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Experiência de atuação terapêutica em grupo em uma perspectiva construcionista social

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Academic year: 2021

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Gabriela Martins Silva – Universidade Federal de Uberlândia -gabrielam_psico@yahoo.com.br

Emerson Fernando Rasera – Universidade Federal de Uberlândia

RESUMO

O presente trabalho apresenta algumas reflexões sobre o desenvolvimento da postura filosófica do terapeuta, proposta pela perspectiva construcionista social. Essas reflexões se baseiam na experiência de participação no estágio “Psicoterapia de Grupo em uma Perspectiva Construcionista Social” e se deram, principalmente, durante as supervisões.

O estágio foi realizado no curso de graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, teve duração de um ano e consistiu de atendimentos semanais em grupo, feito por quatro estagiárias. Cada sessão tinha a duração de uma hora e trinta minutos e era seguida por uma hora e trinta minutos de supervisão. O atendimento era feito por duas estagiárias atuando em campo, ou seja, em interação direta com os clientes e duas na equipe reflexiva, posição na qual permaneciam fora do grupo, em silêncio, observando a sessão até que em determinado momento, pelo convite das terapeutas de campo, falassem suas percepções, sentimentos, pensamentos e teorizações que pudessem contribuir com o processo terapêutico. Foram atendidos dois grupos com duração de doze sessões cada. O primeiro grupo foi constituído por quatro homens e duas mulheres e foi atendido no primeiro semestre do ano de 2006, enquanto que o segundo grupo constituiu-se de oito mulheres e foi atendido no segundo semestre do mesmo ano. As terapeutas, trabalhando em duplas, alternaram as posições de campo e de equipe reflexiva em cada semestre.

O construcionismo social surge como proposta epistemológica durante a década de 70, inserindo-se no pensamento pós-moderno e, portanto, se opondo aos paradigmas científicos dominantes no século XX, e seus critérios de generalização, replicabilidade e neutralidade do pesquisador. Baseia-se, então, em uma posição hermenêutica e interpretativa, o que significa que nossa única forma de conhecer e de produzir conhecimento é interpretando.

Para o construcionismo social, o problema em terapia refere-se a narrativas ou interpretações trazidas pelo cliente que diminuem sua sensação de liberdade pessoal e de capacidade para ação. Nessa perspectiva, não faz parte da função do psicólogo identificar,

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diagnosticar e descobrir os problemas e as soluções para o cliente. Sua função é a de ser um especialista do processo dialógico, o que significa que o terapeuta tem o papel de ser o promotor e facilitador de conversas terapêuticas que possibilitem produzir inteligibilidades, relativizando e flexibilizando formas rígidas de significação que podem ser fonte de sofrimento ao indivíduo. Além disso, cabe ao psicólogo convidar o cliente à percepção do caráter relacional dos fenômenos psicológicos, inclusive dos problemas, promovendo a tomada de consciência da relação enquanto responsável pelos fenômenos e a percepção da participação de cada um nesse processo.

Para fazer isso, o psicólogo pode se utilizar de perguntas reflexivas que têm o objetivo de levar o cliente à reflexão, a estabelecer um diálogo com ele mesmo, de modo a possibilitar a co-construção de diferentes sentidos e novas narrativas para terapeuta e cliente. Essas perguntas reflexivas são feitas a partir de uma postura de não-saber que implica em uma curiosidade genuína e abundante pela história do cliente. Isso significa que o terapeuta é informado pelo cliente, confia totalmente em sua história e se junta a ele para explorar essas narrativas e experiências. Essa postura, caracterizada por espontaneidade e autenticidade, não se trata de técnica, mas sim de um jeito de estar consigo e com o outro, que é singular a cada relacionamento estabelecido. Significa, principalmente, não julgar e não interpretar a priori a história do cliente.

O trabalho em grupo é extremamente frutífero para o exercício da responsabilidade relacional e da postura do não-saber. Com muitos participantes, trazemos para a terapia várias vozes, não só a do terapeuta ou, no caso desse estágio, a de um terapeuta. Essas várias vozes implicam em várias opiniões, em conflitos, em argumentação, negociação, em respeitar diferenças e conviver com elas, em assumir equívocos durante as conversas, em compreender o outro e ao mesmo tempo se fazer entender pelo outro, em ajudar e se deixar ser ajudado e também em perceber os limites de poder ajudar e ser ajudado. Ao conversarmos sobre as origens de diferentes valores que cada um tem sobre certos temas podemos refletir sobre o caráter histórico e função social de certos valores, nossa responsabilidade sobre eles e as vantagens e desvantagens que sentimos com a adoção de alguns deles, o que caracteriza um enorme potencial de significações.

Para entrar no setting terapêutico não tivemos um treinamento específico, até porque não tínhamos um passo-a-passo para memorizar e nem formas pré-determinadas de verificar os resultados das intervenções. Tivemos, por outro lado, a orientação de que era necessário assumir a imprevisibilidade que é o campo terapêutico. Para isso, fizemos, durante todo o estágio, um exercício de espontaneidade que se pautou em aprender a utilizar os próprios

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sentimentos despertados no momento da terapia para formular perguntas e dar feedback aos clientes, propiciando assim novas experiências para eles. Além disso, aprender a cuidar de si próprio no grupo para poder cuidar do outro foi tarefa importante. Para isso, é necessária uma preparação pessoal do terapeuta para não fugir dos sentimentos desconfortáveis que o processo terapêutico traz tanto para clientes quanto para terapeutas. Isso implica na reflexão sobre o quê o sofrimento do outro desperta em nós, para assim entender os motivos de muitas vezes fugirmos dos momentos de demonstração de dor com simples frases de consolo ou com o uso de técnicas descomprometidas. Em muitos momentos foi difícil, para mim, legitimar certos problemas e colocações que “esbarravam” em valores morais ou políticos meus. Isso me causava tensão interna e dificultava minha conexão com o processo terapêutico. Então, a partir da supervisão, me engajei em refletir que as histórias dos clientes e estagiárias eram tão legítimas quanto a minha e que, estando todos nós imersos em um contexto de responsabilidade relacional, poderíamos expor nossos valores e nos engajar no exercício de compreensão mútua, que amplia sentidos e gera outras possibilidades de ação. Para tanto, foi necessário desenvolver a capacidade de se expor de maneira aberta, não só nos momentos de discordância, mas durante toda a conversação. Se colocar de uma maneira aberta significa não querer convencer o outro de que seu ponto de vista é o correto e em não confrontá-lo, dando espaço para o outro discordar calmamente. Para isso, temos que duvidar da certeza que temos sobre o que pensamos e questionar o outro antes de pensarmos qualquer coisa sobre ele. Além disso, focar na intenção da conversa para formular as perguntas, pensando no convite que se faz ao outro falando dessa ou daquela forma, foi bastante útil.

Para aprender a responsabilizar a relação, primeiramente, foi necessário desistir de querer controlar todo o processo terapêutico e de saber qual era o melhor resultado esperado, já que esta é uma função impossível de se fazer. Era necessário aceitar o cliente como detentor de um saber próprio que o capacitava viver sua vida e compreender que o papel do psicólogo não era imprescindível para ele para que, assim, pudéssemos juntos construir a terapia e as mudanças.

Além disso, foi um grande aprendizado pessoal aceitar e compreender as colocações das demais estagiárias e demais participantes do grupo. Isso implicou em construir a noção de que nem sempre o que eu penso sobre o outro é importante para o outro.

Permanecer na equipe reflexiva foi também um grande exercício para aprender realmente a ouvir e a dar credibilidade ao outro. Trata-se de uma posição em que se observa uma sessão terapêutica, procurando pensar em diferentes formas de se conversar que possam ser úteis àquele processo terapêutico em cada instante, enquanto se aguarda o momento em

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que se é chamado a falar. Assim, constitui-se, acima de tudo, em um exercício de humildade. Além disso, nos momentos de supervisão, com os apontamentos da equipe reflexiva à minha atuação, enquanto terapeuta de campo, e discussões sobre os atendimentos, pude perceber características que eu demonstrava, mas sobre as quais eu não tinha consciência e com isso descobri outras maneiras de me expressar para melhorar minhas relações. Esse aprendizado se deu de maneira muito delicada, pois foi concretizado a partir de conversas calorosas entre estagiárias e supervisor, durante as quais houve muita exposição pessoal com forte conteúdo emocional que, trabalhados terapeuticamente pelo supervisor, nos proporcionou crescimento pessoal e profissional.

De modo geral, todas essas reflexões e aprendizados descritos aqui implicam, necessariamente, em abrir mão do lugar confortável que é saber e ser o detentor da verdade. Implicam em se questionar e ser questionado, historicamente, enquanto profissional necessário e em ser destituído do poder de determinar sobre a vida alheia e para mim, exigiu, além disso, engajamento em identificar, avaliar e substituir concepções positivistas e liberais, aprendidas durante o curso de graduação em Psicologia, tão fortemente presentes em meu discurso, atuação e forma de estar no mundo.

Eixo temático: Saúde

1- INTRODUÇÃO

O ensino de Psicologia, ainda fortemente influenciado pelo pensamento moderno, nos estimula a “entender” e a “compreender” o outro à nossa maneira, usando o olhar e os valores de uma comunidade científica que, muitas vezes, não correspondem aos do cliente. Assim, somos treinados para ter certezas sobre a vida do outro que nos procura baseados em apenas algumas horas de conversa, durante as quais, muitas vezes, utilizamos perguntas retóricas ou pedagógicas que levam o cliente a responder o que queremos ouvir, como se nesse processo o fizéssemos tomar consciência de algo sobre sua vida que nem ele sabia, mas nós, psicólogos, descobrimos. Agindo dessa forma, os psicólogos validam a sua teoria, subjugando a história do cliente em favor da confirmação de suas premissas (Anderson & Goolishian, 1998).

Bock (2000), falando sobre a Psicologia da Educação, afirma que nossa formação é tecnicista, ou seja, nos ensina a fazer algo apenas quando nos é dada uma determinada situação, respeitando uma causalidade linear. Além disso, segundo a autora, temos um ensino de Psicologia que vê o ser humano como alienado de sua realidade social e cultural,

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naturalizando-o enquanto indivíduo autônomo e enquanto portador de uma essência cheia de potencialidades que pode ou não se desenvolver, a depender de sua estimulação “adequada” pelo meio social e cultural. A partir daí, temos uma visão patologizante e psicologizante do homem, com raízes em uma psicologia de concepções liberais e positivistas, que culpabiliza o indivíduo por seu sucesso ou fracasso (Bock, 2000). A partir disso, o psicólogo surge como o detentor do saber que pode salvar os homens de sucumbir às suas fraquezas e dificuldades e ganha o poder de fazer deliberações sobre a vida alheia.

O objetivo desse texto é trazer as reflexões que realizei a partir do estágio “Psicoterapia de Grupo em uma Perspectiva Construcionista Social” para desenvolver uma postura diferente desta descrita anteriormente. Essas reflexões se deram durante as sessões de atendimento, em momentos de leitura de textos, tanto científicos como diversos, durante conversas informais sobre minha prática e sobre a prática clínica em geral e, principalmente, durante as supervisões. Esse exercício me exigiu engajamento em identificar, avaliar e substituir concepções positivistas e liberais, aprendidas durante o curso de graduação em Psicologia, tão fortemente presentes em meu discurso, atuação e forma de estar no mundo.

1.1- A perspectiva construcionista social

O construcionismo social surge na década de 70, como uma perspectiva teórico-metodológica distinta, inserido na epistemologia pós-moderna, caracterizada pela consideração da interdependência entre sujeito cognoscente e o objeto conhecido e pela ênfase no conhecimento como prática discursiva socialmente construída. Estas características se opõem à neutralidade e objetividade do pesquisador e à validade e generalização dos conhecimentos, conceitos propostos e valorizados pelo pensamento moderno. Isso significa que o pensamento pós-moderno considera todo conhecimento como uma narrativa, construída a partir de interpretações, que são situadas sócio-historicamente, ao invés de tratar o conhecimento como representação fiel do mundo. Deste modo, o pensamento pós-moderno não se apega a metodologias específicas, não procura por critérios de legitimação da estabilidade das narrativas, muito menos por verdades aistóricas, se preocupando com a linguagem e a multiplicidade de significados, tendo, por isso que conviver com a imprevisibilidade e a incerteza (Grandesso, 2000; Japur, 2004).

Baseia-se, então, em uma posição hermenêutica e interpretativa, o que significa que nossa única forma de conhecer e de produzir conhecimento é interpretando (Wachterhauser, 1986, apud Anderson & Goolishian, 1998). Deste modo, todo conhecimento é uma forma de dar sentido aos fenômenos, sentido que é criado nos relacionamentos e nos diálogos em que

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as pessoas se engajam, o que caracteriza cada conhecimento como um sistema lingüístico (Anderson & Goolishian, 1998). Os seres humanos, então, vivem e agem no mundo através dos sentidos que eles atribuem às suas experiências.

A terapia, como uma construção humana, é também uma realidade construída pelos seus participantes e, ao mesmo tempo, capaz de transformá-los, num processo dialógico. Dialogia significa aceitação e legitimação da alteridade, isto é, a coexistência e validade de múltiplas perspectivas. Assim, nesse contexto, clientes e terapeutas mudam (Rasera & Japur, 2004; Grandesso, 2000).

As terapias ditas construcionistas consideram o problema em terapia como narrativas trazidas pelo cliente que diminuem sua sensação de liberdade pessoal e de capacidade para ação. É unicamente legítimo que o próprio cliente aponte determinando aspecto de sua vida como um problema. Isso significa que o psicólogo não tem a função e nem legitimidade para identificar, diagnosticar e descobrir os problemas e as soluções para o cliente. A função do terapeuta é a de ser um especialista do processo dialógico, ou seja, tem o papel de ser o promotor e facilitador de conversas terapêuticas que possibilitem a ampliação de significados (Rasera & Japur, 2004). Imersos nesse círculo hermenêutico que é a terapia, terapeuta e cliente ajustam continuamente seus entendimentos um ao outro num contexto de responsabilidade relacional. Responsabilizando a relação ao invés de nos apoiar na autoridade do saber científico, transformamos o entendimento que os envolvidos na relação têm de suas ações e também alteramos a relação entre os envolvidos (McNamee, 1998).

Essas características são compartilhadas pela terapia narrativa de White e Epston, pelos processos reflexivos de Tom Andersen e pela abordagem colaborativa proposta por Harlene Anderson, que foram teóricos utilizados como guias para a realização do estágio aqui descrito.

A terapia narrativa de White e Epston se baseia na noção de que as pessoas organizam suas experiências em histórias, estabelecendo passado, presente e futuro, o que possibilita a construção do que é a realidade, dando significado à vida e ao self. Apesar desse caráter constitutivo da narrativa, esses autores consideram que a experiência vivida ainda é muito mais rica que qualquer relato feito sobre ela, derivando disso a noção de que as pessoas experimentam problemas quando consideram que suas narrativas não abarcam suficientemente suas vivências. A partir disso, a função do terapeuta é de ser o promotor e facilitador de conversas terapêuticas que possibilitem a ampliação de significados, a construção de novas narrativas e de novas descrições de si, o que é a mudança em terapia narrativa. Para tanto, o terapeuta se utiliza de perguntas de influência relativa que buscam

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descrever qual a influência do problema na vida da pessoa e qual a influência da pessoa na vida do problema. Com isso, busca a externalização do problema que se baseia em “coisificar” ou personificar o mesmo para assim separá-lo linguisticamente da pessoa, possibilitando outras descrições de si que não aquelas vinculadas ao problema. Feita essa separação, a pessoa é capaz de identificar acontecimentos extraordinários em suas histórias, que consistem em acontecimentos, sentimentos, pensamentos, ações, percepções, etc. que não foram pronunciados no relato dominante de sofrimento trazido por ela inicialmente. Nesse exercício de ajudar o cliente a pronunciar e a historiar outras experiências, reconhecendo-as e compreendendo-as, terapeuta e cliente co-constroem narrativas mais amplas, enriquecendo seus significados e suas descrições de self (Rasera & Japur, 2004; Grandesso, 2000; Epston, White & Murray, 1998).

Harlene Anderson, proponente da terapia colaborativa, tal como White e Epston, considera que os seres humanos vivem e compreendem seu viver pela construção de narrativas sobre suas experiências. Assim, em consonância com esses autores, considera que é papel do psicólogo ser um especialista da conversação, sendo sua especialidade facilitar e criar o espaço para trocas dialógicas. O terapeuta faz isso através do uso de perguntas terapêuticas ou conversacionais que, sem se guiar explicitamente por uma metodologia, trazem a tona algo inédito dentro do discurso do cliente, com o objetivo de buscar a reflexão, favorecendo os diálogos internos, para que assim, novos e diferentes sentidos possam emergir para terapeuta e cliente. (Anderson & Goolishian, 1998).

Essas perguntas são feitas a partir de uma postura de não-saber que se baseia na atitude ou na crença do terapeuta de que não tem acesso privilegiado a informações sobre o cliente, sendo necessário sempre aprender mais sobre o que foi ou não dito por ele. Implica, portanto, em uma curiosidade abundante pela história do cliente e demanda do terapeuta humildade e disposição para se conscientizar de suas pressuposições, duvidar delas, observá-las, expô-las aos outros, refletir sobre elas e, muitas vezes, transformá-observá-las, já que cada cliente é o especialista de sua experiência de vida e ensina o terapeuta sobre isso, para juntos explorarem essas narrativas e experiências. Para tanto, o psicólogo deve estar atento aos seus diálogos internos e pensamentos e buscar, sempre que possível, expressá-los e o fazer de maneira respeitosa e provisória, evitando assim, se engajar em interpretações privadas que podem validar sua teoria, mas invalidar a história do cliente. (Anderson & Goolishian, 1998; Anderson, 2005).

Os processos reflexivos de Tom Andersen ressaltam a importância da alternância entre a posição de fala e escuta, consistindo em uma proposta de processo psicoterápico e não

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em um modelo terapêutico sistematizado. Esse autor propõe que o terapeuta deve buscar a inserção de diferenças adequadamente incomuns, através de perguntas, comentários e metáforas que confrontam cuidadosamente o discurso dominante do cliente, propiciando, assim, a ampliação de sentidos. Além disso, esse autor considera que em uma conversa entre terapeuta e cliente ocorrem três conversas, paralelamente: uma, que é a conversa explícita entre terapeuta e cliente e outras duas que são as conversas internas em que cada um dos participantes também se engaja. Com essas noções em mente, o autor elaborou a equipe reflexiva, que se trata de um consultor ou um grupo de consultores que assistem em silêncio um processo psicoterápico e, em determinado momento, são chamados a participar, com o intuito de enriquecer o processo de reflexão com suas descrições, seus pensamentos e suas intervenções (Rasera & Japur, 2004; Andersen, 1998).

1.2- Caracterização do estágio

O estágio foi realizado na Universidade Federal de Uberlândia, teve duração de um ano e consistiu de atendimentos semanais em grupo, feito por quatro estagiárias. Cada sessão tinha a duração de uma hora e trinta minutos e era seguida por uma hora e trinta minutos de supervisão.

O atendimento era feito por duas estagiárias atuando em campo, ou seja, em interação direta com os clientes e duas na equipe reflexiva, posição na qual permaneciam fora do grupo, em silêncio, observando a sessão até que em determinado momento, pelo convite das terapeutas de campo, falassem suas percepções, sentimentos, pensamentos e teorizações que pudessem contribuir ao processo terapêutico. Foram atendidos dois grupos com duração de 12 sessões cada. O primeiro grupo foi constituído por 4 homens e 2 mulheres e foi atendido no primeiro semestre do ano de 2006, enquanto que o segundo grupo constituiu-se de 8 mulheres e foi atendido no segundo semestre do mesmo ano.

Nós, estagiárias, formamos duplas e, assim, atuamos como terapeutas de campo e como equipe reflexiva, da seguinte maneira: no primeiro semestre, atendendo o primeiro grupo, uma dupla atuou no campo e a outra na equipe reflexiva; no segundo semestre e segundo grupo, as posições se inverteram.

Para cada sessão realizada, nos revezávamos, independentemente da posição em que estávamos (campo ou equipe reflexiva), na escrita de uma carta sobre a sessão, para os participantes do grupo. Essa carta, chamada de carta terapêutica, tem a função de, além de documentar a sessão realizada, servir como uma ferramenta terapêutica, ampliando e

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aprofundando as intervenções que foram realizadas durante a sessão. Assim, essa carta era lida no início da sessão seguinte, podendo ser pauta de conversas futuras no grupo.

A supervisão do estágio se deu de maneira muito parecida com o funcionamento do grupo terapêutico. Nos reuníamos, as quatro estagiárias mais o supervisor, logo em seguida ao término do atendimento em grupo e tratávamos de questões sobre o atendimento recém realizado e sobre a nossa prática enquanto psicólogas e enquanto equipe. Conversávamos não no sentido de discutir formas de diagnóstico ou a melhor forma de intervenção, mas sim no sentido de compreender nossa prática, nossa motivação para intervenção, nossas justificativas, pensamentos e sentimentos que geravam uma ação, para assim entendermos o processo que estávamos construindo junto com os clientes. Com isso, podíamos imaginar formas diferentes de atuar em cada momento da terapia, mais geradoras de sentido, mais conectadas com o grupo e mais éticas.

2- ATUANDO TERAPEUTICAMENTE SOB A PERSPECTIVA CONSTRUCIONISTA SOCIAL

O trabalho em grupo é extremamente frutífero para o exercício da responsabilidade relacional e da postura do não-saber. Com muitos participantes, trazemos para a terapia várias vozes, não só a do terapeuta ou, no caso desse estágio, a de um terapeuta. Essas várias vozes implicam em várias opiniões, em conflitos, em argumentação, negociação, em respeitar diferenças e conviver com elas, em assumir equívocos durante as conversas, em compreender o outro e ao mesmo tempo se fazer entender pelo outro, em ajudar e se deixar ser ajudado e também em perceber os limites de poder ajudar e ser ajudado. Ao conversarmos sobre as origens de diferentes valores que cada um tem sobre certos temas podemos refletir sobre o caráter histórico e função social de certos valores, nossa responsabilidade sobre eles e as vantagens e desvantagens que sentimos com a adoção de alguns deles, o que caracteriza um enorme potencial de significações.

Para entrar no setting terapêutico não tivemos um treinamento específico, até porque não tínhamos um passo-a-passo para memorizar e nem formas pré-determinadas de verificar os resultados das intervenções. Tivemos, por outro lado, a orientação de que era necessário assumir a imprevisibilidade que é o campo terapêutico. Para isso, fizemos, durante todo o estágio, um exercício de espontaneidade que se pautou em aprender a utilizar os próprios sentimentos despertados no momento da terapia para formular perguntas e dar feedback aos clientes, propiciando assim novas experiências para eles.

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Além disso, aprender a cuidar de si próprio no grupo para poder cuidar do outro foi tarefa importante. Para isso, é necessária uma preparação pessoal do terapeuta para não fugir dos sentimentos desconfortáveis que o processo terapêutico traz tanto para clientes quanto para terapeutas. Isso implica na reflexão sobre o que o sofrimento do outro desperta em nós, para assim entender os motivos de muitas vezes fugirmos dos momentos de demonstração de dor com simples frases de consolo ou com o uso de técnicas descomprometidas.

Em muitos momentos foi difícil, para mim, legitimar certos problemas e colocações que “esbarravam” em valores morais ou políticos meus. Isso me causava tensão interna e dificultava minha conexão com o processo terapêutico. Então, a partir da supervisão, me engajei em refletir que as histórias dos clientes e estagiárias eram tão legítimas quanto a minha e que, estando todos nós imersos em um contexto de responsabilidade relacional, poderíamos expor nossos valores e nos engajar no exercício de compreensão mútua, que amplia sentidos e gera outras possibilidades de ação. Para tanto, foi necessário desenvolver a capacidade de se expor de maneira aberta, não só nos momentos de discordância, mas durante toda a conversação.

Se colocar de uma maneira aberta significa não querer convencer o outro de que seu ponto de vista é o correto e em não confrontá-lo, dando espaço para o outro discordar calmamente. Para isso, temos que duvidar da certeza que temos sobre o que pensamos e questionar o outro antes de pensarmos qualquer coisa sobre ele. Além disso, focar na intenção da conversa para formular as perguntas, pensando no convite que se faz ao outro falando dessa ou daquela forma, foi bastante útil.

Responsabilizar a relação foi um exercício difícil. Primeiramente, foi necessário desistir de querer controlar todo o processo e de saber qual era o melhor resultado esperado, já que esta é uma função impossível de se fazer. Era necessário aceitar o cliente como detentor de um saber próprio que o capacitava viver sua vida e compreender que eu, enquanto psicóloga, não era imprescindível para ele, para que assim pudéssemos juntos construir a terapia e as mudanças.

Além disso, foi um grande aprendizado pessoal aceitar e compreender as colocações das demais estagiárias e demais participantes do grupo como tão importantes quanto as minhas. Isso implicou em construir a noção de que nem sempre o que eu penso sobre o outro é importante para o outro.

Permanecer na equipe reflexiva foi também um grande exercício para aprender realmente a ouvir e a dar credibilidade ao outro. Implicou em aprender a lidar com a ansiedade para falar o que eu pensava, enquanto aguardava o momento em que era chamada a

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falar, além de considerar, a todo momento, que o que eu pensava poderia não ter importância aos demais participantes. Assim, constituiu-se, acima de tudo, em um exercício de humildade. Além disso, nos momentos de supervisão, com as críticas da equipe reflexiva à minha atuação enquanto terapeuta de campo e discussões sobre os atendimentos pude perceber características que eu demonstrava, mas sobre as quais eu não tinha consciência e com isso descobri outras maneiras de me expressar para melhorar minhas relações. Esse aprendizado se deu de maneira muito delicada, pois foi concretizado a partir de conversas calorosas entre estagiárias e supervisor, durante as quais houve muita exposição pessoal com forte conteúdo emocional, que, trabalhados terapeuticamente pelo supervisor, nos proporcionou crescimento pessoal e profissional.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os efeitos das ações do terapeuta são sempre imprevisíveis (Tomm, 1988). Acredito que as reflexões contidas nesse estudo vão inteiramente ao encontro dessa afirmação, pois a grande conclusão a que cheguei com o estudo e a prática da psicologia nesse estágio é que ao terapeuta não cabe o privilégio da certeza. Movido pela vontade de ajudar, inspirado por determinadas crenças teóricas e guiado pela ética, o terapeuta não tem outro norte ou outros méritos que não estes. Muito menos sabe ele dos resultados que suas ações terão para ele próprio, se estiver aberto a conhecê-los. Assumir essas questões implica em abrir mão do lugar confortável que é saber e ser o detentor da verdade. Implica em se questionar e ser questionado historicamente enquanto profissional necessário e em ser destituído do poder de determinar sobre a vida alheia. Não-saber é aceitar estar num mundo de incertezas, de eterna negociação e construção de sentidos, que é também o lugar onde está nosso cliente e condição inevitável do ser humano. É assim, tarefa para toda vida.

4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

EPSTON, D.; WHITE, M.; MURRAY, K. Proposta de uma terapia de reautoria: revisão da vida de Rose e comentário. In: MCNAMEE, S.; GERGEN, K. J. (orgs). A terapia como construção social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998, p. 117-139.

ANDERSEN, T. Reflexões sobre a reflexão com as famílias. In: MCNAMEE, S.; GERGEN, K. J. (orgs). A terapia como construção social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998, p. 69-85. ANDERSON, H. Myths about “not-knowing”. Family Process. v. 44, n. 4, p. 497-504, 2005.

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ANDERSON, H.; GOOLISHIAN, H.A. O cliente é o especialista: A abordagem terapêutica do não-saber. In: MCNAMEE, S.; GERGEN, K. J. (orgs). A terapia como construção social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998, p. 34-50.

BOCK, A. M. B. As influências do Barão de Münchhausen na Psicologia da Educação. In: TANAAMACHI, E. R.; PROENÇA, M.; ROCHA, M. L. (orgs). Psicologia e Educação: desafios teórico-práticos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000, p. 11-31.

GRANDESSO, M. Para uma epistemologia da pós-modernidade. In: ___. Sobre a reconstrução do significado. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. p. 49-112.

JAPUR, M. Alteridade e grupo. In: MARTINEZ e SIMÃO (orgs). O outro no desenvolvimento humano. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004. p. 145-170.

MCNAMEE, S. An Invitation to Relational Responsability. In: GERGEN, K.J. (org). Relational Responsability: Resources for Sustainable dialogue. Sage Publications, 1998. p. 3-48.

RASERA, E. F.; JAPUR, M. Desafios da aproximação do construcionismo social ao campo da psicoterapia. Estudos de Psicologia. v. 9, n. 3, p. 431-439, 2004.

TOMM, K. Entrevista Interventiva Parte III: Pretende fazer perguntas lineares, circulares, estratégicas ou reflexivas. (s/d). Rio de Janeiro: ITF/mimeo. (Originalmente publicado em Family Process, 27, 1-15, 1988).

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