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Governança Multinível na Espanha pós-crise: mais centralização ou busca por coordenação? 1

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Academic year: 2021

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Governança Multinível na Espanha pós-crise: mais centralização ou

busca por coordenação?

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Daniel Arias Vazquez (UNIFESP)

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O Estado Autonômico espanhol é um caso exemplar da importância das instituições (ou da falta delas) para promover a cooperação entre níveis de governo. Há um intenso debate sobre a capacidade regulatória do governo Central após a forte descentralização ocorrida com a transição democrática e que culmina na promulgação da Constituição de 1978, conferindo aos governos regionais (Comunidades Autônomas - CCAAs) amplos poderes de decisão sobre a gestão e o financiamento das políticas sociais, com garantias constitucionais para um sistema altamente descentralizado, com competências exclusivas das CCAAs no âmbito das políticas sociais e com reduzida capacidade de coordenação do nível central. Passado 30 anos, após crise econômica de 2008, Del Pino e Pavolini (2015) afirmam que cresceu a regulação e o controle sobre as contas públicas dos governos regionais na Espanha e em outros países da Europa mediterrânea. Portanto, qual é a configuração atual da governança multinível na Espanha?

Nesse artigo, serão analisadas três mudanças institucionais de destaque relativas aos mecanismos de coordenação intergovernamental sob o contexto da crise. A primeira delas é reforma no sistema de financiamento do regime comum (Ley n. 22/2009), cujos objetivos é preencher a brecha vertical, ampliar a descentralização fiscal e reduzir as desigualdades nos recursos disponíveis a cada CCAA. A segunda é a instituição do Fundo de Liquidez Autonômico - FLA, em 2012, como forma de garantir solvência econômica às CCAAs que tiveram acesso ao crédito privado restringido com o agravamento da crise. Por último, houve uma mudança no processo de tomada de decisões nas Conferências Setoriais - CCSS, em 2015, como forma de facilitar a aprovação de acordos entre Estado e as CCAAs.

O objetivo dessa análise é determinar se os resultados dessas reformas foi uma maior centralização de poder ou um aperfeiçoamento dos mecanismos de coordenação. Para isso, as relações intergovernamentais na Espanha serão analisadas à luz do federalismo brasileiro. A partir dessa perspectiva comparada, pretende-se verificar se os novos arranjos institucionais, implantados durante a crise, promoveram recentralização e em que medida a ampliação da capacidade de regulação do Estado impôs restrições à autonomia dos governos regionais.

1 Artigo apresentado no 44º Encontro Anual da ANPOCS 2020 no GT 33 – Políticas Públicas. Trabalho em andamento para discussão no âmbito exclusivo do GT. Favor não citar.

2 Doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp. Professor Associado da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp (Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais). Contato: dvazquez@unifesp.br

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No Brasil, as reformas institucionais promovidas a partir da 2ª metade dos anos 1990 implicaram na limitação da autonomia local em função dos novos mecanismos de regulação federal, exercida por meio de diferentes instrumentos jurídicos institucionais, introduzidos por reformas constitucionais durante os anos 1990 e 2000. Dickovick (2011) e Dickovick e Eaton (2013) afirmaram que os processos de recentralização ocorridos na América Latina, no final dos anos 90 e início dos anos 2000, promoveram mudanças institucionais também por meio de novas camadas, com introdução de regras que coexistem com a distribuição de competências definidas no processo de descentralização, sem uma redistribuição de autoridade política, recursos fiscais e competências na provisão de políticas públicas. Falleti (2005; 2010) postulou que, apesar da suposição generalizada de que a descentralização fiscal sempre capacita os atores políticos subnacionais, ela também pode diminuir a autoridade dos governos subnacionais, pois pode não vir associação com capacidade de tomar decisões sobre políticas, dimensão crucial a ser observada na análise da (des)centralização.

Seria esse o mesmo caminho do Estado Autonômico espanhol pós crise? As mudanças institucionais nas relações intergovernamentais na Espanha introduzidas durante a crise seriam “novas camadas” centralizadoras, tal como ocorreu na América Latina? Como a análise comparada com as reformas do federalismo brasileiro pode ajudar a interpretar as reformas ocorridas na Espanha?

Atualmente, há um intenso debate na Espanha sobre a capacidade regulatória do governo Central após a forte descentralização ocorrida desde o final dos anos 70, com a transição democrática e após a promulgação da Constituição de 1978, conferindo aos governos regionais (CCAAs) amplos poderes de decisão sobre a gestão e o financiamento das políticas sociais, sendo considerada como um Estado semi-federal (ELAZAR, 1998; ROCHA, 2013). Enquanto no Brasil a autonomia local é fortemente limitada pela regulação federal (VAZQUEZ, 2012), o Estado Autonômico espanhol possui garantias constitucionais para um sistema altamente descentralizado, com competências exclusivas das CCAAs no âmbito das políticas sociais, com reduzida capacidade de coordenação do nível central, em comparação com o Brasil. Segundo Rodden (2005), o estudo comparativo entre dois países é útil na avaliação da capacidade de regulação dos governos centrais e do grau de autonomia dos governos subnacionais em tomar decisões em áreas que, do ponto de vista formal, possuem competência. Além disso, é possível compreender as formas de cooperação existentes quando as competências são compartilhadas entre diferentes níveis de governo. Contudo, é importante frisar que o artigo se concentra na análise do caso espanhol, por meio de revisão bibliográfica, análise documental

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e coleta de dados, a fim de avaliar as mudanças promovidas na governança multinível na Espanha durante a crise, enquanto que a comparação com o Brasil se beneficiará dos estudos anteriores realizados pelo autor sobre a federação brasileira (VAZQUEZ, 2011, 2012a, 2012b, 2014). O período analisado é entre 2006 e 2017, compreendendo dois anos anteriores ao início da crise mundial até a recuperação da economia espanhola em termos orçamentários, totalizando mais de uma década com importantes mudanças institucionais em análise.

Após essa breve introdução, a primeira parte do artigo analisará o arranjo jurídico-institucional do Estado Autonômico espanhol, em perspectiva comparada com o Brasil, verificando a dinâmica das relações intergovernamentais e, mais especificamente, a existência (ou não) de instrumentos de coordenação federativa, considerando diferentes tipos de autoridade (política, financeira, de gestão ou de regulação) sobre as políticas descentralizadas. Na segunda parte, pretende-se verificar a existência (ou não) de uma tendência recente de ampliação da capacidade regulatória do nível central na Espanha e, por consequência, de limitação da autonomia das CCAAs, com base nos novos mecanismos de governança multinível (novo financiamento autonômico, FLA e processo decisório nas CCSS), introduzidos após a eclosão da crise de 2008. Por fim, serão apresentadas as considerações finais, com os principais resultados da pesquisa, que visa responder se houve uma centralização ou um aperfeiçoamento das relações intergovernamentais na Espanha pós-crise, tendo como referência o caso brasileiro.

1. Governança multinível na Espanha: uma análise comparada com o Brasil

Em sua concepção, o Estado Autonômico foi desenhado como um modelo aberto, baseado em pactuações que, segundo Lopez Nieto (2006), “não se define formalmente como federação, mas que adquiriu boa parte das características de um sistema federal em sua evolução” (p. 21). Este processo de “federalização” ocorreu ao longo da transição democrática, por meio da descentralização de recursos e de competências às CCAAs e do aumento do poder político destas esferas, como forma de garantir a unidade nacional.

Essa substituição de um regime autoritário e fortemente centralizado por uma ordem política democrática baseada na ideia da descentralização de poder influenciou a Constituição Espanhola de 1978 (DE VALDIVIA, 1987; DEL REAL ALCALÁ, 2013), resultando em forte transferência de competências para as 17 Comunidades Autônomas - CCAAs3, principalmente

nas políticas sociais. Segundo Moreno (2001), os processos de democratização, descentralização 3 A divisão territorial espanhola também define Ceuta e Melilla, ambas localizadas no continente africano, como duas cidades autônomas. Entretanto, estas não possuem competências para a oferta de políticas, cujas funções são assumidas diretamente pelo Estado. Por esse motivo, esses territórios estão fora do escopo desse artigo, o qual abrange exclusivamente as 17 CCAAs.

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e de consolidação de um Welfare State moderno se desenvolveram concomitantemente na Espanha nos anos de transição.

De que forma ocorrem as relações intergovernamentais na Espanha? Quais os mecanismos de coordenação presentes nas políticas descentralizadas? Para responder essas questões, utiliza-se o conceito de governança multinível (KAZEPOV, 2010), em sua dimensão vertical, analisando a distribuição intergovernamental de competências e o papel desempenhado pelos diferentes níveis de governo. O foco é verificar quais são os instrumentos de coordenação federativa e se há (ou não) uma tendência recente de ampliação de (re)centralização de autoridade e, por consequência, de limitação da autonomia local, no período entre 2006 e 2017, ou seja, desde antes da crise financeira internacional até a recuperação da economia espanhola, quase uma década depois.

O objetivo, portanto, é analisar os fatores institucionais que confirmam ou refutam mudanças na distribuição de competências entre diferentes níveis de governo, considerando quatro tipos de autoridade: política, financeira, de gestão ou de regulação.

a) Política (policy decision making)

Diferentemente do Brasil, onde a distribuição das competências são definidas no texto constitucional, não há uma divisão clara de responsabilidades entre Estado e CCAAs na Constituição espanhola, o que levou o Tribunal Constitucional a criar “uma jurisprudência que considera paritária as decisões do Estado e das CCAAs” (SAENZ ROYO, 2014, p. 25), estabelecendo um equilíbrio de poder do Centro e das Comunidades Autônomas (ROCHA, 2013), o que corresponde a outro traço marcante da governança multinível na Espanha.

Nos anos posteriores à Constituição de 1978, ainda de acordo com Saenz Royo (2014), “o Tribunal Constitucional desativou o máximo possível as cláusulas que atuavam a favor do Estado, com o propósito de resguardar os interesses das CCAAs e obter maior equilíbrio de poder” (p. 21). Dessa maneira, passou a prevalecer a interpretação de que as competências são concorrentes, mesmo aquelas que constam no artigo 149 que seriam exclusivas do Estado. Como consequência, o exercício da função supletiva do Estado passou a ser considerada como interferência pelo Tribunal Constitucional, tanto em matérias que constam nos Estatutos de Autonomia e que, portanto, seriam de competência exclusiva da respectiva CCAA, “como também nas matérias definidas como compartilhadas (concorrentes)”(p. 24). Assim, o sistema espanhol demonstra alta capacidade de center-constraining, utilizando-se do conceito proposto por Baldi (1999)

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Percebe-se uma preocupação inicial, diante do passado centralista recente, de evitar que o Estado interfira nas competências descentralizadas e, como resultado, assegurou-se elevada autoridade política das CCAAs para a tomada de decisões em suas áreas de atuação, que incluem as políticas de educação, saúde e assistência social. Em contrapartida, com o desenvolvimento do Estado Autonômico, as dificuldades de coordenação nacional passaram a ocupar a agenda política e fomentar debates sobre a necessidade de uma reforma constitucional, diante do "déficit de capacidade de coordenação intergovernamental", segundo Rocha (2009, p. 16).

b) Gerencial (policy making)

Esse tipo de autoridade corresponde às escolhas sobre a execução das políticas, no tocante à gestão dos recursos humanos, materiais e as escolhas sobre as formas de organização para a prestação dos serviços. Segundo Gallego e Vilalta (2016), as CCAAs possuem papel ativo na configuração de seus sistemas de saúde e educação, com desenvolvimento de modelos próprios de gestão distintos entre si.

O tipo de prestação de serviços, por meio da estrutura própria pública ou pela contratação de prestadores privados, é um fator de escolha das CCAAs, que possuem competência exclusiva e autonomia decisória para a execução das políticas. Por exemplo, tomando como referência as quatro maiores comunidades autônomas, a participação de matrículas em escolas conveniadas (concertadas) é bastante grande em Madrid e País Vasco em relação às demais CCAAs; já na política de saúde, os modelos de gestão da Cataluña e Andalucia são bastante distintos, com maior prevalência de prestadores privados na primeira e um sistema totalmente público na segunda.

De acordo com Gallego e Vilalta (2016), os fatores que condicionam as decisões são: i) preferências dos cidadãos (manutenção ou mudança na opinião pública); ii) fatores estruturais (path-dependence), que condicionam as possibilidades de escolhas; iii) contexto econômico e político (ideologia dos partidos no poder) em cada CCAA. Eventuais mudanças na forma de organização e prestação dos serviços são frutos de um processo de mudança incremental, quando novos estímulos favoráveis à mudança ultrapassam a capacidade de veto dos atores que desejam manter o status quo.

As CCAAs possuem formalmente competência exclusiva sobre a oferta das políticas de educação e saúde e que não há interferência direta do Estado sobre a forma de organização para prestação dos serviços. Diferentemente do que ocorre no Brasil, onde a adesão dos Estados e

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municípios a programas financiados por transferências do governo federal ocorre segundo legislações ou manuais específicos que definem, por exemplo, a porcentagem de recursos que devem ser direcionadas para a remuneração dos profissionais do magistério (VAZQUEZ, 2012b) e a composição das equipes do Programa de Saúde da Família (VAZQUEZ, 2011).

c) Financeira (policy funding)

Nessa dimensão, a comparação com o Brasil é bastante útil, com o objetivo de verificar a existência ou não dos instrumentos jurídicos institucionais no financiamento das políticas, que introduzem mecanismos de enforcement para que os governos locais atuem segundo diretrizes definidas centralmente. Com isso, a autoridade política das CCAAs poderia ser limitada pelas condicionalidades para recebimento dos recursos necessários para a oferta das políticas descentralizadas, mesmos estas esferas detendo competências exclusivas sobre sua gestão.

Em Vazquez (2014), estão relacionados três instrumentos de regulação federal sobre o financiamento das políticas de educação e saúde, ambas descentralizadas no Brasil e na Espanha, os quais estão brevemente descritos abaixo:

• Vinculação de receitas – que direciona obrigatoriamente receitas já disponíveis aos governos subnacionais para áreas definidas como prioritárias pelo governo federal. Trata-se de um instrumento mais forte de restrição da autonomia alocativa destas esferas. No Brasil, a Constituição determina que estados e municípios apliquem 12% e 15%, respectivamente, das suas receitas disponíveis em saúde e 25% em educação.

• Fundos específicos – que reúnem recursos dos governos subnacionais e promovem uma redistribuição com base em um critério próprio da política, o que leva a uma redistribuição dos recursos entre as esferas de governo. Tais fundos disponibilizam receitas em proporção à oferta da política. No Brasil, o melhor exemplo é o Fundef/ Fundeb, destinado ao financiamento da educação básica.

• Transferências condicionadas – cujos repasses dependem da adesão dos municípios a programas elaborados centralmente, mas executados localmente. As condicionalidades impostas para os repasses afetam a autonomia decisória dos governos locais, responsáveis pela oferta descentralizada. No Brasil, há transferências específicas do SUS, vinculadas à oferta de programas, como o Saúde da Família, por exemplo.

Na Espanha, a Constituição de 1978 estabeleceu diferenças nas relações intergovernamentais, com dois regimes distintos de financiamento, a saber: a) regime comum, que abrange 15 das 17 CCAAs, baseado em transferências obrigatórias e livres provenientes do

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Estado, cuja distribuição dos recursos é realizada a partir de um coeficiente da população ajustada segundo a demanda por saúde, educação e serviços sociais (DE LA FUENTE, 2012); b) regime foral, exclusivo para as Comunidades Autônomas de Navarra e País Vasco, que possuem autonomia tributária e transferem ao Governo Central recursos como forma de compensação pelos serviços prestados pelo Estado, o que torna o caso espanhol único no mundo (SÁENZ ROYO, 2015).

Não há, portanto, condicionalidades vinculadas ao gasto descentralizado ou ao recebimento dos recursos necessários ao financiamento das políticas, nem no regime comum e muito menos no regime foral. Logo, podemos concluir que os instrumentos de regulação sobre o financiamento das políticas descentralizadas, presentes no federalismo brasileiro, são inexistentes no Estado Autonômico espanhol.

Se analisarmos apenas o sistema de financiamento do regime comum, é possível pensar em um grande fundo específico, com base na Lei 22/2009 (que regula o sistema de financiamento das Comunidades Autônomas de Regime Comum e das Cidades com status de autonomia), cujos recursos estão vinculados aos gastos em educação, saúde e proteção social, que são competências exclusivas destas esferas. No entanto, trata-se de um mecanismo de financiamento bem mais amplo, que desempenha um papel muito mais próximo do preenchimento da brecha vertical do que de instrumento de regulação. Não há, nem mesmo, subvinculação específica para cada área de atuação, cabendo às CCAAs decidirem quanto devem aplicar em educação, saúde ou assistência.

Portanto, a interpretação correta é que são transferências obrigatórias e livres, que atuam como designação geral para financiar as competências exclusivas das CCAAs, sem condicionalidades específicas vinculadas ao financiamento das políticas descentralizadas, o que permite afirmar que não há limitação das autoridades política ou de gestão por meio de limites à autonomia fiscal.

No entanto, é importante ressaltar o baixíssimo nível de arrecadação própria das CCAAs, que diminuiu após a Lei 22/2009 e, consequentemente, a elevada dependência em relação às transferências do Estado. Essa situação provoca uma separação entre as instâncias responsáveis pelo gasto (CCAA) e pela arrecadação (Estado). Porém, tal fato não é visto como um problema para as CCAAs que desejam aumento de recursos e autonomia de gasto (livre disposição dos recursos transferidos), mas não reivindicam autonomia tributária.

Segundo Saenz Royo (2014), as CCAAs não querem assumir o custo político da tributação e, ao invés disso, optam pela disputa por recursos do Estado por meio da barganha

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política, na qual assumem uma postura de “vitimismo político”, ou seja, “compensa mais para as CCAAs não fazer uso do poder normativo sobre os impostos e buscar negociar politicamente um aumento no percentual cedido pelo Estado” (p. 101). Diferentemente do Brasil, o volume das transferências obrigatórias do Estado para as CCAAs (percentual dos tributos arrecadados pelo Estado) não está definido na Constituição, trata-se portanto de um objeto de reivindicação permanente no âmbito do Conselho de Política Fiscal e Financeira e/ou dos pedidos de revisão do sistema de financiamento do regime comum, atualmente disposto na Lei 22/2009.

d) Regulatória (policy coordination)

Nos 40 anos após a Constituição de 1978, as relações verticais (entre Estado e as CCAAs) se desenvolveram significativamente, com intensidade muito superior às relações horizontais (entre as CCAAs), cujos vínculos permanecem pontuais e predominantemente informais. Segundo Sáenz Royo (2014), as relações verticais iniciaram de forma espontânea, em função do processo de descentralização de competências; em seguida, foram firmados os Estatutos de Autonomias, como mecanismo formal de relacionamento bilateral entre Estado e cada CCAA, que definem as competências assumidas pelos governos regionais, sendo objeto de renovação periodicamente. Somente após quase 15 anos, são criadas as Conferências Sectoriais (CCSS), como instâncias multilaterais que visam coordenar nacionalmente as políticas descentralizadas sob competência das CCAAs.

Atualmente, a principal forma de promover a cooperação no modelo espanhol é pelas CCSS instituídas em cada área de atuação do poder público, as quais são comandadas pelos ministérios e que reúnem os conselheiros das CCAAs. De acordo com Leon e Ferrín (2012), “ainda que haja pouca informação sobre o funcionamento das CCSS, estas têm sido generalmente caracterizadas como organismos frágeis, com pouco poder efetivo no processo decisório” (p. 63), o que pode variar em função da presença ou ausência dos seguintes elementos analíticos:

a) Existência ou não de novos fundos, ou seja, recursos adicionais do Estado para financiar transferências condicionadas à oferta de serviços pelas CCAAs;

b) Definição clara da competência sobre a matéria em questão, sendo que as chances de cooperação são maiores quando a competência é do Estado;

c) Grau de institucionalização dos canais de participação e de negociação entre CCAAs e o Estado, em especial da Conferência Sectorial da área específica;

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d) Tipo de pauta, com mais chance de cooperação em matérias mais técnicas que políticas;

e) Relações informais e o perfil do ministro que preside a Conferência Sectorial, se mais ou menos aberto à negociação e à participação.

Segundo os critérios de Leon e Ferrín (2012), o grau de dificuldade em obter acordos nas respectivas CCSS é elevado, especialmente no âmbito das políticas de competência das CCAAs, pois não existem fundos próprios e a participação direta do Estado no financiamento destas políticas é muito reduzida, além de serem matérias de elevada conotação política.

Cabe ressaltar que as CCSS funcionam como mesas de negociação, mas sem poder de decisão. Segundo Saenz Royo (2014), os acordos construídos nas CCSS são formalmente assinados pelo Estado e por cada CCAA individualmente, no âmbito das Comissões Bilaterais de Cooperação. Essa dinâmica assegura o equilíbrio de poderes entre Estado e CCAAs, característica central do Estado Autonômico espanhol. É bastante difícil entender o papel das CCSS à luz do federalismo brasileiro, pois não existe uma instância como essa que exerça papel semelhante. Para ilustrar, considerando a educação como exemplo, as CCSS concentraria as funções do Conselho de Secretários Estaduais de Educação (Consed), com competências que no Brasil são do Conselho Nacional de Educação, sob coordenação dos Ministério da Educação.

Por fim, cabe ainda destacar dois aspectos sobre o papel dessas instâncias como arenas institucionais de coordenação/ negociação intergovernamental. O primeiro diz respeito aos impactos das decisões das CCSS sobre as finanças das CCAAs, diante da ausência de recursos novos atrelados à política e tendo em vista que as decisões sobre a distribuição de recursos ocorre no âmbito do Conselho Fiscal e Financeiro, coordenado do Ministério da Fazenda. Dessa forma, o poder do Estado em definir as bases acaba sendo limitado pela ausência de recursos adicionais para cobrir os custos de uma decisão de ampliar a oferta ou a cobertura, elevando o tensionamento nas negociações coletivas no âmbito dos CCSS das políticas setoriais, pois uma decisão neste nível repercute no orçamento das CCAAs, pré-definidos externamente. O segundo aspecto é o interesse das CCAAs em dar uma resposta conjunta às demandas dos cidadãos por aumento da cobertura, o que produz incentivos à convergência, tornando homogênea a cesta de bens e serviços oferecidos nos respectivos territórios. Essa fato refuta a hipótese de “federalismo competitivo” (BUCHANAN, 1995), onde os cidadãos se protegem “votando com os pés” (TIEBOUT, 1956), tal como preconiza a teoria da escolha pública (public choice).

Na direção oposta, a criação das CCSS aposta no caminho da negociação ao invés da competição. Tais instâncias – criadas no âmbito de cada política setorial, sob comando do

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ministério da área – são um traço marcante do modelo aberto previsto pelo Estado Autonômico espanhol, que ainda se encontra em processo de aprimoramento, ampliando o debate sobre a capacidade do Estado de influenciar as decisões dos governos regionais.

O desenvolvimento institucional das CCSS, sob coordenação dos respectivos ministérios, representa uma tendência de (re)centralização? Existem outros mecanismos instituídos durante os anos de crise que reforçam o papel do Estado e reduzem a autonomia das CCAAs? Esses questionamentos serão analisados na seção seguinte.

2. Tendência de (re)centralização em tempos de crise?

Nessa segunda parte, pretende-se avaliar os resultados das mudanças nas relações intergovernamentais na Espanha, por meio da introdução de novos mecanismos de governança multinível: novo sistema de financiamento autonômico (Lei nº. 22/2009), referente ao regime comum; o Fundo de Liquidez Autonômico - FLA (Real Decreto-Lei nº. 21/2012) e novas regras no processo de tomada de decisões no âmbito das Conferências Setoriais - CCSS (Real Decreto-Lei nº. 40/2015). O objetivo é verificar a existência (ou não) de uma tendência recente de ampliação da capacidade regulatória do nível central na Espanha e, por consequência, de limitação da autonomia das CCAAs.

Para observar melhor os efeitos da crise, a análise começa dois anos antes da crise, em 2006, para retratar o cenário inicial pré-crise, e termina em 2017, quando o nível de recursos per capita disponíveis ao conjunto das CCAA alcança novamente a patamar de 2007, ano anterior ao início da crise internacional. Conforme será observado, os efeitos da crise econômica internacional na Espanha iniciam em 2008, mas se agravaram após 2010, provocando queda forte na arrecadação tributária e nos recursos disponíveis aos governos regionais e também ao Estado.

a) Novo financiamento autonômico

Sobre o financiamento autonômico, a avaliação das novas regras está fora do escopo do artigo. Ao invés disso, optou-se por focar nos resultados por dois critérios: a) descentralização fiscal, verificando se houve ou não ampliação nos recursos disponíveis às CCAA; b) desigualdades horizontais, mensurando se houve ou não melhora na distribuição dos recursos entre as CCAAs.

A tabela 1 mostra a evolução dos recursos não financeiros totais, em valores per capita, disponíveis para cada CCAA entre 2006 a 2017. Além da trajetória em todo período, a análise

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deve considerar diferentes fases: 1) pré-crise (2006 a 2009); 2) efeitos da crise (2009 a 2011); c) recuperação da crise (2011 a 2017). Para mensurar as desigualdades horizontais, utilizou-se o coeficiente de Gini, cujo valor varia entre 0 e 1, onde 0 corresponde à igualdade total de renda (na qual todos têm a mesma renda) e 1 corresponde à desigualdade total (quando apenas uma pessoa detém toda a renda)4.

Tabela 1 – Recursos não-financeiros per capita disponíveis às CCAAs, coeficiente de Gini por ano e evolução dos valores em três etapas selecionadas e no período total (2006 a 2017)

Fonte: IGAE/ Ministério da Fazenda. Disponível:

<http://www.igae.pap.hacienda.gob.es/sitios/igae/es-ES/Contabilidad/ContabilidadNacional/Publicaciones/Paginas/ ianofinancierasCA.aspx> e Dados Populacionais do Portal estatístico do Ministério da Saúde. Disponível: <http://pestadistico.inteligenciadegestion.msssi.es/publicosns/Comun/DefaultPublico.aspx>. Obs.: dados de 2016 e 2017 sujeitos à liquidação.

A análise dos dados será realizada para o consolidado nacional, destacando alguns casos exemplares, não obstante os dados estejam disponíveis para todas as 17 CCAAs. No início da série, nota-se uma trajetória errática do valor médio nacional, com aumento em 2007 (+5,6%), uma leve queda nos recursos disponíveis em 2008 (-1,5%), ano da crise, com uma recuperação

4 O coeficiente de Gini é normalmente usado para mensurar a desigualdade de distribuição de renda, mas pode ser usada para qualquer distribuição. O cálculo é feito a partir da razão entre as áreas do gráfico que define a curva de Lorenz, mais especificamente, pela área entre a curva e a linha de 45º dividida pela área total do triângulo formado pelos eixos e alinhamentos de 45º. Essa metodologia foi utilizada anteriormente em Vazquez (2012a; 2014) para demonstrar a redução das desigualdades interestaduais no Brasil após a introdução dos mecanismos de regulação federal nas políticas de educação e saúde.

CCAA 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 Δ 06 - 09 Δ 09 - 11 Δ 11 - 17 Δ 06 – 17 Andalucía 3.003 3.252 3.321 3.351 2.690 2.138 2.659 2.636 2.593 2.657 2.755 2.896 11,6% -36,2% 35,5% -3,6% Aragón 3.227 3.402 3.465 3.582 3.032 2.540 3.024 2.984 2.982 3.004 3.244 3.442 11,0% -29,1% 35,5% 6,7% Asturias 3.427 3.710 3.770 3.920 3.336 2.678 3.241 3.306 3.273 3.361 3.480 3.625 14,4% -31,7% 35,4% 5,8% Baleares 2.749 2.702 2.432 2.671 2.202 1.904 2.393 2.492 2.366 2.504 2.751 3.002 -2,8% -28,7% 57,7% 9,2% Canarias 2.911 3.106 3.098 3.217 2.507 2.175 2.532 2.547 2.592 2.649 2.744 3.031 10,5% -32,4% 39,4% 4,1% Cantabria 3.685 4.049 4.045 4.083 3.260 2.874 3.472 3.631 3.507 3.623 3.560 3.859 10,8% -29,6% 34,3% 4,7% Castilla-La Mancha 3.019 3.244 3.233 3.262 2.745 2.146 2.777 2.820 2.709 2.787 2.846 3.003 8,0% -34,2% 39,9% -0,5% Castilla y León 3.301 3.449 3.518 3.583 2.970 2.402 3.037 3.047 3.001 3.131 3.214 3.365 8,5% -33,0% 40,1% 1,9% Cataluña 3.132 3.240 3.172 3.566 3.094 2.681 3.007 3.055 2.978 3.065 3.406 3.612 13,9% -24,8% 34,7% 15,3% Extremadura 3.585 3.895 3.951 4.007 3.398 2.655 3.409 3.448 3.286 3.518 3.541 3.702 11,8% -33,7% 39,4% 3,3% Galicia 3.273 3.542 3.720 3.728 3.001 2.487 3.040 3.099 3.026 3.250 3.257 3.396 13,9% -33,3% 36,6% 3,8% Madrid 2.904 3.004 2.905 3.074 2.724 2.429 2.683 2.542 2.491 2.573 2.773 2.910 5,9% -21,0% 19,8% 0,2% Murcia 2.966 3.066 2.970 3.192 2.560 2.118 2.639 2.690 2.624 2.680 2.844 2.982 7,6% -33,6% 40,8% 0,5% Navarra 4.914 4.844 3.597 4.112 4.211 4.111 4.015 3.968 4.146 4.020 4.187 5.097 -16,3% 0,0% 24,0% 3,7% La Rioja 3.444 3.592 3.580 3.756 3.039 2.785 3.302 3.396 3.362 3.507 3.643 3.733 9,1% -25,9% 34,0% 8,4% Valencia 2.853 2.976 2.863 2.965 2.496 2.112 2.496 2.533 2.535 2.563 2.781 2.992 3,9% -28,8% 41,7% 4,9% País Vasco 3.837 4.221 3.925 3.470 3.822 3.770 4.093 3.975 4.129 4.268 4.412 5.203 -9,6% 8,6% 38,0% 35,6% Total CCAA 3.126 3.301 3.253 3.374 2.877 2.447 2.879 2.875 2.835 2.921 3.086 3.300 7,9% -27,5% 34,9% 5,6% Coef. Gini 0,0756 0,0804 0,0721 0,0647 0,0889 0,1104 0,0875 0,0867 0,0929 0,0917 0,0823 0,0956

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em 2009 (+3,7%), se considerarmos todo o período há um acréscimo de 7,9% nessa primeira fase (2006 a 2009).

Como houve queda do PIB espanhol em 2009, esse aumento dos recursos disponíveis às CCAAs, já sob efeitos da crise, pode estar relacionado às novas regras no financiamento do regime comum, introduzidas pela Lei n. 22/2009. Portanto, o aumento dos recursos disponíveis às CCAAs em 2009 é explicado pelo saldo positivo entre duas forças: de um lado, o aumento da participação das CCAA nas receitas totais do Estado, devido à descentralização fiscal promovida no novo sistema de financiamento do regime comum, ao mesmo tempo em que ocorre uma redução das receitas tributárias totais na Espanha, em função da crise. Na trajetória das desigualdades horizontais, observa-se uma redução das diferenças nos recursos disponíveis às CCAAs em 2009, que atinge o menor nível do período analisado (gini = 0,06), o que também está relacionado à introdução das novas regras de financiamento do regime comum.

Com o agravamento da crise em 2010 e 2011, houve forte diminuição nas receitas disponíveis às CCAAs, com uma retração somada nesse dois anos de - 27,5% em relação ao ano de 2009, com destaque para a Andalucia, comunidade mais populosa da Espanha, onde a queda foi de 36%, enquanto que apenas as duas comunidades forais, de Navarra e País Vasco, não sofreram impactos nas suas receitas nesses dois anos. Por consequência, as desigualdades horizontais também aumentaram, alcançando o maior nível em 2012 (gini = 0,11), o que certamente reflete diferenças na autonomia tributária existente entre os regimes comum e foral. Conforme Royo (2015), “la coexistencia de los dos regimenes genera inestabilidad política y una financiación por habitante mucho mayor en el sistema foral” (p. 198)5.

Com o início da recuperação econômica, o nível de desigualdade diminuiu, passando a variar em torno de 0,09 entre 2012 a 2017. Nesse período, houve paulatina e lenta recuperação das receitas disponíveis às CCAAs, mas que somadas representam um aumento de 35% nesses cinco anos, o que faz com que os recursos totais descentralizados aos governos regionais alcance novamente o patamar pré-crise em 2017, retornando praticamente ao mesmo valor de 2007, conforme mostra a tabela 1.

Contudo, esses anos de recuperação não foram fáceis para as CCAAs, responsáveis pela oferta e pelo financiamento das políticas sociais na Espanha, abrangendo educação, saúde e assistência social. Tal quadro exigiu o socorro financeiro do Estado, com recursos extraordinários, envolvendo algumas contrapartidas dos governos regionais. Trata-se de um 5 Embora essa dualidade possa contribuir para uma instabilidade política, ela é reconhecida pela Constituição e possui razões históricas para esse tratamento diferenciado e, por esse motivo, optou-se apenas por demonstrar

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novo instrumento de regulação que afeta a autonomia dessas esferas subnacionais? Essa análise será realizada a seguir.

b) Fundo de Liquidez Autonômico - FLA

Sob os efeitos da crise, surgiram novos mecanismos de financiamento extraordinários, compostos por recursos adicionais do Estado, com o intuito de fornecer socorro financeiro aos governos regionais. Tratam-se de novas regulações de caráter eminentemente financeiro, mas que podem ser capazes de impor condicionalidades às decisões sobre a implementação (dimensão gerencial) e de fortalecer o papel do Estado na governança multinível (dimensão regulatória), preservando a autoridade política dos governos subnacionais.

O caso mais exemplar é a criação do Fundo de Liquidez Autonômico – FLA, criado pelo Real Decreto Lei 21/2012, que se transforma em um componente do Fundo de Financiamento às Comunidades Autônomas (FFCCAA) por meio do Real Decreto Lei 17/2014. Em ambos casos, o objetivo é garantir empréstimo às CCAAs para saldar suas dívidas, em um momento de dificuldade em obter crédito privado após a crise financeira de 2008 (LA FUENTE, 2017), cujos recursos eram obrigatoriamente destinados ao pagamento de fornecedores, empréstimos, refinanciamento da dívida e outras necessidades aprovadas pela Comissão Delegada do Governo para Assuntos Econômicos.

Na prática, o Estado assumiu o papel de emprestador de última instância, em condições mais vantajosas que o mercado de crédito6, para injetar liquidez nas CCAAs, a fim de que essas

possam honrar os pagamentos às empresas contratadas, pois esse foi o destino definido como prioritário para a utilização dos recursos deste fundo, evitando transferir ao setor privado os problemas de insolvência dos governos.

Em contrapartida, as CCAAs que aderiram voluntariamente ao FLA assumiram um compromisso de “enviar mensalmente ao Ministério da Fazenda, informações detalhadas sobre a situação das suas finanças e seguir um plano de ajuste” (MINISTERIO DA HACIENDA, 2018, p. 1). Esse documento apresentava 43 itens que deveriam ser executados pelas CCAAs referentes à melhoria da gestão pública e ao equilíbrio fiscal, dentre eles, destacam-se as seguintes medidas: a) proibição de contratação de novos créditos orçamentários que impliquem em aumento do gasto não-financeiro (primário), em caso de descumprimento dos artigos 17.3 e 17.4 da Lei Orgânica 2/2012, de Estabilidade Orçamentária e Sustentabilidade Financeira (item 6 Com taxas de juros iniciais eram de 6 % a.a., “em um momento em que o custe do empréstimo para as CCAA com acesso ao mercado estava em torno de 11%, no melhor caso” (LA FUENTE, 2017, p. 2). Com a melhoria do mercado de crédito, os juros do FCA “variam entre 0% e 1% em 2015 e 2016” (Idem, p. 3).

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10); b) compromisso de não ofertar uma carteira de serviços complementares à cobertura básica definida pela Comissão Interterritorial do SNS, salvo autorização do Ministério da Fazenda, após apresentação de justificativas (item 5); c) adesão ao instrumento de Apoio à Sustentabilidade do Gasto farmacêutico e sanitário (item 7); d) adesão ao Sistema de Aquisição Centralizado de Suprimentos do Ministério da Saúde e ao Programa de Colaboração entre Estado e a Indústria Farmacêutica (itens 4 e 40, respectivamente); e) diversas medidas de reformas administrativas e implantação de governo eletrônico, visando a eliminação de órgãos públicos, informatização e integração de serviços (diversos itens).

A adesão ao FLA impõe constrangimentos orçamentários, condicionando as decisões alocativas dos governos subnacionais, limites para operações de crédito e tetos de gasto (dimensão financeira), com consequências na gestão das políticas, em especial da saúde, e fortalecendo o Estado na coordenação dos governos subnacionais para o alcance de metas de equilíbrio fiscal e na adesão aos programas desenhados centralmente no âmbito dos Ministérios (dimensão regulatória), com destaque para as áreas da saúde e também de gestão pública. Trata-se, portanto, de uma tendência recente de (re)centralização do Estado Autonômico espanhol no contexto pós-crise? Para responder, é preciso considerar, em primeiro lugar, a abrangência do FLA e sua importância no modelo de financiamento autonômico.

A tabela 2 abaixo mostra os recursos totais emprestados e as CCAAs que se beneficiaram do FLA de 2012 a 2014, acrescidos dos fundos extraordinários, definidos no Real Decreto Lei 17/2014, para os anos de 2015 a 2018.

De acordo com La Fuente (2017), os recursos dos fundos superaram 160 bilhões de euros entre 2012 e 2016, com o pagamento de 10 bilhões de amortizações previstas no período, com saldo líquido de 150 bilhões, que corresponde a 15% do PIB espanhol, estimando-se uma economia de gasto com juros entre 15 e 22 bilhões de euros. A tabela 2 mostra que foram destinados 16,6 e 22,9 bilhões de euros em 2012 e 2013, respectivamente, para 9 CCAAs (Andalucia, Castilla La Mancha, Cataluña, Canarias, Valencia, Asturias, Islas Baleares, Cantabria e Murcia). Em 2014, o aporte aumentou para 23,2 bilhões para 9 CCAAs, com ingresso de Extremadura e saída de Asturias.

A partir de 2015, outros fundos foram criados que, juntos com o FLA, passaram a compor o Fundo de Financiamento das CCAAs (FFCCAA), com destaque para o Fundo de Facilidade Financeira, destinado às CCAAs que cumprirem os objetivos de estabilidade orçamentária e da dívida pública, devendo honrar seus pagamentos, admitindo um atraso

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máximo de 30 dias. Ou seja, seu propósito é bastante parecido com o FLA, mas a diferença importante é que não se aplicam as condicionalidades fiscais.

Tabela 2 – Recursos extraordinários destinados às CCAAs via FLA (2012-2018) e outros fundos componentes do FCA (2015-2018). Valores correntes em milhões de euros

Fonte: Ministério da Hacienda Pública. Governo de Espanha.

Portanto, o fundo de Facilidade Financeira é uma alternativa criada, com menor grau de intervenção do Estado na autonomia fiscal e alocativa das CCAAs. Com sua criação, o número de CCAAs que aderiram ao FLA se reduziu para 5 (Castilla La Mancha, Cataluña, Valencia, Cantabria e Murcia), enquanto que todas as demais CCAAs, exceto País Vasco e Navarra, obtiveram recursos dos outros fundos extraordinários, inclusive as 5 que recorreram também ao FLA. É importante notar que os valores dos novos fundos extraordinários foram bastante significativos (15,7 bilhões de euros, contra 22,8 bilhões do FLA em 2015).

Nos anos seguintes, os recursos do Fundo de Facilidade Financeira diminuíram bastante. Em função disso, as 9 CCAAs retornaram ao FLA em 2016 e 2017, cujos montantes alcançaram patamares recordes, conforme dados da tabela 2. Em 2018, ocorreu uma redução significativa nos recursos do FLA, cujo valor supera apenas o aplicado em 2012, quando houve sua criação.

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Em contrapartida, houve aumento dos recursos disponibilizados pelos outros fundos extraordinários, sem condicionalidades fiscais.

Em suma, o FLA disponibiliza um volume de recursos significativo, com capacidade de atrair as CCAAs, especialmente em um contexto de crise. Ao analisar o total aplicado entre 2012 e 2018, percebe-se que as comunidades de Catalunha, Valencia e Andalucia obtiveram, respectivamente, 40%, 25% e 13% dos recursos provenientes do FLA. No entanto, não me parece que essas CCAAs tenham suas autonomias ameaçadas ou que estão alinhadas às iniciativas do Estado, ainda mais se julgarmos pelos acontecimentos recentes em relação à Catalunha.

Portanto, é possível considerar as condicionalidades do FLA como restrições fortes às autonomias locais ou uma tendência à centralização? A análise comparada com o caso brasileiro ajuda a compreender essa estratégia e o grau de intervenção na autonomia dos governos subnacionais. No Brasil, uma primeira forma de conter o endividamento público e a evolução da dívida pública dos governos subnacionais – em especial, dos governos estaduais – foi através das rodadas de negociação das dívidas destas esferas de governo para que as mesmas fossem assumidas pelo governo federal, por meio do Programa de Reestruturação Fiscal e Financeira, parametrizado pela Lei 9.496/97 (VAZQUEZ, 2012a).

Em contrapartida, foram exigidas reformas no setor público estadual, com compromissos firmes com metas de ajuste fiscal e saneamento financeiro, dentre as medidas adotadas estavam cortes de pessoal, privatizações e concessão de serviços públicos (LOPREATO, 2002). De acordo com Prado (2007), o governo federal, politicamente fortalecido pela vitória contra a inflação, “conseguiu impor uma renegociação das dívidas que incluía os requisitos necessários para um efetivo ajuste fiscal” (p. 66), além de prever o fim do socorro financeiro da União aos governos subnacionais devedores.

Trata-se até aqui de uma estratégia bastante similar ao FLA, em que o nível central auxilia os governos subnacionais com suas dívidas e impõe condicionalidades fiscais como contrapartida. Por mais que houvesse um acordo que previa, de um lado, contrapartidas e, de outro, punições críveis no caso de descumprimento, este tipo de controle sobre o endividamento dos governos subnacionais na forma de acordos negociados ainda pode ser classificado como

soft budget constraints (SOUZA, 2003). Diante disso, o avanço da agenda do ajuste fiscal no

Brasil foi em direção à construção de um instrumento de regulação que constrangesse as decisões dos governos locais de forma permanente e que estabelecesse um instrumento

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definitivo de ordenamento fiscal da federação e um compromisso mais crível e duradouro em torno do ajuste fiscal, abrangendo todos os níveis de governo.

Para tanto, foi preciso introduzir, por meio de uma legislação nacional, controles rígidos sobre o percentual das despesas em relação às receitas e/ou regras que estabelecessem limites diretos ao gasto dos governos subnacionais, restrições que correspondem ao que a literatura especializada chama de hard budget constraints. Neste sentido, foi aprovada em maio de 2000 a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar 101, de 04/05/2000), visando assegurar o equilíbrio das contas públicas do setor público consolidado.

Considerando a experiência brasileira, a regulação sobre as finanças públicas das autonomias na Espanha ainda se encontra em um estágio anterior, o que se explica, de um lado, pelo caráter temporário, voluntário e negociado da adesão das CCAAs ao FLA e, por outro lado, pelos constrangimentos estarem condicionados ao recebimento de recursos adicionais do Estado, sem nenhuma nova regulação sobre o financiamento geral do regime comum, sem citar a total autonomia prevista às comunidades de Navarra e País Vasco pelo regime foral.

Em suma, não estão presentes no Estado Autonômico espanhol os mecanismos “clássicos” de regulação, tais como a vinculação de receitas, transferências condicionadas, formação de novos fundos específicos ou mesmo regras fiscais compulsórias, criados por legislação nacional a fim de garantir a adesão dos governos subnacionais aos objetivos definidos centralmente, capazes de afetar fortemente a autonomia local e de impor uma (re)centralização de poder no Estado. Dessa forma, a coordenação nacional das políticas descentralizadas permanece centrada nas negociações para a construção de acordos entre o Estado e todas as comunidades autônomas, ocorrida nas Conferências Setorias (CCSS), cujo funcionamento será analisado na sequência.

c) Conferências Setoriais

Visando compreender melhor o papel das Conferências Setoriais (CCSS), foram adotadas duas estratégias. Primeiramente, realizou-se uma análise documental no ordenamento jurídico-institucional que regula o processo decisório nessas instâncias, por meio da negociação e aprovação de acordos entre Estado e as CCAAs. Buscou-se identificar se houve alguma alteração na composição, nas funções e/ou nas regras para tomada de decisão desses órgãos após o ínicio da crise econômica de 2008. De um lado, não foi possível constatar mudanças na estrutura administrativa, com a supressão ou criação de novas CCSS, assim como não houve alteração na composição destes órgãos, a fim aumentar a representatividade do Estado, por

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exemplo. Por outro lado, o Real Decreto-Lei de 40/2015, que trata do Regime Jurídico do Setor Público como um todo, permitiu o estabelecimento de acordos nas CCSS por maioria simples, no lugar da necessidade de consenso, que antes garantia um elevado poder de veto a cada uma das CCAAs e, obviamente, impunha mais dificuldades para a obtenção de acordos.

Em seguida, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, a fim de captar a avaliação dos gestores que atuam nos Ministérios sobre os efeitos dessa mudança no processo decisório e sua implementação nas CCSS. Os entrevistados7 são funcionários que compõem, como

representantes dos ministérios, a comissão permanente (educação) ou delegada (saúde) de nível mais técnico, cuja função é subsidiar as decisões dos conselhos plenos das CCSS, esfera mais política que reúne o ministro e os conselheiros das CCAAs nas respectivas áreas.

Podemos considerar que os entrevistados fazem parte de uma elite burocrática, que ocupam funções públicas de níveis hierárquicos mais elevados nos ministérios, cujo perfil foi traçado por Crespo-Gonzalez (2018). Segundo o autor, esses gestores são altamente comprometidos com a governança multinível na Espanha, com participação bastante clara e influente sobre os atores políticos, com atuação na elaboração de respostas às questões dos parlamentares (63,4% dos casos), na coautoria de atos normativos (61,4%), em tarefas de assessoramento direto (43,6%). Além disso, também atuam na implantação de políticas públicas com impacto intergovernamental (57,4% dos casos) ou na sua avaliação (41,6%), inclusive com participação nas CCSS (46,5%) e nas conferências bilaterais entre Estado e cada CCAA (35,6%), percentuais bastante elevados diante do caráter político desses órgãos.

Seguindo o roteiro preparado, a primeira questão trata da baixa participação dos ministérios no financiamento da saúde e da educação. Houve reconhecimento dessa baixa participação dos recursos do Estado no orçamento dessas áreas; contudo os entrevistados buscaram destacar que a Constituição espanhola concede ao Estado a competência exclusiva sobre a definição das bases e coordenação geral das duas políticas em análise. Em seguida, solicitamos a avaliação dos entrevistados sobre as possibilidades de cooperação vertical e horizontal nas políticas em análise. Em ambas as áreas, os gestores dos dois ministérios apontaram para a importância das Conferências Setoriais (CCSS) como instrumento na governança multinível. No Ministério da Saúde, destacou-se que “o CISNS é um órgão político”, onde ocorrem as negociações entre Estados e as CCAAs, pois mesmo a definição das bases sendo de competência do Estado, a implementação da política é de competência das

7 As entrevistas foram realizadas presencialmente em Madrid nas datas de 06/08/2018, às 10 horas, no Ministério da Saúde e de 03/10/2018, às 13 horas, no Ministério da Educação. A identidade dos entrevistados não será

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CCAAs, o que torna necessário a negociação e a busca por consenso, ainda mais sem a disponibilidade de recursos adicionais do Estado para garantir a adesão dos governos regionais.

Durante a entrevista, identificamos um potencial conflito em uma situação em que o Estado propõe uma nova cobertura, mas seu financiada depende dos recursos já disponíveis às CCAAs. Ou seja, como não há receitas adicionais, uma decisão do Estado implica em um custo extra que deverá ser pago pelas CCAAs. Por parte do Estado, na ausência de mecanismos de

enforcement, a negociação é o único caminho para garantir a implementação de um programa ou

plano nacional. Por outro lado, essa negociação também interessa aos conselheiros (secretários) das autonomias como forma de evitar questionamentos sobre a ausência de uma cobertura ofertada em outra CCAA, isto é, as negociações no âmbito do CISNS evitam uma competição entre as CCAAs que poderia levar a cobranças dos cidadãos ao governo autonômico, caso um serviço esteja disponível em outra região e em outra não. Um exemplo citado na entrevista foi o programa de vacinação, que corresponde a uma base da política de saúde e, portanto, cabe ao Estado a definição das vacinas que estão cobertas pelo sistema, com aprovação no CISNS. Segundo os entrevistados, não foi possível estabelecer um calendário nacional de vacinação ou campanhas nacionais, pois não se chegou a um consenso sobre essa matéria. Ainda assim, não é desejável para o conjunto das CCAAs que uma delas inicie a oferta de uma nova vacina, o que levaria a pressão dos cidadãos para a incorporação também em seus territórios. Em resumo, há interesse na cooperação para evitar a competição entre CCAAs.

Na educação, a dinâmica de funcionamento é bastante semelhante. Os entrevistados destacaram que mesmo quando se trata de uma competência exclusiva do Estado, as proposições são apresentadas e debatidas na CCSS. De uma maneira geral, a avaliação é que a relação entre Estado e CCAAs é boa, com presença das CCAAs nas reuniões, sendo mais fácil o debate nas comissões e sobre temas mais técnicos. A dificuldade é a ausência total de recursos, uma vez que o interesse na construção de acordos aumenta quando há possibilidade de recursos extras, pois embora o debate seja mais acirrado, há interesse em um desfecho para viabilizar a distribuição dos novos recursos.

Ainda sobre esse ponto, perguntou-se: caso do Ministério obtenha verbas para serem redistribuídas por meio de um programa ou plano nacional, a fim de garantir sua implantação em nível nacional, as CCAAs celebrariam essa nova possibilidade de financiamento ou elas reinvidicariam a descentralização desse recurso? A resposta foi que a disputa entre Estado e CCAAs pelo financiamento ocorre no âmbito do Conselho de Política Fiscal e, quando se

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esgotam as negociações nessa instância, os recursos residuais provenientes dos ministérios das áreas são vistos como receitas adicionais e, portanto, são celebrados.

Na sequência, foi solicitada uma avaliação específica sobre a mudança no processo decisória das CCSS, promovida pela Lei 40/2015, e seu efeito sobre a capacidade do Estado de coordenação nacional. No caso da saúde, embora a nova legislação tenha estabelecido que as decisões nas CCSS sejam tomadas por maioria, o regulamento do CISNS ainda exige formação de consenso e a mudança para decisões por maioria depende da alteração do mesmo, ou seja, as CCAA ainda detinham poder de veto individualmente, mesmo após 3 anos da mudança na legislação, o que complica bastante as negociações8. Para a educação, a avaliação é positiva,

contudo a informação é que tal medida ainda não foi testada, devido ao baixo grau de institucionalidade da CCSS dessa área nos últimos tempos, confirmado pelo fato de que apenas metade das comissões técnicas estavam em atividade naquele momento (estatística, pessoal e formação profissional).

Em suma, as dificuldades de coordenação dessas políticas ainda persistem e não há indícios de forte (re)centralização na capacidade regulatória, mesmos com as mudanças pós-crise. Essa conclusão colabora com os argumentos de León e Ferrin (2012) que considera as “conferências setoriais fracas, com pouco poder efetivo” (p. 63). Esses autores colocam como fatores de cooperação a existência de fundos novos de financiamento; a competência sobre a matéria em debate (sendo mais fácil, quando é uma competência do Estado); o caráter da pauta em discussão (assunto mais técnico ou político); o grau de institucionalização, definido pela periodicidade das reuniões e/ou funcionamento das comissões técnicas, além de outros fatores (decisões da União Europeia, redes sociais informais, clima político, perfil do misnitro, etc.). Tais critérios foram identificados nas entrevistas e quase todos contribuem para dificultar a coordenação, com maior vantagem para a área da saúde, devido ao maior de institucionalização em relação à educação.

Por fim, seguindo a escala de cinco níveis de cooperação proposta por Rovere (1999), conclui-se que o nível de cooperação é intermediário. Segundo os entrevistados, há um reconhecimento intergovernamental, mais especificamente sobre as competências que outros níveis de governo possuem sobre a matéria em análise (nível 1); também há interesse em conhecer o funcionamento e as atividades exercidas por outro nível de governo (nível 2) e, por fim, reconheceu-se ajudas recíprocas ainda que de forma esporádica (nível 3). Porém, nenhuma 8 O argumento jurídico para que o regulamento prevaleça sobre a Lei é que o CISNS não é uma CCSS, porém trata-se apenas de uma questão de nomenclatura, pois as atribuições são as mesmas e não existe outra instância

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das entrevistas indicou a existência de cooperação intergovernamental, quando diferentes níveis de governo compartem atividades e recursos (nível 4) ou, muito menos, a associação intergovernamental que implica compartilhamento de objetivos e projetos conjuntos, com compromisso mútuo com os resultados da política (nível 5).

Considerações finais

Na Espanha, as CCAAs possuem competências exclusivas na gestão das políticas sociais descentralizadas, sem a presença de mecanismos específicos de regulação ou de financiamento próprios das políticas. Apesar da elevada participação dos recursos provenientes do Estado, o sistema de financiamento autonômico é baseado em transferências livres, sem condicionalidades, cuja função é preencher a brecha vertical e prover recursos em proporção aos encargos assumidos pelos governos regionais. De um lado, há uma preocupação maior das CCAAs em relação à suficiência de recursos do que quanto à descentralização de competências tributárias ou maior autonomia tributária (SAENZ ROYO, 2014), considerando que essas esferas já possuem grande autonomia fiscal (MORENO, 2008). Pelo lado do Estado, seu papel de coordenação depende da existência de recursos extras, da distribuição de competências (se exclusivas ou compartilhadas), do tipo de pauta (política ou técnica), do grau de institucionalização e do relacionamento entre os membros (LEON e FERRÍN, 2012). Por esses critérios, um "déficit de capacidade de coordenação intergovernamental" (ROCHA, 2009) ainda prevalece.

Ao invés da regulação para federalismo brasileiro, a negociação é o traço marcante da governança multinível no Estado Autonômico espanhol, baseada na relação de equilíbrio de poder entre Estado e CCAAs. As Conferênicas Setoriais possuem um papel importante nas relações intergovernamentais na Esapanha, mas que ainda carece de um processo de construção e de reconhecimento desse fórum como espaço de solução de problemas comuns, em que não haja prevalência unilateral de nenhuma das partes envolvidas, visando a elaboração de soluções conjuntas entre Estado e CCAAs, consolidando as CCSS como órgãos de governança multinível “compromissados com a coordenação” (SCHNABEL, 2017), em vez de um espaço de acirrada disputa ou de domínio de uma parte sobre a outra.

Os resultados dessa pesquisa demonstram que o poder de coordenação das políticas descentralizadas por meio das Conferências Setoriais (CCSS) ainda é incipiente devido à baixa institucionalidade e/ou às dificuldades provenientes de um processo político com fortes tendências centrífugas de poder aos governos regionais (BALDI, 1999). Prova disso, é a

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dificuldade revelada na implementação da construção de acordos por maioria, mesmo com a permissão dada pelo Real Decreto-Lei de 40/2015. Portanto, não há evidências empíricas suficientes para afirmar que o Estado consiga impor suas decisões, a partir da sua função de coordenação das CCSS.

Sob efeitos da crise, observou-se uma trajetória errática em relação à descentralização fiscal e às desigualdades horizontais. A implementação da Lei n. 22/2009 retardou os impactos da retração econômica nas finanças das autonomias, mas não evitou uma queda profunda nas receitas per capita nos anos de 2010 e 2011, com uma retomada econômica lenta e gradual a partir de 2012, que só alcança o nível de recursos pré-crise em 2017. Quanto às desigualdades, também houve queda no ano de implementação do novo sistema de financiamento, mas o aprofundamento da crise aumentou as diferenças nos recursos disponíveis às diferentes comunidades, separadas em dois regimes distintos (comum e foral).

Com a demanda crescente por serviços sociais, as CCAAs necessitaram de socorro financeiro do Estado. A criação do Fundo de Liquidez Autonômica (FLA) poderia ser apontada como uma medida de recuperação da capacidade regulatória do governo central, uma vez que o acesso aos recursos, cujo volume é bastante significativo, exigia condicionalidades fiscais e a adesão dos governos regionais a programas de modernização administrativa e racionalização de gastos, ambos definidos centralmente. No entanto, isso não configurou uma tendência à (re)centralização por dois motivos: 1) esse mecanismo permaneceu como um fundo extraordinário, temporal e de adesão voluntária; 2) o FLA não foi reforçado, pois foram criados outros mecanismos extraordinário de financiamento que não exigiam contrapartidas fiscais, em vez de aumentar as transferências condicionadas via FLA.

Em suma, mesmo sob efeito da crise, os governos regionais mantiveram a autoridade política e a capacidade decisória sobre a implementação das políticas descentralizadas. O novo modelo de financiamento permaneceu baseado em transferências livres e obrigatórias do Estado no regime comum, além preservação da ampla autonomia tributária do regime foral. Mesmo com a iniciativa do FLA, que impõe condicionalidades fiscais e de adesão a programa definidos como prioritários pelo governo central, não houve um aprofundamento dessa estratégia, a fim de tornar as CCAAs cada vez mais dependentes desses recursos extraordinários. Por fim, as CCSS constituem uma estratégia de coordenação mais compatível com o modelo do Estado Autonômico, construído após a redemocratização, marcado pela elevada autonomia dos governos regionais, no qual a governança multinível ocorre com base na “negociação” em vez da “regulação federal”.

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