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Magali Guaresi a. Palavras-chave: Gênero. Logometria. Corpus.

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Academic year: 2021

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Questões de gênero na política: marcas e performances em

se tratando de gênero nos textos de campanha eleitoral

do(a)s deputado(a)s da Quinta República Francesa

(1958-2007)

*

Dire le genre en politique. Traces et performances genrées dans les

professions de foi électorales des député-e-s sous la Cinquième

République (1958 – 2007)

Magali Guaresia

a Universidade de Nice Sophia Antipolis, França - magali.guaresi@gmail.com

Palavras-chave: Gênero. Logometria. Corpus.

Resumo: A questão do gênero é aqui abordada a partir de um corpus de 511.166 ocorrências, que integra todas as declarações programáticas das candidatas (eleitas) e uma parte significativa das declarações dos candidatos (eleitos) para a Assembleia Nacional francesa durante a Quinta República, que começa em 1958 com o Presidente Charles de Gaulle. A autora discorre sobre os fundamentos teóricos e históricos que determinaram as suas escolhas e, para a comparação entre as declarações das mulheres e dos homens, apela para os recursos metodológicos igualmente fundamentados da logometria.

Keywords: Genre. Logométrie. Corpus.

Abstract: La question du genre est ici abordée à partir d'un corpus de 511.166 occurrences, qui comprend toutes les professions de foi des candidates (élues) et d'une partie significative des professions de foi des candidats (élus) à l'Assemblée Nationale française pendant la Cinquième République, qui commence en 1958 avec le Président Charles de Gaulle. L'auteure présente les fondements théoriques et historiques de sa démarche et, pour les comparaisons entre les professions de foi des femmes et des hommes, fait appel aux outils méthodologiques de la logométrie.

* Tradução de Carlos Alberto Antunes Maciel – BLC (UMR 7320 / NuPILL). Título original francês: “Dire le genre en politique. Traces et performances genrées dans les professions de foi électorales des député-e-s sous la Cinquième République (1958 – 2007)”. Trata-se aqui do capítulo de um livro cuja publicação está prevista, na França, nos próximos meses (Bard Christine et Le Nan Frédérique (dir.), Les marques du genre,

Paris, éditions CNRS, 2017 – no prelo). A editora francesa deu o seu acordo para a tradução e publicação, em

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1 INTRODUÇÃO

O gênero** é um conceito científico há já várias décadas utilizado para pensar e desconstruir

as categorias de sexos e que age como uma verdadeira linguagem política1. Trata-se de um

sistema de regras, de códigos, de representações que indica a bipartição sexuada das sociedades e que funciona como uma “gramática2” para impor, legitimar e hirarquizar as

identidades, os lugares de cada um e as relações que os indivíduos e os grupos mantêm entre si.

Ao definir assim a problemática, vemos que os vínculos existentes entre o gênero e a linguagem são naturalmente fortes. Embora não se possa pretender que o sistema que tem por fundamento o gênero seja exclusivamente constituído de representações que passam pelos caminhos da linguagem3, é preciso admitir que a ordem do discurso é uma das suas melhores

marcas ou ainda um dos seus fatores mais eficazes. Os discursos são com efeito, ao mesmo tempo, informados pelas realidades sociais sobre as suas condições de produção e atores da configuração e até mesmo da realização dos tais fatos sociais4. Assim, é na linguagem de uma

época que as relações sociais de sexos se inscrevem, é nela que as categorias são reificadas e que se perpetuam ou se transformam os antagonismos5. É por estes caminhos que os discursos

exprimem as suas marcas e também a performance dos gêneros6.

** Nota do tradutor: Em francês, o uso da forma genre (gênero), neste tipo de contexto, gerou o neologismo “genré”, adjetivo, com o plural correspondente “genrés” e o feminino “genrée”. O tradutor optou sempre pela forma analítica “de gênero”.

1 C. Achin et L. Bargel, “Montrez ce genre que je ne saurais voir”. Genre, sexualité et institutions dans la présidentielle de 2012”, Genre, Sexualité et Société, Hors Série 2, 2013, [em linha : http://gss.revues.org/2633].

2 O gênero como uma “gramática” que qualifica as relações de poder entre os sexos no campo político é o postulado forte da nossa tese, à qual remetemos as leitoras e leitores. M. Guaresi, Parler au féminin. Les professions de foi des député-e-s sous la Cinquième République (1958 – 2007), Tese de doutorado defendida na Universidade de Nice Sophia Antipolis em dezembro de 2015, p. 18 e seguintes.

3 O nosso enfoque com relação ao gênero se inscreve mais propriamente na análise do discurso e do simbólico, mas não se trata no entanto de negar a realidade social das hierarquias de sexos. Pelo contrário, somos a favor de uma convergência necessária entre o estudo do fato social e o estudo da sua dimensão discursiva. Como J. Butler, pensamos que “le langage à la fois est et se réfère à ce qui est matériel et ce qui est matériel n’échappe jamais complètement au processus par lequel il est signifié” (Nota do tradutor: “a linguagem ao mesmo tempo é e se refere ao que é material e o que é material não escapa nunca completamente ao processo através do qual ele constrói o seu significado”) (J. Butler, Ces corps qui comptent : de la matérialité et des limites discursives du “sexe”, Paris, Amsterdam, 2009, p. 68).

4 M. Tournier, Des mots sur la grève. Propos d’étymologie sociale, Paris, Klincksieck, 1992.

J. Guilhaumou, Discours et événement. L’histoire langagière des concepts, Besançon, Presses universitaires de Franche-Comté, 2006.

5 M. Riot Sarcey, “L’historiographie française et le concept de genre”, Revue d’histoire moderne et contemporaine, n°47/4, 2000, p. 805-814.

6 Voltando assim à expressão utilizada por de C. Bard, “Performances de genre : images croisées de M. Alliot-Marie et de R. Bachelot”, Histoire@Politique. Politique, culture, société, n°17, 2012, p. 69-86.

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A afirmação parece ainda mais necessária quando se considera o mundo político contemporâneo sob o prisma do gênero. No momento em que desaparecem os limites formais para a inclusão das mulheres na esfera política, o lugar historicamente e ainda atualmente minoritário das cidadãs na quase totalidade dos órgãos de poder – e forçosamente nas instâncias eletivas – parece que deve ser compreendido como a manifestação de sistemas de exclusão ou de discriminações baseadas no gênero, sutis mas bem claramente operacionais. Estes últimos formam-se, atualizam-se e difundem-se aqui mais do que em outros lugares, dentro e através do discurso. Na política, o uso da palavra beneficia seguramente de um papel central. O essencial das atividades, da conquista até o exercício do mandato, resume-se no ato de falar. Reciprocamente, o discurso político tem uma dimensão performativa evidente7.

Exprimir-se, quando se tem uma responsabilidade política, nunca deixa de ter algum efeito sobre o real. A palavra política co-constrói o mundo que ela descreve; ela provoca a rejeição ou a adesão, como pode também dar sentido aos acontecimentos. Mais particularrmente, o discurso é o lugar e o agente da invenção identitária e política das locutoras e dos locutores. A identidade política é antes de mais nada uma representação que cada um faz de si e, como tal, ela passa essencialmente pela mediação da linguagem. Em consequência, o discurso pode ser visto como um lugar de identificação, isto é, um espaço no qual cada um se identifica e cada um se reconhece8.

Por estas razões, a linguagem política tem com o gênero relações muito estreitas. Constituída e constitutiva de normas marcadas pelo gênero, ela tem traços disso e atualiza as marcas das identidades políticas dos mandatários da soberania nacional. Identificando as personalidades, elaborando os programas, propondo uma visão do mundo, os discursos dos responsáveis políticos são constituídos de palavras, de argumentos ou de representações favorecidas ou, pelo contrário, desfavorecidas, segundo o sexo das locutoras / dos locutores. É este postulado forte que vamos tentar expor nesta contribuição consagrada à palavra eleitoral dos deputados e deputadas que se encontram no Palais-Bourbon*** – bastião masculino que resiste e que tem

7 J. Austin, Quand dire c’est faire, Paris, Seuil, 1970.

8 D. Mayaffre, “Dire son identité politique. Le discours politique au XX° siècle”, Les Cahiers de la Méditerranée, n°66, 2003, p. 247 – 264.

*** Nota do tradutor: Palais Bourbon – nome do edifício onde se reúne a Assembleia Nacional Francesa. A França tem um sistema bicameral: a Assembleia Nacional, que corresponde, no Brasil, à Câmara dos Deputados, e o Senado. O artigo de Magali Guaresi aborda somente a questão relativa às eleições legislativas – isto é, para a Assembleia Nacional. Os Senadores franceses são eleitos por voto indireto.

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ainda hoje somente menos de 30% de mulheres – na Quinta República****.

Para isto, foi constituído um corpus com as declarações programáticas***** redigidas no

momento das eleições legislativas do período que vai de 1958 a 2007. Este corpus reúne quase todos os panfletos eleitorais escritos pelas deputadas e também uma amostra razoável de textos de homens, elaborados em condições comparáveis, em termos cronológicos, geográficos e políticos9. O conjunto tem primeiramente a vantagem de constituir na prática

uma norma da palavra eleitoral das futuras deputadas e futuros deputados : e este texto está muito longe de ser somente um catálogo de propostas, já que é um dos vetores mais privilegiados da performance de uma personalidade política. Ele resume o conjunto dos valores, das representações e dos compromissos das candidatas10. Por outro lado, o corpus

tem também a vantagem de se prestar, de forma rigorosa, a um tipo de processamento que passa pelo viés da estatística e da informática, que se impõem hoje nas ciências humanas e sociais como instrumentos de análise de vastos e diferenciados conjuntos de dados textuais11.

**** Nota do tradutor: A chamada Quinta República francesa começa com a Constituição de 1958 que, como o nome indica, é a quinta constituição republicana francesa. A Quinta República teve os seguintes presidentes: Charles de Gaulle, Georges Pompidou, Valéry Giscard d'Estaing, François Mitterrand, Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy, François Hollande e, atualmente, Emmanuel Macron.

***** Nota do tradutor: No sistema eleitoral francês, cada candidato deve redigir uma “profession de foi”. Este documento é enviado pelos Correios a cada eleitor. O eleitor recebe assim, na sua casa, as “professions de foi” de todos os candidatos. Como não há para este documento um equivalente no Brasil, o tradutor optou pela expressão “declaração programática”.

9 Precisamente, o corpus reúne de forma quase exaustiva as declarações programáticas do primeiro turno das eleições – conservadas nos Arquivos da Assembleia Nacional Archives de l’Assemblée nationale, no Barodet desde 1881 (Nota do tradutor: o Deputado Barodet, 1823-1906, deixou o seu nome vinculado às pastas então criadas nos Arquivos) – das candidatas eleitas nas eleições legislativas através do sistema uninominal majoritário (a eleição de 1986, que utilizou o sistema de lista foi por isso excluída, já que não era possível, naquelas condições, analisar a variável “sexo” de cada candidatura). A amostra dos textos dos homens foi constituída de acordo com a lógica cronológica, política e geográfica : a cada texto de mulher eleita corresponde um texto de homem eleito na mesma data, na mesma área geográfica e pertencente à mesma tendência política. O objetivo é o de limitar o peso de outras variáveis e conservar basicamente a variável que diz respeito ao sexo dos locutores e das locutoras, de que se quer questionar a pertinência através da observação constrastiva das candidaturas dos deputados e deputadas. O conjunto tem 511.166 ocorrências / palavras.

10 Ainda pouco estudada, a declaração programática já foi no entanto estudada em trabalhos importantes : Y. Deloye, “Se présenter pour représenter. Enquête sur les professions de foi électorales de 1848”, M. Offerlé, La profession politique. XIXe-XXe siècle, Paris, Belin, 1999, p. 231-254 ; O. Fillieule, “Le recours à l’avenir dans la

propagande électorale des premières années de la Troisième République”, Matériaux pour l’histoire de notre temps, n°21/1, p. 24-31 ; N. Castagnez, “L’avenir dans les professions de foi des socialistes de la IVe République”, Matériaux pour l’histoire de notre temps, n° 21/2, 1991, p. 89-92 ; S. Lévêque, “La féminité ‘dépassée’? Usages et non usages du genre dans les professions de foi des candidat-e-s parisien-ne-s aux élections législatives de 2002”, Revue Française de Science politique, n°55/3, 2005, p. 501-520.

Plus récemment, voir K. Fertick, M. Hauchecorne et N. Bué, Les programmes politiques. Genèses et usages, Rennes, Presses universitaires de Rennes, 2016.

11 O estudo lexicométrico pioneiro de A. Prost sobre as proclamaçõe eleitorais do final do século XIX bem mostra isto A. Prost, Le vocabulaire des proclamations électorales de 1881, 1885 e 1889, Paris, Presses universitaires de France, 1974.

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Para pôr em evidência as eventuais especificidades das proclamações eleitorais das mulheres eleitas, fizemos uma análise logométrica com o objetivo de observar os contrastes existentes entre os textos das mulheres e os textos dos homens nos diferentes escrutínios12. Este método

de leitura tem por objetivo um duplo enfoque, quantitativo e qualitativo, para que possa ser posto em relevo tudo quanto linguisticamente sobressai e é capaz de alimentar as interrogações que historicamente se põem e balizar alguns percursos interpretativos controlados e reprodutíveis. Sem nunca correr o risco de cair numa espécie de neo-positivismo, graças ao qual a prova matemática bastaria para administrar a hipótese histórico-política, os resultados que se pode tirar da observação do corpus, através das ferramentas utilizadas, constituem as chaves interpretativas para tentar compreender o funcionamento do gênero, objeto fugaz, móvel e complexo.

Dois pontos de observação principais serão adotados. Testaremos primeiramente a hipótese ambiciosa relativa à existência, na palavra eleitoral feminina, na Quinta República, de marcas específicas já que ignoramos, durante um certo tempo, as evoluções cronológicas ou ainda a diversidade sociopolítica das deputadas. É no âmbito dos grupos (quer dizer, as mulheres

versus os homens) que as marcas estruturais do gênero nos discursos eleitorais da segunda

metade do século XX são questionadas. Depois disso, numa segunda fase do estudo, a variável temporal será reintroduzida. Com base numa cronologia do falar feminino durante uma campanha eleitoral, extraída do corpus, faremos a descrição das identidades e dos compromissos com marcas de gênero em certos contextos histórico-políticos específicos.

2 AS CONSTANTES DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO NAS DECLARAÇÕES PROGRAMÁTICAS FEMININAS (1958-2007): OS ESTIGMAS DO GÊNERO NA POLÍTICA

A comparação binária (mulheres versus homens), durante os cinquenta anos de declarações programáticas analisados, põe em relevo, com força, o peso e a operabilidade do gênero no ato mesmo de apresentar uma candidatura nos tempos atuais. O processamento estatístico

D. Mayaffre, “Philologie et/ou herméneutique : nouveaux concepts pour de nouvelles pratiques”, F. Rastier et M. Ballabriga (dir.), Corpus en lettres en sciences sociales. Des documents numériques à l’interprétation, Toulouse, Presses universitaires de Toulouse, 2007.

12 Para a apresentação dos pressupostos epistemológicos e das implicações práticas do método, sugerimos a leitura do artigo de D. Mayaffre, “Analyse du discours politique et logométrie : point de vue pratique et théorique”, Langage et société, n°114, 2004, p. 94-121.

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aplicado ao corpus total consegue com efeito pôr em evidência constantes discursivas que caracterizam de modo significativo os dois conjuntos de textos sexuados. Apesar da evolução cronológica, das mutações das conjunturas eleitorais ou das transformações das posições sociais das locutoras e dos locutores, as candidaturas femininas têm as suas próprias assinaturas lexicais, gramaticais ou sintáticas que as diferenciam invariavelmente dos textos masculinos e que, assim, parecem marcar na carne do texto o perímetro do compromisso político das mulheres na Quinta República.

A título de exemplos, que foram selecionados em função do seu caráter significativo, numérico, atestado no corpus e que, consequentemente, não foram escolhidos arbitrariamente, vejamos, tais como estão representados nos gráficos que seguem, alguns casos de hiperutilização ou de sub-utilização13 nas declarações programáticas segundo o sexo do seu

autor.

13 Em lexicometria, hoje logometria, a hiperutilização ou a sub-utilização de uma palavra é determinada pelo cálculo das especificidades. Trata-se de observar a distribuição de uma palavra num texto ou num conjunto de textos com relação à norma de utilização que o próprio corpus encarna. Uma especificidade positiva define uma hiperutilização ; uma especificidade negativa denota uma sub-utilização. Os desvios de frequências significativas são apresentados por desvios reduzidos.

O modo de cálculo hipergeométrico que integra o programa HYPERBASE será utilizado aqui. Assim s = número de parágrafos, f = frequência da palavra-polo no texto, g = frequência da palavra coocorrente no texto e k = coocorrência observada. Assim : Prob (x=k) = (f ! (T-f) ! t ! (T-t) ! ) / ( k ! (f-k) ! (t-k) ! (T-f-t+k) ! T !) com T= extensão do corpus ; t= extensão do texto (i.e. do sub-corpus, por exemplo os textos das mulheres) ; f = frequência da palavra no corpus ; k = frequência da palavra no texto.

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Figura 1. As especificidades lexicais das declarações programáticas das mulheres versus homens (1958-2007).

A partir do estudo destes 25 itens no corpus dividido segundo o sexo dos candidatos e das candidatas, é possível concluir sobre alguns grandes traços dos temas e dos anátemas e sobre as principais estratégias retóricas dos discursos femininos14.

De forma eloquente, os dois gráficos, na parte superior da Figura 1, mostram o desequilíbrio sexuado no uso das palavras mais correntes da linguagem política contemporânea – tais como

République (República), France (França) ou État (Estado)15 – ou ainda daqueles que

caracterizam o enfrentamento político-eleitoral – tais como lutter (lutar), réélu (reeleito), e

dispersez (dispersam / dispersem). Estas palavras, que estão no entanto no centro do combate

democrático travado pelos representantes da nação, são sistematicamente sub-empregadas nas proclamações das mulheres. Pelo contrário, elas identificam e caracterizam a palavra dos homens durante a campanha eleitoral. O uso sexuado destes termos emblemáticos nos debates eleitorais consolida com muita força a hipótese da dimensão masculina do universalismo

14 Para que se possa ter uma ideia da economia temática global do corpus, remetemos para M. Guaresi, “Les thèmes dans le discours électoral de candidature à la députation sous la Cinquième République. Perspective de genre (1958-2007)”, Mots. Les Langages du politique, n°108, 2015, p. 15-37.

15 Estes vocábulos estão com efeito classificados como os mais frequentes nos corpora políticos (francófonos) do século XX. Ler por exemplo, D. Labbé et D. Monière, Le discours gouvernemental. Canada, Québec, France (1945-2000), Paris, Champion, 2003 ; D. Mayaffre, Le discours présidentiel sous la Ve

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republicano, formulada nos anos 199016. Estando em condições de concorrer para ter um

lugar na representação nacional, as mulheres rejeitam, em quantidade, os termos que historicamente as identificam. Por uma questão de estratégia de legitimação ou de identificação inconsciente, as candidatas deixam de usar as palavras do poder e, por isso mesmo, privam-se da realidade efetiva deste mesmo poder.

Os dois gráficos da parte inferior bem mostram, por outro lado, qual é o léxico hiperutilizado pelas mulheres na política17. Através das suas declarações programáticas femininas surgem e

desenvolvem-se algumas identidades políticas inscritas nos termos que caracterizam relações sociais de sexos patriarcais – tais como mère (mãe), mariée (casada), fille [de] (filha) – ou os vocábulos que constróem um ethos, uma imagem de responsável político, consensual e pragmática estereotipada – tais como accord (acordo), accomplir (cumprir / realizar), réussite (sucesso). As citações dadas abaixo, escolhidas entre as frases específicas das locutoras, bem mostram isso:

Mon engagement politique est celui d’une femme, d’une mère qui pense que nous devons à nos enfants un pays stable socialement, fort économiquement, dans un monde de paix. (Roig, 1993, Rassemblement pour la République, Vaucluse).

O meu compromisso político é o de uma mulher, de uma mãe que pensa que nós devemos dar aos nossos filhos um país estável socialmente, forte economicamente, num mundo de paz.

Avec chacun de vous, en accord avec les maires et les conseillers généraux, et sans empiéter sur leur action et leurs responsabilités propres […], je ferai tout pour accroître les possibilités d’expansion de cette région […]. (Dienesch, 1958, Mouvement Républicain Populaire, Côtes-du-Nord).

Com cada um de vocês, de acordo com as prefeituras e com os conselheiros dos departamentos, sem entrar no campo da sua ação e das responsabilidades que lhes são próprias (…), farei tudo para que cresçam as possibilidades de expansão desta região (…).

16 M. Riot-Sarcey (dir.), Démocratie et Représentation, Paris, Kimé, 1995.

E. Viennot (dir.), Démocratie “à la française” ou les femmes indésirables, Paris, Université Paris VII-Cedref, 1996.

17 Para um panorama exaustivo das especificidades positivas dos discursos das mulheres eleitas, remetemos à nossa tese : M. Guaresi, Parler au féminin. Les professions de foi des député-e-s sous la Cinquième République, Tese de doutorado, defendida no dia 14 de dezembro de 2015 na Universidade de Nice Sophia Antipolis.

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Et bien, si nous avançons en travaillant tous ensemble, je suis sûre que nous trouverons les chemins de la réussite […]. (Bassot, 1997, Union pour la Démocratie Française, Orne).

Pois muito bem, se nós avançarmos trabalhando todos juntos, é certo que encontraremos os caminhos para o sucesso (…).

Durante todo o período da Quinta República, de que ignoramos até o presente momento as evoluções cronológicas e a diversidade sociopolítica das deputadas, para insistir no que se refere às marcas fundamentais do discurso feminino, as declarações programáticas das representantes da nação aparecem como uma espécie de palavra heteronormativada que ficou às margens da política.

A segunda metade do século XX passa por uma feminização inédita das instituições, mas o discurso continua no entanto marcado na sua materialidade linguística, pelo gênero que ele contribui para perpetuar. As assinaturas lexicais, gramaticais ou retóricas permanentes das candidaturas femininas revelam o peso das representações tradicionais de um feminino apolítico ou, pelo menos, infrapolítico, no que diz respeito à valorização das identidades das futuras representantes da nação. Repetidas em todos os escrutínios, estas representações linguísticas agem como freios duráveis para que as mulheres possam ter acesso ao universo republicano.

3 SEGUINDO AS PEGADAS DA HISTÓRIA POLÍTICA DO GÊNERO: OS TRÊS TEMPOS DA PALAVRA FEMININA NA QUINTA REPÚBLICA

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Figura 2. Análise de fatores do vocabulário das declarações programáticas das mulheres (1958-2007).

Moldando profundamente e de modo constante as candidaturas da Quinta República francesa, o gênero, como objeto histórico e político, não deixa no entanto de sofrer as variações diacrônicas de que os discursos são ao mesmo tempo os depositários e os promotores. Basta uma única observação do corpus das declarações programáticas femininas, através das ferramentas de exploração dos dados e de classificação da logometria, para que se ponha em evidência a evolução dos discursos e, a partir daí, das modalidades de construção identitária e programática das deputadas.

Produzida a partir do conjunto do vocabulário das declarações programáticas, num corpus dividido de acordo com os 12 anos eleitorais que se sucedem, a presente análise fatorial de correspondências (AFC) (Figura 2) dá-nos informações essenciais sobre o corpus18. Dois

resultados importantes podem ser daí extraídos. Temos primeiramente esta vista geral do corpus, com um semicírculo em que encontramos os doze escrutínios – que é aquele efeito matemático bem conhecido no que se refere às AFC de séries textuais cronológicas19 – que

18 Sobre o método, ver à P. Cibois, L’analyse factorielle des correspondances, Paris, Presses universitaires de France, 1983. As aplicações nas Ciências Humanas e Sociais são hoje muito numerosas ; mencionamos aqui as obras pioneiras de A. Prost (A. Prost, Le vocabulaire des Proclamations électorales de 1881, 1885 et 1889, Paris, PUF, 1974) e de D. Peschanski, Et pourtant ils tournent : vocabulaire et stratégie du PCF (1934-1936), Paris, Klincksiel, 1989 ou ainda de D. Mayaffre, Le discours présidentiel, op. cit. Sobre os estudos relativos ao gênero, cabe mencionar as análises de fatores pioneiras de C. Achin, Le mystère de la chambre basse. Comparaison des processus d’entrée des femmes au Parlement (France-Allemagne 1945-2000), Paris, Dalloz, 2005.

19 A. Salem, “Les séries textuelles chronologiques”, Histoire & Mesure, VI-1/2, 1991, p. 149-175. A representação num arco de círculo – chamada de “efeito Guttman” – tende então a pôr em relevo uma evolução que se produz na linguagem segundo um continuum temporal : assim, um discurso produzido num instante T apresenta muitas vezes uma proximidade (na sua materialidade linguística) com discursos anteriores produzidos

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confirma, como se isto fossse ainda necessário, as transformações da palavra eleitoral das mulheres deputadas no correr dos anos. Mesmo se qualidades e restrições suficientemente fortes para serem designadas como constantes pela estatística marcam as declarações programáticas, isto não quer dizer no entanto que elas podem ser vistas como produções imutáveis ou essenciais de uma linguagem política feminina.

Depois disso, e para além da restrição, a AFC põe em relevo ritmos, reduções de marcha,

acelerações e rupturas que caracterizam a mutação linguística e, consequentemente, histórica e política das declarações programáticas das mulheres eleitas. Em termos fatoriais, três aproximações aparecem nos círculos descritos na Figura 2 e chamam a atenção do analista porque rompem com a ordem regular dos escrutínios ao longo da parábola esperada (quer dizer, do conhecido efeito Guttman) de um continuum histórico-linguístico. As eleições de 1958 a 1973 distinguem-se, com efeito, por uma concentração na parte inferior direita da representação fatorial; os três escrutínios de 1978 à 1988 destacam-se e situam-se na parte superior e os textos escritos a partir de 1993 se reúnem na parte inferior esquerda do gráfico. Sem entrar ainda nos detalhes das modalidades linguísticas de expressão do gênero em cada um dos períodos considerados, indicamos desde já quais são os aportes de um tal processamento, global e sistemático, para a definição de uma cronologia da feminização da Câmara dos Deputados e Deputadas, em contrapeso com relação a uma periodização do regime da Quinta República que já está, por outro lado, determinada.

Com base nas informações fornecidas pelo corpus, é possível esboçar diferentes constatações históricas. A primeira diz respeito ao papel modesto que teve a crise de maio de 1968 no que se refere aos fundamentos do gênero na ordem da república gaulliana. Se as declarações programáticas avançam pouco na distribuição cronológica dos textos, tal como figuram na

AFC, as declarações programáticas de 1968 não produzem nenhuma renovação durável nas

declarações das candidatas. A vinculação das proclamações eleitorais de 1973 ao primeiro grupo bem mostra isto20. Até o final dos anos 1970, apesar dos acontecimentos de maio e do

nascimento do Movimento de Libertação das Mulheres, o discurso político das mulheres

a T-1, com ao mesmo tempo alguns traços de linguagem dos discursos produzidos a T+1. Estas proximidades discursivas aparecem como proximidades geográficas no semicírculo da AFC.

20 Indicamos, a título de comparação, que a AFC realizada com relação aos textos dos homens de 1973 não marcam o retorno às práticas linguísticas de antes de 1968.

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continuou insensível às reivindicações de transformações sociais e feministas da época21.

Foi preciso esperar o ano de 1978 para que os discursos de campanha eleitoral das mulheres passassem a construir novas modalidades de legitimação. Mas também neste caso cabe distinguir algumas nuances no que se refere ao tradicional papel do ano de 1981 e a eleição de François Mitterrand nas evoluções relativas ao lugar que as mulheres passaram a ter na política22. A cronologia resultante do corpus bem mostra a mudança que se produziu na

década de 1980 para as mulheres nas eleições legislativas; mas, mais ainda do que os textos de 1981, são os de 1978 que estão mais marcados e que levam em consideração as transformações futuras.

Finalmente, a distância gráfica entre os discursos de 1988 e os de 1993 revela também o abandono dos padrões linguísticos em benefício de outros, novos. A hipótese de uma influência que os debates paritários teriam exercido sobre as declarações programáticas das candidatas no início da década de 1990 pode ser sustentada se levarmos em consideração o grau de parentesco matemático dos textos produzidos entre 1993 e 2007, tal como aparecem na AFC. O terceiro tempo é o da palavra feminina que, assim balizado, dá o necessário relevo à apropriação de novos códigos retóricos de gênero antes mesmo da adoção formal, no ano 2000, da lei da paridade.

4 GÊNERO E CRONOLOGIA: ENTRE VALORIZAÇÃO ESTEREOTIPADA E NEUTRALIZAÇÃO DAS “MARCAS” DO FEMININO

A observação dos ritmos sugeridos pela AFC (Figura 2) combinada com a análise fina das

palavras que contribuíram para os definir permite, depois disso, melhor compreender as características das modulações do gênero e dos seus efeitos durante a Quinta República. Concretamente, é possível localizar termos específicos das locutoras em cada um dos três períodos definidos pela AFC. O conjunto do vocabulário das declarações programáticas é

então submetido a uma comparação, ao mesmo tempo diacrônica (entre as três épocas) e sexuada (mulheres versus homens). As principais hiperutilizações lexicais femininas,

21 Catherine Achin constatou a mesma inércia em 1968 no que se refere à lógica do recrutamento político (C. Achin, Le mystère de la Chambre basse, op.cit., p. 493).

22 J. Jensen et M. Sineau, Mitterrand et les Françaises. Un rendez-vous manqué, Paris, Presses de Sciences po, 1995.

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associadas ao seu índice de especificidade, aparecem na figura seguinte (Figura 3).

Figura 3. Principais especificidades lexicais das declarações programáticas de mulheres por períodos (versus homens) 1958-1973 ; 1978-1988 ; 1993-2007.

Estas poucas unidades de léxico dão início a percursos interpretativos que voltam ao texto e que podem alimentar a descrição da “maneira de dizer” o gênero ou do “dito” marcado pelo gênero na Quinta República23.

As palavras que aparecem com força nos escritos dos happy few do início do período republicano de que se trata correspondem com as normas de um falar consensual de promotoras de políticas públicas – augmentation (aumento), construction (construção),

suppression (supressão), nos campos do saber tradicionalmente vistos como femininos – ou

ainda lycées (liceus), logement (alojamento / moradia), allocation (subsídio), por exemplo. Enquanto que a questão constitucional e institucional integra o discurso dos parlamentares homens das primeiras legislaturas, a palavra das novas mulheres eleitas parece só poder se justificar no campo eleitoral pela hiperocupação do espaço da gestão socioeconômica. As candidatas multiplicam então as suas propostas de ações concretas e financeiramente avaliadas, em particular para a educação ou a moradia. Vejamos por exemplo os trechos que seguem e que são característicos das declarações programáticas do início do corpus:

23 Para uma descrição exaustiva dos três tempos da palavra feminina nas eleições legislativas, remetemos à nossa tese : M. Guaresi, Parler au féminin, op.cit., p. 168-411.

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L’ensemble des groupes parlementaires m’a fait confiance en me nommant rapporteur pour la loi essentielle sur l’enseignement et la formation professionnelle agricoles, ainsi que la loi programme accordant 80 milliards pour les lycées et collèges agricoles publics et privés. (Dienesch, 1962, Centre Démocratique, Côtes-du-Nord).

O conjunto dos grupos parlamentares confiou em mim quando me nomeou como relatora da lei essencial sobre o ensino e a formação profissional agrícolas, assim como da lei de programação que concedeu 80 bilhões para os liceus e colégios agrícolas públicos e privados.

La véritable démocratisation de l’enseignement exige : l’ouverture en nombre suffisant de collèges d’enseignement secondaire (CES) qui sont actuellement à peu près inexistants […]. Pour le second cycle, l’aménagement et la construction de lycées offrant les options classique, moderne et technique ; l’augmentation des bourses, l’accès de tous les élèves à l’enseignement supérieur, et la création d’allocation d’études. (Thome-Patenôtre, 1967, Fédération de la Gauche Démocrate et Socialiste, Yvelines).

A verdadeira democratização do ensino exige: a abertura de um número suficiente de estabelecimentos de ensino secundário (EES) que são atualmente quase inexistentes (…). Para o segundo ciclo, a instalação e a construção de liceus que deverão oferecer as opções de formação clássica, moderna e técnica; o aumento do número de bolsas, o acesso de todos os alunos ao ensino superior, e a criação de subsídios para os estudos.

Nous proposons la construction de 600 000 logements annuels dont une part croissante doit être consacrée aux logements sociaux. (Thome-Patenôtre, 1967, Fédération de la Gauche Démocrate et Socialiste, Yvelines).

Propomos a construção de 600.000 moradias por ano, com uma parte cada vez maior destinada às moradias sociais.

Os termos que caracterizam os documentos eleitorais da geração das mulheres de esquerda que foram eleitas surgem a partir de 1978 e efetivamente tudo mudam se considerarmos a tonalidade das primeiras eleições. Estas mulheres foram eleitas em períodos particularmente politizados (expansão da oposição de esquerda, alternância no governo do País), e as impetrantes de 1978, 1981 e 1988 parecem ter sido autorizadas, mais do que as suas predecessoras, a inscrever as suas promessas de representação num discurso partidário nacional, classificando parcialmente as categorias estruturantes da legitimação do feminino na política. Elas utilizam assim um vocabulário inédito, de forma proporcionalmente importante. Encontramos no topo termos que qualificam a palavra das mulheres; assim é com communiste (comunista), changement (mudança), programme (programa), parti (partido), etc., que são então partilhados com os homens da mesma época. Em discursos em grande parte determinados pelas grandes questões nacionais e pelas palavras de ordem das máquinas

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partidárias, o gênero se esconde e até mesmo fica neutralizado. O recurso a uma retórica política tradicional vem acompanhado da dissimulação de toda e qualquer expressão que indique o feminino24.

No que se refere a este ponto, o período que começa com a campanha de 1993 marca transformações importantes para a construção de identidades políticas legítimas. Num contexto de despolitização dos debates, de personalização política ou ainda de mutações profundas da palavra na era dos mass media25, as futuras representantes da nação produzem

um discurso voltado para a sua feminidade, não mais vista agora como um estigma ou como um horizonte limitante (a algumas áreas, por exemplo) mas como um recurso eficaz na competição eleitoral26. Esta eficiência em matéria de discurso só é possível por causa do

desenvolvimento concomitante, por um lado, de um discurso de crise da representação27 e,

por outro lado, da emergência das reivindicações paritárias.28 Como objeto de apropriações

mais ou menos estratégicas, estes discursos permitem que se produzam e que sejam utilizadas representações linguísticas positivas das feminidades políticas. Estas estão ainda no entanto relacionadas com uma visão tradicional das mulheres, como seres pertencentes a uma área privativa – e, deste ponto de vista, com uma maior capacidade de aproximação com o corpo eleitoral – que seriam dotados de qualidades específicas – a moralité (moralidade) – luta contra a corruption (corrupção) –, a disponibilité (disponibilidade) – proche (próxima),

quotidien (cotidiano) –, a empathie (empatia) – écouter (ouvir). Muitas passagens do corpus,

tal como acontece com as duas passagens que seguem, bem mostram esta reconfiguração do gênero a partir dos anos 1990:

Je relève aujourd’hui le défi d’être demain votre député. Proche de vous, et de vos préoccupations, je suis à votre écoute et à votre service pour vous aider à résoudre les problèmes que vous rencontrez dans votre vie quotidienne. (Martinez, 1993, Rassemblement Pour la République, Hautes-Alpes).

24 Duas especificidades bem mostram que persiste ainda com relação às candidaturas, nestas três eleições, uma restrição devida ao gênero: a referência mais frequente das candidatas a apoios obtidos (por exemplo, de um “amigo” + 2,5, normalmente um político, homem, em 1978) e a abordagem muito mais numerosa de temas femininos e/ou feministas.

25 Por exemplo, LEBART C., L’ego-politique. Essai sur l’individualisation du champ politique, Paris, Armand Colin, 2013.

26 D. Dulong et F. Matonti, “L’indépassable féminité. La mise en récit des femmes en campagne”, J. Lagroye, J. Lehingue et F. Sawinski, Mobilisations électorales. Le cas des élections municipales de 2001, Paris, PUF, 2005.

27 R. Lefebvre, “Rhétorique de la proximité et crise de la représentation”, Cahiers Lillois d’économie et de sociologie, n°35-36, 2001, p. 111-132.

28 Lepinard E., L’égalité introuvable. La parité, les féministes et la République, Paris, Presses de Science po, 2007.

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Aceito hoje o desafio de ser amanhã o deputado de vocês. Próxima de vocês e das preocupações de vocês, estou aqui para ouvir e para os ajudar, a serviço de vocês, a resolver os problemas que vocês encontram na vida cotidiana.

Quotidiennement, comme toujours, je serai à votre disposition pour vous aider à surmonter vos problèmes, à porter vos projets. (Buffet, 2007, Parti Communiste, Seine-Saint-Denis).

Todos os dias, como sempre, estarei à disposição de vocês para os ajudar a resolver os problemas que têm e para fazer com que os projetos de vocês avancem.

O principal recurso das candidatas a uma argumentação eleitoral centrada na personalidade (e na feminidade) é também identificado por uma hiperutilização do pronome pessoal da primeira pessoa do singular je (eu). A marca da representação é atualizada, apresentada e definida na enunciação que constrói um ethos de representantes comprometidas, dedicadas ou pragmáticas. Esta imagem é ainda mais eficaz nas locutoras, que fazem uso deste recurso mais cedo e de forma mais abundante que os homens e que representa um elogio para as qualidades presumidas das mulheres nas nossas sociedades contemporâneas. Assim, e para citar um só exemplo deste fenômeno, vamos mencionar a promessa de Henriette Martinez, que foi eleita no Departamento de Hautes-Alpes, em 2002 :

Dans les Hautes Alpes, je serai un député de proximité à votre écoute, je me battrai pour faire avancer vos projets et vos dossiers […]. Je m’engage à travailler avec vous et pour vous dans la transparence, avec l’honnêteté, l’intégrité et la sincérité dont j’ai toujours fait preuve. Je m’engage à respecter ma parole, à être présente à vos côtés, à votre écoute, pour répondre à vos besoins et une conduire une action efficace. (Martinez, 2002, Union pour un Mouvement Populaire, Hautes-Alpes).

Nos Hautes Alpes (Nota do tradutor: Departamento do sul da França), serei um deputado de proximidade e vou ouvir o que vocês têm para me dizer, vou lutar para que os projetos e os pedidos de vocês avancem (…). Comprometo-me a trabalhar com vocês e para vocês, com a transparência, a honestidade, a integridade e a sinceridade de que sempre dei provas. Comprometo-me a respeitar a minha própria palavra, a estar presente, ao lado de vocês, ouvindo-os, para dar resposta às necessidades de vocês e para ser eficaz na minha ação.

As marcas linguísticas do último grupo das declarações programáticas põem em relevo o uso da retórica paritária, voltada para um sentido doméstico (e não cívico)29 nas mencionadas

declarações programáticas, para fins de legitimação pessoal. As candidatas valorizam o

29 M. Paoletti, “Les effets paritaires sur la proximité”, C. Lebart et R. Lefebvre, La proximité en politique. Usages, rhétoriques, pratiques, Rennes, Presses universitaires de Rennes, 2005, p. 129-143.

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“feminino» na política para dar mais peso à sua candidatura num contexto histórico-discursivo de desconfiança com relação aos políticos tradicionais:

Le parti socialiste s’est engagé dans la voie de la parité afin de permettre aux femmes d’entrer dans la vie publique où elles apportent plus d’humanité, des solutions concrètes, un sang neuf loin des querelles politiciennes. (Roudy, 1997, Parti Socialiste, Calvados).

O partido socialista seguiu pelos caminhos da paridade para permitir que as mulheres entrem na vida pública para onde elas vão trazer mais humanidade, soluções concretas e sangue novo, longe das querelas do jogo político.

Osez enfin la parité, parce que les femmes amènent un ton nouveau dans une vie politique sclérosée. (Aubert, 1997, Parti Socialiste, Eure-et-Loir).

É preciso enfim ousar e praticar a paridade, porque as mulheres contribuem com um tom novo na vida política esclerosada.

Les citoyens sont à juste titre lassés des fausses promesses et de l’éloignement des élus. Ils ont le sentiment de n’être ni compris, ni même entendus. Plus à l’écoute, plus près des préoccupations quotidiennes, les femmes peuvent renouveler l’approche des problèmes. (Guinchard-Kunstler, 1997, Parti Socialiste, Doubs).

Os cidadãos estão a justo título cansados das falsas promessas e do distanciamento que caracteriza aqueles que foram eleitos. Eles têm o sentimento de que ninguém os compreende e de que ninguém os ouve. Escutando mais, estando mais perto das preocupações cotidianas, as mulheres podem ter uma maneira nova de abordar os problemas.

No âmbito da paridade, as mulheres (e, de uma forma mais geral, o problema das relações sociais de sexos marcadas pela desigualdade) desaparecem atrás da feminidade da candidata que se encontra assim, durante um certo tempo, valorizada no campo da política30:

Dans mon engagement au service de ces idées, je mettrai toute ma détermination d’Aveyronnaise, ma sensibilité de femme, mon attachement à la France, à Paris, à notre 14ème arrondissement. (Catala, 1993, Rassemblement Pour la République, Paris).

Respeitando o compromisso que assumi a serviço destas ideias, porei toda a minha determinação de Aveyronnaise (Nota do tradutor: habitante do Aveyron, Departamento do sul

30 Sobre este ponto, ler também C. Bard, “La fin de la condition féminine ?”, J.-F. Sirinelli et J. Garrigues, Comprendre la Ve République, Paris, Presses universitaires de France, 2010, p. 67-82.

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da França), a minha sensibilidade de mulher, o meu apego à França, a Paris, ao nosso 14° distrito...

J’ai aujourd’hui l’expérience acquise dans la permanence de ma mission, mais je garde la spontanéité et cet autre regard sur la vie publique, parce que j’appartiens à la nouvelle génération politique, et parce que je suis une femme. (Piat, 1993, Union pour la Démocratie Française, Var)

Já tenho hoje experiência no que se refere à continuidade da minha missão, mas conservo a espontaneidade e aquela maneira diferente de olhar para a vida pública, porque pertenço à nova geração política, e porque sou uma mulher.

5 CONCLUSÃO

O exame material e logométrico de um vasto corpus de declarações programáticas confirma e dá sustentação à tese segundo a qual o gênero funciona como uma “gramática» marcada e elaborada nos discursos para sinalizar a bipartição hierarquizada e desigual dos sexos nas nossas democracias. No momento em que os freios formais para a entrada das mulheres nas arenas políticas, na segunda metade do século XX, cada vez mais se reduzem, o discurso das mulheres que foram eleitas revela o peso das discriminações simbólicas e o seu caráter operacional.

Em sincronia, as declarações programáticas das impetrantes à deputação apresentam características originais que marcam profundamente o compromisso político assumido e mostram os caminhos discursivos que as candidatas devem obrigatoriamente trilhar para chegarem ao resultado esperado que é a deputação. Para além da diversidade que há entre as declarações programáticas, o processamento exaustivo e sistemático da logometria consegue fazer com que se destaquem as constantes, aquilo que, mesmo de forma mínima, permanece, mas que é fundamental, e sólido, se levarmos em consideração a exigência matemática do processamento que as identificou, com relação às candidaturas das mulheres. Estas últimas são mais marcadas por tudo quanto é proibido do que pela politização de novos elementos ou pela emergência de uma cultura “feminina” política31. Para esperar obter a adesão

democrática, as candidatas desviam-se das normas da palavra política tradicional que contrariam as representações legítimas das mulheres. À luz do corpus, podemos afirmar, com

31 M. SINEAU, “Femmes et culture politique. Nouvelles valeurs, nouveaux modèles ?”, Vingtième Siècle. Revue d’histoire, 44, 1994, p. 72-78.

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Françoise Collin, que “la langue publique, celle qui se parle haut, est une langue qui reste toujours relativement étrangère aux femmes. C’est une langue d’hommes […]. Les femmes se tiennent au bord de cette langue-là. Il n’est pas vrai qu’elles ne la connaissent pas – il arrive qu’elles la connaissent très bien et en usent habilement – mais elles ne la constituent pas […]. Une femme qui parle la "langue d’hommes" entraîne rarement une adhésion inconditionnelle. Car elle porte sur son visage, dans son corps, le démenti de son discours32».

Em diacronia, entre especialização discursiva, neutralização ou valorização essencializante, a palavra das mulheres tem dificuldades para se libertar do peso do gênero e a expressão das feminidades políticas está ainda muito fora de um universal republicano inclusivo ou verdadeiramente misto. Resumindo, e voltando à constatação feita por Pierre Guiraud, citado por Dalila Morsly, “la principale aliénation de la femme est linguistique33”. Nas declarações

programáticas, que são os atos discursivos daqueles e daquelas que serão eleitos ou eleitas, manifesta-se a dominação masculina interiorizada por aquelas que poderiam ter interesse em contestá-la e exprime-se a vontade das impetrantes de não entrarem em confronto com o seu

ethos anterior de mulheres.

32 F. COLLIN, “Polyglo(u)ssons”, Le langage des femmes, Paris, Editions Complexe, 1992, p. 19 - 28, p. 19. Tradução: “a língua da vida pública, aquela que fala alto, é uma língua que é relativamente estranha às mulheres. É uma língua de homens (…). As mulheres ficam sempre à margem com relação à esta língua. Não é certo dizer que elas não a conhecem – acontece até mesmo que elas a conheçam muito bem e a utilizem com habilidade – mas elas não a constituem (…). Uma mulher que fala uma “língua de homens” atrai para si raramente uma adesão incondicional. Pois elas têm no seu próprio rosto, no seu corpo, marcas que desmentem o seu discurso”.

33 P. Guiraud, Sémiologie de la sexualité, Paris, Payot, 1978 citado por D. Morsly, “Revisiter la langue”, E. Gubin, C. Jacques, F. Rochefort, B. Studer, F. Thébaud, M. Zancarini-Fournel, Le Siècle des féminismes, Paris, Les Editions de l’Atelier/Editions Ouvrières, 2004, p. 320. Tradução: “a principal alienação da mulher é linguística”.

Recebido: 11 de julho de 2017 Aceito: 12 de julho de 2017

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