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JUS COGENS, VALORES GLOBAIS E DIREITOS HUMANOS

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Academic year: 2021

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1 JUS COGENS, VALORES GLOBAIS E DIREITOS HUMANOS

Yuri Ikeda Fonseca Mestrando em Direito (UFPA)

Palavas-chave: Jus cogens. Axiologia. Direitos humanos.

Este trabalho pretende abordar a ideia de que as normas de jus cogens e os direitos humanos espelham os valores considerados como os mais fundamentais pela comunidade internacional. A linguagem dos valores, originalmente pertencente à filosofia moral, tornou-se corrente no direto e na política. Não é diferente no direito internacional, âmbito no qual são invocados valores globais por acadêmicos, políticos, ONGs e organismos internacionais. Um dos instrumentos em que os valores globais se manifestam no direito internacional é o jus cogens. Partimos da hipótese de que sua superioridade em relação a outras normas de direito internacional derivaria do fato de as normas de jus cogens refletirem os valores reconhecidos pela comunidade internacional como os mais essenciais para a ordem jurídica internacional.

Trataremos inicialmente acerca do próprio conceito de jus cogens e de seu reconhecimento como uma esfera de normas de direito internacional peremptórias e inderrogáveis. Em seguida, relacionaremos a doutrina do jus cogens à abertura do discurso jurídico para a linguagem dos valores, abordando o que são valores e a possibilidade de se falar em valores globais que regem a comunidade internacional. Por fim, apontaremos a relação valorativa entre as normas de jus cogens e os direitos humanos Consideraremos, a título de conclusão, que as normas de jus cogens e os direitos humanos estão intrinsecamente conectados pelo substrato comum dos valores essenciais.

Jus cogens (literalmente, “direito obrigatório”, em latim) é o termo técnico conferido àquelas normas de direito internacional que têm força peremptória, e que não podem ser derrogadas exceto por outras normas de igual peso. São, essencialmente, as regras de política pública do sistema jurídico internacional (WALACE, 2002).

As normas de jus cogens são peremptórias por natureza e não podem ser derrogadas sob nenhuma circunstância. Regras contrárias à noção de jus cogens podem ser consideradas

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2 nulas, por se oporem a normas fundamentais da política pública internacional. Assim, limitam a capacidade dos Estados de criar ou modificar regras de direito internacional, e impedem Estados de violar regras de política pública internacional (HOSSAIN, 2005).

O reconhecimento jurídico expresso do jus cogens foi precedido de séculos de reconhecimento implícito de que certas normas protegem algo mais que o interesse dos Estados e são fundamentais para a configuração do direito internacional (YARWOOD, 2007). Disso é possível inferir que, não obstante a grande dificuldade de se definir quais normas se classificam como sendo de jus cogens, há consenso no sentido de que existe uma tal categoria de normas, e que ela reflete princípios básicos cuja observância é essencial para a manutenção da ordem jurídica internacional.

O reconhecimento pelos Estados de um tal conceito, que implica o reconhecimento de normas baseadas em um interesse geral supraestatal, afeta doutrinas tradicionalmente sólidas como a da soberania estatal.

Se a definição do jus cogens é indissociável da imperatividade, e se essa imperatividade independe das vontades dos Estados e mesmo deve ser contra elas aplicada, de onde ela provém? Uma resposta para essa questão pode ser procurada a partir da definição de André de Carvalho Ramos (2012), para quem a norma de jus cogens é aquela norma que contém valores considerados essenciais para a comunidade internacional como um todo.

Diferentes autores apresentaram inúmeras justificativas teóricas para o jus cogens, como, por exemplo, princípios de moralidade internacional e princípios gerais reconhecidos pela comunidade internacional. Teóricos do direito natural tendem a tratar como jus cogens obrigações ancoradas na moral, por exemplo, na dignidade humana, ou em regras que qualquer ordem jurídica necessariamente necessita, como o pacta sunt servanda.

A doutrina internacional do jus cogens foi desenvolvida sob forte influência de conceitos de direito natural, diante dos quais os Estados não podem ser absolutamente livres em estabelecer suas relações contratuais, devendo respeitar certos princípios fundamentais enraizados na comunidade internacional (HOSSAIN, 2005).

Na Conferência de Viena de 1969 diversos Estados enfatizaram que a origem do jus cogens são conceitos de direito natural, e que as regras do jus cogens são baseadas em crenças morais da humanidade (DANILENKO, 1991).

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3 A crise do positivismo jurídico ao final dos anos 1969 provocou uma reabertura do debate filosófico-jurídico contemporâneo aos valores ético-políticos.

Porém, o que de fato significa dizer que a norma de jus cogens contém valores? O que são, afinal, valores? O fenômeno do valor é ao mesmo tempo uma vivência da consciência, uma qualidade de objetos, e uma ideia. É, também, algo que satisfaz uma necessidade (HESSEN, 1946). Podemos pensar os valores independentemente de pensarmos os portadores (como a obra de ate e a ação moralmente boa) em que eles se manifestam, assim como podemos pensar a cor vermelha sem necessariamente pensar em um objeto dessa cor. O valor é anterior a qualquer experiência (SCHELER, 1916). A partir disso, é possível deduzir que o valor é um objeto da consciência que se busca realizar na experiência sensível. A vivência e a realização dos valores viabilizam a intersubjetividade dos valores, pela qual entramos em contato com as vivências axiológicas de outras pessoas. Assim, torna-se possível chegar-se a um consenso acerca dos valores de modo que se possa apontar a existência de valores coletivos e, em última instância, de valores globais, os quais compõem as normas de jus cogens.

O direito internacional se movimentou de uma ordem de Estados soberanos e independentes essencialmente livre de valores para uma ordem mais cosmopolita, baseada em valores universais e interesses comuns (SPIJKERS, 2010). Embora não haja uma genuína comunidade global, pode-se pelo menos afirmar que, com a globalização em andamento, é possível se falar em responsabilidades básicas das pessoas para com todos os outros seres humanos

Se os valores globais são baseados em um consenso global, consenso esse que seria a vontade da comunidade geral suplantando o dissenso de Estados individuais, e se há um pequeno subconjunto de normas baseadas diretamente em valores globais, pode-se entender que essas normas sejam invulneráveis pela vontade individual dos Estados, que não poderia derrogá-las.

Tanto diante do jus cogens quanto das obrigações erga omnes, a comunidade internacional está paulatinamente desenvolvendo técnicas jurídicas para conferir certa proeminência a normas baseadas em valores, as quais devem ter seu cumprimento assegurado pela comunidade internacional como um todo (SPIJKERS, 2010). A proibição

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4 da tortura é uma norma diretamente baseada no valor da dignidade humana, a proibição da agressão no valor da paz etc.

André de Carvalho Ramos (2012) constata que, dentre as teorias de fundamentação dos direitos humanos, há a vertente jusnaturalista, que sustenta a existência de normas anteriores e superiores ao direito positivo, decorrentes de direitos inerentes à natureza humana; a corrente juspositivista, segundo a qual o fundamento dos direitos humanos consiste em sua positivação; e a corrente da fundamentação ética, que consiste no reconhecimento de condições imprescindíveis para a dignidade humana, e de acordo com a qual os direitos humanos, na qualidade de direitos morais, são originados diretamente de valores. Com exceção da vertente juspositivista, as outras teorias pressupõem o conteúdo moral dos direitos humanos. Não é tão diferente da discussão acerca da fundamentação das normas de jus cogens.

Em face das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional reconheceu que a proteção dos direitos humanos constitui questão de preocupação internacional (PIOVESAN, 2015). O direito internacional dos direitos humanos expandiu-se com base no entendimento de que esses direitos são intrínsecos a todos os seres humanos, e, portanto, superiores a qualquer forma de organização sócio-política (CANÇADO TRINDADE, 2012). A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em 1948, irradiou o ideal de universalidade e generalização da proteção dos direitos humanos. Seus princípios, no decorrer do tempo, passaram a ser vistos como correspondentes a princípios gerais de direito. O corpus juris do direito internacional dos direitos humanos se baseia em princípios fundamentais. Esses princípios incorporam valores superiores da humanidade como um todo e refletem a ideia de uma justiça objetiva, resgatando o direito internacional do voluntarismo e do unilateralismo.

A Comissão de Direto Internacional da Organização das Nações Unidas já considerou em várias ocasiões que violações de direitos humanos de defesa (relacionados às liberdades negativas) ofendem valores essenciais da comunidade internacional, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconhece o caráter de jus cogens de determinados direitos fundamentais (CARVALHO RAMOS, 2012).

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5 Por mais que o conteúdo da categoria jus cogens fosse difícil de determinar, as normas de direitos humanos quase invariavelmente foram apontadas como parte dele (BIANCHI, 2008).

O conteúdo axiológico subjacente aos direitos humanos, aliado ao seu reconhecimento em normas de jus cogens, confere a esses direitos um caráter de obrigatoriedade objetiva dos Estados. O regime de obrigatoriedade objetiva se contrapõe aos regimes da reciprocidade, não dependendo de contraprestação da outra parte, e gera uma ordem legal internacional que visa beneficiar não Estados contratantes, mas indivíduos.

Nesse sentido, os direitos humanos podem ser reforçados através do jus cogens, uma esfera de normas de hierarquia superior que suplanta a soberania estatal. O reconhecimento de direitos humanos como tendo o status de jus cogens é potencialmente impactante em relação à responsabilidade dos Estados. Se forem violados tais direitos, que refletem os valores da comunidade internacional e que todo Estado tem interesse jurídico em proteger, a responsabilização do Estado violador é patente. Há, de fato, uma obrigação de os Estados cooperarem para evitar essas violações. A conjugação da doutrina do jus cogens e dos direitos humanos sugere uma relativização da soberania dos Estados diante desses direitos, bem como do voluntarismo no direito internacional.

REFERÊNCIAS

BIANCHI, Andrea. Human Rights and the Magic of Jus Cogens. The European Journal of International Law, Florença, Vol. 19 no. 3, 2008. Disponível em:

<http://www.ejil.org/pdfs/19/3/1625.pdf>. Acesso em 12 jul. 2016.

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. International human rights law. Strasbourg, 2012.

CARVALHO RAMOS, André de. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

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6 DANILENKO, Gennady M. International Jus Cogens: Issues of Law-Making. European Journal of International Law, Oxford, vol. 2, n. 1, 1991. Disponível em:

http://ejil.oxfordjournals.org/content/2/1/42.full.pdf. Acesso em 6 jul. 2016.

HESSEN, Johannes. Filosofia dos Valores. Tradução de Luís Cabral de Moncada. São Paulo: Saraiva, 1946.

HOSSAIN, Kamrul. The Concept of Jus Cogens and the Obligation Under The U.N. Charter. Santa Clara Journal of International Law, vol. 3, n. 1, 2005.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

SCHELER, Max. Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik. Halle: Max Niemeyer, 1916.

SPIJKERS, Otto. What’s Running the World: Global Values, International Law, and the United Nations. Interdisciplinary Journal of Human Rights Law, Nova York, vol. 4, n. 1, 2009-2010. Disponível em: <

http://www.americanstudents.us/IJHRL4/4.Spijkers%20-%20Online.pdf >. Acesso em 12 mai. 2016.

WALLACE, Rebecca M. M. International law. 4 ed. Londres: Sweet & Maxwell, 2002.

YARWOOD, Lisa. State Accountability under International Law: Holding states accountable for a breach of jus cogens norms. Londres: Routledge, 2007.

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