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Estabelecer pontes ou delimitar fronteiras? : desvendando o potencial de uma humanidade "outra" a partir do pensamento dos indígenas da Serra Nevada de Santa Marta, Colômbia

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Academic year: 2021

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M

AGDA PATRÍCIA LORA LEÓN

E

STABELECER PONTES OU DELIMITAR FRONTEIRAS? DESVENDANDO O POTENCIAL DE UMA HUMANIDADE “OUTRA”

A PARTIR DO PENSAMENTO DOS INDÍGENAS DA SERRA NEVADA DE SANTA MARTA, COLÔMBIA

CAMPINAS 2014

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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

M

AGDA PATRÍCIA LORA LEÓN

E

STABELECER PONTES OU DELIMITAR FRONTEIRAS? DESVENDANDO O POTENCIAL DE UMA HUMANIDADE “OUTRA”

A PARTIR DO PENSAMENTO DOS INDÍGENAS DA SERRA NEVADA DE SANTA MARTA, COLÔMBIA

Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, para obtenção do Título de Doutora em Ciências Sociais.

Orientadora: Profa. Dra. Amnéris Angela Maroni

CAMPINAS 2014

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Lora León, Magda Patrícia,

L882e LorEstabelecer pontes ou delimitar fronteiras? desvendando o potencial de uma humanidade "outra" a partir do pensamento dos indígenas da Serra Nevada de Santa Marta, Colômbia / Magda Patrícia Lora León. – Campinas, SP : [s.n.], 2014.

LorOrientador: Amnéris Angela Maroni.

LorTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Lor1. Cosmologia indígena. 2. Indíos - comunicação. 3. Filosofia política. 4. Humanidade. I. Maroni, Amnéris Angela,1951-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Building bridges or delimiting boundaries? revealing the potencial of

"another" humanity of indigenous people´s thought of the Sierra Nevada de Santa Marta, Colombia. Palavras-chave em inglês: Indigenous cosmology Indigenous - communication Political philosophy Humanity

Área de concentração: Ciências Sociais Titulação: Doutora em Ciências Sociais Banca examinadora:

Amnéris Angela Maroni [Orientador] Susana Oliveira Dias

Edemilson Antunes de Campos Dominique Tilkin Gallois

Juan Carlos Peña Marquez

Data de defesa: 25-11-2014

Programa de Pós-Graduação: Ciências Sociais

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R

ESUMO

A

presente tese assume o desafio de desvendar o potencial enunciativo assim como do pensamento enunciado nas formas de comunicação produzidas nas três últimas décadas pelos povos indígenas Kogui, Wiwa, Arhuaco e Kankuamo da Serra Nevada de Santa Marta, Colômbia. Para isso, a pesquisa realiza uma observação sistemática (etnografia) dos artefatos comunicativos indígenas e das filosofias, conhecimentos e sensibilidades mobilizadas pelos seus enunciados que nos espaços de relação com a sociedade majoritária vêm reconfigurando, pluralizando e tensionando cosmopoliticamente as noções modernas de humano, humanidade, natureza, território, conhecimento e direitos humanos. A pesquisa identifica neste processo que chamo de comunicação “reversa” o modo como essas formas de expressão veiculam categorias, universos conceituais e de significação, configurando dessa maneira um lugar de enunciação político, epistêmico e ético. A partir dos conceitos costurados nas escritas produzidas nesse lugar de enunciação, a tese visa explorar o potencial do pensamento serrano enquanto alternativa ética para se (re)pensar a compreensão ocidental e antropocêntrica sobre o sentido do humano e de humanidade.

P

ALAVRAS CHAVE: cosmologia indígena, índios - comunicação, filosofia política, humanidade.

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A

BSTRAC

T

his thesis takes on the challenge of unraveling the enunciative potential and enunciated thought in the forms of communication produced in the last three decades by the Kogui, Wiwa, Arhuaco, Kankuamo indigenous peoples of the Sierra Nevada de Santa Marta in Colombia. The research provides a systematic observation (ethnography) of the indigenous communicative artifacts and the philosophies, knowledge and sensibilities mobilized by their statements. I argue that such communicative artifacts in the spaces of relationship with the majority society has cosmopolitically reconfigured, pluralized and tensioned modern notions such as human, humanity, nature, territory , knowledge and human rights. In this process I call "reverse communication", the research identifies the manner in which the indigenous forms of expression convey categories and conceptual universes of meaning, thus setting up a place of political, epistemic and ethical enunciation. Based on the concepts sewn in writings produced in this place of enunciation, the thesis aims to explore the potential of indigenous thought as an ethical alternative to (re)think western and anthropocentric understanding of the meaning of humankind and humanity.

K

EYWORDS: Indigenous cosmology, indigenous - communication, political

(10)
(11)

S

UMÁRIO

AGRADECIMENTOS ... xv LISTA DE IMAGENS ... xix NOTA EXPLICATIVA ETNÔNIMOS ... xxi

INTRODUÇÃO

CAMINHANDO PELOS CAMINHOS DA COMUNICAÇÃO “REVERSA” SERRANA. ... 1

ESCRITOS NO TERRITÓRIO: OS CAMINHOS DA

EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL

... 10

CAMINHANDO PELOS CAMINHOS DA COMUNICAÇÃO “REVERSA” SERRANA ... 19 OS ARTEFATOS COMUNICATIVOS SERRANOS ... 25

PARTE I

A

PERGUNTA PELA HUMANIDADE

CAPÍTULO I

O LUGAR DE ENUNCIAÇÃO DO HUMANISMO OCIDENTAL MODERNO ... 31

A DESCOBERTA DO “OUTRO”: O HUMANISMO QUE FALA PELA “NOVA” HUMANIDADE

... 36

O “NOVO” HUMANO DO HUMANISMO MODERNO ... 45

CAPÍTULO II

A HUMANIDADE DOS HUMANOS POR TRÁS DO HUMANISMO ... 55

O LUGAR DOS CONHECIMENTOS “OUTROS” ... ... 60 LUGAR DE ENUNCIAÇÃO “OUTRO”: VISIBILIZANDO HUMANIDADES ... 67

PARTE II

H

UMANIDADE SERRANA:ENTRE PONTES E FRONTEIRAS

CAPÍTULO III

(12)

ESPIRITUALIDADE NA FRONTEIRA ... 86

DAS FRONTEIRAS TERRITORIAIS ÀS PONTES DO PENSAMENTO: ENUNCIANDO A HUMANIDADE PRÓPRIA ... 96

CAPÍTULO IV TECER O MUNDO COM O “FIO DO PENSAMENTO” ... 113

CONSTRUIR O MUNDO COM O PENSAMENTO ... 122

DA COSMOVISÃO À COSMOVIVÊNCIA: A IMPORTÂNCIA DE ORDENAR O PENSAMENTO ... 135

CAPÍTULO V ORDENAR AINTEGRALIDADE DO SER DA SERRA NEVADA ... 151

FRONTEIRAS QUE SÃO PONTES ... ... 162

YUKULWA: DUAS ORDENS TENSIONADAS NO SER DO TERRITÓRIO DA SERRA NEVADA ... 174

CAPÍTULO VI A HUMANIDADE DOS HUMANOS POR TRÁS DOS DIREITOS... 187

OS SUJEITOS POR TRÁS DOS DIREITOS ... 193

DA HUMANIDADE SERRANA PARA A HUMANIDADE DO MUNDO ... 202

PARTE III

D

ESVENDANDO “MUNDOS POSSIVEIS” CAPÍTULO VII DESVENDANDO O POTENCIAL DE UMA HUMANIDADE “OUTRA” ..... 217

A HUMANIDADE DO “OUTRO” COMO EXPRESSÃO DE “MUNDOS POSSÍVEIS” ... 226

CAPÍTULO VIII A ÉTICA DO CUIDADO DE SÍ DO TODO ATRAVÉS DE SÍ PRÓPRIO... 233

HEURÍSTICA DO MEDO E A ÉTICA DO FUTURO: HANS JONAS ... 246

A HUMANIDADE “OUTRA” E O COMPROMISSO ETERNO DE CUIDADO COM A VIDA ... 255

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 261

FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 265

(13)

A

s experiências dos que nos precederam, dos nossos “poetas mortos”, nos ajudam a caminhar pela vida, disse Walt Whitman. Comecei a caminhar com o John, aprendi das suas aulas, das suas conversas, de cada momento de troca, também dos seus silêncios, do seu sorriso, do seu jeito particular de cuidar e de se preocupar pela gente. Só tenho gratidão pela sua orientação, pela sua confiança, pela compreensão, pelo carinho e pelo respeito com o qual me acompanhou nesta jornada pela Unicamp.

John, querido mestre, orientador e parceiro dos saberes indígenas: Muito obrigada!

A

John Manuel Monteiro In Memoriam

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(15)

A

GRADECIMENTOS

Mais do que um doutorado, minha experiência na Unicamp foi um caminho

de transformações, de encontros e travessias que abriram minha compreensão sobre a polifonia e a pluralidade do mundo. Nas fronteiras do acadêmico e para além delas foi o encontro com tantas e tão diversas humanidades a que me permitiu construir esse caminho intelectual que hoje se transforma não só numa tese de doutorado, mas numa bela e inesquecível experiência de vida. Gratidão hoje e sempre para cada um desses mundos que a fizeram possível!

Ao querido professor John Monteiro (in memoriam) pela confiança na minha proposta. Sua orientação serena e respeitosa indicou caminhos definitivos na minha compreensão e posicionamento político perante o potencial filosófico, epistêmico e politico do pensamento indígena.

À Amnéris Maroni, minha orientadora, por assumir esta caminhada na sua etapa mais crítica. Sua sensibilidade e escuta dos universos de significação indígenas trouxeram inestimáveis contribuições para a versão final do texto. Gratidão, ainda mais, pela bela e generosa amizade oferecida ao longo desses anos, pelo acolhimento e escuta amorosa em momentos determinantes desta travessia intelectual e pessoal pelo Brasil.

A minha família pelo cuidado e o amor com que fizeram mais leve a etapa crucial da escrita. A meus país, Stellita e Atilano: não tenho palavras para agradecer o suporte material e espiritual que me ofereceram nos momentos mais críticos. À Gina, minha irmã e melhor amiga, gratidão sempre no meu coração por

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me oferecer um colo e um lar, e especialmente por dividir comigo esta maravilhosa conexão com o mundo indígena serrano. À Mônica Ruiz Casagrande, minha prima e “embaixadora no Brasil”, e a Celso e Cassiano Casagrande: muito obrigada por ser meu suporte familiar e emocional nesta travessia longe de casa.

À Cristiane Santos Souza e Luanda Soares Sito: amigas, colegas de casa e parceiras intelectuais. Grata pelos longuíssimos debates e as trocas intelectuais, pelos aportes que enriqueceram vivamente aspectos fundamentais da pesquisa e alargaram minha compreensão sobre o mundo e sobre a realidade brasileira. Obrigada pelos afetos, pela escuta, pelos abraços, pela convivência e a partilha amorosa.

A Marcos Leite Borges, Mauro Brigeiro e Igor Johansen, três seres fundamentais na minha travessia pelo Brasil: Marcos e Igor, meus eternos vizinhos e colegas de tertúlias; Mauro, meu eterno brasileiro com alma de bogotano. Vocês povoaram esses anos todos com seus sorrisos, abraços, com o carinho e a beleza que faz de cada um de vocês pessoas indispensáveis na minha vida.

À Kenia Herrera pelo nosso encontro: tua amizade é um dos mais belos presentes nessa passagem por Barão Geraldo. Também a Ernenek Mejia, José Quidel, Jimena Pinchao, Rosario Aparicio, Berenice Morales, Linda Reyes, Inés Corbalán e Victoria Elena por habitar e colorir minha experiência brasileira com a diversidade da América Latina.

Aos meus amigos brasileiros: Viviane Rosa, Samira, Neila Soares, Anaxsuell Fernando, Juliana Carneiro, Silvia Mazzolli, Bárbara Estanislau, Josemeire Alves, Vine Aleixo, Mariana Petroni, Bruna Bumachar, Caroline Ayala, Ana Laura, Ricardo Freire, Felipe Honório de Araújo, Maria Rita Gángara, Silvânia Alves e Tiago Felipe. Sou grata por que através de cada um de vocês conheci a beleza de um país que hoje sinto como meu.

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À minha galera colombiana no Brasil: Isabel Cristina, Natalia, Mayxue, Oscar, Edwar, Juan Carlos, Jimmy, Marcela, Maria Elvira, Rafael, Rafa Tovar, Tita, Jhon Dairo, Johana e Adriana Niño. Cada um de vocês soube ser solidariedade, cuidado, alegria, música, silêncio, colo, companhia nos mais diversos momentos. Grata por vocês terem sido durante esses anos todos parte da minha Colômbia no Brasil.

Gostaria de agradecer também pelos encontros acadêmicos que tanto aportaram na minha caminhada intelectual pela Unicamp. À Susana Dias de Oliveira por abrir um espaço para as comunicações-divulgações indígenas no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo: nosso breve encontro revelou-me enorrevelou-mes potencialidades para repensar os elos entre comunicação, arte, cosmopolíticas indígenas e diálogo intercultural, caminhos instigantes que espero consigam tomar rumo em futuras iniciativas acadêmicas e projetos de pesquisa. A Mauro Simões por me oferecer a oportunidade de participar como docente na Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp: o encontro com os alunos e a possibilidade de explorar em sala de aula as potencialidades da ética, dos direitos humanos e da filosofia política ecoaram na minha reflexão sobre o pensamento indígena e relevaram-me a urgência de repensar eticamente a relação do homem com o mundo.

Aos meus leitores: Luanda Soares, Ernenek Mejia, Felipe Honório de Araújo, Juliana Carneiro e Mariana Petroni, grata pela paciência e pelos aportes feitos em diferentes etapas da escrita. Agradeço especialmente à Cristiane Santos Souza pela leitura amorosa e cuidadosa da versão final da tese.

Finalmente, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela bolsa que, através do convênio PEC-PG, possibilitou a realização deste trabalho.

(18)
(19)

L

ISTA DE IMAGENS

I

magem 01

MAPA SERRA NEVADA DE SANTA MARTA ... 2

I

magem 02

SERRA NEVADA DE SANTA MARTA ... 3

I

magem 03

OBJETOS DA CULTURA ... 8

I

magem 04

PRODUÇÃO DOCUMENTÁRIO ESCRITOS NO TERRITÓRIO ... 15

I

magem 05

DESDE EL CORAZÓN DEL MUNDO (DOCUMENTÁRIO) ……… 79

I

magem 06

DESDE EL CORAZÓN DEL MUNDO – PROTAGONISTAS ………. 83

I

magem 07

TEYUNA ... .. 99

I

magem 08

ARTEFATOS COMUNICATIVOS ... 110

I

magem 09

VISÃO ANCESTRAL DO TERRITÓRIO 1 ... 119

I

magem 10

VISÃO ANCESTRAL DO TERRITÓRIO 2 ... 125

Imagem 11

VISÃO ANCESTRAL DO TERRITÓRIO 3 ... 132

Imagem 12

VISÃO ANCESTRAL DO TERRITÓRIO 4 ... 144

I

magem 13

REPRESENTAÇÃO SERRANA DA LINHA NEGRA ... 155

I

magem 14

REPRESENTAÇÃO CARTOGRÁFICA DA LINHA NEGRA ... 156

I

magem 15

MOBILIZAÇÃO INDÍGENA EM YUKULWA ... 176

I

magem 16

BESOTES ... 178

I

magem 17

(20)
(21)

N

OTA EXPLICATIVA SOBRE ETNÔNIMOS

O

s designativos dos grupos indígenas da Serra Nevada de Santa Marta correspondem a um regime de classificação e caracterização construído pelos diversos viajantes, expedicionários, missionários, colonizadores, arqueólogos, etnógrafos e antropólogos que forneceram as bases do conhecimento histórico, sociológico e antropológico sobre estes grupos. Embora esses designativos e suas grafias não sejam objeto de discussão na presente pesquisa, considero necessário orientar ao leitor sobre a multiplicidade de grafias que esses designativos têm adquirido ao longo do processo colonizador e do contato interétnico, muitas delas decorrentes de confusões históricas ou como resultado de processos de estigmatização de determinados grupos.

No caso do etnônimo Arhuaco, as fontes coloniais atribuíram genericamente esse designativo para todos os grupos indígenas que habitavam o território da Serra Nevada e que corresponde na realidade a um dos quatro grupos atuais, também denominados como Ika ou Ijka (gente em língua ikun)1. Os Kogui figuram na literatura etnográfica como Kogi - tradução fonética feita por Reichel-Dolmatoff (1985a) - assim como com os designativos Kággaba (gente em língua

koggian) e Cogi.

1

Vintukua, termo utilizado por Torres Márquez (1978), corresponde, no entanto, a uma linhagem de prestígio para o povo Arhuaco.

(22)

Contudo, os Wiwas teriam sido as principais vítimas dos processos de estigmatização: têm sido denominados erradamente como Arsario (barbarismo introduzido pelos missionários capuchinos) ou como Malayo, denominação preconceituosa introduzida também pelos missionários que significa “maus por natureza” (FAJARDO, GAMBOA, 1998, p. 92). Recentemente fazem uso recorrente dos nomes tribais Sanha e Sanka, mas principalmente do etnônimo Wiwa, utilizado na relação com o povo Kogui. Os Kankuamo também recebem designações particulares, mas desta vez na relação com os outros povos serranos: Atanqueros (originários de Atanquez, capital do território Kankuamo), Kakatúkua (nome designado pelos Kogui) ou Kankui (nome designado pelos Arhuaco).

Para efeitos da escrita da presente tese assumo as formas de designação enunciadas pelos povos serranos através de artefatos comunicativos próprios (Kogui, Wiwa, Arhuaco e Kankuamo) como a grafia predominante ao longo do texto e que corresponde fundamentalmente às formas como eles enunciam-se nas relações interétnicas e com a sociedade majoritária, preservando nas citações longas os usos diferenciados que os sujeitos indígenas fazem em decorrência do lugar de enunciação contornado durante as últimas décadas.

(23)

I

NTRODUÇÃO

C

AMINHANDO PELOS CAMINHOS DA COMUNICAÇÃO

“REVERSA” SERRANA

A

Serra Nevada de Santa Marta, Reserva Mundial da Biosfera desde 1979, é o maciço montanhoso mais alto do mundo ao lado do mar. Localizada ao norte da Colômbia nos departamentos1 de Magdalena, Cesar e La Guajira e isolada da cordilheira de Los Andes pelos vales dos rios Cesar e Rancherias, a Serra, com uma superfície aproximada de 17.000 km2 e uma altura de 5.755 metros, tem sido considerada como paraíso natural desde o século XIX por exploradores e viajantes colombianos e europeus2 assombrados com as suas extraordinárias condições geográficas, a diversidade de climas e de espécies de fauna e flora tropicais. Para seus habitantes originários, os povos indígenas Kogui, Wiwa, Arhuaco e Kankuamo3, a Serra é seu território ancestral e o cenário do pensamento cosmológico que os configura enquanto guardiões da Lei de Se e

irmãos mais velhos da humanidade: para eles a Serra Nevada de Santa Marta é o Coração do Mundo.

1

Divisão político-administrativa do território colombiano

2

Segundo Uribe (1988) são vários os viajantes e exploradores científicos nacionais e estrangeiros que visitaram a Serra Nevada de Santa Marta durante o século XIX, entre eles, o militar colombiano Joaquín Acosta em 1851; o francês Elíseo Reclús, entre 1855 e 1857; o presbítero colombiano Rafael Celedón em 1876; o naturalista inglês F. A. Simons em 1878; o poeta e romancista colombiano Jorge Isaacs em 1882; o geógrafo e geólogo alemão Wilhem Sievers em 1886; o inglês J.T. Bealby em 1887; e o conde francês José de Brettes entre 1891 e 1895.

3

Segundo o censo DANE de 2009 habitam na Serra Nevada de Santa Marta 22.124 Arhuaco, 13.627 Wiwa, 9.111 Kogui e 12.714 Kankuamo.

(24)

IMAGEM 1

(25)

IMAGEM 2

SERRA NEVADA DE SANTA MARTA

(26)

Desde a perspectiva da historiografia e da literatura etnográfica, os povos indígenas da Serra Nevada têm sido considerados de diversas formas. Na Colônia foram genericamente denominados como Arhuaco, no intuito de identificá-los como indígenas “mansos” em oposição aos povos “selvagens” que lutaram contra a invasão dos colonizadores (URIBE, 1988, 1992). No final do século XIX e no começo do XX, os pioneiros da literatura etnográfica na região - Preuss, Chaves e Reichel-Dolmatoff- contribuíram no processo de diferenciação conceitual de cada um destes grupos, quebrando assim o imaginário colonial da existência de um único grupo, sugerindo, por sua vez, a continuidade histórico-cultural entre os Tayrona, uma das mais importantes culturas indígenas do país no momento da chegada dos colonizadores espanhóis, e os atuais habitantes do maciço serrano (URIBE, 1997). Porém, a partir dos estudos etnográficos de Reichel-Dolmatoff que essa conexão foi particularmente estabelecida entre os antigos Tayrona e os Kogui, cultura que segundo o autor seria a menos atingida pelos processos de aculturação4(1977, p. 127-129).

Essa continuidade histórico-cultural adquire dimensões particulares na experiência dos atuais grupos que habitam a Serra Nevada de Santa Marta. Como afirma Arenas (2009) e explicitam os indígenas através de artefatos comunicativos próprios, os povos serranos consideram-se a si mesmos como os irmãos mais

velhos da humanidade, como herdeiros de um território delimitado ancestralmente

4 Teoria criticada por Uribe (1997) ao considerar que a análise de Reichel-Dolmatoff sobre o contato interétnico reduz a agência dos grupos, circunscrevendo sua sobrevivência cultural à possibilidade de isolamento dos grupos de qualquer influência de origem exógena. “Sistema ortodoxo de interpretação” que para Uribe privilegiou também excessivamente o componente religioso em detrimento da cultura material, tecnológica ou econômica, criando, portanto, um imaginário sobre a representação dos povos serranos na qual os Kogui, os que conservaram “mais ou menos” intacto esse sistema religioso, seriam justamente os menos afetados pela perda da cultura.

(27)

pelos princípios da Lei de Origem5 e por um universo de relações cosmológicas comuns que os configuram como guardiões da vida e desses códigos originários6.

Segundo os quatro grupos, a Serra é o centro da terra ou o coração do mundo desde o qual tudo foi criado, mas ao mesmo tempo, o maciço é o próprio corpo da Madre, não só como representação, mas como uma relação metonímica que atravessa todo o pensamento indígena serrano. A Serra é a Madre e o cosmos, como também o são as diferentes casas cerimoniais (conhecidas como kankuruas, nujúe, cansamarías e ungúmas) e como o são as mochilas de algodão ou lã de ovelha que tecem as mulheres (Ibid., p.58).

Esses princípios comuns exprimem-se tanto no costume do cabelo comprido, do vestido branco tradicional e do uso de objetos distintivos fundamentais para a cultura como o poporo7, o tear8 e as mochilas9; quanto no âmbito das relações sociais, nas formas organizativas comuns (principalmente na instituição do mamo, máxima autoridade espiritual e da organização social para os quatro povos e mediador entre os humanos e as outras formas de existência) e na distribuição de assentamentos e na vivenda tradicional. É comum aos quatro povos fundar aldeamentos que cumprem a função de centros cerimoniais, políticos e sociais, assim como a mobilidade permanente dos grupos entre esses centros e

5

Os Arhuaco na bacia dos rios Aracataca, Fundación e Ariguaní (vertente ocidental da Serra Nevada); os Kogui nas vertentes norte e sul, na bacia do Rio Guatapurí; os Wiwa nas bacias dos rios Ranchería, Cesar e Badillo, região este do maciço montanhoso; e os Kankuamo no sudoeste da Serra no vale dos rios Guatapurí e Badillo.

6

Embora cada um desses povos possua uma língua específica (de origem Chibcha) e mutuamente inteligível (os Kogui falam koggian; os Arhuaco, iku, os Wiwa, damana) e as referências e versões das suas narrativas cosmológicas variem entre os diferentes grupos, existe para Arenas (2009) um ethos compartilhado enquanto irmãos mais velhos da humanidade e guardiões do conhecimento da Lei de Origem, expresso em elementos filosóficos e cosmológicos comuns.

7

Objeto sagrado utilizado pelos homens. Trata-se de um pequeno recipiente de cabaço na forma de relógio de areia, no qual os indígenas guardam pó de cal extraído do processo de torrar e moer conchas marinhas. Para misturá-lo com as folhas de coca (as quais são guardadas em mochilas especiais e mastigadas pelos homens ao longo do dia) utiliza-se um pau de madeira, o qual é primeiro molhado com saliva para, na sequência, ser introduzido no cabaço depositário do pó de cal.

8

(28)

seus lugares de residência, isto é, as chácaras10 espalhadas pelos diversos “pisos térmicos” da geografia serrana onde desenvolvem atividades de ordem econômica como a cria de gado e a agricultura.

Os Kogui, Wiwa, Arhuaco e Kankuamo têm, igualmente, uma experiência histórica compartilhada. Desde o processo colonizador nos séculos XVII e XVIII, seguido pelas tentativas de integração destas comunidades no projeto de nação no século XIX, até hoje, os grupos serranos têm sido vítimas de reiterados processos de ocupação e de colonização do seu território ancestral, tornando-se, por sua vez, no alvo de várias tentativas de colonização espiritual, de imposição de instituições alheias às suas práticas culturais, de ocupação e perda no acesso aos lugares sagrados, e, mais recentemente, da violência desencadeada pela bonança local da maconha nos anos 70 do século XX e da disputa acirrada das guerrilhas, dos grupos paramilitares e do negócio do narcotráfico pelo controle territorial da região.

Tanto pela sua geografia quanto pela sua localização estratégica, a Serra Nevada veio a se constituir nas últimas décadas num corredor estratégico para o narcotráfico, o contrabando e o tráfego de armas e munições entre a fronteira com a Venezuela, o Mar Caribe e o interior do país. Assim sendo, a presença histórica das guerrilhas desde a década de 1980 (as Forças Armadas Revolucionarias da Colômbia - FARC-EP -, o Exército Popular de Libertação - EPL - e o Exército de Libertação Nacional – ELN -), somado à incursão dos grupos paramilitares na década seguinte, configuraram um cenário de disputa armada e de crise humanitária na qual camponeses, e particularmente os grupos indígenas

10

Os Kankuamo mudariam esse padrão no processo de colonização do seu território a partir do século XIX, constituindo-se no único grupo concentrado nos principais municípios da região sudeste da Serra Nevada. (LORA, 2012) (PUMAREJO, MORALES, 2003)

(29)

serranos, tornaram-se alvo de massacres, assassinatos “seletivos” 11, deslocamentos forçados12, ameaças e desaparição forçada13.

Segundo a Comissão de Observação da crise humanitária na Serra

Nevada de Santa Marta integrada pela Defensoria del Pueblo14, a Conferência Episcopal da Colômbia15 e observadores do Sistema de Nações Unidas, entre 1998 e 2002 registraram-se na região 44 desaparições forçadas, 166 assassinatos seletivos, 92 casos de tortura e 52 casos de sequestro (DEFENSORIA DEL PUEBLO, 2003, p.6). Os Kankuamo e Wiwa foram os principais afetados pela violenta incursão e disputa territorial das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) 16

, que causou a morte de lideranças e membros das comunidades (entre eles 44 indígenas Kankuamo, só em 2003) e deslocamentos de várias famílias aos núcleos urbanos localizados nas terras baixas da Serra Nevada, como no caso do deslocamento forçado de 1.300 indígenas ocasionado em 2002 pelo massacre de 12 indígenas Wiwa em Sabana Grande, Potrerito, El Machín e Marocaso (Ibid.). Organismos Internacionais como a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiram neste contexto, e ante a gravidade dos fatos e a inoperância do Estado para atender a situação, medidas cautelares e provisionais17 especiais para proteger os direitos destes povos indígenas.

11

Diferentes dos massacres, os assassinatos “seletivos” operam como uma estratégia dos atores armados na qual as vítimas são escolhidas entre um numeroso grupo de pessoas apreendidas (assassinatos seletivos coletivos) ou executadas segundo sua inclusão numa lista prévia dos grupos armados (DEFENSORIA DEL PUEBLO, 2003).

12

O deslocamento forçado é o fenômeno que se produz quando a população civil -principalmente mulheres e crianças- é obrigada a abandonar seu lugar de residência por conta de ameaças, assassinatos, combates e outras agressões por parte de atores armados.

13

No direito internacional dos direitos humanos, a desaparição forçada ocorre quando uma pessoa é secretamente sequestrada ou detida ilegalmente por uma organização política ou estatal, torturada e, muitas vezes, assassinada, sem que seja reportado o paradeiro do corpo da vítima.

14

O Ministério Público para o caso brasileiro

15

Instituição de caráter permanente que congrega os Bispos da Igreja Católica.

16

Grupo armado paramilitar de extrema-direita, criado em 1997, cujo alvo inicial era o de combater as guerrilhas, particularmente às Forças Revolucionarias da Colômbia (FARC).

17

O Sistema Americano de Direitos Humanos conta com órgãos e mecanismos especiais para proteger os direitos humanos das comunidades e indivíduos em cujos casos foi possível estabelecer a responsabilidade do Estado, por ação, ou por omissão, na garantia dos ditos direitos (principalmente o direito à vida e a integridade pessoal). As medidas cautelares e provisionais visam obrigar aos Estados a priorizar a situação dessas comunidades e a gerar condições

(30)

IMAGEM 3

OBJETOS DA CULTURA

Poporos, mochilas, vestido branco tradicional.

(31)

Nos meados da década de 2000, a crise humanitária - tanto na Serra Nevada de Santa Marta como noutras regiões do país - obrigou às instituições governamentais, particularmente às responsáveis pela formulação das políticas e iniciativas tendentes à defesa e garantia dos direitos humanos dos cidadãos, a pensar alternativas de proteção e atenção às comunidades que, como os povos indígenas da Serra Nevada, eram consideradas potencialmente vulneráveis à violação dos seus direitos. O Escritório de Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário da Vice-presidência da República, da qual eu era funcionária naquela época, propus atender a situação desses grupos através de um projeto que abarcasse várias regiões do país18, visando criar estratégias integrais de proteção incorporando as visões das comunidades afetadas.

Foi nesse contexto político e institucional que nasceu Escritos no

território: os direitos humanos dos povos indígenas da Serra Nevada Santa Marta19, artefato comunicativo audiovisual através do qual sistematizei - como jornalista e funcionária do governo no campo da comunicação - a experiência de um projeto institucional que indagava pelas formas através das quais as vítimas da violência pensavam mecanismos de proteção dos seus direitos, de acordo com as suas realidades e culturas. Foi na experiência da realização do documentário que me defrontei, pela primeira vez, com a cultura dos indígenas da Serra Nevada de Santa Marta.

18

O projeto de Atenção a comunidades em alto risco de violações de direitos humanos incorporava a Serra Nevada de Santa Marta dentro de um conjunto de 10 regiões colombianas nas quais a presença de atores armados e outros fatores de risco colocavam as comunidades locais numa situação de extrema vulnerabilidade, afetando a garantia dos seus direitos humanos. Para isso foram analisados conjuntamente com as comunidades os fatores de risco e as estratégias que permitiriam diminuir o impacto das ameaças existentes em cada uma das regiões. O elemento novo que trazia a iniciativa governamental era a de não impor as estratégias de proteção e, ao contrário, incorporar as iniciativas das próprias comunidades, segundo seus costumes e práticas culturais.

19

(32)

E

SCRITOS NO TERRITÓRIO: OS CAMINHOS DA EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL

Na experiência de diálogo direto com aproximadamente 35 mamos,

cabildos, comissários, etnoeducadores e outras lideranças dos quatro povos

constatei, efetivamente, a complexa situação humanitária regional denunciada pelos organismos nacionais e internacionais de direitos humanos, situação agravada pelas tensões geradas pelos megaempreendimentos, projetos liderados pelo Estado e os investidores internacionais no intuito de integrar os recursos naturais do maciço ao fluxo das iniciativas e necessidades do mercado global20.

Mas não foi apenas isso. Essa experiência revelou-me, de maneira particular, a existência de atores políticos que além de denunciar a crítica situação humanitária e de se posicionar diante de uma iniciativa institucional tendente a proteger os seus direitos, faziam um apelo constante a princípios que sustentam a existência desses sujeitos, desses humanos, que estão por trás das formulações institucionais dos direitos humanos; isto é, os indígenas serranos e sua forma de relação em e com o mundo. Apelo que, por sua vez, enunciava-se como um elemento constitutivo do seu processo político e de luta contra essas ameaças.

Nas diferentes entrevistas denunciavam-se as múltiplas violações das quais eram vítimas (homicídios, massacres, bloqueios econômicos, destruição de aldeias e deslocamentos forçados de famílias inteiras por parte dos atores armados) e, ao mesmo tempo, pautava-se o universo de significados que configuram o sentido de ser e de agir como indígenas na atual conjuntura. E assim, o falar da experiência do risco eminente e da dor gerada pela violência do conflito armado no seu território ancestral converteu-se na narrativa do sentido

20

Segundo o relatório Cuando la Madre Tierra llora: crisis en derechos humanos y humanitaria en la Sierra Nevada de Gonawindúa (Santa Marta) (FUNDACIÓN CULTURA DEMOCRÁTICA, 2009), os principais megaempreendimentos que impactam a situação de direitos humanos dos povos indígenas serranos são a barragem El Cercado, de 23.000 hectares, sobre o Rio Rancherias (território Wiwa); a barragem multipropósito Los Besotes sobre o Rio Guatapurí (território Arhuaco e Kankuamo); o porto multipropósito Brisa, iniciativa privada localizada em Yukulwa, lugar sagrado da Linha Negra para os quatro povos serranos; e o desenvolvimento do etnoturismo na região que impactaria, principalmente, os lugares sagrados localizados no território Kogui, entre eles Teyuna, a Cidade Perdida dos Tayronas.

(33)

daquilo que ainda não foi suficientemente compreendido (e muitas vezes, invisibilizado e silenciado) pelos seus irmãos mais novos não indígenas: a ligação essencial entre o homem e a existência da vida no universo como um todo, inscrita nos princípios do pensamento indígena (Lei de Origem), que perpassa a relação com o território (A Serra Nevada de Santa Marta “é um livro aberto de conhecimento que garante a vida” 21) e reformula a relação com os direitos humanos tal e como compreendidos desde a perspectiva moderna.

Os direitos, na leitura serrana, emanam da Lei de Origem e, portanto, estão “escritos no território”. Sua garantia - como narra no documentário Pedro Loperena, liderança da Comissão de Direitos Humanos da Organização Wiwa

Yugumaiun Bunkuanarrua Tayrona- não passa exclusivamente pelo proposto

pelos órgãos de segurança do Estado (aparelhos de comunicação, guarda-costas, coletes a prova de balas, prédios das organizações indígenas blindados para impedir ataques armados, etc.) e sim pela proteção espiritual, na qual as práticas culturais22 constituem-se em peça fundamental. Desta maneira, a perspectiva indígena parecia chamar a atenção, como indica o depoimento de Loperena, sobre uma forma “outra” de compreensão sobre as noções de humano e humanidade, na qual o sujeito dos direitos não seria o sujeito indígena e sim a humanidade que emerge das relações do homem com a vida como um todo:

Mientras que en la cultura occidental el derecho fundamental allá es la vida, acá la cultura de los pueblos de la Sierra Nevada el derecho fundamental es cumplirle a la naturaleza, es cumplir con la Ley de Origen. Allá en la cultura occidental también tienen un poco dividido lo que son los derechos humanos, todo gira alrededor de lo que es la persona, derecho a la salud de la persona, derecho a la educación de la persona, derecho a la vivienda de la persona, o sea allá el centro es la persona. Para nosotros no, nuestros derechos humanos es el cosmos, es lo que vivimos, es la madre tierra, es cumplir con la naturaleza, es pagar,

21

Entrevista com Hermes Torres, Arhuaco, liderança da Confederação Indígena Tayrona. Valledupar, departamento de Cesar, em outubro de 2006.

22

No documentário ficaram registradas as práticas culturais que os povos serranos consideravam como fundamentais para a proteção dos seus direitos humanos, entre elas, realizar reuniões com as autoridades tradicionais, fortalecer as formas de governo e educação próprias e realizar os rituais de pagamento ou oferendas nos diferentes lugares sagrados espalhados pela geografia

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pagar a donde hay que pagar, es realizar los diferentes trabajos, es estar en paz con la naturaleza, porque es allí donde vemos que nuestra vida depende de la naturaleza, nuestro sustento no lo da la madre tierra, si no es por ella no vivimos, en muchas ocasiones pues decimos que la tierra nos pertenece; no, nosotros pertenecemos a la tierra, la tierra no es de nadie, la tierra es de ella misma, y nosotros somos de ella.23

Escutar este e outros depoimentos sobre como a Lei de Origem, o território, os lugares sagrados e as práticas indígenas encontram-se concomitantemente vinculados a todo e qualquer aspecto que diz respeito à garantia dos seus direitos, me fez perceber pela primeira vez na minha trajetória como profissional no campo dos direitos humanos que os instrumentos jurídicos e as políticas públicas não eram capazes de dar conta suficientemente do universo de significações que dizem respeito a compreensões particulares da realidade e, ainda menos, das formas que os direitos humanos adquirem nas práticas culturais e políticas de grupos minoritários, como no caso das comunidades indígenas da Serra Nevada.

Identifiquei, assim, uma sorte de “fratura” nas relações com o “outro” para o caso particular dos direitos humanos que não passa, todavia, pela ausência de ferramentas jurídicas ou de cenários de discussão sobre o desenvolvimento e efetividade dessas garantias: o problema parecia localizar-se, a meu ver, na incapacidade de levar em conta os elementos que contornam e dão sentido e significado à existência e às formas de relação em e com o mundo de cada um dos sujeitos participantes desses cenários de discussão e exigibilidade de direitos. Compreendi, nesse contexto, a necessidade de fazer uma crítica ao reconhecimento artificial do “outro” que opera em diferentes dimensões da realidade social e que adquire expressão no discurso multiculturalista e na tolerância regulamentada dos instrumentos jurídicos de direitos humanos, através da qual essa diversidade de perspectivas, de visões de mundo, de pensamentos e conhecimentos, todos atrelados a um projeto de vida que fala das dimensões mais fundamentais dos indivíduos e grupos, não são consideradas como questões

23

(35)

relevantes a serem avaliadas em qualquer iniciativa (governamental, social e inclusive acadêmica) que vise à compreensão da alteridade e a garantia dos direitos.

Embora os indígenas não façam uma crítica explícita a essa artificialidade que opera no cenário das relações interculturais, tanto nos seus depoimentos no documentário como nos seus posicionamentos nos cenários políticos de discussão sobre a afetação dos seus direitos humanos, coloca-se como uma questão central a reconfiguração das relações com os outros atores da realidade serrana, principalmente os representantes do governo colombiano, no intuito de serem respeitados e compreendidos na sua diferença, na dimensão de um ethos segundo o qual é essencial dar continuidade aos princípios que vinculam e comprometem tanto a existência da própria cultura, quanto à missão do homem de criar e recriar o sentido e a existência da humanidade como um todo.

Em diversos depoimentos, as lideranças entrevistadas argumentavam a importância dessa missão: “a gente não faz isto pela gente, a gente faz é pela humanidade” insistiam ao sinalizar que seu papel de guardiões do Coração do

Mundo e dos códigos da Lei de Origem “escritos” no território, era (é) uma tarefa

permanente e essencial para a continuidade da vida e, portanto, uma questão política e ética fundamental a ser discutida tanto na pauta sobre os mecanismos de proteção dos seus direitos quanto na implementação de mega-iniciativas de desenvolvimento econômico no seu território ancestral.

Durante a produção do documentário pude presenciar em primeira mão como a pauta das organizações indígenas serranas encaminhava-se no cumprimento dessa missão originária que comprometia, na atual conjuntura, a defesa de pontos da geografia sagrada em risco pelos megaempreendimentos em curso. Visitei as obras da barragem do Rio Rancherías, acompanhando os protestos das organizações indígenas pelo curso das obras que avançavam sem trégua, apesar das denuncias contra o Estado colombiano pela violação ao direito

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à consulta prévia24 e pelo impacto físico e cultural das comunidades presentes na região. Junto com a dor manifestada pelas lideranças Wiwa pela irreversibilidade dos danos causados na geografia sagrada do Rio Rancherías fui observando também o surgimento de alternativas de luta e de posicionamento político indígena através das quais era efetivamente pautada a defesa desses códigos “escritos no território”.

Em Besotes, território Arhuaco, as lideranças dos quatro povos aproveitavam as negociações de paz do governo com os grupos paramilitares25 presentes na vertente ocidental do maciço, para “ocupar” o lugar da enchente da barragem sobre o Rio Guatapurí, um dos principais projetos de desenvolvimento do governo do Presidente Álvaro Uribe Vélez. Na entrevista realizada no lugar da “ocupação” com a liderança Arhuaca Leonor Zalabata, notei o profundo valor simbólico e político de impedir o avanço das obras ao impossibilitar “tecnicamente” a enchente das águas represadas. Para atingir esse alvo, os indígenas, na consulta xamanística dos mamos aos pais e as mães espirituais que habitam a geografia sagrada do maciço serrano, decidiram erigir um aldeamento no local da enchente.

24

A consulta prévia - estabelecida na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada na Colômbia pela Lei 21 de 1991- é um direito fundamental dos povos indígenas e demais grupos étnicos a serem consultados quando o Estado decide realizar obras, projetos ou outras atividades nos seus territórios, isto com o propósito de serem tomadas as medidas tendentes a proteger a integridade física, cultural, social e econômica dessas comunidades.

25

Entre 2005 e 2007, o Bloque Resistencia Tayrona das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) participou do processo de desarme e desmobilização promovido pelo governo colombiano para desmontar as estruturas dos grupos paramilitares em diferentes regiões do país, entre elas a Serra Nevada de Santa Marta.

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IMAGEM 4

PRODUÇÃO DOCUMENTÁRIOESCRITOS NO TERRITÓRIO

Esquerda; Leonor Zalabata (Arhuaca)

Superior direita: Juan Carlos Gamboa (Consultor Vicepresidência da República) Inferior esquerda: Otoniel Gil Chimusquero (Wiwa)

(38)

Dito aldeamento, constituído por quatro casas - cada uma delas construída segundo as particularidades da casa tradicional de cada um dos povos26 - configurava-se, dessa maneira, num posicionamento simbólico e numa contestação pacífica às formas violentas de ocupação do território por parte do

irmão mais novo (violência particularmente dos grupos armados favorecendo

interesses particulares em detrimento dos direitos das comunidades locais, e do Estado ao defender iniciativas econômicas que agridem a integralidade da relação indígena com o seu território ancestral) e numa estratégia para se tornar visíveis de uma forma “violentamente pacífica”, utilizando as palavras de Leonor Zalabata, apelando aos dispositivos do pensamento e a cultura próprias para evidenciar sua existência enquanto habitantes originários e guardiões desse território.

La alternativa radical a la violencia de los pueblos indígenas de la Sierra Nevada de Santa Marta está en ser violentamente pacíficos; jamás el mundo va a encontrar una decisión por parte de los mamos o por parte de las autoridades indígenas que la mejor manera de resolver los problemas sea a través de las armas. Nunca! Es decir, no se concibe dentro del pensamiento arhuaco dentro de la ideología Arhuaca, que es la solución matar al otro para poder resolver tu problema. Entonces para nosotros eso es contrario, el que mata a otra persona es contrario a nuestra forma de pensar y esa forma de pensar nos conduce a nosotros a una forma de ser, y esa forma de ser es la que le aplicamos a la resistencia, permanente.27

Essas alternativas de luta e de posicionamento político indígena também se estendiam e multiplicavam na fronteira norte da Serra Nevada. Em Mingueo (departamento de La Guajira), em decorrência do processo de produção do documentário, fui testemunha de uma estratégia de mobilização inédita na trajetória dos quatro povos serranos: aproximadamente 500 indígenas de todos os cantos do maciço deslocaram-se pacificamente até o local das obras do Porto Multipropósito Brisa, megaempreendimento privado localizado no morro de

26

O projeto inicial de “ocupação” simbólica e cultural de Besotes que presencie durante o processo de produção do documentário, passou das quatro casas iniciais a um aldeamento habitado aproximadamente por 40 famílias, segundo o relatório Cuando la madre tierra llora: crisis en derechos humanos y humanitaria en la Sierra Nevada de Gonawindúa (Santa Marta) (FUNDACIÓN CULTURA DEMOCRÁTICA, 2009).

27

(39)

Yukulwa (lugar sagrado onde segundo os indígenas habita a Mãe da Olla de Barro) 28, atualmente estilhaçado, quebrado em duas partes para dar passo à infraestrutura do porto. Novamente firmada na consulta xamanística dos mamos, a estratégia desenvolvida visava (d)enunciar as implicações deste e outros megaempreendimentos para a integralidade29 sagrada do seu território, assim como a incompreensão e a impossibilidade de um diálogo que leve em conta ambas as visões de mundo comprometidas no futuro da Serra Nevada de Santa Marta.

Acompanhei de perto a mobilização, surpreendida pelos acontecimentos que se desenrolavam entorno da tentativa indígena de acessar no lugar sagrado, local no qual - como enunciado na convocatória realizada pelas autoridades e organizações indígenas - os povos serranos apresentariam à imprensa e demais organizações nacionais e internacionais convocadas seu posicionamento político conjunto sobre este e outros megaempreendimentos. O ambiente na cidade de Mingueo era de tensão: mesmo sabendo da “existência” destas comunidades indígenas e das suas esporádicas visitas nas diferentes cidades das terras baixas da Serra Nevada, seus habitantes sentiam-se perplexos diante da dimensão da mobilização que pretendia ocupar a propriedade do consórcio responsável pela construção do porto multi-propósito de Dibulla, projeto considerado como uma das peças chaves para o desenvolvimento e a geração de emprego na região. No meio da agitação provocada pela presença indígena -exacerbada aparentemente por grupos políticos locais- grupos de crianças e jovens da cidade bloquearam o passo dos indígenas e da imprensa, situação que criou um ambiente de maior tensão e estigmatização do propósito final da mobilização dos povos serranos.

Enquanto os indígenas conseguiram romper o bloqueio sem agressões e acessar o lugar sagrado de Yukulwa sem violar a propriedade privada do consórcio (as autoridades indígenas decidem acessar o local diretamente pela

28

Conf. Capítulo V

29

(40)

praia30), sou impedida de ingressar nas instalações do porto por conta dos informes oficiais que desde o governo nacional em Bogotá indicavam que os indígenas tinham “ocupado” propriedade privada, configurando-se assim uma situação que estaria “alterando gravemente” a segurança pública da cidade. Ao ser finalmente liberada minutos depois para registrar o evento junto com a equipe de produção, consigo observar por mim mesma o que de fato acontecia no local da mobilização: observo como um morro quebrado em duas partes é vestido pela presença silenciosa da multidão indígena que nas ladeiras de Yukulwa aguarda

poporiando31 o ritual de pagamento e as palavras através das quais Arregocés Conchacalá, liderança Kogui e porta-voz dos quatro povos, enunciaria a mensagem a ser comunicada aos irmãos mais novos.

Los pueblos indígenas de la Sierra Nevada por mandato de Origen, por historia y tradición en el proceso de interlocución con el Estado colombiano y la sociedad nacional siempre nos hemos expresado en el marco del respeto y la comprensión de visiones distintas. Hemos elaborado muchos documentos, en los que hemos intentado expresar nuestro pensamiento y conocimiento del territorio, de la cultura, del universo, como explicación de nuestra forma de vivir y como fundamento para nuestras propuestas, reclamaciones y solicitudes, copias de ellos reposan en los archivos de las instituciones del Estado. En ellos hemos expresado como principios y fundamentos culturales que el universo es para nosotros una realidad unitaria física y espiritual, y que en el Origen de las cosas y en el establecimiento de su función se sustentan las normas para el comportamiento de las personas y de la sociedad en la relación entre los seres humanos y de estos con todos los elementos de la naturaleza (CONSEJO TERRITORIAL DE CABILDOS, 2007c, p.1)

As palavras, as imagens, o silêncio absolutamente ritual e “violentamente pacífico” dos serranos durante a mobilização e no ato realizado no morro de Yukulwa, e particularmente a mensagem que enuncia as várias tentativas de visibilizar seu pensamento, conhecimento e cultura na relação com a

30

Embora não tenha sido considerado neste caso pelos representantes do consórcio Brisa, vale lembrar aqui que as autoridades tradicionais da Serra Nevada de Santa Marta estão autorizadas pelo Estado colombiano (através daResolução 837 de 1995 do Ministério do Interior)para acessar a este e outros lugares sagrados localizados na Linha Negra no intuito de realizar seus pagamentos ou práticas xamanísticas (Conf. Capítulo V).

31

Ato de utilizar o poporo através do qual se ritualiza cotidianamente o uso da folha sagrada da coca.

(41)

sociedade majoritária, produziram efeitos poderosos na minha percepção sobre a humanidade indígena e sobre as formas de comunicação e de ação política que as exprimem. Desvendaram, para mim, modos “outros” de ser e de habitar o mundo que não só articula diversas estratégias para se posicionar politicamente perante as graves ameaças que se colocam sobre o território e a vida das comunidades afetando sua sobrevivência física e cultural, mas que enquanto humanidade “outra”, detentora do “sentido do seu próprio sentido” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b), assume o desafio de configurar um lugar de enunciação a partir do qual seus universos de significação entram a se posicionar como elementos essenciais no diálogo possível entre culturas distintas.

Logo as narrativas tecidas no documentário produzido, mesmo que enunciadas no âmbito de uma iniciativa institucional, veicularam, sem dúvida, um universo de sentidos e significações que até hoje interrogam meu caminho como pesquisadora social: da comunicação de uma experiência institucional que descreve a visão indígena sobre os direitos humanos abriu-se, então, a possibilidade de interrogar a minha humanidade (minha compreensão de humanidade desde uma perspectiva ocidental) através da humanidade dos humanos que estão por trás das noções dos direitos (neste caso a dos indígenas da Serra Nevada de Santa Marta), isto é, a possibilidade de desvendar perspectivas “outras” sobre a relação do humano no mundo e com o mundo capazes de dialogar, e até de ressignificar, nossa compreensão moderna da realidade, do humano e da humanidade.

C

AMINHANDO PELOS CAMINHOS DA COMUNICAÇÃO “REVERSA” SERRANA

As questões que me interpelaram ao longo dessa primeira aproximação com o pensamento e a cultura dos povos indígenas da Serra Nevada de Santa Marta levaram-me, anos depois, a identificar um rico campo de problemas a serem

(42)

abordados desde uma perspectiva interdisciplinar. Os direitos humanos já haviam sido uma fonte de problemas na minha dissertação de mestrado em Pesquisa Social Interdisciplinar32, em que busquei pensar desde a historiografia, as ciências sociais e a comunicação os imaginários e universos de significação configurados pelos diversos atores políticos e mobilizados pela grande mídia determinantes na cultura política dos direitos humanos na Colômbia nas últimas décadas.

Os direitos humanos e a experiência institucional de Escritos no

território foram determinantes na formulação inicial do presente trabalho de

doutorado, cujo alvo era justamente abordar a visão de direitos de grupos minoritários como os povos serranos, inseridos em contextos de complexas relações de poder pautadas pelo conflito armado e a disputa territorial pelos recursos naturais. Não obstante, essa experiência anterior chamou a atenção para dois aspectos, até então inéditos33, sobre o pensamento e a cultura destes povos:

32

Entre a polarização e a fragmentação: imaginários da cultura política de direitos humanos na Colômbia. Universidade Distrital Francisco José de Caldas (Colômbia). 2006.

33

Identifiquei ao longo da revisão bibliográfica que os artefatos comunicativos indígenas ocupam um lugar marginal como fontes de produção de conhecimento sobre a cultura dos povos indígenas serranos. Privilegiam-se as fontes historiográficas e etnográficas, enquanto a diversidade de textos, documentos conceituais e posicionamentos conjuntos produzidos nas últimas décadas são considerados, em raros casos, parcialmente como parte de um recorte específico de pesquisa. No caso da pesquisa de Fajardo e Gamboa (1998) sobre os direitos humanos do povo Wiwa, alguns artefatos - sistematizados como parte do acompanhamento dos autores ao processo organizativo indígena- são apenas disponibilizados na integra, mas como anexos e não incorporados como elementos da própria análise dos autores; Ulloa (2004) destaca o papel dos discursos “ecológicos” mobilizados pelos documentos produzidos no âmbito do Conselho Territorial de Cabildos -instancia unificada das organizações indígenas dos quatro povos- como expressão do imaginário do “nativo ecológico” que, segundo a autora, as organizações indígenas buscam reproduzir no cenário ambientalista global; Duque (2009) recupera vários dos artefatos vinculados com a defesa do território ancestral, como parte de uma análise maior sobre o papel do “sagrado” e da autonomia indígena nas disputas jurídicas pela demarcação de terras no maciço serrano; em Rocha (2010), diversos artefatos comunicativos entram a compor uma extensa coletânea de histórias, músicas, poemas, contos, narrativas tradicionais, relatos ancestrais e outras narrativas de doze povos indígenas colombianos –entre eles os quatro povos da Serra Nevada- consideradas pelo compilador como peças de especial valor literário, fundamentais para a construção da memória coletiva; Barbosa (2011) recupera de maneira importante vários dos artefatos comunicativos mais recentes, dando destaque particularmente a alguns dos conceitos chaves do pensamento e do conhecimento indígena que configuram “a ordem do todo”, segundo a perspectiva serrana. Sanchéz e Molina (2010) consideram também alguns dos documentos produzidos no período analisado como parte da história do movimento indígena colombiano contemporâneo.

(43)

de um lado, o potencial enunciativo do pensamento indígena serrano que através de diversos artefatos comunicativos nos últimos anos vêm se constituindo numa expressão incontestável do seu posicionamento político na relação com a sociedade majoritária; e do outro, o potencial filosófico, epistémico, ético e político desse pensamento enunciado capaz de alargar e questionar, a meu ver, não só a cultura política dos direitos humanos, mas o fundo relacional de noções como humano e humanidade, noções já preestabelecidas e universalizadas desde o ponto de vista da nossa cosmologia ocidental.

Deparei-me, então, perante o desafio de desvendar o potencial dessa enunciação assim como do pensamento que nele é enunciado, tarefa possível só na observação sistemática das formas de comunicação indígenas, e, por conseguinte, dos processos comunicativos através dos quais as filosofias, conhecimentos e sensibilidades mobilizadas pelos seus enunciados vêm reconfigurando, pluralizando e tensionando cosmopoliticamente nos espaços de relação com a sociedade majoritária as noções modernas de humano, humanidade, natureza, território, conhecimento direitos humanos. Através de artefatos comunicativos próprios, essas formas comunicativas indígenas ganham expressão veiculando categorias, universos conceituais e de significação, gramáticas, linguagens, modos de pensar, conhecer e habitar o mundo que não se restringem a um simples processo de transmissão e emissão de informações: elas, no seu conjunto, configuram um lugar de enunciação político, epistêmico e ético decorrente dos sujeitos que se comunicam através delas.

Para tanto, assumo esse “lugar de enunciação”, não só como um lugar epistêmico localizado historicamente na geopolítica da colonialidade do poder (MIGNOLO, 2010), mas como um lugar de contestação e de experiência na qual os sujeitos enunciam e veiculam por si mesmos universos de significação, perspectivas ontológicas e formas de conhecimento próprias, transformando assim os termos e o conteúdo da relação entre culturas (MIGNOLO, 2003) e trazendo à tona “posicionamentos críticos existenciais” decorrentes das experiências de

(44)

contato e da invisibilidade e marginalização dessas conhecimentos “outros” (WALSH, 2008).

Seguindo Roy Wagner (2010) poderíamos afirmar que esses sujeitos que vêm à tona nesse lugar de enunciação transformar-se-iam em “xamãs dos seus significados”, mediadores potenciais entre universos de significação diversos, tradutores da diferença através da própria perspectiva do mundo e pontes de comunicação no meio do estranhamento que subjaz a experiência do encontro com o “outro”. Evidencia-se deste jeito a existência do que o autor denomina como antropologia “reversa”, capaz de quebrar as assimetrias entre sujeitos e objetos de conhecimento e de apostar eticamente pela mútua criatividade das culturas e pela mútua transformação que decorre da relação entre “mundos possíveis” (TOURNIER, 1991; VIVEIROS DE CASTRO, 2002b). Mas seu potencial criativo não se limita à antropologia “reversa” enquanto capacidade de se pensar a própria cultura (reinventar-se) através do encontro com o “outro” ou de pensar as outras culturas (reinventá-las) através de si mesmo (dos próprios referenciais do mundo) como afirma Roy Wagner. Pelo contrário, seu potencial se alarga na possibilidade que estes sujeitos têm de veicular significados próprios e alheios, construindo pontes efetivas de comunicação entre mundos de significação diversos.

Se a antropologia “reversa” proposta por Wagner carrega o potencial de quebrar as assimetrias entre “sujeitos” e “objetos” de conhecimento, então uma comunicação “reversa” - como a que gostaria de formular aqui- apostaria pelo reconhecimento das múltiplas e várias formas através das quais esses sujeitos veiculam e exprimem seus significados, configurando lugares de enunciação que falam desde e sobre a relação entre mundos diversos, lugares de experiência que dizem respeito a modos de conhecimento, pensamento e transformação da realidade.

A comunicação “reversa” constituir-se-ia, dessa maneira, num cenário tanto de visibilização e posicionamento dos grupos marginalizados como de mediação potencial entre diversos universos de significação, apelando à comunicação dos aspectos cosmológicos (e, portanto, epistemológicos, políticos e

(45)

éticos) negligenciados no diálogo entre culturas. Esse cenário potencializaria a “interculturalidade crítica” proposta por Walsh (Op. Cit.), quer dizer, a construção de espaços políticos e de conhecimento “outros” nos quais o pensar desde a “condição ontológico-existencial-racializada”, desde as visões, pensamentos e filosofias próprias, desde o lugar político que modela o potencial do próprio são a condição prévia de qualquer reconfiguração num universo de relações que pretenda quebrar o trato de não existência de sujeitos e coletividades. Assim a comunicação “reversa”, enquanto possibilidade de “interculturalizar criticamente” as relações assimétricas entre culturas, potencializaria por sua vez o pensar junto

com outras perspectivas de mundo, no intuito, como afirma a autora, de

assumirmos com “responsabilidade e comprometimento” um acionar político visando “a criação de uma civilização alternativa” e a “com-vivência em direção a uma sociedade outra” (Ibid. p. 23).

Nesse sentido, a comunicação “reversa” indígena visibiliza o potencial do próprio revelando o lugar político que esses sujeitos que estão por trás desses pensamentos e conhecimentos ocupam na cena dessas relações assimétricas, pluralizando e problematizando desde um lugar próprio a universalização das categorias e percepções sobre humano, humanidade e natureza, sendo a visibilidade desses modos “outros” de ser e habitar o mundo - expressas nos posicionamentos e filosofias enunciados através desses artefatos comunicativos -uma ferramenta imprescindível para se constituir esse lugar de enunciação, e, portanto, a possibilidade de um diálogo simétrico entre conhecimentos, sensibilidades, filosofias, éticas e universos conceituais diferentes.

Daí que nos trilhos dessa comunicação “reversa” proponho-me a discutir ao longo da presente tese as implicações e potencialidades dessa visibilidade para se criar condições simétricas de diálogo entre culturas diversas e para se povoar e multiplicar o mundo das possibilidades que exprimem os universos conceituais mobilizados por essas humanidades “outras” através de formas comunicativas próprias.

(46)

Na primeira parte - A pergunta pela humanidade - discuto essa visibilidade desde uma perspectiva interdisciplinar, questionando a impossibilidade de um diálogo que reconheça a alteridade dessas humanidades “outras” no âmbito das relações assimétricas, universalizantes e eurocêntricas criadas pelo humanismo moderno- ocidental e pelos dispositivos da colonialidade.

Na segunda parte - A humanidade serrana: entre pontes e fronteiras-, apelo à descrição dos caminhos da comunicação “reversa” dos povos indígenas da Serra Nevada de Santa Marta, processo que nas últimas quatro décadas vêm configurando um lugar de enunciação pautado na continuidade do seu projeto ontológico ancorado nos princípios da Lei de Se ou Lei de Origem, visibilizando-se dessa maneira a humanidade serrana como uma forma particular de compreensão do sentido que funda a essência do humano e como ela manifesta-se na relação

em e com o mundo. Assim, entre as pontes do pensamento e as fronteiras do

território e a cultura, o pensamento enunciado através dos artefatos comunicativos vai desvendando esse caminho de potencialidades nos quais os universos conceituais indígenas emergem como parte de uma pauta política inserida na realidade conflituosa da colonização, da guerra, do narcotráfico e dos megaempreendimentos que comprometem a geografia sagrada do território ancestral, visibilizando nesse processo sua existência enquanto povos e sua compreensão sobre a natureza, o território, o humano, a humanidade e os direitos humanos.

E por fim, em Desvendando Mundos Possíveis, realizo uma tentativa de “ficção antropológica” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b), isto é, um exercício de escuta desses enunciados, oralidades, escritas, sensibilidades, filosofias, (cosmo)políticas, universos conceituais tecidos desse lugar de enunciação contornado nas últimas décadas, não no intuito de explicar, interpretar, traduzir, introduzir, textualizar ou contextualizar os sentidos que configuram a visão indígena do mundo, mas de trazer os conceitos mobilizados pela comunicação “reversa” indígena como potencialidades e virtualidades susceptíveis de transformar a concepção moderna-ocidental de humanidade. Sirvo-me do ethos

(47)

serrano, e particularmente da conceptualização sobre a saúde, para estabelecer pontes entre perspectivas distintas (o ethos serrano e a ética da responsabilidade de Hans Jonas) sobre o lugar do humano na configuração da realidade compartilhada do mundo, e assim sendo, da participação e responsabilidade humanas no cuidado da vida como um todo.

O

S ARTEFATOS COMUNICATIVOS SERRANOS

Para tanto, assumo a etnografia desses artefatos comunicativos como caminho metodológico capaz de potencializar a experiência de pensar com essas formas de comunicação indígenas (e não só apenas sobre elas), de caminhar junto com os enunciados, escritas, oralidades e universos conceituais imbuídos nessas comunicações “outras”; uma “experiência alargada” (MERLEAU PONTY, 1984) na qual procuro “experienciar” diretamente os mundos serranos que se revelam através desse lugar de enunciação, tornando-os visíveis na minha compreensão da realidade, e, subsequentemente, plausíveis como significado alternativo (WAGNER, 2010).

Parte dessa experiência etnográfica constitui o processo errante (LAPLANTINE, 2003) de seguir o rasto dos fios dessa comunicação “reversa”. Começando pela experiência da mobilização e “ocupação” indígena do morro de

Yukulwa na qual se desvela o primeiro artefato comunicativo sobre os

megaempreendimentos na Serra Nevada de Santa Marta, a caminhada continua marcada pela instabilidade das formas de comunicação indígenas que não permitem identificar padrões de produção e divulgação sistemática de conteúdos. A busca torna-se, então, rizomática: se os artefatos não são susceptíveis de serem rastreados através dos veículos tradicionais de comunicação, particularmente a imprensa, ou em arquivos especializados criados por pesquisadores ou pelas próprias organizações indígenas, opta-se por seguir as

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