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Livro - Samuel Sergio Salinas Do Feudalismo Ao Capitalismo Transicoes[1]

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discutindo

a história

do feudalismo

ao capitalismo:

transições

samuel sérgio salinas

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Capa: Sylvio Ulhoa Cintra Filho Fotos de capa e de miolo: Vilu Salvatore Pesquisa iconográfica: Letícia V. de Sousa Reis Composição: Linoart Ltda. Impressão e Acabamento: DAG Gráfica e Editorial

Copyright © Samuel Sérgio Salinas

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Salinas, Samuel Sérgio.

S16d Do feudalismo ao capitalismo : transições / Samuel Sérgio Salinas. — São Paulo : Atual, 1987.

(Discutindo a história) Bibliografia.

1. Capitalismo — História 2. Feudalismo

3. História econômica — Idade Média, 500-1500 I. Título. II. Série.

CDD-330.902 -330.12209

87-1297 -940.14

índices para catálogo sistemático:

1. Capitalismo : História 330.12209 2. Economia medieval : História 330.902 3. Feudalismo : Europa : História 940.14 4. Idade Média : Economia : História 330.902

Todos os direitos reservados à ATUAL EDITORA LTDA. R u a José Antônio Coelho, 785 Telefone: 575-1544 04011 — São Paulo — SP

LUYLIVI 2 4 6 8 1 0 9 7 5 3 1 NOS PEDIDOS TELEGRAFICOS BASTA CITAR O CÓDIGO: ANCH0132E

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sumário

Bate-papo com o Autor 1 1. O que muda na História 3

2. Roma 6 3. O feudalismo europeu 15

4. O capitalismo 31 5. América Latina: capitalismo mercantil, feudalismo . . . 49

6. Observações finais 56

Bibliografia 59 Cronologia 61 Discutindo o texto 63

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"Os capitalistas se distinguem dos senhores feudais, na medida em que estes últimos têm uma relação externa com a produção, pois eles são beneficiários externos — com aju-da de meios repressivos particulares — através dos tributos ou da renda, num processo de trabalho onde eles não apare-cem estruturalmente integrados. O capitalista teria então uma situação nova junto à produção, pois à diferença dos outros representantes das classes dominantes dos modos de produção pré-capitalista, ele está integrado na produção como organizador da produção e da circulação. A burguesia tem uma atividade no processo de sua reprodução — seu direito de propriedade — que é, e constitui, tanto uma pre-sença direta quanto uma prepre-sença delegada. Estudar a bur-guesia como classe é estudar o Estado, pois é através deste aparelho que a burguesia como tal se constitui em classe dominante."

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bate-papo com o autor

Nascido em 1932, em Araraquara, Samuel Sérgio Salinas foi jornalista e bacharelou-se em Direito pela USP em 1955, tendo ingressado no Ministério Público do Estado de São Paulo, onde se aposentou como Procurador da Justiça. For-mou-se em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, e trabalhou na UNICAMP.

Foi t a m b é m aluno do I Curso Taller, organizado no México pelo Instituto Latino-americano de Pesquisas Econô-micas e Sociais. Atuou como consultor das Nações Unidas p a r a o II Curso Taller de Estratégias Econômicas e Sociais. É autor do livro O bando dos quatro, sobre a industria-lização do sudeste asiático, e integra o Conselho Curador da Fundação Cásper Libero.

A seguir, Samuel Salinas responde a três questões: 1. Qual a atualidade de seu livro?

O tema é p a r t e do conjunto de preocupações teóricas que redimensionaram a História a partir do século XIX, projetando-a como a mais dinâmica das Ciências Sociais contemporâneas.

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2. O feudalismo termina através de morte natural ou

pro-vocada?

Para nos situarmos no contexto da pergunta, diríamos que pelos dois motivos, m a s não se deve atribuir a " n a t u r a l " qualquer conotação providencialista. Não há "mãos invisí-veis" na História. A partir de um dado período, a classe social ascendente torna-se consciente da existência de obstá-culos à sua hegemonia. É o m o m e n t o em que elabora a ideo-logia da "Idade das Trevas", no nosso caso. A luta ideoló-gica é, portanto, u m a forma de provocar a m o r t e do feuda-lismo. Pelo menos no campo das idéias, ou da teoria. 3. Qual o papel do comércio e da cidade na transição?

O capital comercial torna-se parte do processo capita-lista de transição. Perde a sua "independência" se pensarmos, p o r exemplo, no capital mercantil dos fenícios etc.

As cidades passam a integrar, intensamente, o processo produtivo nuclear, ou seja, o industrial — daí as conseqüên-cias sociais, econômicas e políticas que conhecemos, dentre elas a concentração proletária e a politização das "massas".

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1. O que muda na história

Temos a convicção de que nossas instituições, ciências, costumes, política etc. são, hoje, profundamente diferentes das instituições, ciências, costumes etc. de outras épocas.

Não basta, porém, descrever e tentar situar, no tempo, essas mudanças. Os antigos cronistas e gerações de historia-dores acumularam fatos em grossos volumes, sem desemba-raçar o enredo das transformações ocorridas em milênios de história da humanidade.

As inquietações e, mais do que isso, a metódica reflexão de investigadores surpreendidos com o dinamismo da época contemporânea, época de revoluções burguesas e socialistas, alteraram o r u m o modorrento das pesquisas e do discurso histórico. A atenção deslocou-se da coleta de fatos para os fundamentos das mudanças no comportamento e na organi-zação, quer de povos habitantes das mais distantes regiões do globo, quer dos modos como os homens se organizam para produzir a sua vida social. O que m u d a ? Como muda? Por que m u d a ?

Este conjunto de questões ocupa o palco da história, da "nova história", e por si só desperta enorme interesse e am-plo debate, não apenas científico, mas político.

A história das mudanças, das transições, mensurando os tempos longos e curtos, as conjunturas e as séries seculares de preços, torna-se parte do nosso cotidiano. Sentimo-nos obrigados a interpelar o passado para compreender e, se possível, entrever o futuro. A única resposta para o que vai

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acontecer está no que já aconteceu. Não temos outros parâ-metros. A cada dia vivemos o nosso passado, como passado histórico e como repertório das indagações que ele nos per-mite propor para o futuro.

Sabemos hoje que as sociedades m u d a m , estão m u d a n d o , e compreendemos que devem mudar.

O que muda? O indivíduo ou a sociedade? Os idealistas, entendida a palavra no sentido filosófico, privilegiam o papel do indivíduo e suas idéias, deslocando-o p a r a o proscênio dos acontecimentos. A corrente materialista, por sua vez, não descarta a relevância do indivíduo, mas procura situá-lo na sociedade, de que é parte. O homem muda, não porque tenha vontade de mudar, nem poder individual p a r a produzir a mudança, mas porque a sociedade, onde atua, muda.

Se não é a consciência dos indivíduos que produz a mu-dança, o que explica a certeza dessas mudanças? As respostas dos historiadores são controvertidas, em qualquer campo onde se queira classificá-los.

Neste livro o autor toma partido para afirmar: m u d a a maneira como os homens produzem e reproduzem a sua vida econômica, social, política etc. Por outro lado, a vida mate-rial, a produção cotidiana dos meios de sobrevivência, histo-ricamente concretizada, revela como os homens se organizam para assegurá-la, despendendo energias no trabalho e nas condições de emprego do trabalho, desta ou daquela forma, deste ou daquele modo. Nessas relações, cristalizadas pelo emprego da força de trabalho, residem os elementos subs-tanciais quer das mudanças nos "tempos de longa duração", quer das "revoluções" que assinalam a transição acelerada de um modo de produção para outro.

A leitura das periodizações, propostas em obras e cole-ções famosas de história, permite perceber que entre a Idade Média e a Época Contemporânea as diferenças residem es-sencialmente na forma como, na primeira, o trabalho servil assegura a reprodução da vida material e, na segunda, a pro-dução de mercadorias e o trabalho assalariado constituem aspectos decisivos para compreender as profundas transfor-mações que os aumentos de produtividade do trabalho pro-piciaram nos últimos séculos. A história aí não se esgota; no entanto, parte daí.

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Feudalismo e capitalismo definem os dois momentos indicados por esta conceituação da história. Como ocorreram as mudanças que acarretaram a transição do feudalismo para o capitalismo — eis o tema central deste trabalho, abordan-do-se pelo menos alguns aspectos de matéria tão ampla, complexa e polêmica da historiografia contemporânea.

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2. roma

A formação social romana

Vejamos, inicialmente, como ocorreu a derrocada do Império Romano e a emergência do feudalismo na Europa.

A formação social romana, em sua fase de maior expan-são, tendeu a polarizar-se entre duas classes sociais, a dos homens livres e a dos escravos.

Isto ocorreu depois que a concentração da terra em po-der dos latifundiários enfraqueceu a pequena propriedade camponesa, após contínuas lutas sociais e políticas. A resis-tência dos pequenos proprietários rurais foi sendo minada, quer nos conflitos denominados guerras civis, quer pela com-petição da grande propriedade agrícola, alimentada pela mão-de-obra escravizada nas guerras romanas p a r a dominar a bacia do Mediterrâneo, parte da Ásia, enfim, p a r a erigir o Império. À medida que o imperialismo r o m a n o se expandia, a imposição de tributos aos povos vencidos permitia consi-derável importação de cereais, desestimulando a produção interna. O imperialismo romano propiciou aos latifundiários a atenuação das tensões sociais e o envio, p a r a as guerras de conquista, dos proprietários arruinados. Os soldados-cam-poneses constituíram as famosas legiões que impuseram a supremacia romana.

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A concentração da terra em mãos dos latifundiários romanos enfraqueceu a pequena propriedade camponesa. Na foto, uma gravura existente em um manual de criação

e métodos agrícolas da Roma Antiga.

Tributos e escravos

Os romanos não mudavam o modo de produção, as rela-ções de trabalho e a vida política e cultural dos povos domi-nados. Esse não era o propósito imediato. Obtinham tribu-tos, em riquezas ou escravos, e compeliam os povos vencidos a ceder parte do que produziam. O imperialismo romano era predominantemente militar, e o tributo u m a relação de for-ça, conseqüência da conquista. Os romanos não foram comer-ciantes nem colonizadores, e os tributos obtidos raramente eram retirados sob a forma de moeda.

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Num detalhe dos relevos do arco de Tito, soldados romanos, carregados com um butim, atravessam o arco,

após debelarem a rebelião de 66 d.C. e destruírem Jerusalém.

Os camponeses livres, concomitantemente à expansão da grande propriedade, abandonavam o campo, deslocando-se para as cidades, onde viviam dos favores do patriciado, ob-tendo cereais a baixo preço, transformando-se em "clientes" de seus benfeitores, dispostos a secundar a conduta política por estes adotada nas lutas pelo poder.

A mão-de-obra escrava

A produção agrícola dependia, portanto, cada vez mais da mão-obra escrava. O imperialismo e a escravização de-terioravam a situação dos trabalhadores livres, em virtude de a mão-de-obra escrava e os tributos estreitarem o espaço social e econômico dos camponeses.

As rebeliões escravas, nesse contexto, não adquiriram conotação revolucionária, mas levaram a classe dominante ameaçada a intensificar a repressão, cimentando os apare-lhos militar e burocrático. Esta centralização burocrática 8

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beneficia, ainda mais, a crescente urbanização. As cidades, nesse contexto, constituem centros de supervisão adminis-trativa, de onde as classes agrárias dominantes exercem o governo. Não há qualquer oposição entre cidade e campo. A cidade é a expressão política do Império, sede da burocracia e domicílio dos grandes latifundiários.

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A produção agrícola e a artesanal dependeram, ainda mais, após as conquistas, da mão-de-obra escrava. Evidente-mente esta mão-de-obra não vendia sua força de trabalho, nem adquiria, no mercado, os bens necessários à sua sub-sistência. A produção manufatureira, escorada também na mão-de-obra escrava, alimentava um comércio de bens de luxo. Nada de produção em massa ou de competição entre empresas para a u m e n t a r a produtividade e maximizar as taxas de lucro. Por conseguinte, inútil pensar em revolução científica e tecnológica.

Sem o Estado romano, seria inconcebível a sobrevivência do Império. Cícero, cônsul, discursa

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O exército romano

Os romanos não inventaram armas muito superiores às dos povos por eles derrotados. Organizaram exércitos de pequenos camponeses (evidentemente não havia um plano para isto) — homens livres que passaram a lutar contra os povos vizinhos, mais tarde liberados de tarefas no campo pela mão-de-obra escrava que ajudavam a apresar nos cam-pos de batalha e, finalmente, sem alternativas a não ser alis-tar-se no exército ou engrossar a plebe urbana.

A aristocracia

A aristocracia romana, cultivando o direito (o famoso Direito Romano) e os assuntos da res publica, revelava a sua posição central, nuclear, em relação à estrutura de poder que aglutinava a formação social romana. Sem o Estado ro-mano seria inconcebível a sobrevivência do Império. Roma suportou u m a balança comercial deficitária porque o dese-quilíbrio era suprido pelos ingressos extraídos de suas áreas de dominação. Esta não seria tarefa realizável sem um Esta-do centralizaEsta-do, apto a coordenar os esforços militares e impor u m a estrutura administrativa complexa, preparada para resolver, nos imensos espaços dominados, intrincados problemas. Somente o Estado poderia empreender a conquis-ta, mantê-la e assegurar a submissão dos escravos. A impor-tância do Estado não foi desconhecida pelos juristas roma-nos, que pela primeira vez, de maneira sistemática, discerni-ram o Direito Público do Direito Privado.

A decadência

A conquista, as instituições burocráticas, a organização do exército, a formalização do Direito, eram instrumentos que reproduziam a formação social romana. Porém, esse complexo arcabouço não consegue subsistir indefinidamente. Roma sucumbiu. Como ocorreu? Quais as fissuras do edifício, montado para a conquista e a imposição de tributos, que o

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abalaram, a ponto de, na Europa ocidental, ao poderoso apa-relho do Estado Romano seguir-se a dispersão do poder, en-clausurado nos feudos, disperso nos particularismos locais e enfraquecido diante das classes dominadas?

O balanço dos debates sobre as "causas" da decadência de Roma exigiria cuidadosa apreciação de numerosas corren-tes de historiadores que se debruçaram sobre o assunto. Examinaremos, apenas, algumas dessas orientações, sem a preocupação de sistematizar o tema.

"O latifúndio perdeu a Itália"

A corrente que se apoia em Plínio, o Velho, sustenta que o latifúndio e a escravidão constituíram as causas da deca-dência e queda do Império Romano. Se a escravidão houves-se sido abolida e u m a distribuição mais eqüitativa da terra houvesse estabelecido um regime de pequena e média pro-priedade, provavelmente, infere-se deste raciocínio, o Império teria superado as suas contradições internas.

A degeneração moral

M. Rostovtzeff exprime persistente orientação idealista, que atribui a mudanças espirituais das classes dominantes romanas, agora desfibradas e desencorajadas pelas riquezas e costumes orientais, as causas profundas da decadência da "civilização antiga". O esplendor romano, e t a m b é m o grego, deveu-se à energia e criatividade dessas classes; no entanto, acentua esse autor, "a natureza aristocrática e exclusivista destas civilizações" precipitou o seu declínio.

Por que não o capitalismo?

Outros argumentam com o pequeno desenvolvimento da indústria e do comércio, afirmando ser o trabalho escravo incompatível com um mercado interno suficientemente am-plo para estimular a produção de mercadorias. Em suma: o

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Império Romano fragmentou-se porque não evoluiu para o ca-pitalismo e o trabalho assalariado. Os romanos sabiam go-vernar o Império, porém não eram capazes de administrar a sua economia. O legado que deixaram ao mundo foi jurídico, não científico.

A periferia insurgente

A pressão romana sobre os povos vencidos, obrigados a fornecer excedentes de toda espécie, inclusive mão-de-obra, alimenta a revolta contra Roma. O exército romano resiste durante séculos; no entanto, desta feita, os agressores não são escravos lutando nos territórios controlados por Roma, mal alimentados, sem instrução, querendo mais fugir de Roma do que vencê-la, mas povos inteiros, combatendo por suas terras, colheitas e cobiçando os férteis territórios que os romanos ocuparam durante séculos de conquistas e exações.

Essas rebeliões contra Roma foram constantes. Os maio-res inimigos do Império procuraram aliar-se aos povos sub-jugados, a fim de organizarem alianças contra a dominação romana e se apoderarem dos territórios dominados pelas legiões.

A cena da coluna de Trajano ilustra um ataque romano a um acampamento bárbaro.

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Por sua vez, o intercâmbio com Roma propiciou a diver-sificação social e política dos povos que reagiram contra o Império, que passaram a usar as mesmas armas, estratégias e táticas que contribuíram para erigi-lo, transformando-o na formidável máquina militar e burocrática sempre pronta à conquista pelas armas ou pela diplomacia, ou por ambas, concomitantemente.

A disposição para antagonizar o predomínio romano incluía a luta direta, as infiltrações territoriais, alianças mi-litares e políticas, n u m a palavra, todos os meios que propi-ciaram aos povos desafiantes do poder r o m a n o instrumentos para escapar à opressão, alcançar autonomia e espalhar-se sobre os campos e cidades outrora dominados pelo Império. Concluindo, não foi o latifúndio que "perdeu a Itália", nem a degeneração dos costumes, muito menos o insuficiente desenvolvimento político, mas a revolta da periferia r o m a n a e o desgaste interno provocado pelas tensões sociais diante da impotência militar para conter os "bárbaros".

O imperialismo romano era u m a relação de força, de violência bem organizada. Quando esta violência enfrenta a contraviolência da "periferia", a resistência pertinaz dos po-vos, inicia-se a decadência. Enrijece-se a burocracia, desman-tela-se a disciplina militar. O poder civil, que César houvera aprimorado, sofre os embates dos líderes militares, do mili-tarismo. Desarticula-se, finalmente, o a p a r a t o militar e buro-crático. No ocidente europeu, o feudalismo está na linha do horizonte. A periferia bárbara, celta, germana, eslava, golpeia o Império, mas não o reabilita. O feudalismo será outra for-mação social e política. O Império está morto.

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3. o feudalismo europeu

A fragmentação do poder

As formações sociais do feudalismo europeu ocidental constituíram-se no interior das ruínas da formação imperial-tributária romana. Esta transformação não foi provocada por "profunda e súbita" revolução social e política, conduzida por u m a classe social, mas decorreu da derrota do Império Romano, incapaz de sustentar suas fronteiras e territórios paulatinamente minados pelos povos invasores.

A extração de excedentes externos era vital para Roma, e o escravismo dependia do abastecimento constante da mão-de-obra capturada ou obtida de outras maneiras, decorrentes dos mecanismos jurídicos e políticos associados à escraviza-ção. Quando esta ordem torna-se insustentável, Roma não consegue reproduzir os seus exércitos e a sua burocracia de Estado. E m b o r a a agonia imperial houvesse durado séculos, com maior ou menor resistência à desagregação, o centra-lismo estatal sucumbe.

O Império Romano não foi subjugado por um povo con-quistador que houvesse assumido as instituições políticas romanas para renovar, a partir do seu interior, do seu âma-go, a pujança da formação imperial-tributária. Não houve um invasor, mas diversos. As invasões, por sua vez, não ocorre-ram subitamente, mas d u r a r a m séculos.

Nem por isso o feudalismo europeu é a anarquia, o iso-lamento cultural, as trevas, enfim, u m a era de decadência, como muitos historiadores, a partir do Renascimento, disso nos procuram convencer.

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Por sua vez não é o feudalismo, também, o herdeiro de Roma. Nem sequer a Igreja Católica era a mesma; a Igreja Romana tornou-se instituição feudal.

Os conflitos entre senhores feudais pelo domínio das terras suscitavam as denominadas guerras privadas, tão co-muns que a Igreja as tolerava a princípio, impondo, em de-terminadas circunstâncias, as "tréguas de Deus". Vejamos qual o alcance e o significado prático destas tréguas e o que elas denotavam: u m a situação de permanente antagonismo, admitido e tolerado como regra para a solução dos conflitos entre os senhores de terras. Prescrevendo para determinados dias a "trégua de Deus", sancionava pelo resto do tempo as guerras privadas. A paz permanente, por outro lado, era vista como contrária à natureza humana, como certa feita afirmou, energicamente, Gérard, bispo de Cambrai.

Georges Duby, famoso medievalista francês, afirma que u m a "civilização nascida das grandes migrações dos povos era uma civilização da guerra e da agressão". As pequenas

Castelo francês, próximo a Bordéus, sitiado pelos ingleses em fins de 7377.

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guerras privadas, no entanto, não significavam poderio das formações sociais do feudalismo europeu, mas constituíam indicador visível da sua fragilidade.

Produção, consumo e laços de dependência

A produção é limitada pelo consumo. Não se deve con-siderar, porém, que não houvesse alguma planificação da atividade econômica, pois era indispensável estabelecer as condições para u m a produção adequada às necessidades da população, sem desperdício de trabalhos e terras.

Numa ilustração do Livro das horas, do duque de Berry, servos trabalham numa plantação, enquanto outros realizam a tosquia

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Dessa forma o feudalismo, ou melhor, as formações so-ciais de natureza feudal, constituídas após a decadência do Império Romano em várias regiões da Europa ocidental e oriental, compõem outra maneira de organizar a produção, extrair excedentes e distribuí-los.

O desmantelamento do Império Romano acarreta a des-centralização do poder político que, agora, irá recompor-se a partir do feudo, onde o domínio dos senhores apresta-se para garantir a segurança dos povos. Envolvido pelas amea-ças externas, o feudo se constitui, mas deve contar com as próprias forças, quer p a r a enfrentar os inimigos, quer para auto-sustentar-se, produzindo o que necessita.

Os laços de dependência que unem os servos ao senhor feudal resultam dessa descentralização política e econômica. A situação dos servos deve ser examinada em relação aos problemas de constituição e reprodução das relações feudais. O papel da produção é, assim, a chave p a r a desvendar a na-tureza dessas relações. A produção agrícola, sem mencionar o pequeno artesanato doméstico, não poderia ser estocada por muito tempo, nem era indispensável que o fosse, pois não havia mercados suficientes para absorvê-la. A pressão sobre os produtores diretos, dessa maneira, não era intensa e, se aliarmos a esta circunstância a relativa escassez de mão-de-obra, verificaremos que os laços de dependência não eram da mesma natureza da escravidão; ao contrário, a si-tuação dos servos era muito superior, sob todos os aspectos, à escravidão romana.

A fixação dos camponeses à terra, portanto, não decorre de pressão senhorial absoluta, mas de ajustes recíprocos que, embora constituídos em situação desigual de poder, permi-tem aos camponeses adquirir condições nas quais direitos e deveres tenderam a se consolidar nos costumes.

Teria ocorrido situação melhor para os camponeses, a ponto de incentivar a produtividade, melhorar o cultivo e propiciar dieta mais adequada para as populações? A res-posta pode, em sentido geral, ser afirmativa. Hodjett, que estudou o assunto, pondera: " E m conclusão, a despeito da lentidão do progresso na agropecuária, dos fracassos desas-trosos nas lavouras, dos ataques de enfermidades nos reba-nhos e da ausência de qualquer invenção tecnológica de

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grande alcance, a agricultura medieval conseguiu — u m a vez terminada a explosão demográfica dos séculos XI, XII e X I I I — assegurar melhor padrão de vida para proporção maior da população em fins do século XIV e no século XV. Até certo ponto a riqueza estava distribuída com maior eqüidade. Esse feito da agricultura medieval foi alcançado através do cultivo laborioso do solo, pois a agricultura medieval era de utilização intensiva de mão-de-obra e não de capital e estava auxiliada por administração eficiente, da qual os tratados sobre contabilidade são indício".

Verifica-se, portanto, que o aumento da produtividade, quando as circunstâncias que i m p u n h a m o contingenciamen-to mencionado não se manifestavam, era real, dado o interes-se do produtor direto em reter parte do excedente produzido.

A Igreja feudal

A feudalização da Igreja resultou em grande p a r t e da sua riqueza fundiária. Sem dúvida a Igreja tenta, alcançando privilégios, libertar-se o quanto pode do direito comum, m a s alguns dos privilégios solicitados feudalizam-na ainda mais. Essa feudalização teve conseqüências políticas e sociais de amplo alcance. Como no ambiente feudal tudo decorre da posse da terra, o prelado torna-se senhor feudal. Capacete na cabeça, vemo-lo combater nos campos de batalha. Terá a sua justiça. Perceberá direitos feudais e senhoriais.

A propriedade feudal da Igreja Católica sobre as terras constituiu empecilho ao desenvolvimento das relações capi-talistas de produção. Marx, no célebre capítulo de O capital sobre "A chamada acumulação primitiva", descreve a forma como enorme parcela da população camponesa foi desapos-sada das suas terras e também o que aconteceu com as pro-priedades territoriais da Igreja Católica: "O processo violen-to de expropriação do povo recebeu terrível impulso, no século XVI, com a Reforma e o imenso saque dos bens da Igreja que a acompanhou. À época da Reforma, a Igreja Ca-tólica era proprietária feudal de grande parte do solo inglês. A supressão dos conventos etc. enxotou os habitantes de suas terras, os quais passaram a engrossar o proletariado. Os bens 19

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Miniaturas de um manuscrito francês de princípios do século XII, mostrando o trabalho de padres nos campos eclesiásticos.

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eclesiásticos foram amplamente doados a vorazes favoritos da Corte ou vendidos a preço ridículo a especuladores, agri-cultores ou burgueses, os quais expulsaram, em massa, os velhos moradores hereditários e incorporaram as suas pro-priedades. . . A propriedade da Igreja constituía baluarte re-ligioso das antigas relações de propriedade. Ao cair aquela, estas não mais se poderiam manter". Por outro lado, a ex-propriação das terras comuns, na órbita da Igreja, pelos avanços do capitalismo, empobrecia os camponeses, deixan-do-os em situação inferior à desfrutada no feudalismo, ou seja, sem terras comuns onde pudessem levar os seus ani-mais, obter as sobras das colheitas para alimentação do gado, aproveitamento de lenha etc.

Vale a pena mencionar que esta apropriação capitalista dos bens da Igreja obedece a ritmos e tempos diversos e su-blinha a transição do feudalismo para o capitalismo, em di-versos países.

Em Portugal, por exemplo, a dissolução dos laços feu-dais na agricultura processou-se muito mais lentamente, e não foi tão adiantada e radical, se comparada à da Inglater-ra; nem sequer o tempo do processo coincide, pois a apro-priação privada das terras comuns inicia-se no século XVII, intensifica-se no século XVIII e prossegue século XIX aden-tro. Em Portugal, como era de se esperar, dada a pujança da Igreja Católica, a transferência das terras para a burguesia não podia amparar-se no movimento religioso da Reforma; no entanto, com o tempo, a predominância dos interesses capitalistas manifestou-se, principalmente após o triunfo do liberalismo, em 1835.

A usura, o justo preço, os tribunais

Por outro lado, a ideologia religiosa era feudal à medida que, à sua maneira, contribuía para reproduzir as relações sociais de produção do tipo feudal. Os obstáculos criados por essa ideologia propunham preservar o feudalismo, den-tre eles a doutrina do justo preço, a condenação da usura etc.

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Dessa forma um travo de insegurança e de dúvida per-turbava os negócios, pois o burguês não era indiferente à ideologia e ao prestígio da doutrina religiosa e sofria na alma e na carne o assédio da Igreja contra as transações mercan-tis e a lógica do lucro capitalista, que se insinuava à medida que crescia a atividade comercial e bancária.

Os preceitos da moral religiosa produziam o efeito pre-ciso de p a u t a r conduta específica diante dos "bens da vida", da maneira de apropriá-los e do lugar de cada pessoa nesse processo.

Basta verificar que, como dissemos, como instituição feudal, a Igreja participava da ordem jurídica. Possuía jus-tiça própria e tribunais. Combatia os heréticos, os usurários, os comerciantes desviados dos preceitos do justo preço etc.

Não será a ideologia religiosa, porém, o maior adversário do capitalismo, mas o direito medieval, consubstanciado nos costumes, que teciam as relações de produção e de poder, no interior dos feudos e nas cidades.

A ideologia religiosa feudal resistirá menos aos ataques dos reformistas e às transformações da Igreja rumo a novas alianças de classe do que os costumes. Estes justificarão as lutas e revoltas de senhores e servos, quer entre si (quando os senhores feudais pretendem obter mais trabalho, rendas e t c ) , quer diante do inimigo comum, o capitalista, entravado pelas relações feudais que impedem a liberação das terras e, sobretudo, dos braços, para o trabalho "livre".

A ordem jurídica: os costumes

A ordem jurídica feudal era de formação consuetudiná-ria. Isto significava a ausência de fonte formal do direito, ao contrário do que ocorria em Roma, onde o Estado burocra-tizado e centralizado impunha normatização geral e abstrata, válida para todos os que estivessem submetidos ao seu regi-me jurídico. Constitui equívoco afirmar que os textos roma-nos desapareceram, submergidos nas "trevas" feudais. Os tratados, as institutas, as compilações, tornaram-se inúteis,

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embora conhecidos. O direito feudal europeu ocidental era de formação consuetudinária, direito costumeiro, constituído no dia-a-dia, no face-a-face das classes sociais. Não havia leis no sentido de norma posta pelo Estado, poder central, legisla-dor único, constitucional. A Revolução Francesa, no século XVIII, permitiu à burguesia ascendente elaborar a legislação correspondente ao seu papel político, social e econômico.

O direito feudal europeu ocidental era consuetudinário. Em uma miniatura de manuscrito medieval, um cavaleiro recebe sua espada das mãos do rei.

A Revolução Francesa desaguou no famoso Código de Napoleão, que consolidou os aspectos sociais e o regime de propriedade vigentes até hoje, no mundo capitalista, dada a enorme influência exercida na legislação de quase toda a E u r o p a e América Latina.

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O Estado moderno

Para compreendermos adequadamente as diferenças en-tre feudalismo e capitalismo neste aspecto, ou seja, em rela-ção ao direito, basta examinar a formarela-ção do Estado moder-no, nos séculos XVI e XVII, principalmente neste último, o século do Absolutismo. A homogeneização do espaço econô-mico, liberando a circulação das mercadorias, restringindo os particularismos locais, combatendo a multiplicação de poderes fragmentados que constituíam obstáculos à realiza-ção dos negócios, era indispensável à burguesia. A burocrati-zação, por seu lado, para desempenhar este papel, exige direito formal, certo, capaz de ser compreendido por toda parte e executado por especialistas devotados ao seu estudo e prática. No Estado romano, por exemplo, o conhecimento do direito, a certeza da sua vigência e a uniformidade da sua aplicação constituíam pilares do poder estatal, encarre-gado de administrar amplo império, socialmente diversifi-cado, m a s unido, fundamentalmente, pelas legiões e leis romanas. A unificação legislativa, conseqüentemente admi-nistrativa e política, do Estado moderno burguês não é da mesma natureza da que ocorreu em Roma. Entretanto, sob muitos aspectos a herança romana, embora destinada a cumprir outros objetivos, foi de grande utilidade p a r a a construção dos modernos institutos jurídicos.

Nas formações sociais do feudalismo esta centralização da ordem jurídica era desconhecida, inútil para ordenar re-lações que se travavam no interior dos feudos. Não havia um império, nem legiões, mas o senhorio e monarquias enfra-quecidas, onde o poder não era absoluto, nem sobre as ter-ras, nem sobre os homens.

A autonomia camponesa

E m b o r a os senhores feudais houvessem tentado impor a regra de que toda terra deve ter seu senhor, na prática isto não ocorreu. As terras comuns, pastos, prados e florestas,

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além de pequenas propriedades, subsistiram como importan-tes aspectos da autonomia camponesa e condições de resis-tência às imposições feudais. Esta resisresis-tência camponesa ma-nifesta-se de forma variada, incluindo a sustentação intran-sigente de seus direitos contra as tentativas dos senhores feu-dais de interpretá-los unilateralmente e contra o aniquilamen-to de conquistas, já consolidadas, da população camponesa. Era comum a recusa coletiva de cumprir obrigações de tra-balho — as "proto-greves" — e freqüentes as pressões para obter redução nas rendas e até chicana sobre o peso dos produtos entregues ao senhor feudal.

No feudalismo, o direito, como vimos, era costumeiro e os costumes (entendidos no sentido jurídico) de formação

As transformações dos direitos de propriedade da terra realizavam-se em detrimento dos camponeses pobres, Na foto, um quadro de Bosch

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local, daí a sua grande diversidade. E r a m iníquos para u n s e altamente vantajosos para outros? Sem dúvida, mas urge precavermo-nos de u m a ótica contemporânea, extrapolada para um quadro social e político diferente do nosso. Os cam-poneses não eram livres, mas os senhores também não dis-p u n h a m de dis-poder absoluto. Os costumes, dada a sua forma-ção, permitiam aos camponeses espaço de luta e reivindica-ções, como já assinalamos. Os autores apontam este apego dos camponeses aos direitos coletivos, principalmente dos camponeses mais pobres. A exploração tradicional do solo permitia, em certa medida, aos camponeses pobres compensarem a sua falta de terra. As comunidades aldeãs m a n t i -nham-se ativas. Os bens das comunidades — tais como pastagens e florestas — e os direitos de uso neles implícitos ofereciam recursos aos camponeses. E m b o r a os camponeses ricos fossem hostis a esses direitos coletivos, que lhes res-tringiam a liberdade de exploração e o direito de proprieda-de, os pobres, em compensação, a eles se apegavam. Os esforços dessas camadas camponesas propunham-se limitar o direito de propriedade individual, e defender os direitos coletivos, opondo-se ao individualismo agrário, caracterizado pelos cercamentos de terras e transformação da agricultura em exploração capitalista da terra. Razões por que o pequeno camponês não tinha a mesma concepção da propriedade agrícola, própria dos nobres ou da burguesia rural. Sua perspectiva da propriedade coletiva opunha-se à noção bur-guesa de direito absoluto do proprietário em relação ao b e m imóvel.

A posse da terra

A agricultura para consumo era, no feudalismo, a ativi-dade principal. O comércio, muito reduzido. As terras não tinham valor de troca, de mercado, porque, geralmente, não se adquiriam terras comprando-as no mercado, mas mediante princípios peculiares à enfeudação.

A posse da terra, para os senhores feudais, era indispen-sável, quer para assegurar a subsistência do feudo, quer para m a n t e r o seu poderio, sempre dependente da obtenção de

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Castelo medieval pertencente ao feudo do duque de Berry em fins do século XIV, em uma das iluminuras pintadas

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maiores parcelas de território. A terra, enfim, era riqueza decisiva, porque permitia abrigar homens, reforçar o feudo com soldados em potencial, aptos a secundar a força e o poder dos senhores feudais. "Nós queremos terras", disseram os senhores normandos, recusando os presentes em jóias, ar-mas, cavalos etc. ofertados pelo seu duque, e acrescentavam entre si: "Com as terras será possível m a n t e r numerosos ca-valeiros e o duque não terá maior poder".

Em geral as terras eram divididas em três porções; o domínio retido era reservado pelo senhor p a r a abrigar o cas-telo e os estabelecimentos principais. Nas terras comuns es-tão as águas, os bosques, os pastos, submetidos a direito de uso bem amplo, em proveito dos habitantes: pastagens de gado, direito de colher os frutos, direito de obter madeira para combustível e construção, direito de reunir palha para os estábulos, direito de obter material p a r a aquecimento etc. Todo este conjunto constituía os direitos costumeiros que, como vimos, e r a m defendidos pelos camponeses. Esses direi-tos de uso eram formas coletivas fixadas pelos costumes e permitiram aos camponeses tomar consciência da sua comu-nidade em relação ao senhor feudal. Freqüentemente os ha-bitantes dessas comunidades pretenderam que esses direitos de uso tivessem sido, realmente, propriedade coletiva antiga.

Miséria feudal?

Estas questões levam-nos a indagar: era o feudalismo ocidental o reino da pobreza e da miséria? Pobreza e miséria são meras palavras, dependentes, para serem b e m entendidas, de tantas explicações que corremos o risco de não podermos empregá-las com propriedade quando nos referimos à histó-ria. Em termos de equipamentos variados e abundância de bens de consumo, certamente o h o m e m feudal não dispunha de tanta variedade quanto a média dos habitantes dos gran-des centros urbanos de hoje, no entanto t a m b é m não estava submetido aos numerosos desconfortos da vida contempo-rânea. Os dias santificados eram numerosos e as atividades religiosas propiciavam entretenimento, recreação e oportuni-dade para manifestações artísticas. As grandes catedrais

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A ilustração, que se encontra em um manuscrito francês de 1448 retrata o trabalho na construção das igrejas medievais.

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testemunham a existência de excedentes disponíveis para sustentar artesãos e artífices. O trabalho era árduo, mas en-tremeado de lazeres, definidos pela religião, que suavizavam os rigores da labuta no campo e nas cidades. As cerimônias religiosas agrupavam os fiéis — e quem não o era? — pro-piciando encontros e oportunidades de congregação.

Na Idade Média, as festividades religiosas e os dias santificados eram numerosos. Na ilustração, camponeses dançam, tendo ao fundo as muralhas de uma cidade medieval.

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4. o capitalismo

O espírito burguês

Como ocorreu a transição do feudalismo para o capita-lismo? As teorias se multiplicam, mas o debate fixou-se em torno de algumas orientações fundamentais. Será o capita-lismo a manifestação de nova mentalidade do h o m e m mo-derno, conjunto de atributos psíquicos apto a desencadear o processo de liquidação do feudalismo e implantar a eco-nomia de produção para o mercado? Quais seriam as carac-terísticas desse homem novo, dinâmico e disposto a tudo re-formular? Alguns autores acreditam que as formações sociais capitalistas decorreram do espírito empreendedor do burguês. Werner Sombart afirma que, na época do capitalismo inci-piente, era o empresário quem fazia o capitalismo, enquanto na época do capitalismo pleno é o capitalismo q u e m faz o empresário.

Sombart, em seus primeiros trabalhos, atribuíra o capi-talismo emergente à independência dos judeus em relação às proibições católicas da usura e ganhos do capital, o que assegurava a eles liberdade de iniciativa na manipulação de operações financeiras e bancárias, capaz de constituir em-brião da nova mentalidade empresarial que desencadeou o capitalismo. Em obras subseqüentes, Sombart modificaria

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essa interpretação dos fenômenos sociais ligados ao apareci-mento do capitalismo, e concederia ao espírito burguês — "em todo empresário capitalista se esconde um burguês" — a mola dinamizadora das novas formações sociais. A aspira-ção suprema desse burguês inovador é poupar. Para Sombart a economia do senhor feudal havia sido u m a economia de dispêndios, portanto os seus ingressos variavam conforme as suas necessidades. Pois bem, esta economia converte-se, no capitalismo, em economia de poupança. Referindo-se a Leon Batista Alberti, o famoso autor do I libri della famiglia, considerado o burguês mais representativo da época renas-centista italiana, diz Sombart que o credo do bom burguês, estampado na obra de Alberti, o lema da nova era, "que ago-ra amanhece, a quintessência da concepção universal desta

Cena pintada em Gênova, no final da Idade Média, mostrando alguns banqueiros e as arcas do banco da cidade.

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gente", condensa-se nesta frase: "Recordai sempre isto, meus filhos, nunca permitais que vossos gastos superem vossos ingressos".

Max Weber

Max Weber distancia-se do pensamento de Sombart, embora t a m b é m para ele o capitalismo resulte da projeção espiritual do homem moderno. Já não se trata de poupar por um princípio intrinsecamente burguês, ou seja, decorrente de considerações meramente econômicas, mas o espírito do ca-pitalismo, para Weber, condensa determinada ética religiosa, como afirma no seu famoso livro A ética protestante e o

espírito do capitalismo. Na verdade o que aqui é pregado,

diz ele, referindo-se à religião, não é u m a simples técnica de vida, mas sim u m a ética peculiar, cuja infração não é t r a t a d a como u m a tolice, mas como um esquecimento do dever. Essa é a essência do problema. "O que é aqui preconizado não é mero b o m senso comercial: o que não seria nada de original, mas sim um ethos."

Essa ética é peculiar à concepção puritana da vocação religiosa e à exigência de comportamento ascético diante da vida. Com esse comportamento sóbrio, frugal, e operosidade constante, o fiel evitava usufruir das riquezas e restringia o consumo, voluntariamente. Por outro lado essa ética não condenava a acumulação proveniente do trabalho e a sua inevitável conseqüência: a acumulação da riqueza. Enrique-cer sem ostentação não era considerado desobediência aos princípios religiosos.

Por sua vez, como observa Max Weber, o poder de ascese religiosa produzia e colocava à disposição dos parcimoniosos burgueses "trabalhadores sóbrios", conscientes e incompara-velmente industriosos, que se aferravam ao trabalho "como a u m a finalidade desejada por Deus". Acrescenta Weber que Calvino já tivera a opinião "muitas vezes citada" de que so-mente quando o povo, isto é, a maioria dos operários e ar-tesãos, fosse mantido pobre, é que se conservaria obediente a Deus.

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espírito que, em suas múltiplas emergências, engendra as formas de convivência humana. Para Weber a ética protes-tante é u m a dessas aparições, "pronta a m u d a r a alma das pessoas e a trajetória da razão humana".

A escravidão do salário

Vimos que os camponeses e também os servos não foram desapossados dos instrumentos de produção, e os "direitos" sobre a terra não excluíam participação maior destas classes e frações de classe no excedente produzido. As classes domi-nantes feudais, privadas do Estado e seus aparelhos, não dis-põem de meios de dominação semelhantes aos que permiti-ram, no Império Romano, a verdadeira expulsão, dos cam-pos, do campesinato livre, do pequeno proprietário, constran-gido a vegetar nos centros urbanos, engrossando a camada do que hoje denominaríamos lumpemproletariado e quase integralmente substituído pela mão-de-obra escrava, na agri-cultura.

No feudalismo europeu surge u m a fração de classe, a dos camponeses proprietários, que contracena com os senhores feudais e a burguesia urbana. A especificidade do feudalismo europeu não é só a fraqueza das classes dominantes, mas a existência de frações de classes dominadas que resistem e impedem a sua total dominação pelos senhores feudais. É nesse espaço, nesse campo das lutas de classes e frações de classe que a burguesia vinga e o pequeno produtor sobrevive quer mercantilizando os excedentes, quer conduzindo o pro-cesso de industrialização doméstica, ou compondo alianças políticas que solapam o poder feudal. Nesse espaço, através de combinações sociais diversas, ressalta a fragilidade dos se-nhores feudais, que ora se aliam aos burgueses, ora resistem e enfrentam revoluções. Os camponeses, por sua vez, ora se aproximam dos senhores feudais (independentemente dos conflitos entre essas classes), ora os enfrentam, auxiliados pela burguesia. De qualquer maneira, os camponeses, futuros proletários, serão os grandes perdedores, saindo de u m a ser-vidão para outra, muito mais cruel, principalmente para as primeiras e numerosas gerações — a escravidão do salário.

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O feudalismo cede caminho

As linhas de investigação sobre a transição feudalismo— capitalismo convergem para a especificidade das formações sociais do feudalismo europeu, ou seja, do conjunto de condições que, inegavelmente, favoreceu o desenvolvimen-to do comércio e a acumulação de dinheiro nas mãos de comerciantes que, estrategicamente, ocupavam posições pri-vilegiadas para concentrar tais recursos.

Discussão que se impõe, de imediato, decorre da natu-reza das lutas de classe travadas no interior das formações sociais feudais e do papel que cada u m a dessas classes de-sempenha no aparecimento de condições propícias à acumu-lação de capital-dinheiro, em poder da burguesia mercantil.

O feudalismo europeu ocidental, como procuramos de-m o n s t r a r no capítulo anterior, é entrede-meado por lutas e disputas entre os produtores diretos, os camponeses, e os detentores da posse da terra, os senhores. O produtor di-reto não é, invariavelmente, um desvalido, que produz ex-cedentes p a r a o senhor de terras, nada conservando p a r a si. A situação do servo, embora não tenha sido invejável, n ã o o reduzia à escassez permanente. Parte da produção perma-necia com o produtor direto, deixando de ser transferida ao senhor feudal. A disputa por melhores condições, pela posse dos instrumentos de produção, pelo aproveitamento coletivo dos campos, pelas sobras das colheitas, pela lenha colhida nos bosques, pelas pastagens etc. denota, examinados os costumes locais que dispunham sobre estes assuntos, u m a sutil luta de classes, empenhadas em verdadeiro jogo de paciência e habilidade, para conquistar e conservar posi-ções, luta em que a violência desempenhou, como em mui-tos outros momenmui-tos da história, papel ambíguo. Nem sem-pre a força logra compelir ao trabalho, sobretudo q u a n d o

os produtores diretos podem se esquivar, desarmando o poder mediante resistência obstinada em defesa de toda e qualquer pequena conquista. A força, por sua vez, é contida pelas exigências da produção. Nos limites e fissuras da sua ingerência insinuam-se as relações sociais de produção que seguem de perto os equilíbrios alcançados ao longo do per-fil traçado pelas lutas a que nos vimos referindo.

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O campo revitaliza o mercado

Conservando a posse da terra e dos instrumentos de trabalho, o produtor direto não está inteiramente subme-tido ao nível de subsistência, dadas as condições de então, mas a perspectiva de dispor de excedentes depende das pe-culiaridades regionais das lutas de classe, acirradas em de-corrência da pulverização do poder no feudalismo.

A presença de excedentes no mercado, portanto, não é privilégio exclusivo de bens disponíveis pelos senhores feu-dais. Efetiva e potencialmente, o p r o d u t o r direto assegura a sua participação no mercado, quer como produtor, q u e r como consumidor.

Desta maneira o campo oferece u m a gama de potencia-lidades revitalizadoras do mercado, criando condições p a r a o desenvolvimento do comércio, o qual, por sua vez, a p a r t i r da esfera da circulação interna, ingressa na atividade pro-dutora, aproveitando o excesso de mão-de-obra, ou o tempo livre desta mão-de-obra, e compelindo-a a trabalhar p a r a o comerciante, no campo mesmo, sistema conhecido por tra-balho a domicílio. Aos poucos o comerciante domina e co-manda esta mão-de-obra, assenhoreando-se, também, do processo produtivo. A manufatura e, posteriormente, o trabalho nas fábricas complementam este processo em que o capital mercantil (não me refiro ao conceito equivocado de capitalismo mercantil) exerceu significativo papel. Ine-xistindo as disponibilidades de tempo e os excedentes do camponês feudal, o capital comercial não teria meios p a r a ingressar no processo produtivo. Em Roma, onde dominavam o trabalho escravo no campo e a obtenção de excedentes pelos mecanismos da conquista, não vingou o capital mer-cantil, confinado aos grandes circuitos internacionais sem, porém, penetrar na capilaridade do território italiano.

As teses sobre o papel exclusivo do comércio na tran-sição feudalismo—capitalismo têm sido muito combatidas. Para expressiva maioria dos autores, não é o comércio a ma-triz do capitalismo. Quer seja ele o de grande curso, deno-minado comércio externo, quer o pequeno intercâmbio local.

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É comumente citada a frase do economista fisiocrata Fran-çois Quesnay, autor do Tableau Êconomique: "Os negocian-tes não fazem nem os preços, nem a possibilidade do comér-cio, mas é a possibilidade do comércio que faz surgir o comerciante".

Através do sistema conhecido por "trabalho a domicílio", o comerciante manufatureiro, aos poucos, assenhora-se do processo

produtivo. Na ilustração, uma família trabalha na tecelagem manual.

As cidades e o campo

O crescimento demográfico das cidades, embora com altos e baixos em alguns séculos, foi permanente. Por que isto ocorreu? Quais foram os agentes desse crescimento? Segundo Pirenne, a razão teria sido o renascimento do co-mércio a longa distância. Autores de recentes monografias de história urbana acreditam em outras explicações, pelas

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A ilustração, proveniente de um manuscrito de Hamburgo século XV, retraia o movimento de navios,

mercadorias e comerciantes no porto.

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quais a prosperidade dos campos circundantes às cidades teria sido decisiva. As perspectivas parecem, hoje, inverti-das: o que suscitou o desenvolvimento foi a demanda de produtos provenientes de mercados distantes, conforme Pirenne; foi a oferta de excedentes agrícolas, provenientes dos mercados locais, estimam numerosos economistas, que, por sua vez, admitem o papel acelerador do processo

susci-Para muitos historiadores, a propriedade dos campos próximos às cidades foi decisiva para o desenvolvimento do comércio. Na foto, o mercado de gado do centro comercial de Hamburgo; observa-se, ao fundo, o tribunal do mercado durante uma sessão.

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tado pela demanda de mercadorias importadas de mercados distantes, mas recusam-lhe a condição de fator decisivo para o predomínio do capitalismo no ocidente europeu.

Quanto aos agentes do crescimento, Pirenne julgava tê-los descoberto nos mercadores itinerantes (as primeiras jurisdições comerciantes na Inglaterra chamavam-se cortes dos pés-poeirentos, alusão aos comerciantes regionais), os quais teriam se fixado junto de um castelo ou de uma anti-ga cidade. Seus entrepostos e habitações (portus) ficaram conhecidos como "burgo de fora" (foris-burgus, de onde "falso-burgo"). Este, por sua vez, cercado de muralhas, inte-grar-se-ia nos limites da cidade ampliada.

Sem negar a importância desempenhada pelos comer-ciantes de longo curso, destaca-se, atualmente, o papel de-senvolvido pelos mercadores locais e pelos artesãos, tanto do setor têxtil quanto da metalurgia, no crescimento de numerosas cidades.

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Comércio e capitalismo

Vimos que há discordância entre os autores quanto ao papel do comércio no desenvolvimento de relações capita-listas. Nem sequer o papel das cidades é tratado sem dis-putas acaloradas. Quanto ao comércio a longa distância, afirma-se que sempre existiu na Antigüidade — grandes cidades eram centros mercantis, e nem por isso o capita-lismo nelas vingou.

A questão remete a uma precisa indagação: qual a especificidade do caso europeu ocidental?

O feudalismo europeu ocidental não foi impermeável ao comércio, quer desencadeado pelos mercadores de longo curso, quer pela atividade incessante dos bufarinheiros. Como vimos, a penetração do mercador só foi possível, no grau e intensidade capazes de incentivar a produção para o mercado, porque as populações dispunham de excedentes

No feudalismo europeu ocidental, a atividade comercial não se resumia às transações de longa distância, mas penetrava nos poros das malhas feudais. A foto mostra o comércio em Paris no século XIV;

observa-se um descarregamento de carvão, enquanto trabalhadores empurram toneis de vinho pela ponte.

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para vender ou trocar. Este é o aspecto crucial. O comércio não se reduzia às transações de grande curso, mas penetra-va nos interstícios, nos poros das frouxas malhas feudais. Era, nesse caso, a atividade comercial que tinha de se ajustar aos preços e fatores locais, ou seja, não dependia intensa-mente de circunstâncias aleatórias, ligadas às transações entre formações sociais diferentes, onde os preços manti-nham pouca ou quase nenhuma relação com o mercado. Não se trata do comércio aventureiro das caravanas asiáticas ou dos périplos indianos, mas de produção local e de intercâm-bio sensível aos valores de troca e preços dos mercados próximos.

O valor de troca

Esse comércio é beneficiado pela expansão agrícola do ocidente feudal. Por seu lado, o desenvolvimento do co-mércio age no sentido de estender, por toda parte, o valor de troca, diversificando a produção de mercadorias e trans-formando o dinheiro em moeda universal. Dessa maneira o comércio contribuiu para dissolver o modo de produção feudal.

Este papel do comércio depende, antes de mais nada, da solidez e estrutura do antigo m o d o de produção. Na hi-pótese que estamos examinando, a fragilidade política e econômica do modo de produção feudal abre perspectivas para o comércio interagir com o mercado local e voltar-se para a produção de mercadorias, com possibilidade de obter resultados e incrementar a atividade em geral.

No m u n d o antigo, a atuação do comércio e o desenvol-vimento do capital mercantil resultavam em economia escra-vista, ou, de acordo com o ponto de partida, ocasionavam, apenas, a transformação de um sistema escravista patriarcal, baseado na produção de meios de subsistência imediatos, num sistema voltado para a produção de excedentes apro-priados pelas classes dominantes. No m u n d o moderno, ao contrário, levam ao modo capitalista de produção. Infere-se daí que outras circunstâncias, além do desenvolvimento mercantil, provocam esses resultados.

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Comércio: Antigüidade, feudalismo

O comércio, embora relevante nas formações sociais da Antigüidade, não lograva desagregar essas formações, u m a vez que o poder das classes dominantes concentrava, pro-fundamente, o excedente produzido, reduzindo o p r o d u t o r direto a enorme dependência.

No ocidente feudal, o excedente agrícola, enquanto não é todo absorvido pelos senhores, é destinado ao comércio local. Se acrescentarmos que os produtores diretos retêm parte da sua força de trabalho e dispõem de parcelas de ter-ras de seu próprio uso, depreende-se que a possibilidade de comercialização de excedentes estimula a produtividade. A produção já tem endereço mercantil, e os bens produzidos adquirem o caráter de mercadoria.

Importância do mercado interno

A criação de um mercado interno europeu ocidental permitirá a introdução de novas matérias-primas e de outros produtos e ramos de produção até então inexistentes. Mer-cado interno e merMer-cado externo tendem a se integrar e, quando os continentes americanos são conquistados, acelera-se todo o processo, ampliando-acelera-se consideravelmente o merca-do p a r a os novos ramos da construção naval, merca-do abasteci-mento das colônias etc.

A suposição de que o desenvolvimento das condições para o aparecimento de formações sociais capitalistas decor-ra da ampliação do comércio de bens de luxo não é confir-m a d a pela historiografia conteconfir-mporânea. Os bens de luxo, destinados às camadas privilegiadas do feudalismo europeu ocidental, nunca foram produzidos em grande escala; resul-tavam oferecidos ao mercado restrito destas camadas pelas importações, a princípio da Ásia; mais tarde, alguns produtos americanos também seduziram os consumidores europeus de largas posses.

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O capitalismo não é filho do luxo dessas classes domi-nantes, mas da presença, no mercado local, de excedentes produzidos por camponeses e artesãos urbanos e da sua disponibilidade de tempo livre para vender a força de trabalho.

O capitalismo é fruto da presença, no mercado local,

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A "segunda servidão"

As reações feudais ao capitalismo foram tardias e em alguns lugares corresponderam a tentativas, algumas bem-sucedidas, de extrair mais trabalho dos servos, não afastada a possibilidade de se tratar de empreendimento destinado a satisfazer as novas necessidades de consumo, induzidas por esta ampliação dos mercados, tanto no aspecto qualitativo como no quantitativo. As resistências dos servos e das popu-lações camponesas e a fuga p a r a as cidades opuseram obstá-culos a esta "segunda servidão", contribuindo para a u m e n t a r a mão-de-obra disponível nas cidades.

Lutas e alianças de classes

A transição feudalismo—capitalismo está inscrita, por-tanto, no espaço das lutas de classes que se travam no univer-so feudal. Não se cuida, univer-somente, de um período de grandes revoltas camponesas, rebeliões urbanas, mas de profundas disputas entre classes e frações de classe que nem sempre transparecem, no embate surdo, mas vigoroso, do enfrenta-mento cotidiano. Luta-se palmo a palmo pelas condições de sobrevivência e garantia de conquistas milimétricas m a s de-cisivas p a r a o processo de transformação do servo em "tra-balhador livre".

Neste intrincado mas fecundo mosaico social, as alianças se cruzam e entrecruzam, compondo um quadro n e m sempre familiar ao observador.

O jogo das alianças de classes e frações de classe arti-cula as combinações de forma complexa, por vezes de região p a r a região. Na Inglaterra, para exemplificar, este jogo cris-taliza alianças entre a burguesia e a nobreza, desempenhando este importante papel político. Na França, as lutas entre a burguesia e a nobreza não associam combinações deste tipo — o tecido social e político é mais complexo, se considerar-mos o papel desempenhado pelos camponeses, pequenos pro-prietários rurais etc.

O feudalismo europeu não engendrou u m a classe domi-nante suficientemente forte p a r a impor ao p r o d u t o r direto

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submissão total e, dessa maneira, quando tem de enfrentar a burguesia e o proletariado emergente, cede terreno e poder. A burguesia, fortalecida pela contínua penetração no aparelho produtivo (que ajuda a criar), manobra política e ideologicamente entre as classes, firmando-se definitivamente como expressão não só econômica, mas política.

Desses embates o resultado é, invariavelmente, o enfra-quecimento da nobreza fundiária, reduzida a fração no poder, quase s e m p r e sob a hegemonia burguesa.

A burguesia firma-se como expressão econômica e política. Na foto, um quadro de Quentin Massys,

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Todos são iguais . . . perante a lei

O declínio do feudalismo não melhoraria a sorte dos produtores diretos. O cercamento dos campos, a perda dos direitos consolidados nos costumes, despojaria mais do que beneficiaria o trabalhador, a tal ponto que doravante só lhe restaria vender, no mercado que ajudara a consolidar e criar, a sua força de trabalho. Livres dos laços feudais, m a s prole-tários — eis a situação que caracteriza o assalariado no capi-talismo.

Por outro lado, o poder político e militar dos senhores feudais foi constantemente reduzido. No feudalismo n ã o ha-via um poder central, u m a burocracia reguladora de todos os aspectos da vida social, da política e da economia que repro-duzisse o modo de produção feudal em todas as instâncias.

Livres dos laços feudais, mas proletários — eis a situação que caracteriza o assalariado no capitalismo.

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A unificação capitalista dos mercados arruinaria defini-tivamente o feudalismo, minando o poderio dos senhores, centralizando o poder dos estados absolutistas, abolindo os costumes e substituindo-os por u m a legislação unitária que desaguaria na codificação napoleônica. Os costumes, o di-reito consuetudinário, eram de lenta elaboração, no face-a-face, como vimos, dos agentes sociais. A lei codificada é agora geral, abstrata, formal. No feudalismo a desigualdade era visível, estava em toda parte. Havia um direito dos nobres e outro dos comerciantes; um direito de uso dos rios e o u t r o de uso das florestas. Estes costumes ou direitos variavam de região para região, conforme o destino das lutas que se tra-vavam p a r a obter vantagens específicas. Agora, com a mo-derna codificação, todos são iguais perante a lei. Uma liber-dade que tem exigido a maior concentração de força que a história já conheceu.

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5.américa latina: capitalismo

mercantil, feudalismo

Numerosos historiadores e cientistas sociais insistem em considerar a expansão européia nas Américas um fenômeno peculiar do capitalismo mercantil. A fase de transição feu-dalismo—capitalismo teria sido dominada pelo capitalismo mercantil, gerado, diretamente, no processo de circulação de mercadorias e agente dinamizador de toda a vida econômica subseqüente.

Em princípio sabemos que a circulação ou a troca não criam valor. O ciclo do comércio não produz mercadorias, mas, p o r ocasião do antigo comércio a longa distância entre continentes, beneficia-se dos preços relativos das mercadorias, das diferenças culturais entre os povos e t c , obtendo fartos lucros. Trata-se, como vimos, de acumulação estéril. Capita-lismo é, substancialmente, produção de mercadorias. Nesta linha, quando o comércio não está unido à realização da mercadoria produzida, m a s limita-se a especular com a pro-dução, não se pode falar, impunemente, da existência de ca-pitalismo mercantil. No caca-pitalismo, uma parte do capital total é empregada na esfera da circulação. Na transição feudalismo—capitalismo, parte do capital comercial aban-dona o caráter meramente especulativo, ingressa no circuito da produção ou realização de mercadorias e se dedica à tarefa de realizar o valor nelas contido, dadas as condições sociais e econômicas favoráveis, acima descritas.

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Capitalismo tardio

Outro equívoco consiste em supor a existência de capi-talismo tardio na América Latina (a expressão foi cunhada por Sombart). O capital comercial, em nosso continente, não se limitou a explorar os modos de produção preexistentes — afirmam os epígonos desta tese — mas teria desdobrado o âmbito da circulação, que lhe é próprio, e invadido a esfera da produção, constituindo a economia colonial.

Esta hipótese não suporta algumas observações, dentre elas a de q u e os conquistadores não dispunham de capitais expressivos, nem de experiência no r a m o comercial. O capital comercial da época não se interessava pelos espaços vazios, muito menos pela modesta e exótica produção artesanal de astecas e incas. Não havia o que explorar nesse sentido. A conquista, em semelhantes circunstâncias, não é empresa mercantil. Os primeiros conquistadores, sobretudo na Nova Espanha (México), tiveram de organizar a produção, a princí-pio p a r a subsistência própria, posteriormente, descobertas as minas de prata, surgem pólos de desenvolvimento u r b a n o com produção mais diversificada. A mão-de-obra indígena foi empregada na mineração, em grande escala no Peru, em me-nor n ú m e r o no México. A atividade agrícola, quer de subsis-tência, quer de exportação, serviu-se do celeiro de mão-de-obra indígena. Os comerciantes, nestas regiões, não se empe-n h a r a m empe-na atividade produtiva, quer empe-na agricultura, quer empe-na mineração, a não ser de maneira esporádica.

Os comerciantes se interessavam por essas atividades, no entanto não foram os seus iniciadores. Viriam mais tarde, para intermediar as transações, financiar a produção (forne-cendo adiantamento em víveres, implementos etc. aos minei-ros, p o r exemplo), abastecer os mercados incipientes e esta-belecer o intercâmbio europeu-americano, à proporção q u e aumentava a demanda americana p o r produtos europeus de-corrente da expansão da fronteira agrícola e do setor mineiro.

O capital mercantil, dessa maneira, não invadiu a produ-ção americana, mas dela foi complemento e interagiu com ela em alguns ramos, raramente abandonando a esfera da circulação, que lhe é própria.

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Na América, a atividade agrícola, quer de subsistência, quer de exportação, serviu-se do celeiro de mão-de-obra indígena. Detalhe do mural "História da Independência Mexicana", mostrando a

subjugação de trabalhadores indígenas no período colonial.

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Feudalismo colonial?

A hipótese da existência de feudalismo nas formações sociais do denominado colonialismo americano tem susci-tado polêmicas infindáveis. Os seus partidários afirmam que o feudalismo era o modo de produção dominante no período colonial e além dele. Argumentam com a existência de gran-des latifúndios, operando mão-de-obra escrava ou em regime de semi-servidão. Os trabalhadores, acrescentam, estavam submetidos ao sistema de barracão, ou seja, eram obrigados a comprar o pouco de que necessitavam nesses barracões, de propriedade de latifundiários, a preços de tal m o n t a que acabavam, pelas dívidas contraídas, obtendo recursos apenas suficientes p a r a reproduzir precariamente a sua força de trabalho.

O regime das grandes fazendas, das plantações, contudo, não foi idêntico em toda a América Latina.

A força de trabalho escrava, nessas empresas agrícolas, era mercadoria adquirida por custo determinado e entrava no cálculo da produtividade que já dominava o m e r c a d o mundial (evidentemente estamos nos referindo às explorações agrícolas e industriais voltadas para este tipo de produção). O trabalhador livre das fazendas não era servo da gleba. Formalmente podia abandonar as fazendas e isto acontecia freqüentemente.

As Américas e o mercado mundial

As Américas, a partir da conquista e da colonização, integraram o conjunto de mudanças estruturais que sepulta-ram o feudalismo europeu e consolidasepulta-ram o caminho p a r a a hegemonia do capitalismo.

A contribuição americana p a r a este processo consistiu na ampliação do comércio europeu-americano e, conseqüen-temente, intra-europeu, no desenvolvimento da indústria, da tecnologia, da construção naval etc. A produção em massa de panos de qualidade inferior, em parte destinada a abas-tecer os novos mercados americanos, constituiu o alicerce

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da indústria têxtil inglesa. A integração americana no merca-do internacional concorreu para compor esta economia mun-dial capitalista e as sucessivas hegemonias dos grandes paí-ses industrializados.

A contribuição americana para a hegemonia capitalista consistiu na ampliação do comércio euroamericano. A ilustração mostra a

atividade comercial no importante porto inglês de Bristol.

As Américas e a acumulação capitalista

A acumulação de capital dá-se no que se convencionou c h a m a r de economias centrais. Na transição feudalismo— capitalismo esta acumulação ocorre nas áreas européias que ingressavam na produção intensiva de bens de consumo, com produtividade crescente para a época. A Inglaterra assumiu

Referências

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