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OS(I)LIMITES DA RELAÇÃO ASSOCIATIVA NO CURSO DE LINGUÍSTICA GERAL Maria Hozanete Alves de Lima 1

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OS(I)LIMITES DA RELAÇÃO ASSOCIATIVA NO CURSO DE LINGUÍSTICA GERAL

Maria Hozanete Alves de Lima1

RESUMO: Este trabalho investiga, através de um retorno à leitura do Curso de Linguística Geral (CLG), a especificidade das relações associativas que, interligada de maneira recíproca à relação sintagmática, corresponde a uma das esferas de funcionamento do sistema linguístico. Nosso interesse é direcionado para uma questão bem pontual, qual seja, a associação pela “simples comunidade das imagens acústicas” (CLG, 2012, p, 174), que tem gerado uma atenção especial entre os especialistas da obra do linguista Ferdinand de Saussure, cujo nome está ligado diretamente ao surgimento da Linguística como ciência. Seguiremos, para tanto, um caminho duplo: as lições expostas no próprio CLG e as discussões apresentadas em obras críticas e filológicas sobre nosso objeto de investigação.

PALAVRAS CHAVE: Curso de Linguística Geral. Signo linguístico. Relações associativas.

ABSTRACT: His work investigates, through a return to reading the Course in General Linguistics (CLG), the specificity of associative relationships that interconnected in a reciproc always to syntagmatic relation corresponds to one of the operating level sof the linguistic system. Our interest is directed to a very specific question, namely, the association for the "simple community of acoustic images" (CLG, 2012, p, 174), which has generated particular attention among the specialists in Ferdinand de Saussure’s work, who se name is connected directly to the emergence of linguistics as a science. We will proceed a double path: the lesson soutlined in own CLG and discussions presented in critical and philological works on our research object.

KEYWORDS: Course in General Linguistics. Linguistic sign. Associative relations.

INTRODUÇÃO

Nosso ponto de partida, quando assumimos a posição de linguista, é direcionado pelos caminhos de um pressuposto, aparentemente simples e corriqueiro. Admitimos que qualquer investigação, no campo da Linguística, poderia, grosso modo, ser materializado através do seguinte enunciado: no princípio está a língua; e a língua tem um funcionamento (LIMA, 2012). Basta, porém, interrogarmos o que é a língua e como ela funciona para vermos uma complexidade se conjugando, em diversas direções e sob um desejo consensual: construir um “saber sobre a língua”. Para Jean-Claude Milner (1989, p. 336), embora a linguística e tudo que se construa sua égide esteja fadada a nunca acabar o dispositivo de suas argumentações, cada dispositivo se revelaria como “um modo de ser inédito de concluir”. Considerando a Linguística e a posição que ela ocupa no seio das ciências modernas, provavelmente, o maior dispositivo inédito de suas argumentações, que veio a

1 Professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pós-doutora pelo Institut dês Textes et Manuscrits Modernes (ITEM) CNRS / ENS – (Paris–França). email: hozanetelima@gmail.com

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público mesmo sem a chancela de seu suposto autor, é o Curso de Linguística Geral (CLG). Fruto de aulas proferidas por Ferdinand de Saussure, na Universidade de Genebra e, consequentemente, das anotações de alunos, o CLG fez parte de um projeto editorial cujo objetivo seria apresentar ao mundo as fecundas ideias de um ilustre professor que considerava a urgência de um “programasemiológico” capaz de “empregar expressões que correspondam às realidades absolutas da linguagem, classificadas de maneira infalível” (SAUSSURE/ELG, 2004, p. 200). Quando citamos o CLG, é sob o nome de Saussure, como autor, a quem nos referimos; de maneira recorrente, aludimos a situações específicas, no interior da obra, que não seja da autoria do linguista genebrino, a exemplo da conhecida frase: “A Linguística tem por único e verdadeiro objeto a língua considerada em si mesma e por si mesma” (CLG, 2004,p. 305). As notas de rodapé também marcam os limites e separam o que seria pensamento do “mestre” e o que seria pontuações dos organizadores do CLG.

Para muitos especialistas, o CLGé um projeto editorial manufaturado, fruto da capacidade intelectual de seus organizadores que tiveram acesso a poucos manuscritos de Ferdinand de Saussure e, de igual modo, a certos cadernos de alunos que frequentaram os cursos oferecidos pelo linguista, entre os anos de 1907 a 19112. Obras críticas e filológicas acionam os problemas

envolvidos na organização do CLG feita por Charles Bally e Albert Sechehaye; dentre elas, as preciosas edições Robert Godel (1957) e Rudolf Engler (1968, 1974),recuperando textos do próprio Saussure e cadernos de alunos cujas ideias não foram incluídas na edição de 1913.Consoante Tullio de Mauro (2013, p. 32), os trabalhos de Godel representam uma confirmação analítica e “revelam que os primeiros editores do Curso utilizaram esses materiais apenas em parte e nem sempre de maneira apropriada”. O próprio Tullio de Mauro (2005) nos oferece uma edição crítica do CLG, cujas notas (305 no total) recenseiam as principais ideias expostas no CLG e nos oferecem um arcabouço bibliográfico significativo.

Recentemente, no ano de 2002, Rudolf Engler e Simon Bouquet publicaram os Écrits de LinguistiqueGénérale (ELG), tornando público uma série de manuscritos de Ferdinand de Saussure, para muitos, perdida ou inexistente. Nesta edição, os autores apresentaram “além dos textos fragmentários conhecidos até então, os esboços consistentes de um livro sobre a linguística geral”. (ELG 2002, p. 15). Tais manuscritos nos foram ofertado pelo acaso; no ano de 1996, “durante os trabalhos de mudança da antiga casa da família Saussure em Genebra, os herdeiros encontraram uma documentação contendo folhas manuscritas de seu ancestral, que até então haviam escapado às minuciosas procuras anteriores” (MAURO, 2013, p. 34) e, nela, um pacote de folhas guardadas em separados envelopes, cada um deles nomeado de formas diferentes, a exemplo de “Ciência da linguagem”, “Da essência dupla”, “Da Dupla essência”, “Da Essência etc”. (AMACKER, 2011, p. 12). O acesso aos

2 Claudine Normand (1995), consciente das diferenças entre os manuscritos e os textos apócrifos e da tensão estabelecida pelos estudos críticos e filológicos defende que não se pode reduzir o CLG a uma “ficção”, fruto da capacidade intelectual de seus organizadores, “trata-se de um objeto histórico bem real e que produziu efeitos como tal”. Michel Arrivé (2002), por este mesmo caminho, defende que não se pode “esquecer que foi o CLG, com suas particularidades, que agiu sobre a linguística e sobre as ciências humanas”.

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manuscritos saussureanos (MFS), depositados na Biblioteca Pública e Universitária de Genebra (BPU), nos permitem acompanhar, em potencialidade, as atividades reflexivas – e, assim, metalinguageiras – que caracterizam o modus analiticus de Ferdinand de Saussure. Rasuras, substituições, deslocamentos, enunciados entre enunciados, frases inacabadas, partes de textos completamente excluídas – através de traços cruzados– desenham buscas incessantes, dúvidas e dificuldades na construção de um conjunto de ideias que pudessem dar conta do “objeto, ao mesmo tempo integral e concreto da Linguística” (CLG, 2012, p. 39). Esta reflexividade, todavia, ao que nos parece, não escapa ao CLG, embora se defenda que ele silencia os dilemas e as dificuldades claramente visíveis nos MFS. Simon Bouquet (1999) defende que esse silêncio se deve à tomada de posição dos redatores, que pretendiam apresentar ao leitor o claro programa de uma ciência, de sorte que podaram tudo que sugerisse a sombra, por assim dizer, a inquietude e o vigor do pensamento saussuriano. A descoberta dos manuscritos tem promovido nos muros acadêmicos uma certa inquietação e, ao mesmo tempo, uma espécie de retorno à obra fundadora da Linguística como ciência moderna. Não falamos aqui de um retorno marcado, somente, por estudos comparativos entre os textos, mas de uma volta ao próprio CLG: estamos relendo, ou lendo, pela primeira vez, o CLG, revisando pontos, desconfiamos de certezas dantes adquiridas, até nos jogamos, quiçá, à obra, do começo ao fim.

Foi através deste movimento de retorno que nos interessamos por uma questão bem pontual, já mesmo discutida por alguns especialistas saussurianos. Nosso objetivo é problematizar, revisitar a literatura e acompanhar o modo específico como o CLG trata as relações associativas que, ao lado das relações sintagmáticas, constitui o funcionamento das unidades linguísticas – signo linguístico, entidade de duas faces: significante e significado. No conjunto das relações associativas descritas no CLG, a associação pela “simples comunidade das imagens acústicas” (CLG, 2012, p, 174), tem gerado um desafio particular na compreensão do que ela pode representar no sistema linguístico, como pensado por Ferdinand de Saussure. Acompanhemos então, as lições do CLG e a literatura que se ocupa desta questão em especial.

AS RELAÇÕES E ATIVIDADE MENTAL

Ferdinand de Saussure apresenta o capítulo sobre as relações sintagmáticas e associativas nos seguintes modos:

Assim, pois, num estado de língua, tudo se baseia em relações; como elas funcionam?

As relações e as diferenças entre termos linguísticos se desenvolvem em duas esferas distintas, cada uma das quais é geradora de certa ordem de valores; a oposição entre essas duas ordens faz compreender melhor a natureza de cada uma.

Correspondem a duas formas de nossa atividade mental, ambas indispensáveis para a vida da língua. (CLG, 2012, p.

171 – negrito nosso)

Estabelecer relações seria, nas palavras de Saussure, uma capacidade humana linguageira “inata” ao falante (a faculdade da linguagem?), e não uma propriedade específica da língua. A expressão “atividade mental” nos faz

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pensar no campo da psicologia, e veremos surgir, em Saussure uma problematização célebre, a relação entre a Psicologia, a Semiologia e a própria Linguística. A Psicologia, aos seus olhos, não havia construído um discurso sobre o funcionamento de qualquer unidade simbólica.

Ora, a psicologia possui uma semiologia? A pergunta é inútil, visto que, se fosse esse o caso, os fenômenos da língua que a psicologia ignora seriam a tal ponto preponderantes como base do fato semiológico, que tudo o que pudesse ser dito fora deles pelo psicólogo representa forçosamente nada ou perto de nada (ELG, 2002, p. 195)

Estaria em voga não a inserção da Linguística na Psicologia, mas as tomadas de posição em relação a uma nova ciência do espírito humano fundada sobre uma teoria dos signos aplicada à linguagem, que poderia ser nomeada de “psicologia da linguagem”. Seria, nas palavras de Simon Bouquet (1999), sobre uma base metafísica do signo que Saussure critica a Psicologia, perspectiva sobre a qual a Semiologia estabeleceria seus princípios e teoremas gerais. Neste sentido, assume o autor, “ocorre que à psicologia falta metafísica e que a metafísica semiológica é candidata a fornecer aos trabalhos futuros da psicologia o saber não-positivo crucial que lhes permitirá um novo avanço” (BOUQUET, 1999, p. 177)

Já a Semiologia, conquanto não se pudesse prever como se comportaria, desfrutaria de um lugar privilegiado em relação à Linguística. Todavia, ainda assim, no fim das contas, seria dela devedora, uma vez que seria necessário “colocar-se primeiramente no terreno da língua e toma-la como norma de todas as manifestações da linguagem” (CLG, 2012, p. 41), cabendo ao linguista, por sua vez, estabelecer o que faria da língua um sistema especial no seio dos demais fatos semiológicos.No interior deste grande construto, um pequeno ponto seria merecedor de atenção: demonstrar que em um estado da língua, tudo seria dado através de relações que “correspondem a duas formas de nossas atividade mental, ambas indispensáveis para a vida da língua” e geradoras de certa ordem de valores (CLG, 2012, p. 171).

AS RELAÇÕES ENTRE AS RELAÇÕES

Em um estado de língua, tudo se baseia em relações. A “relação sintagmática” leva em conta o “caráter linear da língua, que exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo”; tais elementos “se alinham um após o outro na cadeia da fala” (CLG, 2012, p. 171). Neste alinhamento, o valor de um elemento resulta da presença simultânea dos demais, o que atribui a cada elemento características particulares: são negativas, opositivas e relativas. Assim, nenhuma unidade linguística seria um fato dado em si, positivo e anterior a qualquer relação. A relação sintagmática se estabelece entre termos in prasesentia, e é condicionada, de maneira recíproca, pela “relação associativa” –

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nomeada, também, “relação paradigmática” – que “une termos in absentia numa série mnemônica virtual” (CLG, 2012, p. 172)3.

Embora não nos concentremos nas relações sintagmáticas, parece ser imprescindível deixar claro que os vocábulos utilizados para defini-la, a exemplo de “elementos”, “termos” não definem a unidade linguística como sendo uma “palavra”, unidade lexical descrita pelos gramáticos (embora uma “palavra” possa representá-la), pois ela se estende, também, “aos grupos de palavras, às unidades complexas de toda dimensão e de toda espécie (palavras compostas, membros de frases, frases inteiras)” (CLG, 2012, p. 172). A noção de unidade linguísticaé fundamental para compreender o ponto de vista assumido por Charles Bally e Albert Sechehaye, no esquema através do qual vão expor a argumentação sobre o funcionamento das relações associativas.

Em uma relação associativa, os termos não se apresentam em um número ou em uma ordem determinada, pois o “termo dado é como o centro de uma constelação, o ponto para onde convergem outros termos coordenados cuja soma é indefinida” (CLG, 2012, p. 175). Para representar a relação in absentia, o CLG faz uso da palavra francesa “enseignement” descrevendo as possibilidades de relações entre ela e outros termos da língua através do seguinte esquema:

O esquema descreve 4 tipos de relações, embora supunha outras possibilidades indefinidas.

1. associação através do radical da palavra: daí, “enseignement”, “enseigner”, “ensegnons”, etc;

2. associação por contiguidade semântica: “enseignement”, “apprentissage”, “éducation”, etc;

3. associação por classe de palavras, estabelecidas pela contiguidade semântica de seus sufixos(ment): “enseignement”, “changement”, “armement”, etc;

4. associação por comunidade de imagens acústicas: “enseignement”, “clémente”, “justement”, etc.

As relações associativas – e sintagmáticas – fazem parte da construção de um programa semiológico saussureano, de modo que tudo que se diga sobre elas não pode ser dele separado.Um dos conceitos básicos deste programa é o de signo linguístico, concebido como entidade de duas faces inseparáveis, o significado e o significante. Tomados isoladamente, ou fora do sistema do qual

3 Jacques Lacan (1998, p.505) fez uso de uma metáfora bastante sugestiva ao considerar as relações associativas e sintagmáticas: “anéis cujo colar se fecha no anel de um outro colar feito de anéis”.

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fazem parte, não constituem uma unidade morfológica (ELG, 2002, p.28). Jean-Claude Milner (1987) questiona sobre a força de “evidência” do conceito do signo, precisamente, da maneira como ele é caracterizado. Para Milner, essa evidência parece emergir do fato de que não conseguimos pensar a linguagem senão emparelhando “vibração sonora” e “idéia”. Se o signo pudesse ser pensado de modo diferente do que é geraria, assim, um antes do “encontro contingente” ou da relação “necessária” entre o significante e o significado.

Quer dizer, um deslocamento retrospectivo, o qual ofusca todo pensamento e toda intuição. Daquilo que não cessaria de não se escrever a isto que, doravante, não cessa de se escrever, desaparece o evento contingente: a cessação do não se escrever, cuja impossível narração se faça de bom grado (MILNER, 1983, p. 41).

Desde que se tome o signo em sua duplicidade, pode-se reclamar da separação anterior, entreabrindo-se para um “ilimitado disto que não tem nome, nem forma. O Isso disjunto das subjetivações” (MILNER, 1983, p. 41 – itálico nosso).Seria, então, para marcar uma positividade, uma estabilidade, através de um efeito de ancoragem, a que a serviria a relação de dependência entre o significante e o significado.

Saussure, também ele, sentiu o peso de suas escolhas, assumindo-as: “quanto a signo, se nos contentamos com ele, é porque não sabemos por que substituí-lo, visto não nos sugerir a língua usual nenhum outro” (CLG, 2012, p. 107).

De que maneira a demanda filosófica de Milner é significativa no conjunto de nossa discussão? Ensaiaremos uma resposta partindo da postura assumida pelos organizadores do CLG mediante a “associação por comunidade de imagens acústicas”:

Este último caso é raro e pode passar por anormal, pois o espirito descarta naturalmente, as associações capazes de perturbar a inteligência do discurso, sua existência, porém, é provada apor uma categoria inferior de jogos que se funda em confusões absurdas que podem resultar do homônimo puro e simples, como quando se diz em francês: “ Lesmusiciensproduisentlessons et lesgreinitierslesvendent” [Os músicos produzem as notas e os perdulários as gastam”]. Cumpre distinguir esse caso daquele em que uma associação, embora se pode apoiar numa associação de idéias (cf. frergor: ergoter, alemão, blau: durchebleuen, moer de pancadas; trata-se, no caso, de uma interpretação nova de um dos termos do par; são casos de etimologia popular (ver p. 232); o fato é interessante para a evolução, mas do ponto de vista sincrônico cai simplesmente na categoria ensinar: ensino mencionadas (org.) (SAUSSURE, 2012, p. 174)4

4 Vale notar que a tradução em português do exemplo francês citado é de autoria dos tradutores da edição brasileira. A enumeração das notas, nesta edição, não obedece à mesma organização das notas da edição francesa. A nota de rodapé 7, corresponde à nota 1, não do capítulo V, mas de seu terceiro parágrafo “As relações associativas). Essa organização não promove, evidente, problemas ao texto; nossa atenção é voltada para os leitores que se servem mutuamente da edição francesa.

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Nas três primeiras séries de associações já destacadas, o significante e o significado estão em jogo, diferentemente da quarta, cuja associação se realiza através de uma parte do signo linguístico: o significante.Nesta linha de pensamento, apenas as séries 1, 2 e 3, interessariam a Saussure e ao seu programa semiológico, posto se realizarem através de signos linguísticos? Seria este o motivo pelo qual Charles Bally e Albert Sechehaye consideram a relação por significantes enquanto “anormal”, “descartada pelo espirito”, perturbadoras “da inteligência do discurso” e “provada por uma categoria inferior de jogos”, a exemplo do fenômeno da homonímia?

Duas questões aí se impõem. Primeiro, o programa semiológico de Ferdinand de Saussure que opera, de modo brilhante, na busca de compreender como, no seio das diferenças, da relação e oposição, uma “positividade” (um arbitrário relativo? a união de um significante a um significado? uma relação associativa? uma morfologia?) ai se estabelece; segundo, uma “ponta”escorrega por outra porta, é o transbordamento puro da imagem acústica, ancorando-se em uma imagem acústica semelhante. Não seria, assim, uma minúscula manifestação, dente tantas outras, de existência de uma espécie de “movimento simbólico” revelado através de “nossa atividade mental”? Assim, “normal” e manifestada por uma categoria de jogos sempre presentes em nossas falas cotidianas?

Túlio de Mauro, referindo-se a esse tipo de relação associativa, escreve que “a teoria freudiana dos lapsus linguae pode ser considerada como uma confirmação clínica da hipótese de Saussure” (MAURO, 2005, p.469). Neste olhar, fortemente marcado por uma visada psicanalítica, encontramos, também, Michel Arrivé (1999), para quem as considerações dos editores foram relegadas a uma simples nota. Aos seus olhos, os editores deveriam ter tido uma indulgência em relação a esse tipo de associação; a bem dizer, uma indulgência freudiana5 .

Robert Godel (1957) menciona que nos documentos por ele consultados não há nenhum exemplo, no esquema elaborado pelo linguista genebrino, cujas relações associativas sejam estabelecidas apenas pelos significantes, e que elas seriam uma criação dos editores do CLG. Ainda assim, Tullio de Mauro (2005, p. 469-70) entende que o próprio Saussure suscitaria tal interpretação, quando postula as relações associativas entre as palavras blau e durchblauen. Robert Godel, diferentemente de Tullio de Mauro, lê as coisas de outro modo. Vejamos. Em alemão, a palavra durchblauen(moer de pancadas) origina-se de bliuwan (fustigar) e associa-se ablau(azul), por causa das esquimoses, consequências de pancadas. Neste cruzamento, todavia, como acentua Godel

5 Consoante Arrivé (1999), as relações entre a Linguística e da Psicanálise estiveram muito mais próximas do que se supõe. Podem ser citas: as reflexões de Sigmund Freud sobre as pesquisas do filólogo Karl Abel, que muito lhe ajudaram para compreender o funcionamento do sonho; a presença do material linguístico na obra de sigmund Freud, “os chistes e sua relação com o inconsciente”; os trabalhos sobre os anagramas desenvolvidos por Saussure falando de um arranjo diferente da ordem no tempo em que se apresentam os elementos. Como assenta Michel arrivé (op.cit.:21), “cada um, à sua maneira, Freud e Saussure assinalam a possibilidade e a necessidade de um contato e de uma colaboração entre linguística e psicanálise”. Dois fatos ainda interessantes: o filho de Saussure, Raymond de Saussure foi aluno de Sigmund Freud e sugerira, em carta enviada a Charles Bally, um encontro entre a linguística saussuriana e a Psicanálise freudiana.

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(1957, p. 264) “os significados também estariam em jogo”, e não apenas as semelhanças acústicas entre os significantes.

Poderíamos colocar o discurso dos organizadores do Curso – quando evocam a homonímia estabelecida entre a palavra sons/sons (sons- nota musical/ sons-dinheiro) no seio de uma cadeia sintagmática qualquer – na conta do “arbitrário absoluto”, como característica do signo linguístico? É uma questão para se pensar – mas não o faremos neste trabalho.

Aos olhos de Milner(1989, p.53), o que subsiste no discurso sobre as relações associativas – e, sobretudo, na questão sobre a delimitação das unidades, como veremos adiante – é a percepção de que se “toda língua é capaz de gramática”, é porque “toda língua écapaz de poesia”. Já nas palavras de Claudia Lemos, as potencialidades das relações entre os elementos linguísticos são infinitas, contudo, “no Curso, todos os comentários sobre relações que produzem formas não-esperadas (não calculadas) visam a limitar a ideia de que o mecanismo funcione além da gramática” (LEMOS, 1998).

A (DE)LIMITAÇÃO DAS UNIDADES LINGUISTICAS

No capítulo dedicado à Linguística Sincrônica, Ferdinand de Saussure, define a unidade linguística como “uma porção de sonoridade que, com exclusão do que precede e do que segue na cadeia falada, é significante de certo conceito”, de modo que “só existe pela associação do significante e do significado” (SAUSSURE, 2012, p. 106).

O linguista recorre à ideia de delimitação como recurso para reconhecer a identidade das unidades linguísticas. Em seu exemplo, (sejelaprends), há o reconhecimento das seguintes unidades 1º se (pronome); 2º je (pronome); 3º

la (pronome); 4ºprends (verbo). Esta primeira operação nos evoca os

“paradigmas” destacados pelas “gramáticas” – no sentido comum do termo – nomeados, grosso modo, de “classes de palavras”. Porém, é necessário ir mais além, pois, como já anunciado anteriormente, a noção de unidade (ou entidade linguística) também se estende “aos grupos de palavras, às unidades complexas de toda dimensão e de toda espécie (palavras compostas, membros de frases, frases inteiras)” (CLG, 2012, p. 172). Consequentemente, outros recortes podem ser operados: 5º Se jelaaprends; 6º Se jel’apprends.Nos interior das quinta e sexta operações, de modo excepcional, a tentativa de delimitar unidades em uma cadeia sintagmática convidando uma relação associativa por comunidade auditiva: laaprends/l’apprends.

O “método da delimitação”, por outro lado, ainda exige uma postura do falante que Saussure anuncia nos seguintes termos:

Quem conhece uma língua delimita-lhe por um método bastante simples, pelo menos em teoria. Consiste ele em colocar-se a pessoa no plano da fala, tomada como documento da língua, e em representa-la por duas cadeias paralelas: a dos conceitos (a) e a das imagens acústicas (b). (CLG, 2012, p. 149).

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Essa postura assumida por Saussure, como afirma Claudia Lemos (1998) nos faz perceber que o linguista traz para o interior de sua discussão a fala que inicialmente havia separado da língua. Para Lemos, “ainda que separe a língua da fala, fazendo da primeira o objeto da linguística, não consegue se deter na primeira e deixar de procurar o lugar da fala e do falante no funcionamento da língua”; nessa busca, Saussure se depara com o fato de que “é impossível para o falante, da posição que lhe é dada pelo ato de falar, escolher, decidir e controlar o que da língua escorre para sua fala” (LEMOS, 1998, p. 6). E “a operação pela qual se impõe uma delimitação à cadeia remete a algo mais do que o simbólico que a língua presentifica” (idem, p. 6).

Para Milner (1987), o exemplo exibido (“sejelaprends”), em linhas gerais, estenografa que a língua é sobrecarregada de homofonia, de efeitos que promovem dubiedade, suspeição, “escutas” inesperadas. A homofonia surge não como lugar através do qual se possa identificar as unidades da língua, uma vez que ela vem “desestratificando, confundindo sistematicamente som e sentido, menção e uso, escrita e representado, impedindo, com isto, que um estado possa servir de apoio para destrinchar um outro” (MILNER, 1987, p.15).

Nas palavras de Gadet e Pêcheux (1981), abre-se a língua para o espaço do equívoco, da duplicidade de sentidos, da não-univocidade, de um idêntico que retorna sobre a forma do não-idêntico, e que é inerente à linguagem (GADET & PÊCHEUX,1981, p. 57-8). O não-idêntico enquanto “diferença” constitutiva do signo linguístico, e, de um sistema linguístico que também a coloca no espaço do equívoco. Seria a dimensão do idêntico e do não-idêntico a si que se encontra sob a rubrica do equívoco: “tudo aquilo que promove homofonia, homossemia, homografia, tudo o que suporta o duplo sentido e o dizer em meias palavras, incessante tecido de nossas conversações”, conferindo uma a uma as séries homogêneas constituídas pelos fonemas, pelos morfemas, pela sintaxe, pelo sentido dicionarizado, etc.(MILNER, 1987, p.12-13).

Em um e em outro lugar, poderíamos assumir, com Milner (1983, p.40), que “nenhum ser falante pode se vangloriar de ter o controle dos ecos múltiplos de seu dizer”, ou com Claudine Normand (2000, p. 155): “tudo que depende de um sujeito na singularidade das associações escapa à análise”. Normand (1990) fala do resto invariável e indefinido intervindo em variadas formas e graus na significação; reenviamos um interessante jogo, apresentado pela linguista francesa, aos dois campos até aqui analisados, o da associação e o da delimitação, intercruzando o caminho do “l’apprend”/laprend” com o estabelecido por Normand entre “enseignement”/“ens´aimant”.

O esquema sobre as relações associativas puramente e os exemplos através dos quais uma delimitação poderia operar são frestaspor onde escapam as homofonias e as homonímias; o anúncio de que o sistema (considerando que é necessário um sujeito para que o sistema funcione) geraria pontos de subversão do estritamente “gramatical” e “morfológico”, embora, ainda assim, sem sair mesmo da ordem simbólica que é a língua. Ao final das contas,Saussure nos foi muito generoso, quando nos ofertou “Se jelaaprends”,

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muito mais que os organizadores do CLG, através da frase “Les musiciens produisent les sons et les greinitiers les vendent”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo que dissemos até o momento, pelas releituras de especialistas da obra de Ferdinand de Saussure, visualizamos o reconhecimento de uma dimensão simbólica que ultrapassa a menção que sempre fazemos da língua como sistema morfológico. Seria ingênuo, porém, de nossa parte, pensarmos que Saussure não tinha consciência de que a língua era constitutiva dessa dimensão; ele próprio assumiu – pelo lado da significância – que “entre o começo e o fim de uma frase, somos cinco ou seis vezes tentados a refazê-la”. (SAUSSURE, apud STAROBINSKI, 1974, p.11) e que “haverá, um dia, um livro especial e muito interessante a ser escrito sobre o papel da palavra como principal perturbador da ciência das palavras” (ELG, 2004, p. 144). Os manuscritos saussureanos depositados na BPU, inacabados, rasurados, cortados, e não-publicados por ele, insinuam, do mesmo modo, uma dimensão que escapa. Mas, é preciso não perder de vista que a língua não pode ser vista apenas pelo lado do equívoco, como vimos nas análises sobre as relações associativas por significantes puramente, nem na homofonia infiltrada no método de delimitação das unidades. Pois, como defende Saussure, a imagem acústica, sozinha, não pode ser tomada como unidade linguística; que não há nenhuma entidade linguística, entre as que nos são dadas, que seja simples, porque, mesmo reduzida a mais simples expressão, ela exige, que se leve em conta, ao mesmo tempo, um signo e uma significação e que contestar essa dualidade ou esquecê-la equivale diretamente à privá-la de sua existência linguística, atirando-a, por exemplo, ao domínio dos lados físicos (ELG, 2004, p. 23).

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Referências

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