maiores exemplos.

Para meu irmão/afilhado, Joaquim Bessa, que todo dia me ensina uma nova maneira de olhar a vida.

Para meus avós (in memoriam) Ambara Feres Bessa e Jaylce da Silva Bessa, meus grandes mestres nessa vida. Para Patricia Greff, minha “boadrasta”, que trouxe mais luz para meu caminho.

E para meu companheiro, Gabriel Vertulli, que sempre segura minha mão e me ajuda a alçar os voos mais altos da vida.

(6)

Primeiramente gostaria de agradecer de forma geral a todos (professores, amigos, familiares, terapeutas) que acreditaram em mim nesse período de pesquisa e produção dessa dissertação, pois, com certeza, sem essa força e o apoio que me deram através de suas palavras e cuidados, talvez hoje esse trabalho não estivesse concluído.

Ao meu orientador André Dias, que me estimulou a crescer e a amadurecer não só academicamente, mas interiormente também.

À professora, amiga, prima Beatriz Feres, que me instigou a seguir a literatura desde o início dessa caminhada e que sempre acreditou em mim.

Aos meus pais que sempre acreditaram no meu potencial, me apoiaram e me deram forças para seguir em frente, me mostrando que eu nunca estou sozinha e que os meus alicerces continuam firmes mesmo quando eu acho que o vento é forte demais.

Ao Gabriel Vertulli que não só revisou diversas vezes esse trabalho e me ajudou a alcançar parte da minha bibliografia através da biblioteca da PUC-RJ, mas também tornou mais leves os momentos de desespero, e soube me fazer enxergar a necessidade de às vezes parar e respirar antes de retomar a caminhada; sempre sendo companheiro e exemplo para mim.

À biblioteca da PUC-Rio que muitas vezes foi meu refúgio para mergulhar na pesquisa e na escrita dessa dissertação.

E à Universidade Federal Fluminense – que tem se feito casa desde 2014 – me ajudando na minha formação e no meu crescimento como pesquisadora, professora, educadora e, sobretudo, como pessoa no mundo.

(7)

No presente trabalho temos como objeto a peça Calabar: o elogio da traição, de Chico

Buarque e Ruy Guerra, escrita em 1973. A nossa questão principal é entender o estatuto da traição existente na obra. Para tal, em um primeiro momento aproximaremos o conceito de traição ao de desobediência, percebendo que os atos traidores existentes em

Calabar podem ser lidos como atos de desobediência. Em seguida abordamos a

importância de analisar as vozes femininas e masculinas da peça de forma separada para compreender que tipos de denuncias são permitidas ou não a cada uma das personagens. Por fim, examinamos as modificações feitas pelos autores ao revisarem o texto no início do período da anistia, a relevância do contexto histórico em que os autores se encontravam no momento em que produziram o texto e o exame dos espelhamentos e extensões existentes entre os personagens. Ao fim pretendemos deixar claro que o elogio da traição manifesto na peça pode ser interpretado como elogio da desobediência.

(8)

In the present work we have as object the play Calabar: o elogio da traição written by Chico Buarque e Ruy Guerra in 1973. Our main question is to understand the betrayal status in the play. To this end, at first we being the concept of betrayal closer to the concept of disobedience, noticing that the acts of betrayal in Calabar can be read as acts of disobedience. Then we address the importance of analyzing the female and male voices of the play separately to understand what types of denunciation are allowed or not to each one of the characters. Finally, we examine the changes made by the authors when reviewing the text at the beginning of the amnesty period, the relevance of the historical context in which the authors were when they wrote the text and the examination of mirrors and extensions existing between the characters. At the end, we intend to make clear that the praise of betrayal manifested in the play can be interpreted as a praise of disobedience.

(9)

Introdução...11

1. O elogio da desobediência...17

1.1 Calabar e a Crítica: sobre heroísmo e traição...17

1.2 A desobediência em Calabar: Outro Olhar...31

2. Que vozes são essas que mostram as dissonâncias?...40

2.1 As vozes femininas de Calabar...41

2.2 As vozes masculinas de Calabar...51

3. Condições de Produção, Espelhamentos e Desobediência em Calabar...62

3.1 Diferentes edições, diferentes textos: o que as modificações nas edições de Calabar revelam...62

3.2. O contexto de produção de Calabar – o que revela sobre a desobediência?...69

3.3 Aproximações históricas e espelhamentos em Calabar – o que indicam?...76

Considerações Finais...86

(10)

“Obedecer, desobedecer – é dar forma à nossa liberdade.” (GROS, 2018, p.36)

(11)

Introdução

“Como é que um personagem é um traidor e outro não é, se ele trai o primeiro? Como é que a mulher que ama um traidor passa a detestar o outro e passa a amar o traidor? E como é que o outro traidor é mais traidor, talvez, que o primeiro?”

(Ruy Guerra)

A presente dissertação tem como objeto a peça Calabar – o elogio da traição escrita por Chico Buarque e Ruy Guerra em 1973. Em linhas gerais, podemos dizer que o impulso inicial da pesquisa se dá a partir de seu subtítulo – afinal, como é possível que uma traição seja elogiosa? – enfim, partindo do estranhamento sobre qual seria o estatuto da traição que opera no interior desse discurso cênico, a pesquisa desenvolve-se em ondas concêntricas: onde busca-se entender as condições históricas de produção da peça, mas sem nunca esquecer que o seu epicentro é justamente a questão do ato traidor. Em última instância, nosso objetivo é deixar claro como a traição elogiosa de Calabar seria, ao fim, um ato de desobediência.

No ano de 1964, mais exatamente em abril, os militares assumiram o governo do Brasil destituindo o então presidente João Goulart e instaurando assim a ditadura civil militar brasileira. Ao longo dos governos militares que compuseram a ditadura, tivemos entre os anos de 1969 a 1974, Emilio Garrastazu Médici como presidente do país. Seu período é reconhecido historicamente como sendo o mais duro da ditadura.

Ao longo de seu governo, a censura se acentuou, e teve como um de seus grandes marcos no meio teatral o episódio ocorrido com a peça Calabar – o elogio da

traição. A obra estava prestes a estrear; o texto já havia sido liberado pela censura de

Brasília em Abril de 1973, no entanto, – como relata Yan Michalski em O palco

amordaçado – em Novembro do mesmo ano:

Oito dias antes da data anunciada para a estréia de Calabar, a empresa requer que seja marcado o ensaio geral para a censura, e é informada de que a peça “foi avocada por instância superior para reexame”. A imprensa é impedida de sequer mencionar o título da peça, só podendo noticiar, a data prevista para a estréia, que “o espetáculo que iria estrear hoje no Teatro João Caetano foi adiado sine die”. Quatro dias depois, o Gen. Antônio Bandeira, Chefe da Polícia Federal, informa que o reexame do texto demorará três ou quatro meses. Os produtores dissolvem o elenco, arcando com o maior prejuízo (na época mais de Cr$ 400 mil) jamais causado pela censura a uma produção isolada. Posteriormente, o texto é proibido. (MICHALSKI, 1979, p. 80-81)

(12)

Mas por qual motivo a peça foi proibida tão de repente e de forma tão abrupta? Essa é uma das indagações que nos leva a pesquisar essa obra em questão e que discutiremos mais a frente ao longo do capítulo três “Condições de Produção, Espelhamentos e Desobediência em Calabar”. Para além disso, também abordaremos ao longo desse capítulo todo o quesito do quanto a História do Brasil se entrelaça com a peça – comprovando assim que, como alerta Bárbara (viúva de Calabar) à plateia, a história é realmente uma grande colcha de retalhos. Para fazermos isso, veremos o quanto é possível reconhecer e aproximar figuras e episódios históricos – para além daqueles do período colonial – a partir do texto teatral.

Também se torna relevante apontarmos aqui que existe uma diferença entre as edições de Calabar no que diz respeito ao texto, uma vez que após a anistia, quando a peça foi liberada, os autores o revisaram e o modificaram. Esse ponto se torna pertinente a essa pesquisa, pois percebe-se que, dependendo da edição que o leitor tem em mãos, algumas de nossas análises não se tornam possíveis, uma vez que, principalmente após a modificação do texto, cenas foram suprimidas, outras foram deslocadas e algumas outras adicionadas – assunto esse que também será abordado no terceiro capítulo.

No entanto, é essencial que já tenhamos em mente que Chico Buarque e Ruy Guerra se apropriaram de um episódio histórico ocorrido durante o período colonial brasileiro – no qual Domingos Fernandes Calabar teria traído a Coroa Portuguesa ao se aliar aos holandeses durante a invasão holandesa em Pernambuco – para então criarem o enredo da sua obra. Para fazê-lo, eles tomam como bibliografia – como informado ao fim de algumas edições do livro – os seguintes textos: Os Holandeses no Brasil de P.A. Varhagen, Os Holandeses no Brasil de C. R. Boxer, D. Antonio Filipe Camarão e

Henrique Dias, ambos escritos por J. A. Gonçalves de Mello, O Valeroso Lucideno do

Frei Manoel Calado, Tempos dos Flamengos de Gonçalves de Mello Neto, Les

Hollandais au Brésil de Netscher, O Domínio Colonial Holandês no Brasil de Hermann

Natjen e Civilização Holandesa no Brasil de José Horório Rodrigues e Joaquim Ribeiro. Isso se torna relevante exatamente para que possamos entender que alguns dos episódios relatados aconteceram dentro da historiografia tradicional, assim como a existência de todos os personagens, com exceção de Anna de Amsterdam.

Sobre o enredo, ao longo da peça pode-se entrever que o personagem principal teria agido de tal maneira (rompido com os portugueses para se aliar aos holandeses) por considerar a aproximação com Holanda mais promissora para “a gente do Brasil”; ou seja, o que a Holanda propunha era mais próximo dos ideais e desejos de Calabar

(13)

para si e para o povo brasileiro se comparado aos princípios dos portugueses. A traição – que se encontra no subtítulo da peça – é explicitada desde o início da obra e Calabar é enforcado com trechos do mesmo discurso que foi proferido no enforcamento de Tiradentes – deixando entrever mais um pouco da grande colcha de retalhos histórica. A partir de então, ocorre o desenrolar de vários episódios como, por exemplo, a “traição” de Bárbara ao se relacionar amorosamente com Souto, as inúmeras denúncias de traição nas mais diversas camadas e a aliança posterior entre a Holanda e Portugal que, por fim, deixa entrever que a morte de Calabar foi em vão, fazendo então do personagem que era visto como o grande traidor, um mártir, um verdadeiro herói dentro do enredo.

A peça em si é dividida em dois atos, o primeiro relata Calabar através da perspectiva portuguesa, onde ele é visto como traidor e entregue aos portugueses para que possa ser enforcado e esquartejado. Já o segundo ato começa através da chegada de Mauricio de Nassau, ou seja, passa a contar a história a partir do momento em que a Holanda assume a colonização de Pernambuco, e Calabar deixa de ser o foco da peça. Ele ainda está lá, no entanto a imagem do mameluco serve nesse momento mais como ponte para que Nassau torne-se bem visto dentro de seu papel de governador; fazendo com que o Brasil não só seja regido pelo comando holandês, mas também se aproxime mais do que Calabar desejava que fosse. É a partir de então que o vemos perder a alcunha de traidor para pouco a pouco ser reconstruído como um possível herói.

Ainda é importante aqui ressaltarmos que Calabar é apenas um nome ao longo da peça, não há uma pessoa que represente o personagem; sendo assim, como aponta Elzimar Fernanda Nunes em sua dissertação de mestrado:

Cada um enxerga o Calabar que lhe convém e aos debates a seu respeito, na peça como na história, são palcos de uma luta onde se ouvem várias vozes disputando o direito de serem consideradas detentoras da “verdade histórica”. Só podemos traçar nosso próprio Calabar a partir da visão alheia. (NUNES, 2002, p. 12)

Ou seja, coube a peça não só recontar a história que já conhecíamos sobre o Brasil colonial, mas também foi através de Calabar que os autores encontraram uma maneira de aproximar o passado do presente, além de fazer uma provocação com a plateia, de forma com que a ida ao teatro – que para muitos era visto como uma chance de diversão e descontração – torna-se um momento de experimento catártico. O que queremos dizer é que dentro de suas críticas, a provocação feita ao público ia além do fato de que eles criassem seus próprios “Calabares”, mas que também se

(14)

identificassem/reconhecessem como Soutos, Bárbaras, Camarões, Dias e até mesmo como Mathias e Nassaus; entendendo assim qual seria o papel que eles desempenhariam na história a ser contada no futuro, quando os tempos de chumbo virassem “páginas infelizes da nossa história”, como canta Chico Buarque em “Vai Passar”.

Muito já se foi abordado sobre Calabar no que diz respeito ao seu entrelaçamento com a história do Brasil e até mesmo no que diz respeito ao seu valor teatral e literário. No entanto, o que queremos propor aqui com nossa leitura é um novo olhar que toma, sobretudo, a visão do quanto a temática da traição pode ser distorcida a partir da dificuldade em se definir o que seria propriamente o ato de trair, como se pode entrever através da epígrafe dessa introdução, ou também como disse o próprio Ruy Guerra em entrevista dada aos alunos da PUC-Rio em 1973:

a traição é um negócio que a gente pode bater em muitos níveis. Pode bater num nível inteiramente metafísico. Pode bater num nível inteiramente circunstancial. Pode bater num nível ideológico. E é evidente que, para nós, não interessa discutir a traição de uma forma absoluta, porque a traição é um tema filosófico. (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 24)

Diante disso, percebe-se então o quanto o tema da traição se torna de extrema importância para qualquer tipo de análise da peça; no nosso caso, ele se torna relevante, primeiramente, pela questão de que ao longo da ditadura civil militar brasileira os governantes viam aqueles que não compartilhavam da sua visão como traidores da pátria. Tal situação permite que aproximemos a narrativa da peça do momento político do país de então. Além dessa questão, o assunto também é relevante pela possibilidade de todas essas leituras de traição (seja na peça, seja na história) abrirem uma perspectiva pela qual elas poderiam ser analisadas como possíveis atos de desobediência.

Para entendermos o que seria a desobediência e os possíveis caminhos para aproximá-la da traição se trona necessário que entendamos também os pensamentos de Thoreau, Frédéric Gros e Aldo Carotenuto, onde temos os dois primeiros abordando a desobediência e o último ocupando-se da traição. Todas essas questões, assim como essa bibliografia, será o que abordaremos e destrincharemos ao longo do primeiro capítulo da dissertação: “O elogio da desobediência”. Ao longo desse capítulo discutiremos o que aproximam esses dois conceitos (desobediência e traição) e entenderemos como a peça de Chico Buarque e Ruy Guerra permitem que seus atos de traição sejam lidos como atos de desobediência.

(15)

Para além dos autores mencionados acima, devemos destacar também a importância da entrevista que os autores deram aos alunos da PUC-Rio em 1973, bem como da dissertação de mestrado defendida por Elzimar Fernanda Nunes em 2002 na Universidade de Brasília, intitulada A reescrita da história em Calabar, o elogio da

traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra. As indagações e análises da autora foram de

grande ajuda para a compreensão e entendimento não só do entrelaçamento da historiografia tradicional com o texto dramático, mas também para a clareza de quem eram/são os personagens dessa trama.

Dito isso apontamos que nosso segundo capítulo, “Que vozes são essas que mostram as dissonâncias?”, será dedicado a eles, ou seja, se deterá a analisar as personagens do nosso enredo, levando-nos a entender o porquê desobedecem e de que maneira revelam isso ao público. Já adiantamos aqui que alguns desses atos de desobediência são extremamente atrelados aos papéis sociais que ocupam. Para nos auxiliar nessas análises traremos para o debate os apontamos de Judith Butler sobre quais vidas seriam enlutáveis, bem como as ideias de Marilena Chauí sobre o que seria o discurso competente.

Focamos nessa introdução muito no que diz respeito à historicidade por trás de

Calabar, sobretudo pelo fato de que esse é um elemento relevante para a pesquisa. Pois

em um momento histórico no qual deveríamos ter extremo cuidado com o que dizer e como dizer, Chico Buarque e Ruy Guerra resolveram justamente propor a traição como tema, recontando a história do Brasil através de um outro prisma. A partir do enredo é possível perceber críticas ao regime civil militar em que viviam, tornando então possível fazer o seguinte questionamento: até que ponto ir contra aqueles que estão no poder, ou seja, ir contra ao pensamento da elite que governa o país é um ato de traição?

A essa pergunta talvez nós nunca tenhamos uma resposta exata, pois, até mesmo como aponta a personagem Bárbara em Calabar, para que se haja traição há que se olhar primeiro para o que é traído, ou a pessoa traída, revelando assim não só a problemática por trás do vocábulo traição, mas também a necessidade de se tomar um lado para que exista uma traição, ou seja, um ponto de vista dentro da história.

No intuito de examinarmos um pouco dos mistérios existentes nesse mosaico construído por Chico Buarque e Ruy Guerra, escolhemos então apontar uma leitura da traição como desobediência (primeiro capítulo), perpassando pela análise dos personagens presentes no enredo (segundo capítulo) e por fim compreendendo o quanto

(16)

que a historiografia tradicional, bem como o contexto de produção de Calabar, estão entrelaçados na peça (terceiro capítulo).

Sendo assim, como diria a personagem Bárbara: sintam-se “iniciados nos mistérios da traição” (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 93).

(17)

1. O elogio da desobediência

1.1 Calabar e a Crítica: sobre heroísmo e traição.

“Uma planta que não pode viver de acordo com sua natureza morre; assim também um homem.”

(Henry David Thoreau)

Ao analisarmos a peça Calabar: o elogio da traição (1973), escrita por Chico Buarque e Ruy Guerra, é necessário que tenhamos em mente que os autores se apropriaram de um episódio histórico ocorrido durante o período colonial brasileiro, em que Domingos Fernandes Calabar teria traído a Coroa Portuguesa ao se aliar aos holandeses durante a invasão em Pernambuco para então montar o enredo de sua obra.

O personagem principal teria agido de tal maneira por considerar a aproximação com a Holanda mais promissora do que a vinculação aos portugueses. A traição é explicitada desde o início da obra e Calabar é enforcado com trechos do mesmo discurso que foi proferido no enforcamento de Tiradentes. A partir de então, ocorre o desenrolar de vários episódios como, por exemplo, a “traição” de Bárbara ao se relacionar amorosamente com Souto, as diversas denúncias de traição nas mais diversas camadas – traição entre amigos, traição amorosa, traição ao governo, traição ao seu próprio povo/as suas próprias origens (como no caso de Henrique Dias e Camarão), traição a si mesmo – e a aliança posterior entre Holanda e Portugal que, por fim, deixa entrever que a morte de Calabar foi em vão, fazendo então do personagem, que era visto como o grande traidor, um mártir, um verdadeiro herói dentro da história.

A dicotomia (traidor/herói) fica evidente no personagem devido ao fato de que ao longo do primeiro ato vemos Calabar sendo o traidor – através das vozes do Frei, de Mathias, Souto, Dias e Camarão, que se encarregam de marcar e sublinhar a alcunha do personagem principal. No entanto, no segundo ato, a imagem de Calabar começa a mudar e ele passa a ser visto como herói, seja pelos confrontos que Bárbara trava, sobretudo, com Souto, Camarão e Dias, seja pelo fato de o próprio traidor de Calabar – Souto – chegar a se comparar em determinado momento com o mestiço, enaltecendo-o e mostrando que só mesmo eles dois entendem o que estaria por trás de toda a guerra.

Nota-se que essa mudança da denominação dada ao personagem principal ocorre desde a primeira fala do segundo ato, pois Nassau usa da imagem do mestiço para legitimar seu governo, como Elzimar Fernanda Nunes, em sua dissertação de mestrado

(18)

intitulada A reescrita da história em Calabar, o elogio da traição, de Chico Buarque e

Ruy Guerra, descreve ao explicar qual seria a lógica que teria levado os autores a

dedicarem o segundo ato mais a imagem de Nassau do que a de Calabar

A lógica que levou os autores à, aparentemente, abandonarem Calabar e se concentrarem em Nassau pode ser encontrada no princípio do segundo ato, quando o conde declara sobre Calabar: “Tu não morreste em vão”, apossando-se da figura do mestiço para legitimar seu próprio governo. (NUNES, 2002, p. 113)

Entretanto, torna-se importante ressaltarmos aqui que a crítica feita sobre a peça ainda é escassa, pois a mesma foi censurada poucos dias antes de sua estreia e só veio a ser encenada em 1980, após o início da anistia aos exilados e presos políticos brasileiros, promulgada em agosto de 1979; porém, nesse momento, já tinha seu texto sido revisto e modificado pelos autores. Sendo assim, o material que encontramos hoje que discorre a respeito da discussão em torno dessa divisão herói/traidor existente na figura de Calabar ficou, principalmente, a cargo de pessoas que tivessem interesse em pesquisar e estudar a obra de Chico Buarque e Ruy Guerra academicamente.

Dito isso, começaremos essa análise atentando para o fato de os autores terem usado trechos do discurso proferido no enforcamento de Tiradentes. Isso é relevante porque traz à cena dois personagens vistos como traidores na história brasileira, no entanto, dentre os dois, o que tem sua traição vista com valor positivo seria apenas Tiradentes, pois como nos aponta Aluizio Alves Filho em seu artigo “A “dialética da traição”, no imaginário social e político brasileiro”: “acusados de traição, ambos pagaram com a vida; entretanto, na posteridade, Calabar manteve a pecha infame de “traidor”, enquanto Tiradentes foi elevado à qualidade de mártir da Independência, herói da república.” (FILHO, 2006, p. 1). Ou seja, a traição do personagem da inconfidência mineira acaba o colocando na história brasileira como herói.

Notamos que, ao transpor para Calabar uma aproximação com Tiradentes através do discurso de enforcamento do inconfidente mineiro, os autores acabaram nos oferecendo uma dica de que a personagem principal da peça não é de todo um traidor. Essa aproximação acaba colocando Calabar e Tiradentes no mesmo patamar, ou seja, ambos são mártires/heróis.

O mesmo ocorre quando Chico Buarque indica uma aproximação possível entre Calabar e Lamarca em sua biografia escrita por Regina Zappa. O autor diz que parte da intenção ao escrever e representar Calabar “Era como discutir se o Lamarca, um militar

(19)

que passou para o lado da guerrilha, era ou não um traidor. Havia um paralelo evidente. O interesse era esse na época. Mais tarde, a peça foi encenada, mas não tinha mais graça.” (ZAPPA, 1999, p. 192).

Carlos Lamarca é reconhecido, historicamente, pelas Forças Armadas brasileiras, como traidor devido ao fato de ter se aliado à guerrilha armada durante a ditadura imposta pelo golpe civil militar no ano de 1964, mesmo que tenha sido um capitão do exército brasileiro. Apesar de seu histórico, seja como guerrilheiro seja como capitão, Lamarca também vivenciou a dicotomia herói/traidor, como apresentado por Jefferson Gomes Nogueira, em seu texto Carlos Lamarca no imaginário político

brasileiro: o papel da Imprensa na construção da imagem do “Capitão Guerrilheiro”,

evidenciando as duas maneiras de ler os atos de Lamarca. No primeiro momento o autor nos mostra que “A imagem de Carlos Lamarca é reproduzida como ex-capitão do exército, traidor que se transforma num terrorista e criminoso comum.” (NOGUEIRA, 2008, p.14) e logo em seguida ele apresenta que

Segundo Motter (2011) a imagem de Lamarca transitava entre dois mitos: a ideia do “herói positivo serve à minoria que acreditava que as mudanças sociais são necessárias e, muitas vezes, só possíveis pela luta armada” e a do “herói negativo, serve à outra minoria, a que detém o poder na sociedade e que para manter-se como grupo econômico dominante tem que impedir ou retardar mudanças.” (NOGUEIRA, 2008, p. 20)

Sendo assim, nota-se que por mais que houvesse essa divisão entre traidor e herói na imagem de Lamarca, ele ainda assim ficou marcado pela alcunha de traidor.

Toda essa análise da aproximação histórica torna-se relevante na medida em que, ao colocar Tiradentes (herói/mártir) e Lamarca (traidor para uns e herói para outros) dentro do mesmo personagem – Calabar –, os autores de Calabar: o elogio da

traição, de certa forma, acabam propondo essa dicotomia traidor/herói, deixando assim

um pouco mais transparente essa polarização atribuída ao personagem principal, pois como aponta Mariana Rodrigues Rossel em seu artigo “Chico Buarque: dramaturgo (1967-1978)” ao falar sobre Calabar a historiadora aponta:

De degredado pela história oficial, ele passa a herói na revisão feita por Buarque e Guerra, exemplo a ser seguido no momento em que a peça foi escrita. E embora seja bastante nítida a identificação entre Calabar e Carlos Lamarca, é interessante observar que o personagem-título nunca aparece em cena, sendo apresentado pelo olhar de outros personagens e pelos pedaços de seu corpo mutilado que surgem no palco. Ao não apresentarem um rosto para Calabar, os autores permitem a identificação do personagem com qualquer

(20)

herói, expandindo para o coletivo a responsabilidade pela resistência à tirania e à opressão. (ROSSEL, 2017, p. 264)

Essas comparações entre as personagens históricas de Tiradentes e Lamarca com o Calabar de Chico Buarque e Ruy Guerra será destrinchada mais a frente em nossa pesquisa dentro do capítulo três, no entanto, era necessário atentarmos agora para essa análise para que pudéssemos discutir a questão dessa dicotomia traidor/herói vivenciada por Calabar.

Além disso, vemos que essa alcunha dada ao Calabar da peça de Chico Buarque e Ruy Guerra pode ser favorecida também, como já apontado por Mariana Rodrigues Rossel, pelo fato dele ser o único que não é representado por ninguém, só conhecemos Calabar através do que os personagens nos dizem e apresentam sobre ele. Sendo assim, vemos que a personagem principal da peça passa pelo que Elzimar Fernanda Nunes aponta em sua dissertação de mestrado

Como nos textos históricos só o conhecemos pelo que outros falam dele. Neste sentido a peça reproduz o discurso histórico no qual várias vozes falam sobre Calabar tentando interpretar suas ações. A peça gira em torno do debate travado entre as personagens sobre o significado das atitudes do mestiço. Essa discussão aparece desde o início da peça, quando Mathias de Albuquerque se interroga angustiado “Por que é que ele foi para lá?” E continua até o segundo ato, onde Nassau se coloca como realizador do sonho de Calabar.

Portanto, a peça não opera simplesmente a transformação do vilão em herói. O que há é um registro dos diversos julgamentos em torno de Calabar. Por exemplo, se Dias e Camarão consideram-no traidor por ter abandonado as fileiras portuguesas, Bárbara considera Calabar um idealista. Cada uma dessas visões sobre Calabar é fundamentada na concepção de mundo de cada personagem. (NUNES, 2002, p. 93)

É interessante também pensarmos em como historicamente Domingos Fernandes Calabar também recebeu essa denominação de traidor, pois para a historiografia tradicional, durante o conflito entre portugueses e holandeses em 1600, Calabar foi um traidor da pátria, como evidenciado por Ronaldo Vainfas, no capítulo que ele dedica a Calabar, em seu livro Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela

Inquisição

[...] Calabar foi submetido a uma junta por crime de alta traição. Decidiu-se que o castigo de seus crimes deveria ficar à mercê do rei, resolvendo-se, ato continuo, que Matias era o legítimo representante da Coroa espanhola ali. E, assim, esquartejado como traidor, aleivoso à sua pátria e a seu rei, “e por muitos males, agravos, furtos e extorsões que havia feito aos moradores de Pernambuco”. (VAINFAS, 2008, p. 90)

(21)

Tal alcunha recebida por Calabar dentro da história oficial também fica evidente na maneira que ensinamos a história do país nas escolas. Elzimar Fernanda Nunes em sua dissertação também se preocupou em olhar para esse fator, isto é, de como a história oficial cristalizou Calabar como traidor até mesmo nos livros didáticos. A autora estudou o livro História do Brasil escrito por Joaquim Silva e J. B. Damasco Penna. Tal livro, segundo a autora, era recomendado pelo MEC e publicado pela Companhia Editora Nacional, o exemplar analisado era de 1969. Sobre a obra e como ela descreve Calabar a autora diz

O fim da vantagem portuguesa é atribuído à “passagem, para seu lado [dos holandeses], de Domingos Fernandes Calabar. Perfeito conhecedor da região em que se combatia, Calabar com sua traição facilitou várias vitórias aos invasores”. Portanto, o livro didático propaga a versão segundo a qual a traição do mestiço foi o fator decisivo para que se efetivasse o Brasil holandês. (NUNES, 2002, p. 78)

Para além desses autores, podemos também perceber através da bibliografia histórica existente ao fim das primeiras edições de Calabar, o elogio da traição (essa bibliografia foi removida do livro após a revisão e modificação do texto) que outros autores/historiadores marcaram Calabar como traidor em suas obras. Esses livros acabaram não só sendo usados como fonte para que Chico Buarque e Ruy Guerra contassem sobre o seu Calabar, mas também foram instrumentos da construção do discurso histórico tido como “oficial”. A saber, foram eles: o Frei Manoel Calado, Francisco Adolfo Varnhagen, Hermann Wätjen e Charles Ralph Boxer.

Diante dessas questões, vale refletirmos sobre essa escolha de recorte histórico feita pelos autores através do pensamento de Ruy Guerra:

interessava ainda pegar um personagem que estava oficializado como traidor. Numa época em que existia muito conflito de traição, só ele ficou vinculado como traidor. Por que só esse cara é traidor no momento em que 200 índios passam de um lado para o outro; que regimentos holandeses passam para um lado, um ano depois para outro; num momento em que a Espanha domina Portugal, que os portugueses são contra os espanhóis, isto é há toda uma mistura de valores incrível e só tem um traidor oficializado? (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 7)

Observamos, então, que desde o início da peça Calabar já tinha em seu horizonte a alcunha de traidor, mas ao longo do enredo notamos que ele ganha um valor maior, ou seja, o traidor passa a ser mártir, vira exemplo/herói. Pois, como assegura Ruy Guerra:

(22)

“Nós não tínhamos nenhuma informação rigorosa que nos permitisse pôr o personagem em discussão, num nível que não fosse simplesmente o sentimental: é um traidor, então vamos colocar como herói.” (BUARQUE & GUERRA,1973, p. 6).

Sendo assim, no que diz respeito a Calabar, tanto historicamente falando quanto na obra de Chico Buarque e Ruy Guerra, percebe-se que por trás de sua traição perpassa uma questão social, como é apontado por Fernanda Botton em seu texto “Calem-se as Bárbaras: as traições discutidas em Calabar de Chico Buarque e Ruy Guerra”: “Calabar foi considerado traidor, não porque lutou contra os portugueses, mas sim porque ousou ir contra a elite que estava no poder”. (BOTTON, 2012, p. 109). Logo, questiona-se: até que ponto ter ideias contrárias “a elite que está no poder” é traição e não apenas a expressão de uma opinião contrária?

Para essa pergunta, tomamos outra fala de Ruy Guerra como o início de uma resposta possível, quando o autor aponta:

(...) O que se debate também em Calabar, não explicitamente, mas obrigatoriamente, é o conceito de pátria. Porque é coisa fundamental da época. Quer dizer: naquela época, tínhamos os brasileiros, os portugueses, os espanhóis, os holandeses, aquela confusão toda. Havia uma série de divisões internas. Mathias representa toda uma...(BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 24-25)

O presente trecho, retirado de uma entrevista que os autores deram aos alunos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC – RJ), apresenta a fala de Ruy Guerra de maneira entrecortada, no entanto, por mais que o autor não conclua seu pensamento, ele nos dá a dica direta para responder nossa dúvida a partir do próprio texto literário, através da fala de Mathias, quando ele se confessa com o Frei completando a frase do mesmo que está lhe dando o perdão de Deus: “Me perdoe. Caso contrário eu não seria digno de enforcar um homem, brasileiro como eu, que se atreve a pensar e agir por conta própria.” (BUARQUE & GUERRA, 1974, p. 32; 1975, p. 51). Ou seja, o próprio personagem que seria visto como quem representa a coroa portuguesa defende que o único “erro” de Calabar foi “pensar e agir por conta própria”, como defende Fernanda Botton.

No entanto, por mais que ao longo de nossa pesquisa nós venhamos a nos debruçar sobre as diferenças textuais existentes entre edições, é importante ressaltar também que após a modificação que os autores fizeram no texto por volta de 1979, essa fala de Mathias sofre alterações, pois o personagem passa afirmar: “Me perdoe. Caso

(23)

contrário eu não seria digno de enforcar um homem, brasileiro como eu, mas tão insensato quanto os meus devaneios.” (BUARQUE & GUERRA, 1985, p. 39; 2017, p. 55).

Dito isso, e tomando o subtítulo da peça “o elogio da traição”, cabe de imediato observar que no trabalho de Chico Buarquee Ruy Guerra percebe-se, ao primeiro olhar, como a “traição” passa por uma inversão de valores ao ser “elogiada”, assim, ela ganha uma conotação positiva que está para além de seu uso no senso comum, como diria Ruy Guerra:

Inclusive, quando a gente põe um Elogio da Traição é tirado do Erasmo de Rotherdam O Elogio da Loucura, que é justamente uma inversão de valores, quando o cara faz um elogio da loucura. Aí, a loucura, como valor positivo, numa época que se dá assim como um estigma. (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 6)

Esta inversão é importante na medida em que ela traz à tona o valor irônico existente na peça; afinal, elogios de atitudes controversas como a loucura e a traição são deliberadamente irônicos, ainda mais na época em que a peça em questão foi escrita, pois, como aponta Elzimar Fernanda Nunes

Numa época em que o peso negativo da palavra “traição” era utilizada na validação de um regime autoritário, Buarque e Guerra forjaram outro sentido para o termo, colocando-o num campo semântico positivo. Não se trata apenas de apontar a relatividade do conceito, mostrando que “traição” é uma questão de ponto de vista (para os portugueses Calabar era traidor e Souto, um solado leal; para os holandeses dava-se o inverso), mas elogiar a traição, propondo que, às vezes, trair pode ser a atitude mais nobre a se tomar. (NUNES, 2002, p. 108)

Podemos dizer, então, que o elogio da traição em Calabar tem início com a fala de Mathias, e que a partir de então esse elogio se desenrola na peça através de vários conflitos entre os personagens. Entretanto, se a peça tem como tema central a traição, nota-se que, ao longo do enredo, Calabar, que seria o principal traidor, começa a perder gradativamente esse título para então começar a passar a ser visto como herói, o que fica evidenciado através do diálogo entre Bárbara e Souto no momento em que a viúva confronta Souto, Camarão e Dias:

Bárbara: Você está arrependido Sebastião? Souto: Estou sempre arrependido.

(24)

Souto: Já estou arrependido do que vou fazer, sem saber por que faço, e por que me arrependo a cada instante. Queria que as coisas fossem mais imediatas. Queria saber do certo e do errado. Queria não ter dúvidas.

Bárbara: Como Calabar. Souto: Sim, como Calabar.

(BUARQUE & GUERRA, 1975, p. 65)

No entanto, essa interpretação só se torna possível nas edições anteriores à revisão e modificação do texto que os autores fizeram por volta de 1979, mesmo embora, analisando a versão da 5ª edição de 1974 e da edição de 1975, note-se na fala de Souto uma diferença na escrita do vocábulo “porque”, que na primeira aparece grafado junto “porque” e na segunda grafado separado “por que”. Nas edições posteriores à modificação do texto, Bárbara não questiona mais Souto sobre seu arrependimento, ela afirma que ele está arrependido e ele apenas concorda com a viúva de Calabar dizendo que está sempre arrependido e que gostaria de não ter dúvidas, e não fazem mais as comparações com Calabar.

Bárbara V. está arrependido do que fez.

Souto

Eu estou sempre arrependido, sem saber por que me arrependo a cada instante. Eu queria não ter dúvidas.

(BUARQUE & GUERRA, 1985, p. 53; 2017, p. 64)

Posterior a essa cena, Calabar vai ter sua traição elogiada através da voz de Nassau, o personagem que é visto como representante da Holanda, quando ele dialoga com os soldados em sua primeira aparição. Entretanto, ao terminar sua fala, em todas as versões do texto, Nassau se auto intitula como “um holandês sem palavras”, deixando uma dica de como é a sua índole e sua fama, pois até mesmo dentro da história oficial ele também divide muitas opiniões. Enquanto para alguns autores, como Pieter Marinus Netscher, Nassau seria extremamente admirável, para outros autores, como o Frei Manoel Calado, ele seria apenas um narcisista. É tomando consciência dessa polarização a cerca da figura de Maurício de Nassau que Chico Buarque e Ruy Guerra montam o Nassau de Calabar, pois como diria Elzimar Fernanda Nunes

A construção da personagem Maurício de Nassau em Calabar mescla muitas dessas visões. Ele é pintado ora como governante admirável, ora como embusteiro; ora como nobre humanista, ora como materialista interesseiro; ora como sábio diplomata, ora como cínico e manipulador; oscilando “entre bêbado e sonâmbulo, / entre fidalgo e corsário, / governante e mercenário” (NUNES, 2002, p. 114)

(25)

Diante disso, lançamos então o seguinte questionamento: será que esses elogios a Calabar, a sua traição e ao seu heroísmo são válidos quando partem de um alguém sem palavra? Observamos que, como já dito anteriormente, Nassau usa da imagem de Calabar para legitimar seu governo, sendo assim, esse seu elogio não é em vão e nem gratuito.

NASSAU (off)

Tu não morres em vão. Eis um estranho epitáfio dirigido a estranha gente de um estranho continente de contorno incerto. Tu não morres em vão

repito-o, porém, deste meu porto, como um grito de conforto a algum estranho herói de contorno incerto

no porto de um povo de imaginação.

SOLDADO 1 Calabar.

SOLDADO 2

Alles dat?

NASSAU

[...] Eu, Maurício simplesmente, sem nenhuma testemunha e sem Bíblia nas mãos, duvido firmemente,

em nome dos Santos Mártires, que algum dia algum homem tenha conhecido morte que não fosse vã.

SOLDADO 3 (segurando um pedaço de Calabar) Também, era apenas um negro...

NASSAU (off)

Mas tu não morreste em vão. Embora seja difícil dizer isso agora que avisto teu mundo no horizonte verde e vivo e a paisagem definida sem qualquer ressentimento da tua ferida.

Nassau entra em cena.

NASSAU

Não, não morreste em vão.

Ou será em vão que rasguei esses trópicos, será em vão que adivinhei a terra nova, será em vão que piso a terra nova, que beijo a terra que beijavas,

(26)

e essas palavras serão vãs de um holandês sem palavra.

(BUARQUE & GUERRA, 1975, p. 75-76)

Se ainda olharmos esse trecho nos textos modificados, como veremos a seguir, perceberemos que não há mais diálogo entre Nassau e os Soldados, apenas haverá um grande monólogo de Nassau que agrupa todas as falas do holandês existentes na citação acima e sem marcações evidentes da referência a Calabar. No entanto, fica evidente a questão de Calabar ser um herói, pois, dentro de seu monólogo, ele aparentemente se refere a Calabar como um “estranho herói” – por mais que tal referência ao mestiço seja apenas um artificio usado pelo governante para validar a sua posição política.

NASSAU (Off)

Tu não morreste em vão. Eis, talvez, um estranho epitáfio dirigido a estranha gente de um estranho continente de contorno incerto num mapa de imaginação. Tu não morreste em vão, repito,

aqui deste meu porto como um gesto de conforto a algum estranho herói

de contorno incerto

no porto de um povo de imaginação

A luz descobre Nassau.

NASSAU

Eu, Maurício de Nasau-Siegen, conde holandês de mui nobre casa dos Orange, que tantos reis e guerreiros tem dado ao meu país, embarco neste ano de 1637 a caminho de Pernambuco, em terras do Brasil, como Governador-Geral plenipotenciário a serviço e mando da Companhia das Índias Ocidentais, carregando títulos, armas, idéias e um compromisso tácito com o sangue derramado por desconhecidos.

[...]

Eu, Maurício simplesmente,

sem nenhuma testemunha e sem Bíblia na mão e sem porra nenhuma na cabeça

duvido firmemente,

em nome dos Santos Mártires, que algum dia

algum homem nalgum lugar

tenha conhecido morte que não fosse vã. Mas tu não morreste em vão.

Embora seja mais difícil dizer isso

quanto mais avisto o teu mundo no horizonte verde e vivo e a paisagem definida

sem qualquer ressentimento da tua ferida.

Não, não morreste em vão.

(27)

será em vão que adivinhei a terra nova, será em vão que piso a terra nova, que beijo a terra que beijavas, e essas palavras serão vãs de um holandês sem palavra.

(BUARQUE & GUERRA, 1985, p.61 e 62)

Continuando nossas análises a partir dos textos anteriores às modificações, vemos que ao longo da peça Calabar irá passar pela inversão de traidor para herói através de vários personagens que representam diferentes traições para ele. Mais à frente do enredo será a vez de Bárbara fazer essa transposição de Calabar, ao dizer em diálogo com Anna – diálogo esse que foi removido do texto nas versões posteriores à revisão feita pelos autores –:

Não é. Tudo isso aqui em volta, tudo continua a rodar sem eles. Tudo isso fez Calabar trair... Sebastião enlouquecer... Não valia a pena morrer por isso. Holandeses, portugueses, não valia a pena morrer por nada disso. Ah... Calabar... Queria que Calabar estivesse vivo, só para ter uma idéia do que se chama traição. Porque Calabar se enganou, mas nunca enganou ninguém. Sebastião, sim. Tudo o que Calabar disse e fez foi de peito aberto, às claras, sem mentiras. Sebastião; não. Se é necessário chamar Calabar de traidor, que chamem Sebastião do Souto de herói. (BUARQUE & GUERRA, 1975, p. 125)

Ou seja, o que queremos propor aqui é que, no caso de Calabar, essa inversão é proposta de forma gradativa e não imediata. No início da peça você entende que existe algo de errado na definição de Calabar como traidor, mas isso não fica completamente evidente, o processo de inversão em Calabar se dá ao longo da peça através dos pequenos diálogos, para que, paulatinamente, o público se dê conta de que Calabar realmente não é traidor, ele seria apenas alguém que seguiu suas convicções e acabou se tornando herói.

Todas essas questões ficam ainda mais evidentes ao fim da peça quando Bárbara se dirige ao público e afirma que não gosta de espectador que tenha memória boa demais – “A História é uma colcha de retalhos. Em lugar de epílogo, quero vos oferecer uma sentença: odeio ouvinte de memória fiel demais. Por isso, sede sãos, aplaudi, vivei, bebei, traí, oh celebérrimos iniciados nos mistérios da traição.” (BUARQUE & GUERRA, 1974, p. 93). Tal trecho (existente em todas as edições analisadas aqui com leves modificações gráficas ou com adição de algumas palavras, mas que não alteram o sentido) sublinha um pouco as questões levantadas até aqui, pois se lembramos de Calabar apenas como traidor, a transformação dele em herói talvez não seja

(28)

convincente. No entanto, se o leitor/espectador permitir essa flexibilidade do personagem, se o leitor/espectador não tiver memória boa demais, como propõe Bárbara, então ele verá Calabar para além da polarização. Entendemos que o ato de Calabar corresponde apenas a uma desobediência, mas que, entretanto, sempre nos será apresentada pelo ponto de vista válido para a história oficial que toma a voz do vencedor como a verdade a ser passada para as próximas gerações, uma vez que, como aponta Elzimar Fernanda Nunes, “a história oficial tende a ir apagando até mesmo a multiplicidade de versões históricas, elaborando uma narrativa de origem, mítica e fundadora que forma tradições culturais e legitima sistemas políticos” (NUNES, 2002, p. 94).

Com efeito, essa colocação de Nunes vai ao encontro de um conhecido argumento de Walter Benjamin em seu Teses sobre o conceito de história:

A natureza dessa tristeza torna-se mais clara se procurarmos saber qual é, afinal, o objeto de empatia do historiador de orientação historicista. A resposta é, inegavelmente, só uma: o vencedor. Mas em cada momento os detentores de poder são os herdeiros de todos aqueles que antes foram os vencedores. Daqui resulta que a empatia que tem por objeto o vencedor serve sempre aqueles que, em cada momento, detêm o poder. (BENJAMIN, 2019, p. 12)

Um dos pontos que Benjamin deixa transparecer nesta passagem é uma espécie de crítica ao labor historiográfico tradicional. Quer dizer, no seu entender, o “historiador de orientação historicista” tende, a partir de uma peculiar empatia, a escrever sempre a história através da perspectiva dos vencedores. Decerto, essa crítica é conhecida e possivelmente colocada por muitos outros autores e pensadores, afinal, não é preciso uma pesquisa extensa para se perceber que na maioria das vezes a história que já se tornou canônica é justamente a história vista pela perspectiva dos vencedores. Contudo, o que chama a atenção é a sua proposta para se fugir dessa perspectiva tradicional: Benjamin nos diz nomesmo parágrafo, um pouco mais adiante, que para evitarmos uma historiografia que se apresenta apenas pela perspectiva dos vencedores devemos “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 2019, p. 13) – ou seja, deve-se contar a história pela perspectiva contrária. Em suma, o que ele nos diz é basicamente que a história é normalmente escrita pelos vencedores ou por aqueles que detêm o poder político e, em prol da criação de novas possibilidades interpretativas, devemos escovar a história a contrapelo para escrevê-la pela ótica dos vencidos.

(29)

O ponto é que o apelo benjaminiano por uma historiografia a contrapelo é extremamente pertinente para os nossos propósitos. O que o torna relevante é que nos foi contada a história de Calabar através da visão portuguesa – que cristalizou a sua imagem como um traidor. Não obstante, como parece já estar claro até aqui, contar a história do mestiço a contrapelo significa justamente interpretá-lo como herói.

Com efeito, não podemos deixar de destacar que essa história a contrapelo já vem sendo escrita por historiadores empenhados em desconstruir a visão cristalizada. Por exemplo, Ronaldo Vainfas nos mostra uma perspectiva que vai justamente nessa direção. Para tanto, ele apresenta a visão do historiador Evaldo Cabral de Mello ao falar sobre Calabar personagem histórico:

...o historiador Evaldo Cabral de Mello não teve dúvidas em afirmar que a execução de Calabar, sobretudo do modo como ocorreu em grande parte foi o que hoje chamamos de queima de arquivo. “A verdade” diz Evaldo, “é que sua execução não se deveu apenas ao colaboracionismo, mas igualmente ao conhecimento que adquirira dos contatos comprometedores mantidos por pessoas graúdas da capitania com as autoridades neerlandesas.”. (VAINFAS, 2008, p. 90-91)

Dessa forma, podemos concluir que o que Chico Buarque e Ruy Guerra apresentam com seu elogio a traição é, mutatis mutandis, o preceito benjaminiano de escovar a história a contrapelo. Tal preceito é transformador, pois visa inverter a ordem de construção e interpretação da realidade – exatamente como Brecht apontava, ao escrever Estudos sobre o teatro, que deveria ser a forma épica de teatro, ou seja, fazer com que o espectador consiga transformar não só a si mesmo, mas também o seu ambiente social, pois como aponta o autor alemão nesta mesma obra, “...creio que o mundo de hoje pode ser reproduzido, mesmo no teatro, mas somente se for concebido como um mundo suscetível de modificação” (BRECHT, 2005, p. 21).

Diante disso, tendo a ideia de que é necessário trazermos uma nova forma de ver o mundo, podemos também tomar a proposta de análise dos textos parodísticos feito por Marcia Elizabeth Bortone, onde a autora diz:

O discurso da paródia visa à possibilidade de se construir uma leitura crítica de uma ideia ou fato tradicionalmente aceitos, daí ser esta linguagem em discurso da libertação; é uma leitura “às avessas” do texto anterior que lhe serviu de inspiração, buscando, assim, criar uma releitura nova, aberta e subversiva. (BORTONE, 2015, p. 81)

(30)

Isto é, o fato de Calabar ser uma obra escrita como uma espécie de mosaico, onde várias vozes são refletidas – questão essa que aprofundaremos mais a frente – e pelo fato dos autores usarem de textos históricos para recontar a história, possibilitam a interpretação da peça como uma paródia. Quer dizer, pode-se interpretar a peça Calabar como uma paródia na medida em que ela é uma releitura cômico-crítica de acontecimentos e textos fundadores da historiografia brasileira. Diante disso, podemos concordar com Elzimar Fernanda Nunes quando ela nos diz que

Calabar é uma obra assim constituída. Os textos históricos que lhe

serviram de base são, ao mesmo tempo, sua matéria-prima e suas vítimas. Eles foram utilizados para dizer o que não queriam dizer (pelo menos não intencionalmente), seus significados são invertidos pelo texto da peça teatral. Percebe-se, portanto, seu parentesco com a paródia e com outros gêneros da literatura carnavalizada. Sant’Anna já apontara o parentesco entre apropriação e paródia, concebendo a apropriação como uma paródia levada ao seu paroxismo.

Embora o termo “paródia” remonte à Antiguidade Clássica, seu conceito moderno foi elaborado por Iuri Tynianov e retomado por Mikhail Bakhtin. Os dois estudiosos russos viram na paródia muito mais do que um dos diversos gêneros do cômico. Para ambos, a paródia é um elemento imprescindível no sistema da evolução literária. Textos paródicos estariam visceralmente ligados a momentos de transformação ao enfraquecer (ou tornar patente as fraquezas) de formas literárias já demasiado gastas pelo uso, e por isso mesmo, tendendo à cristalização. Neste momento, as paródias cumpririam, ao mesmo tempo, o papel de demolidoras do passado e de prenunciadoras do futuro. (NUNES, 2002, p. 89)

Apesar da longa citação, ela se torna extremamente importante para entendermos que os autores da peça, ao escreverem um elogio à traição parodiando os textos históricos, realmente acabam fazendo uma crítica social que se encaixa na proposta de demolir um passado e prenunciar um futuro – como bem apontado por Elzimar Fernanda Nunes. A partir dessa crítica espera-se então que o espectador tome uma posição, reafirmando assim a ideia de que o espaço do teatro deve ser de fato transformador. Podemos dizer que Calabar tem o potencial de levar o público a uma catarse, de maneira que ele “encontre a sua própria verdade”, como afirmado por José Mauro Barbosa Ribeiro, ao dizer que:

Afinado com as concepções do teatro moderno, principalmente no que toca ao inacabamento da obra teatral, a peça Calabar conduzia o espectador a procurar sua própria verdade, a identificar nas vozes expressadas, a sua própria voz, obrigando-o a responder como protagonista de seu próprio destino. (RIBEIRO, 2015, p. 131)

(31)

Por fim, notamos então que a peça é construída de tal modo que, de fato, o personagem Calabar também se tornou protagonista do seu próprio destino – assim como Ribeiro propõe que o público deveria fazer – ao optar pelo lado dos holandeses. Sendo assim, o mestiço permitiu que o seu ato não fosse apenas interpretado como uma mera traição, mas sim como um emblemático ato de desobediência.

1.2 A desobediência em Calabar: Outro Olhar.

“A única realidade é aquela que se contém dentro de nós, e se os homens vivem tão irrealmente é porque aceitam como realidade as imagens exteriores e sufocam em si a voz do mundo inteiro.”

(Hermann Hesse)

Após apresentarmos como se desenrolam as leituras possíveis de Calabar através da dicotomia traidor/herói, propomos aqui uma nova visão sobre a atitude de Calabar ao apontarmos a personagem como alguém que desobedece. Aproximaremos o que até então foi lido por traição nos textos críticos – e até mesmo no próprio texto literário – ao conceito de desobediência.

Iniciaremos a análise nos debruçando na psicologia através de um pensamento apresentado, sobretudo, por Aldo Carotenuto para podermos definir o que seria traição; bem como o viés filosófico sobre a desobediênciatrazido por Frédéric Gros e por Henry David Thoreau.

Para começar nossa discussão, as seguintes palavras de Aldo Carotenuto, em seu texto Amar e Trair – quase uma apologia da traição, se mostram extremamente oportunas:

A traição se nos mostra e se impõe à nossa atenção como antitética e dolorosamente dialética. A linguagem comum dá testemunho preciso dessa antítese dialética dos significados inerentes à área semântica da traição. Dizemos, por exemplo, que o tradutor traiu o pensamento do autor ou que o entrevistador traiu o pensamento do entrevistado, em suma que o deturpou, o falseou. Dizemos também, legitimamente, que um gesto traiu o pensamento oculto de alguém, que o revelou e nos disse a verdade. Portanto, o falso como traição, e o autêntico como traição. Foi justamente essa desconcertante ambiguidade que, de alguma forma, acabou por restituir a esse verbo um pouco de sua neutralidade original. É essa ambiguidade que nos permite afirmar que se pode “trair” sem trair, faltar a um pacto, mas em nome de uma fidelidade mais alta ou mais profunda. (CAROTENUTO, 1997, p. 26-27)

(32)

Deste modo, como observamos anteriormente, ao analisarmos a dicotomia herói/traidor assim como veremos ao longo dessa pesquisa, a maioria de nossos personagens – sobretudo Calabar – está traindo sem trair, pois eles faltam com “um pacto, mas em nome de uma fidelidade mais alta ou mais profunda.” (CAROTENUTO, 1997, p. 27); e é exatamente por isso que consideramos possível uma aproximação da traição com a desobediência – pois ao faltar com um pacto você acaba por desobedecer a uma ordem preconcebida.

Nessa proposta de aproximação entre a traição de Calabar e a desobediência, o filósofo francês Frédéric Gros se apresenta como uma peça importante – uma vez que o seu livro Desobedecer é, por assim dizer, uma espécie de elogio à desobediência. Na verdade, pode-se dizer que esse elogio não convencional não é uma novidade, afinal, uma das referências de Gros é o autor estadunidense do século XIX chamado Henry David Thoreau. Sendo assim, o ato de desobedecer, como nos mostra o pensador francês enquanto analisa a proposta de Thoreau em sua obra A Desobediência Civil, é uma maneira de nos mantermos fiéis a nossa verdade, isto é, uma forma de nos mantermos fiéis a nós mesmos:

A desobediência é um dever de integridade espiritual. Quando o Estado toma decisões iníquas, quando empreende políticas injustas, o indivíduo não pode se limitar a resmungar antes de ir dormir. O indivíduo não está simplesmente “autorizado” a desobedecer, como se tratasse de um direito do qual ele poderia fazer ou não em nome de sua consciência. Não, ele tem o dever de desobedecer, para permanecer fiel a si mesmo, para não instaurar entre ele e si mesmo um lamentável divórcio. (GROS, 2018, p. 153)

Ademais, a aproximação entre traição e desobediência se dá também através da fala do filósofo, quando ele aponta que “A verdadeira traição é quando mentimos a nós mesmos. Obedecer é se fazer ‘o traidor de si mesmo’.” (GROS, 2018, p. 215). Por isso é possível dizer então que o elogio da traição proposto por Chico Buarque e Ruy Guerra em seu subtítulo se aproxima aqui, através dessas leituras, com esse caminho de se manter fiel a si mesmo – pois por mais que ocorra uma ruptura de pactos ou uma ruptura da ordem, há previamente uma fidelidade com o que se acredita, e é essa que está acima de qualquer ato de traição.

Para além disso podemos notar também que, se pensarmos no contexto histórico no qual a peça foi produzida, a crítica que Chico Buarque e Ruy Guerra querem provocar com seu texto parte de um desobedecer o governo civil militar, o que acaba

(33)

fazendo, de certa forma, com que a peça seja censurada (como veremos de maneira esmiuçada mais a frente no capitulo em que analisaremos as questões históricas que envolvem o contexto de produção da peça).

Como já dito, a peça Calabar: o elogio da traição nos aponta a traição nos vários âmbitos que tal ação permite interpretações, ou seja, denuncia a deslealdade em todas as suas camadas, seja ela a coroa/regime que governa o país cenário do enredo, seja as suas origens, entre amigos e casais ou até mesmo ser desleal a si mesmo e aos seus princípios e ideais – o que fica evidenciado através de alguns discursos e ações dos personagens Sebastião Souto e Mathias de Albuquerque e até mesmo no amor existente entre Bárbara e Anna, questões que discutiremos com mais profundidade ao longo do próximo capítulo. É a partir dessa temática central que se pode então questionar o estatuto da traição, isto é, sobre o que é ser traidor ou ser traído.

O que podemos perceber no que diz respeito a esse assunto é que o próprio texto de Calabar evidencia a maneira pela qual se deve analisar a traição: através do diálogo de Bárbara com o Frei ao fim da peça – “Para se ver o traidor é preciso mostrar a coisa traída” (BUARQUE & GUERRA, 1974, p. 87). Ou seja, para esse tipo de análise é necessário que se olhe para a coisa traída, pois só há traidor, só há traição, se houver a coisa traída. Tendo esse ponto em mente podemos traçar a ponte com os argumentos de Aldo Carotenuto

Não podemos, porém, falar da experiência real e vivida da traição, se não conseguirmos identificar e personalizar os dois papéis, os dois protagonistas do trair. Devemos então perguntar-nos quem é o traidor e quem o traído. Embora pareça duro e injusto, a vida do traidor e a do traído se revelam sempre a mesma, como se os dois fossem interpermutáveis: o traído merece ser traído, e o traidor é obrigado a trair. (CAROTENUTO, 1997, p. 31)

Tal tipo de conceito nos mostra que o significado de traição é algo subjetivo, algo que depende de um ponto de vista para ser comprovado. Assim, como aponta Ruy Guerra, a traição pode ser apresentada em diversas camadas e ser lida de diferentes maneiras:

(...) E a traição é um negócio que a gente pode bater em muitos níveis. Pode bater num nível inteiramente circunstancial. Pode bater num nível ideológico. E é evidente que, para nós, não interessa discutir a traição de uma forma absoluta, porque a traição é um tema filosófico. (BUARQUE & GUERRA, 1973, p. 24)

(34)

Por mais que exista essa subjetividade dentro do conceito de traição, é necessário olharmos para ele com muito cuidado, uma vez que é certo que a traição se apresenta como o núcleo da peça. No entanto, o que nos propomos aqui é exatamente transformar a leitura de traição em desobediência, pois é exatamente através da existência de uma subjetividade no termo traição que acaba se possibilitando também essa dicotomia herói/traidor no personagem de Calabar. Sendo assim, ao optarmos por defender que Calabar desobedece, operamos com outra subjetividade e entramos na questão do ser leal a si, entendendo que o que nosso personagem faz é um ato mais de desobediência do que de traição. Ou melhor, o “elogio” da traição constatado no título da peça pode ser compreendido na medida em que Calabar desobedece uma ordem política que está vigente e não vai ao encontro dos seus ideais – em última instância, a traição colocada “num campo semântico positivo” (NUNES, 2002, p. 108) é possível na medida em que ela é uma desobediência.

Dito isso, é interessante perceber que Calabar desobedece aos outros, todavia, jamais desobedece a si mesmo – ao contrário do que acontece com os outros personagens – como aponta Gabriel da Cunha Pereira em seu livro Imaginando o

Brasil: o teatro de Chico Buarque e outras páginas:

Dentre as personagens da peça, Calabar foi o único que não se traiu, ao menos não inteiramente, uma vez que lutava por um ideal seu e pela terra à qual julgava de fato pertencer. Na canção “Cala a boca, Bárbara”, o corpo de Bárbara serve de metáfora para a relação amorosa de Calabar com as terras brasileiras. Bárbara idealiza a relação entre Calabar e o Brasil, apontando-a como um ato de amor e cumplicidade. (PEREIRA, 2015, p. 100)

É importante ressaltarmos a maneira representada na peça, e como ela se relaciona com a questão da traição, pois, por fim, a obra acaba nos deixando uma sensação de vazio. Vemos isso em Calabar ao notarmos, no desfecho da peça, o fato de não haver mais lado para se aliar, uma vez que portugueses e holandeses se entendem sem olhar para todo sangue já derramado. Isso justifica a fala de Bárbara (nas versões anteriores à revisão dos autores) ao apontar “Não valia a pena morrer por isso. Holandeses, portugueses, não valia a pena ter morrido por nada disso.” (BUARQUE & GUERRA, 1975, p. 125). Após a revisão, esse trecho é removido e o que mais se aproxima de expressar algo semelhante a essa ideia é quando Bárbara diz para Anna:

(35)

Conhece mais alguém que tenha conhecido Calabar? Não. É claro que não. Pois se Calabar nunca existiu... Pode perguntar por aí... Alguém vai dizer que ouviu falar de um alguém que um dia viu uma alucinada gritando um nome parecido. Então fica provado que Calabar nunca existiu, para descanso de todos. (...) Sebastião do Souto... é a mesma coisa. Está ali o defunto, ainda quente, e não se fala mais no assunto. (BUARQUE & GUERRA, 2017, p. 100-101)

Se continuarmos levando em consideração o fato de não haver mais lados para se aliar nessa guerra, notamos também que esse pensamento justifica a fala de Souto quando ele diz:

(...) Toda guerra só interessa a quem a faz. (...) Eu me orgulho de ter traído Calabar. Porque eu entendo melhor Calabar que ninguém. E talvez ele fosse também o único que me pudesse entender. E se estivesse vivo diria o mesmo que eu agora. Gritaria como eu: a paz é falsa. A guerra continua e vai continuar e as pessoas vão continuar se matando, se torturando, se endoidando. Se Calabar estivesse vivo, se eu não o tivesse assassinado com as minhas falas e com os meus sorrisos e com a minha inveja e com tudo do que me orgulho, Calabar ia encher a boca com as mesmas palavras, com as minhas palavras. (BUARQUE E GUERRA, 1975, p. 114)

Ou seja, a partir de tal declaração Souto acaba por evidenciar também a desobediência, pois Souto mostra que para ele também não havia outra forma de lidar com a guerra senão da forma pela qual ele lidou, ou seja, a única maneira seria optar por uma das formas de resistência existentes, como aponta Gabriel da Cunha Pereira ao analisar essa mesma fala de Souto: “Vemos, portanto, que não há escapatória para ele. A traição, a troca de lado circunstancial e a ambivalência são as únicas leis e formas de resistência.” (PEREIRA, 2015, p. 103).

Diante disso, e tomando as ideias do filósofo Frédéric Gros para entender um pouco mais a desobediência, notamos que o autor ao escrever seu livro Desobedecer dedica um capítulo inteiro a Thoreau. Em determinado momento ele coloca a visão de desobediência de Kant e de Thoreau frente a frente, ao dizer “Onde Kant afirma que a verdadeira desobediência é a crítica (teórica), Thoreau responde que a verdadeira crítica é a desobediência (prática.)” (GROS, 2018, p. 152).

A luz da proposta thoreauniana sublinhada por Gros, observamos que, na obra de Chico Buarque e Ruy Guerra, Calabar desobedece na prática quando se alia aos holandeses, pois muda de lado abandonando os portugueses. Ao fazer isso ele então evidencia a sua crítica aos últimos, mostrando assim que, a seu ver, eles não eram mais dignos de sua lealdade, bem como não eram mais aqueles que abririam os caminhos para o Brasil que o mestiço idealizara.

Referências

Documentos relacionados

Dessa forma, neste trabalho, a variável usabilidade é definida como a percepção do usuário do grau de melhoria na comunicação, colaboração e troca de informações

Este dado diz respeito ao número total de contentores do sistema de resíduos urbanos indiferenciados, não sendo considerados os contentores de recolha

(grifos nossos). b) Em observância ao princípio da impessoalidade, a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, vez que é

nesta nossa modesta obra O sonho e os sonhos analisa- mos o sono e sua importância para o corpo e sobretudo para a alma que, nas horas de repouso da matéria, liberta-se parcialmente

O objetivo do curso foi oportunizar aos participantes, um contato direto com as plantas nativas do Cerrado para identificação de espécies com potencial

3.3 o Município tem caminhão da coleta seletiva, sendo orientado a providenciar a contratação direta da associação para o recolhimento dos resíduos recicláveis,

As etapas do estudo foram (1) coleta, preparação do candidato a MR a partir da secagem, moagem e homogeneização, prosseguindo-se com ensaios de umidade e granulometria

mellifera adult bees was not influenced by a diet containing pollen grains from soybean plants grown from seeds treated with the insecticides fipronil, thiamethoxam,