Universidade Católica
de Brasília
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
STRICTU SENSU EM DIREITO INTERNACIONAL ECONÔMICO
Mestrado em Direito
D
IREITO
I
NTERNACIONAL
I
MPERATIVO
–
J
US
C
OGENS
–
Autor: Milton Nunes Toledo Junior
Orientador: Prof. Dr. Jorge Luis Fontoura Nogueira
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IREITO
I
NTERNACIONAL
I
MPERATIVO
- J
US
C
OGENS
-
Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito do curso de pós-graduação strictu sensu da Universidade Católica de Brasília.
Orientador:
Prof. Dr. Jorge Fontoura.
T
ERMO DEA
PROVAÇÃODissertação defendida, como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Direito, e aprovada, em 23 de março de 2006, pela banca examinadora constituída
por:
_______________________________________________ Prof. Dr. Jorge Luis Fontoura Nogueira
_______________________________________________ Prof. Dr. Antônio de Moura Borges
A
GRADECIMENTOSAo meu orientador, Prof. Dr. Jorge Fontoura, agradeço por todo incentivo e
zelosa cooperação com este trabalho, a qual se iniciou ainda em sala de aula, com a sugestão
do tema. Não houve mera orientação, mas efetivo auxílio, em especial no que se refere ao
acesso à bibliografia, absolutamente escassa no Brasil. O contato, viabilizado por sua
intervenção, com o Prof. Dr. Fausto de Quadros, da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, constituiu impulso fundamental para a pesquisa.
Agradeço também ao Prof. Dr. Fausto de Quadros, bem assim aos prestimosos
funcionários da Biblioteca da Faculdade de Direito da Faculdade de Lisboa, na qual encontrei
admiráveis condições de pesquisa e a oportunidade de coletar precioso material bibliográfico.
Não me teria sido possível elaborar esta dissertação sem os recursos que me foram ofertados
em Portugal.
Não poderia deixar de registrar a minha gratidão a Danielle Aleixo Reis do
Valle Souza, que sugeriu diversos textos para enriquecer a minha pesquisa, e a Dílson Porfírio
Pinheiro Teles, Advogados da União com quem tenho a honra de trabalhar e que laboraram
em dobro para permitir a minha dedicação aos compromissos acadêmicos. Estendo o
agradecimento a Virgínia Charpinel Junger Cestari e Fernando Luiz de Lacerda Messere,
Advogados da União desgarrados do Departamento Internacional da Procuradoria-Geral da
União. O convívio com esses amigos, com os quais travo constantes discussões sobre os mais
diversos temas de Direito Internacional, representa constante estímulo ao meu aprimoramento
Na mesma linha, sou grato ao cotidiano apoio de meus colegas de trabalho no
DEJIN/PGU: as secretárias Maria da Graça Oliveira Lago e Aldenice Alexandre Bezerra, o
funcionário Mariano Pedro de Carvalho, a estagiária Nathália Ribeiro Valadão. Agradeço,
ainda, à Advogada da União Sidelcy Alves Martins e à estagiária Angélica Sanches, pela
especial contribuição para a elaboração do capítulo sobre Direito Internacional Econômico.
Agradeço, por fim, a Milton Nunes Toledo e Juçara Terezinha Toledo, pelas
oportunidades de educação formal que me proporcionaram, não sem esforço, à custa de
Some of you may have seen in a historical or geographical museum medieval maps from the days when it was thought that the earth was flat. The map will explain some areas, but draw a line in front of others, and we read the following: “beyond this point are monsters”. The areas were not explored an not known.
We are now entering another rather unknown field that needs to be explored...
R
ESUMOA inexistência de um poder central estabelecido na sociedade internacional, com império para
ordenar o relacionamento entre as soberanias, torna corrente a idéia de que o Direito
Internacional Público é, basicamente, um direito de cooperação. O voluntarismo estatal ocupa
posição de destaque na submissão do ente soberano às normas internacionais. Não obstante, a
evolução dos povos evidencia a existência de uma ordem pública a expressar os valores
básicos da sociedade internacional, os quais, devidamente cotejados, traduzem o standard de
civilização da humanidade. Os valores com os quais a sociedade internacional não pode
transigir são revelados por meio de normas internacionais de imperatividade absoluta —
jus cogens. As normas de jus cogens, ao reconhecerem a existência de direitos imanentes,
deferirem direitos subjetivos inalienáveis e conferirem obrigações impostas aos Estados com
eficácia erga omnes, implicam negativa definitiva da vontade estatal como fundamento do
Direito Internacional. Este estudo foi desenvolvido com o propósito de identificar o conteúdo
do jus cogens, ou seja, quais as normas internacionais que ostentam o caráter de normas
peremptórias, que obrigam os Estados independentemente de consentimento. Para tanto,
investigou-se o fundamento do Direito Internacional, encontrando-o no direito natural. Fez-se
a ordenação hierárquica das fontes de Direito das Gentes, demonstrando-se a prevalência do
jus cogens sobre as demais normas internacionais. Finalmente, a pesquisa deparou-se com
posicionamentos doutrinários bastante reticentes no que tange ao elenco das normas
imperativas. Ao tempo em que se critica essa indefinição, este estudo demonstra já ser
possível estabelecer critérios de identificação do jus cogens internacional.
A
BSTRACTThe absence of a central power in international society with authority to discipline the
relationship between sovereignties clearly demonstrates the idea that Public International Law
is fundamentally a law of cooperation. State voluntarism is therefore an outstanding feature in
the submission of sovereign entities to international law. Nevertheless, the evolution of
civilization reveals the factual existence of an ordre public that expresses fundamental values
of international society. Values which cannot be waived by international society are disclosed
through imperative norms of international law — jus cogens. Based on the recognition of the
existance of norms that grant inaliable rights and attribute erga omnes obligations to the
States, jus cogens implies the refusal of States volition as the foundation of International Law.
This study was developed with the aim of identifying the content of jus cogens, i.e., which
international norms can manifest the character of peremptory rules, constraining States even
without their aquiescence. For that purpose, the foundation of Public International Law was
investigated and founded to be rooted in Natural Law. There was also a hierarchical
ordination of the sources of International Law which ended up demonstrating the prevalence
of jus cogens over the other international norms. Finally, the research fell across
some recticent views of scholars with respect to the roll of existent imperative norms. This
study, while criticizing this lack of definition of jus cogens, also intends to demonstrate that it
is already possible to establish some reliable criteria to identify international jus cogens.
S
UMÁRIO1. Introdução ... 11
2. Fundamento do Direito Internacional ... 16
2.1. Teorias Voluntaristas ... 20
2.2. Teorias Objetivistas ... 22
2.3. Conclusão ... 28
3. Fontes de Direito Internacional Público ... 31
4. Hierarquia das Fontes ... 40
5. Jus Cogens ... 45
5.1. Jus Cogens: Lex Lata ou Lege Ferenda? ... 48
5.2. Natureza Jurídica ... 52
5.3. Jus Cogens e Ordem Pública Internacional ... 57
6. Conteúdo do Jus Cogens ... 61
6.1. Vedação do Uso da Força nas Relações Internacionais ... 65
6.2. Autodeterminação dos Povos ... 69
7. Direitos Humanos e Jus Cogens ... 74
7.1. A Pessoa Humana nas Relações Internacionais ... 76
7.2. Conceito e Rol de Direitos Humanos no Direito Internacional ... 81
7.3. A Imperatividade dos Direitos Humanos ... 83
7.4. Direitos Humanos e Jus Cogens ... 85
7.5. Conteúdo do Jus Cogens ... 86
8. Direito Internacional Econômico e Jus Cogens ... 90
8.1. Noção de Direito Econômico ... 91
8.3. Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento – BIRD... 96
8.4. Organização Mundial do Comércio – OMC ... 97
8.5. Jus Cogens como Limitador do Direito Internacional Econômico ... 100
9. Crítica ao indefinível ... 106
10. Conclusão ... 109
1. I
NTRODUÇÃO.
De especial importância é o estudo das fontes do Direito Internacional. Numa
época em que, por conta das inovações tecnológicas e da chamada globalização, as relações
jurídicas atravessam fronteiras num apertar de botões, será a observação das fontes que, muita
vez, determinará se o Direito aplicável a determinado caso concreto é ou não internacional. É
importante salientar, nesse contexto, que a crescente trivialidade das relações jurídicas
transnacionais não pode corresponder à vulgarização do Direito.
Em socorro da técnica, vale lembrar que o Direito Internacional Público,
universo no qual se dá esta pesquisa, tem suas fontes principais enumeradas no Estatuto da
Corte Internacional de Justiça, texto de valor para-universal (pela sua importância política e
pelo número de Estados que a ele aderiram), que, em seu art. 38, estatui:
“1º - A Corte, cuja função é resolver, de acordo com o Direito Internacional, os litígios que lhe sejam submetidos, aplicará:
a) as convenções internacionais, gerais ou especiais, que estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados em litígio;
b) o costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como sendo de Direito; c) os princípios gerais de Direito reconhecidos pelas nações civilizadas;
d) sob reserva das disposições do artigo 59, as decisões judiciais e os ensinamentos dos mais altamente qualificados publicistas das várias nações, como meios auxiliares para a determinação das regras de Direito.
A simples leitura das fontes enumeradas no Estatuto da Corte Internacional de
Justiça remete à básica idéia de que o Direito Internacional Público consiste em um direito de
coordenação, haja vista a necessidade de os Estados reconhecerem e aceitarem previamente as
regras que lhes serão aplicadas na solução de seus litígios.
Tal ocorre em face de uma tradição histórica na relação entre Estados,
traduzida pelo brocardo par in parem non habet imperium (entre pares não há império).
Revela-se, com isso, verdadeira homenagem à soberania estatal, deixando claro que um
Estado só pode submeter-se à vontade da comunidade, ou mesmo de um Tribunal
internacional, se concordar com essa submissão.
Não é raro, por isso, ouvirem-se afirmações acerca da inexistência de sanção
no Direito Internacional, o que, para os desavisados, marca-o com a pecha de inutilidade.
Apesar do simplismo desse entendimento, o fato de ele existir não deixa de reforçar a idéia do
Direito Internacional como um direito intergovernamental, de cooperação.
Todavia, a despeito dessa natureza, a comunidade internacional vem
reconhecendo a existência de normas de observância obrigatória, contra as quais nem mesmo
a manifestação da vontade soberana de um Estado pode-se opor. Sim, para inquietação dos
“soberanófilos”, existem regras que obrigam os Estados independentemente de
alegadamente lhe faltava, deixando para trás o ceticismo que, outrora, serviram até mesmo
para negar-lhe o caráter de Direito1.
Direito Internacional cogente: eis, pois, o tema objeto desta dissertação.
Importante notar, entrementes, que a identificação das normas que ostentam
status de direito cogente requer uma análise cuidadosa das fontes de Direito Internacional
Público, com a particular finalidade de estabelecer-se uma hierarquia entre elas. Não por
acaso, a ordenação hierárquica das fontes de Direito Internacional fará revelar, no topo da
“pirâmide das normas”, o Direito Internacional cogente que nos interessa, o jus cogens, como
é conhecido e tratado pela doutrina internacionalista.
O tema, de Direito Internacional Público clássico, a despeito de sua relevância,
não é suficientemente estudado no Brasil. No presente trabalho, são abordados alguns
assuntos tão interessantes quanto sensíveis no atual cenário jurídico-político internacional. As
reflexões aqui vertidas visam o incremento do conhecimento científico disponível aos que se
dedicam ao estudo do Direito Internacional Público. Todavia, nossa pretensão fundamental é
despertar a atenção para a existência e importância do Direito Internacional imperativo. É
provável, portanto, que várias questões relacionadas ao tema, apesar de relevantes, fiquem
sem resposta, quando não mesmo sem formulação. Deixamos, assim, inevitável margem para
o aprofundamento das discussões sobre a matéria.
1
Por ora, para que se tenha noção do relevo do tema, destacamos as
conseqüências do reconhecimento de que determinada regra possui status de Direito
Internacional cogente.
A sanção para qualquer norma (os artigos 53 e 64 da Convenção de Viena
sobre Direito dos Tratados referem-se apenas a tratados porque apenas destes se ocupa a
Convenção) que contrarie um preceito de jus cogens é a invalidade. Por conseguinte, uma
regra imperativa não poderá ser revogada, salvo por outra norma de jus cogens.
O Estado que violar o jus cogens incorre em responsabilidade internacional, o
que fundamenta a adoção pelos outros Estados de medidas de retorsão e represálias.
Hodiernamente, parte da doutrina vai além, para propor seja reconhecida a todo e qualquer
Estado uma actio popularis, que lhe permita reagir contra infrações ao Direito Internacional
cogente. Há, segundo essa orientação, precedente da Corte Internacional de Justiça, no caso
Barcelona Traction, onde foi admitida a ação popular, nas condições referidas, por violação
das regras da proibição do uso da força e da proibição do genocídio.2
Como se pode observar, a identificação das normas de jus cogens pode ter
conseqüências dramáticas nas relações entre Estados, sendo, por isso mesmo, de todo
conveniente o estudo cuidadoso dessas normas e das implicações do seu descumprimento.
Eis, portanto, a questão fulcral que nos ocupará durante o desenvolvimento da
pesquisa. Qual o conteúdo do jus cogens? Quais são as regras que ele abrange? Em outras
2
palavras, quais são as normas imperativas de Direito Internacional, aptas a obrigar os Estados
independentemente de consentimento?
Celso D. de Albuquerque Mello3 aduz, com propriedade, que a identificação das normas imperativas é o grande problema no estudo do jus cogens. Neste trabalho,
buscamos identificar o conteúdo do jus cogens por meio da análise e ordenação hierárquica
das fontes do Direito das Gentes, sendo certo que, no topo da hierarquia das normas
internacionais, encontramos as regras imperativas objeto da pesquisa.
Utilizamos, como principal metodologia de pesquisa, a revisão bibliográfica,
com ênfase na literatura jurídica estrangeira, tendo em vista a escassez, no Brasil, de estudos
aprofundados sobre jus cogens. Nossas conclusões são resultantes de reflexões feitas a partir
do cotejo da opinião de diversos doutrinadores, da jurisprudência da Corte Internacional de
Justiça e de outros tribunais internacionais, além da observação das tendências de
posicionamento da comunidade internacional em relação à matéria.
3
2. F
UNDAMENTO DOD
IREITOI
NTERNACIONAL.
A idéia de uma norma internacional imperativa remete à necessidade de
perquirir-se sobre o fundamento do Direito Internacional, eis que é justamente o fundamento
que defere obrigatoriedade ao Direito. Nessa linha, estudar o fundamento do Direito das
Gentes implica investigar a justificação e legitimidade da norma jurídica internacional. A
norma de jus cogens, por ser espécie do gênero norma internacional, extrai sua
obrigatoriedade, sua imperatividade, do fundamento do próprio Direito Internacional.
É importante não confundir o fundamento com a fonte do Direito. Kelsen
comete esse equívoco ao afirmar que a norma inferior, na pirâmide, tem a sua origem e retira
a sua obrigatoriedade da norma que lhe é imediatamente superior. Celso D. Albuquerque
Mello4 esclarece que a fonte do Direito Internacional é a maneira pela qual a norma internacional se manifesta, enquanto o fundamento é o que torna o Direito Internacional
obrigatório.
Questiona-se o valor prático da pesquisa sobre o fundamento do Direito
Internacional. Daí a indagação sobre a natureza desse estudo: seria tema metajurídico? O
próprio Kelsen, ao afirmar que a norma fundamental é uma hipótese indemonstrável5, acaba, naturalmente, por remeter à idéia de que se houvesse uma demonstração possível, não estaria
ela no universo da ciência jurídica. Quadri, com muita propriedade, explica que considerar o
fundamento do Direito um assunto metajurídico é confundir “o direito com um dos seus
4
MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 147.
5
momentos: a norma”6. De fato, o estudo do Direito não se esgota com o estudo do direito positivo. Pensar diferente implica limitar indevidamente a atividade do jurista.
A busca de uma explicação científica plausível, apta a justificar a
obrigatoriedade do Direito, é, assim, preocupação recorrente para os juristas. Interessante
notar que as posições adotadas quanto ao tema decorrem, invariavelmente, das convicções
filosóficas do cientista, isso porque, a despeito de a metodologia da ciência recomendar com
veemência que toda investigação seja desprovida de preconceitos, nas ditas ciências humanas,
inexatas por excelência, não há como afastar de todo as premissas, mesmo inconscientes,
sobre as quais se baseia o raciocínio. Essas premissas inconscientes expressam, sem dúvida,
as próprias convicções filosóficas do cientista, que, nesse particular, em nada difere do ser
humano comum. Não por outro motivo, François Geny advertiu que não se pode firmar uma
posição perante o Direito, sem antes tomar uma posição perante Deus, o Homem e o
Universo7.
As primeiras teorias sobre o fundamento do Direito Internacional despertam,
hoje, interesse meramente histórico, eis que não respondem adequadamente a questão que se
dispõem a enfrentar. Dentre essas posições mais antigas, destacam-se as concepções da escola
utilitária, ou da necessidade, e a teoria da nacionalidade da escola italiana.
A escola utilitária trabalha com a idéia de que a obrigatoriedade do Direito
Internacional seria útil, ou mesmo necessária para os Estados. Seus principais defensores,
Bentham e Story, expressavam idéias complementares que, reunidas, constituíam a base
6
Apud MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 147.
7
teórica dessa escola. Bentham afirmava que o Direito Internacional tem por finalidade “a
investigação da utilidade geral no comércio dos Estados independentes e, em caso de guerra,
a produção do menor mal possível”8. Story, por sua vez, defendia que as normas de Direito Internacional “nascem do interesse e utilidade mútuos, do sentimento dos inconvenientes que
resultariam de uma doutrina contrária e de uma espécie de necessidade moral de fazer justiça,
a fim de que, em troca, nos seja feita justiça”9.
A teoria das nacionalidades, capitaneada por P. Stanislaw Mancini10, baseava-se no pensamento de que a nação era uma “associação natural de homens, com unidade de
território, de origem, de costumes e de língua com uma consciência social e vida em
comum”11. Segundo essa concepção, a nação seria o único sujeito de Direito Internacional. O princípio das nacionalidades seria a base do Direito Internacional e a sua garantia, de modo
que as relações pacíficas entre os Estados estariam asseguradas se eles fossem organizados
por nações. Essa teoria encontrou eco no pensamento de diversas personalidades, dentre as
quais se destacam Pierantoni, Carnazza-Amari, Fiore e Contuzzi.
Não é difícil a crítica a essas duas escolas históricas no atual estágio de
desenvolvimento e compreensão do Direito Internacional. Como bem observa Celso D.
Albuquerque Mello12, a teoria da necessidade não apresenta um verdadeiro fundamento ao
Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 147-148. 8
Cfe. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 148.
9
MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 148.
10
E seguida por Pierantoni, Carnazza-Amari, Fiore, Contuzzi, dentre outros. 11
Cfe. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 148.
12
Direito Internacional. Ao contrário, ela praticamente anula-o. A necessidade constitui-se em
fato material. Torná-la o fundamento do Direito anula a justiça, que é uma valorização ética.
No que tange à teoria das nacionalidades, teve ela sua importância, no século XIX, quando da
unificação alemã e italiana. O princípio das nacionalidades, contudo, jamais fora obedecido
como norma internacional.
Feita essa breve incursão histórica, cumpre analisar as correntes de pensamento
que ainda encontram espaço no palco das divergências. As diversas concepções sobre o
fundamento do Direito Internacional podem ser reunidas, basicamente, em duas doutrinas, de
maior interesse para o estudo: a voluntarista e a objetivista.
As correntes voluntaristas, a partir de diferentes perspectivas, terminam por
depositar na vontade estatal o fundamento último do Direito Internacional. Segundo o
voluntarismo, o Direito das Gentes só é obrigatório porque os Estados assim o desejam. Já as
correntes objetivistas, ao tempo em que negam seja a vontade dos Estados o fundamento do
Direito Internacional, enxergam alguma norma ou princípio superior a deferir-lhe
obrigatoriedade.
São exemplos de correntes voluntaristas as teorias da autolimitação, da vontade
coletiva, do consentimento das nações e da delegação do direito interno. São objetivistas as
teorias dos direitos fundamentais, da norma-base, do pacta sunt servanda, bem como a teoria
2.1. T
EORIASV
OLUNTARISTAS.
A teoria da autolimitação, elaborada por Georg Jellinek13, baseia-se na idéia de que a soberania afasta a possibilidade de o Estado submeter-se a qualquer vontade que não a
própria. Todavia, essa mesma soberania poderia ser exercitada no sentido de impor ao Estado
a obrigação de respeitar as regras estabelecidas conforme a sua vontade. Assim, a
obrigatoriedade do Direito Internacional resultaria da vontade do Estado de limitar a si
mesmo. Importante notar que, segundo essa teoria, o Estado, tendo-se autolimitado, não
poderia, posteriormente, vir a desvincular-se do Direito Internacional. Daí a contradição
notada por Celso D. Albuquerque Mello14: “se o DI só existe em virtude da autolimitação estatal, isto é, em virtude da vontade do Estado soberano absoluto, ele poderia se deslimitar.
Se isso não ocorre, é que existe algum principio superior impedindo isso”.
A teoria da vontade coletiva foi formulada na obra “Volkerrecht und
Landesrecht”, de Heinrich Triepel15, para quem o Direito Internacional se fundamentaria na vontade coletiva dos Estados, a qual se manifestaria expressamente no tratado-lei e
tacitamente no costume. A norma internacional, com isso, representaria a fusão de diferentes
vontades com o mesmo conteúdo material, uma espécie de máximo denominador comum
entre os Estados. Tal concepção é criticada porque, a par de se basear numa vontade coletiva
que, em realidade, não é passível de demonstração, tampouco explica as razões de um Estado
novo estar sujeito a um costume construído em momento anterior ao seu ingresso na
13
Cfe. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 149.
14
MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 149.
15
sociedade internacional, afinal, como justificar a vontade tácita desse Estado, se ele nem
mesmo existia quando da formação do costume?
A teoria do consentimento das nações, adotada sobretudo pela doutrina inglesa
(Hall, Oppenheim)16, guarda íntima proximidade com a teoria da vontade coletiva, diferindo, contudo, no que se refere à formação da vontade geral. Explica-se: para a teoria da vontade
coletiva, de raiz germânica, o fundamento do Direito Internacional seria a vontade da
sociedade internacional coletivamente considerada, isto é, a vontade coletiva independe das
vontades individuais que concorrem para a sua formação. Já para os ingleses, a vontade geral
surgiria a partir de vontades individuais que encontram eco na coletividade, a qual é
constituída por nações que, expressando o seu consentimento, viabilizam a construção de um
direito de consenso. Apesar da tentativa de explicar de maneira diversa a constituição da
vontade geral, a teoria do consentimento das nações também não consegue explicar o
fenômeno costumeiro.
A teoria da delegação do direito interno, por sua vez, baseia-se na idéia de que
o Direito Internacional é obrigatório porque os Estados, por meio de seus direitos internos,
assim decidiram. Essa concepção é derivada da teoria da autolimitação, a qual seria, na
prática, realizada por meio do direito interno do Estado. Nessa linha, o Direito Internacional,
por retirar a sua obrigatoriedade do direito interno, não passaria de um direito estatal utilizado
para regrar a vida internacional do Estado. Sua incongruência é revelada quando se constata
que o Estado não tem liberdade de se desvincular de suas obrigações internacionais por mera
alteração de sua legislação interna.
A teoria dos direitos fundamentais dos Estados inspira-se na teoria dos direitos
fundamentais do homem. O Estado, assim como a pessoa humana, seria titular de direitos
mínimos, básicos, naturais, decorrentes da própria condição de Estado. Esses direitos
fundamentais dos Estados informariam o Direito que regra o relacionamento internacional,
bem como conferir-lhe-iam obrigatoriedade. Para seus defensores (Pillet e Rivier)17, os Estados viveriam em estado de natureza, eis que a vida internacional ainda não foi organizada
em torno de um poder central. As normas internacionais seriam, pois, deduzidas da
constatação de que os Estados possuem direitos naturais pelo simples fato de existirem. A
crítica que se faz a essa teoria é que o alegado estado de natureza em que viveriam os Estados
nunca existiu e, se existisse, não seria embalado pelos direitos fundamentais, mas pela força.
Além disso, a teoria acaba por conduzir à soberania absoluta dos Estados, idéia com a qual
não mais se convive na modernidade.
A teoria da norma-base, formulada por Kelsen18, partindo da concepção de que todo conhecimento conduz à unidade, prevê a disposição das normas jurídicas em degraus
hierárquicos, sendo o degrau mais elevado ocupado pela chamada norma fundamental
(“Grundnorm”). De acordo com essa teoria, também chamada de teoria da pirâmide, a norma
jurídica retiraria a sua validade da que lhe fosse imediatamente superior. No que se refere à
norma fundamental, Kelsen, num primeiro momento, afirmara que ela poderia ser qualquer
uma. Posteriormente, ultrapassando essa fase indiferentista, afirmou que ela seria a norma
costumeira do “pacta sunt servanda”. Num ou noutro caso, a norma fundamental seria uma
16
Cfe. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 150.
17
hipótese que dispensaria justificação. Foi o próprio Kelsen que, reconhecendo que a norma
fundamental não poderia ser considerada uma hipótese, reviu o seu entendimento para
admiti-la como “uma ficção que se distingue de uma hipótese pelo fato de que é acompanhada peadmiti-la
consciência”19. A crítica a essa teoria já foi ensaiada no início deste capítulo, quando apontamos o equívoco de Kelsen ao confundir o fundamento do Direito com a sua fonte. Por
outro lado, importante notar que o ilustre jurista austríaco, ao retratar a pirâmide das leis, não
estava preocupado com a formação do Direito, mas tão-somente com o Direito posto, já
existente. Não por acaso, carece de explicação o fundamento da norma-base. Não se
responde, tampouco, qual é o fundamento do Direito Internacional.
A teoria do pacta sunt servanda, defendida por Anzilotti20, sustenta que o fundamento do Direito Internacional seria a norma costumeira segundo a qual “os pactos
serão observados”. Para o jurista italiano, o pacta sunt servanda seria “um valor jurídico
absoluto, indemonstrável e que serve de critério formal para diferenciar as normas
internacionais das demais”21. A demonstração desse valor absoluto só teria lugar, portanto, em outros ramos do conhecimento humano — como a ética —, sendo irrelevante para a
ciência jurídica. O pecado da presente concepção é o de também não explicar o fundamento
da norma costumeira, ao mesmo tempo em que limita o campo de investigação do jurista, por
não lhe permitir perquirir sobre o verdadeiro fundamento do Direito, constrangendo-o a
aceitar um princípio indemonstrável.
18
MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 151.
19
Apud MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 151.
20
Cfe. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 152.
21
A teoria sociológica22, desenvolvida por Leon Duguit e seus seguidores, como Georges Scelle23, é baseada nos trabalhos de Durkheim e considera o Direito um produto do meio social. A norma social seria resultado da solidariedade, que se desenvolveria no seio da
comunidade em função da similitude de interesses (solidariedade mecânica), ou da divisão de
trabalho (solidariedade orgânica). Da mesma forma que as necessidades impõem ao homem a
vida em sociedade, a norma jurídica seria necessária para viabilizar a própria convivência
social. Para Duguit, a solidariedade, nas duas vertentes apresentadas, proibiria ao homem tudo
o que pudesse causar uma desordem social, ao mesmo tempo em que ordenaria tudo quanto
pudesse manter ou desenvolver o fato social. Nesse diapasão, a norma internacional seria
decorrente da solidariedade internacional. Importante ressaltar que, segundo Duguit, a norma
econômica ou moral transformar-se-ia em norma jurídica sempre que os indivíduos
integrantes de uma sociedade julgassem-na relevante, bem como justa a sua conversão em
Direito (sentimento de justiça). Scelle, por seu turno, acrescentou que o equilíbrio social só
poderia ser mantido com forças coercitivas, as quais resultariam das leis naturais. Sem tais
forças, de ordem biológica, a vida social restaria ameaçada. O Direito Internacional retiraria a
sua obrigatoriedade da necessidade dos grupos sociais, cuja própria existência depende do
Direito. O Direito Internacional, assim, fundamentar-se-ia na necessidade e, em segundo
lugar, na utilidade social, ao entendimento de que o Direito não se presta apenas a garantir a
existência, mas também a evolução dos grupos sociais. Observe-se que as teorias
sociológicas24, a despeito de terem sido concebidas com a pretensão de serem positivistas,
22
Em realidade, existem teorias sociológicas (no plural), as quais, a partir de diferentes abordagens, vislumbram no fato social a justificativa para a obrigatoriedade do Direito. Não se trata, pois, de apenas uma escola de pensamento. Todavia, dado o caráter perfunctório do presente estudo sobre o fundamento do Direito Internacional, optamos por apresentar somente a precursora teoria desenvolvida por Duguit.
23
Cfe. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 140.
24
acabaram por aproximar-se do jusnaturalismo. De fato, à medida que consideram que a norma
jurídica deriva da sociedade, admitem a existência do direito anterior e independente do
Estado, a regular os grupos sociais mais atrasados. Esse direito independente do Estado é
justamente o direito natural. De outra banda, a idéia de que as forças coercitivas do grupo
social são de ordem biológica não corresponde à realidade, eis que a motivação dos
indivíduos que compõem esse grupo pode ser também de ordem ética ou psicológica.
As teorias italianas modernas sobre o fundamento do Direito Internacional
merecem destaque porque, no século XX, foram os italianos os que mais pesquisaram o
tema25. Ziccardi apresentou correções ao normativismo, para defender que o Direito Internacional fundamentar-se-ia na forma que torna obrigatório o costume internacional.
Sperduti, na mesma linha, assinala que o fundamento do Direito Internacional seriam diversas
normas que formaram um costume pré-jurídico, de elaboração espontânea. Ago, Quadri e
Giuliano, de outra banda, retiram o fundamento do Direito Internacional do substrato social26. Rolando Quadri constata a existência de um Direito e de uma autoridade na comunidade
internacional. Os sujeitos dessa comunidade teriam sobre eles um poder irresistível, a
autoridade, a qual decorre da vontade do corpo social, criadora de uma situação psicológica,
que se converte em autoritária, já que é comum a todos. O fundamento da norma seria, então,
um fato psicológico coletivo. Para Giuliano, o Direito seria um produto de determinada
comunidade histórica e seu fundamento, um conjunto de juízos de valor histórico presentes e
operantes nessa comunidade. Ago sustenta que inúmeras são as normas fundamentais, o que
torna impossível dizer qual delas representaria a norma-base. Tais normas fundamentais
25
Cfe. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 153.
26
teriam formação espontânea e contribuiriam para a formação dos juízos de valor histórico a
que se refere Giuliano.
Finalmente, a teoria do direito natural justifica a obrigatoriedade do Direito
internacional a partir de princípios de direito preexistentes e superiores ao Estado, contra os
quais nenhum soberano poderia atentar. Se a idéia da existência de um direito superior ao
estatal e dele independente remonta à Antigüidade, foi com o cristianismo que as teorias nesse
sentido ganharam força. Não por acaso, o jusnaturalismo foi desenvolvido por padres
católicos medievais, como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Este último, em sua
Summa Theologiae, construiu a divisão entre direito eterno, direito divino (positivo), direito
natural e direito humano (positivo)27. O direito eterno constituiria a Lei de Deus para todas as coisas; o direito divino seria o direito eterno “revelado” (v.g. os Dez Mandamentos); o direito
natural seria o direito eterno conhecido pelo homem sem “o auxílio sobrenatural da
revelação”28; e o direito humano seria o direito criado pelo próprio homem para regrar a vida em sociedade. Para o jusnaturalismo católico, perceba-se, a razão constitui o meio de
“descobrir” o direito. A laicização do direito natural ocorreu com Hugo Grotius, para quem a
lei moral fundamenta-se na razão, que é autônoma, independente da fé. Pufendorf, por sua
vez, também em contraposição com a doutrina católica, sustentava que o direito natural
provém da razão, que cria o direito. Norberto Bobbio29 faz interessante comparação entre o direito natural moderno (fundado por Hobbes) e o medieval: afirma que o primeiro, raiz do
liberalismo, parte de uma “concepção estreita, particularmente, privatista e atomística do
27
Cfe. DEGAN, V. D. Sources of International Law. The Hague: Martinus Nijhoff Publishers. p. 22. 28
Apud MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 154.
29
homem”, entendido como um ser isolado, em estado natural, egoísta; já o direito natural
medieval, segundo o jurista italiano, parte do homem em sociedade e tem uma visão
comunitária. Nesse contexto, enquanto o direito natural medieval tem foco nas obrigações do
homem, o moderno tem-no nos direitos. No século XIX, o jusnaturalismo passou a sofrer
violentas críticas dos positivistas, que assinalavam a impossibilidade de criação de um código
com normas invariáveis, partindo-se exclusivamente da razão. Celso de Albuquerque Mello
observa que essas críticas, no entanto, levavam apenas em consideração o jusnaturalismo
racionalista dos séculos XVII e XVIII, desprezando o jusnaturalismo católico, que também
existia. No princípio do século XX, em função dos problemas econômicos e sociais que não
puderam ser solucionados pelo direito positivo, o direito natural, recurso dos que protestam
(De Page30), teve um verdadeiro renascimento. Max Weber31 lembra que a invocação do direito natural sempre ocorreu por parte de quem se revoltava contra a ordem estabelecida, se
bem que os revoltados, ao ocuparem o poder, tendem a transformar o direito natural numa
“ideologia conservadora”32. Louis Le Fur33, responsável pela aplicação da concepção do jusnaturalismo ao Direito Internacional, considera que o direito natural tem dois princípios
materiais: o pacta sunt servanda e o de que todo dano injustamente causado deve ser
reparado. Nesses princípios estaria a base do Direito Internacional.
30
Apud MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 155.
31
Apud MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 155.
32
Cfe. NEUMANN, Franz, citado por MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 155.
33
2.3. C
ONCLUSÃO.
A análise das teorias expostas permite perceber que as correntes voluntaristas
deixam o Direito Internacional sem qualquer garantia contra a instabilidade da vontade
estatal. Além disso, ao fundarem a obrigatoriedade do Direito das Gentes na vontade dos
Estados, olvidam que a vontade não opera efeitos jurídicos senão em virtude de uma norma
preexistente que lhos defira e, como assinala Jiménez de Aréchaga34, tal norma não tem caráter consensual. Já as teorias objetivistas tentam afastar essa crítica, mas muitas terminam
por admitir a existência de uma norma superior cuja justificação é impossível.
A nosso ver, a melhor doutrina é a que funda o Direito Internacional no direito
natural. Não estamos sozinhos. Também são jusnaturalistas Lorimer, Verdross, Miaja de la
Muela, Truyol Y Serra, Brierly, Sauer, Korsters, Acciolly, Antonio de Luna, dentre outros
renomados internacionalistas.
A vantagem dessa posição é a de dar ao Direito Internacional um fundamento
na própria idéia de direito (Verdross). A noção de justiça, inerente ao direito natural,
confere-lhe um aspecto dinâmico que influencia o direito positivo35. Mais: o direito natural não se opõe ao direito positivo. Antes, concretiza-se nele. Nas palavras de Luis García Arias36, “o
34
Apud MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 156.
35
Cfe. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 155-156.
36
direito positivo é o prolongamento necessário do direito natural”. Assim também o Direito
Internacional, originalmente, não é senão o direito natural aplicado aos Estados (Vattel37). O primeiro comando de direito natural, segundo Santo Tomás de Aquino38, é o de que o bem deve ser buscado e praticado e o mal deve ser evitado. Todos as outras normas
seriam baseadas nesse comando, obtido por meio da “descoberta racional” dos católicos. Não
foi preciso muito tempo, todavia, para desconectar a figura de Deus, como autor e criador da
natureza, da natureza em si mesma. Hugo Grotius (que absorve o direito eterno de Tomás de
Aquino no direito natural) já baseia o processo de criação e formulação das regras jurídicas
quase integralmente na dedução. Equivoca-se, no entanto, ao equiparar o direito natural à lei
moral. A moral, assim como Deus, está fora do direito.
De nossa parte, sustentamos a existência de um direito natural, válido com ou
apesar das manifestações de Deus. Compartilhamos da visão de Max Weber39, que conceitua o direito natural como o conjunto das normas que são legítimas não em virtude de sua
promulgação por um legislador legítimo, mas em virtude de suas qualidades imanentes. Em
outros termos, o direito natural é o que decorre da natureza racional e social do homem. É o
direito que, fundado no ideal de justiça, antecede a legislação humana, porque está na
natureza.
37
Apud DEGAN, V. D. Sources of International Law. The Hague: Martinus Nijhoff Publishers. p. 29.
38
Apud DEGAN, V. D. Sources of International Law. The Hague: Martinus Nijhoff Publishers. p. 23. 39
Acrescentamos, no entanto, que os princípios e comandos de direito natural
podem ser deduzidos (lógica e racionalmente) a partir da observação da ordem natural de
todas as coisas, com atenção à finalidade do bem comum e da paz, a serem sempre realizados
concomitantemente. Daí resulta a obrigação de solidariedade. Nesse contexto, conquistar o
bem comum sem prejuízo da paz e a paz sem prejuízo do bem comum é o desafio posto à
humanidade. O Direito Internacional, com lastro no direito natural, constitui o instrumento
3. F
ONTES DED
IREITOI
NTERNACIONAL.
Na teoria geral do direito, consideram-se fontes as razões que determinam a
produção das normas jurídicas — fontes materiais — ou a maneira como elas são reveladas
— fontes formais40.
Ian Brownlie41 registra, no entanto, que, embora os autores comumente diferenciem as fontes materiais das formais, no Direito Internacional é difícil manter essa
distinção. Isso porque o mestre inglês considera que as fontes materiais fornecem evidências
da existência de regras que, quando provadas, possuem o status de normas jurídicas de
aplicação geral, enquanto as fontes formais são os procedimentos e métodos de criação de
normas jurídicas de aplicação geral, vinculatórias dos seus destinatários. Adverte, em seguida,
que esses procedimentos dizem respeito aos mecanismos constitucionais (estatais) de
produção legislativa, só tendo sentido, portanto, sob o prisma do direito interno dos Estados.
Considerando que inexiste uma mecânica de produção das normas internacionais, o conceito
de fontes formais torna-se inaplicável no contexto das relações interestatais. Afirma que o
importante, no Direito das Nações, são as fontes materiais, as evidências da existência de
consenso entre os Estados sobre regras ou práticas específicas.
V. D. Degan42, por sua vez, assinala a ambigüidade da expressão “fontes de Direito Internacional”, que possui vários significados diferentes, até mesmo antagônicos.
Citando Herbert Briggs, alerta para a confusão de “fontes” com: (1) “bases” da
40
SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2002. p. 53.
41
BROWNLIE, Ian. Principles of Public International Law. 5th ed. Oxford: Oxford University Press, 2001. p. 1-2.
42
obrigatoriedade, i.e., fundamento do Direito Internacional; (2) “causas”, i.e., fatores que
influenciam o desenvolvimento do Direito Internacional — fontes materiais; (3) “evidências”
do direito, por vezes restritas a “evidências documentais” por meio das quais se expressam as
normas substantivas. Ressalta que, em homenagem à precisão e clareza, Briggs advogou o
emprego do termo em sentido formal, indicando os “métodos ou procedimentos por meio dos
quais o Direito Internacional é criado”.
Preferimos o conceito de Fausto de Quadros, para quem as fontes materiais são
as razões pelas quais aparece a norma e as fontes formais, o seu processo de revelação43. Nessa linha, investigar as fontes materiais do direito implica identificar as situações fáticas, as
relações jurídicas de direito material que reclamam regramento jurídico. Fontes materiais são
os fatos e circunstâncias que demandam a construção de regras jurídicas. A simples existência
de interação entre Estados e Organizações Internacionais, por si só, já justifica a necessidade
de normatização desse relacionamento, sendo a primeira das causas para a existência do
Direito Internacional. As fontes formais, por sua vez, são os meios pelos quais o direito
revela-se, torna-se evidente. São os meios pelos quais se expressam as regras jurídicas, o
Direito em si mesmo.
O estudo das fontes é imprescindível para o correto entendimento do direito. É
amplamente admitido que apenas uma noção do direito baseada na doutrina das fontes
permite distinguir a norma jurídica de outras regras, como as de ordem moral ou política44.
43
PEREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto de. Manual de Direito Internacional Público. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 151.
44
Não obstante, é mister observar que, para o direito positivo, interessa apenas o estudo das
fontes formais.
As fontes formais típicas de Direito Internacional estão arroladas, como já
alinhavado, no art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Observe-se,entretanto,
que o termo “fontes” não aparece na redação do artigo, que faz menção aos instrumentos a
serem aplicados pela Corte na solução dos litígios que lhe sejam apresentados. Sabendo-se,
todavia, que o instrumento de trabalho do tribunal, para a realização e distribuição de justiça,
é o Direito Internacional, fica claro que as alíneas (a), (b) e (c) do § 1º referem-se às formas
de expressão desse direito — às suas fontes, portanto.
A linguagem utilizada no texto merece reparo, em especial na alínea (a), que se
refere às “convenções internacionais” que estabeleçam regras expressamente reconhecidas
pelos Estados litigantes. Melhor teriam feito os legisladores internacionais se houvessem-se
referido a “tratados”, expressão técnica designativa das normas escritas, consensuais,
firmadas e ratificadas por Estados e Organizações Internacionais, criadoras de direitos e
obrigações recíprocos a respeito de matérias determinadas. É verdade que a praxe
internacional construiu a noção de que “convenção” é o tratado multilateral concebido para
ser universal, ou seja, o tratado negociado com a intenção de ser ratificado pela generalidade
dos membros de determinada universalidade — de regra, uma organização interestatal. Nada
obstante, a doutrina é uníssona no sentido de a norma típica de Direito Internacional escrito é
o tratado, pouco importando o nome que se lhe dê: acordo, ajuste, pacto, protocolo,
convenção, ou qualquer outro que a criatividade dos negociadores internacionais possa
A segunda fonte formal de Direito Internacional, o costume, é comumente
entendido como a prática reiterada dos Estados, que se reproduz e repete com a consciência
de que é direito, logo, obrigatória. É o uso associado à opinio juris a respeito de sua
obrigatoriedade (opinião jurídica de que a conduta é obrigatória). Trata-se de fonte
importantíssima de Direito Internacional, com força hierárquica equivalente à do tratado. Isso
significa que não apenas o tratado torna inaplicável o costume antigo, no que for incompatível
com a norma escrita posterior, mas também o costume suspende a aplicabilidade e eficácia
jurídicas do tratado anterior que lhe seja contrário (lex posteriori derogat lex anteriori). É
interessante registrar que o costume internacional, nessa esteira, justamente por constituir
norma de Direito Internacional, em nada se aproxima do costume do direito interno brasileiro,
considerado apenas como instrumento de integração da lei, nos termos do art. 4º da Lei de
Introdução ao Código Civil45.
Quanto aos princípios gerais de direito, impende notar que terão essa qualidade
os aceitos como tais pela generalidade dos Estados. De todo infeliz é a menção, na alínea (c)
do § 1º do artigo em comento, aos princípios reconhecidos pelas “nações civilizadas”. O que
são nações civilizadas? Quais são as nações não civilizadas? Não parece haver respostas
corretas a essas indagações, que, antes, parecem evidenciar uma redação baseada em
injustificáveis (ao menos no campo do Direito) concepções imperialistas do chamado mundo
ocidental. Os princípios gerais de Direito Internacional são os princípios gerais de direito
interno conhecidos pela generalidade, ou, ao menos, por um grupo expressivo de Estados.
Essa aceitação generalizada permite que se infira que sua aplicação é admitida pela sociedade
internacional como um todo, fenômeno que eleva os princípios gerais de direito à categoria de
45
fonte de Direito Internacional. Convém advertir que, no direito brasileiro, os princípios gerais
de direito constituem, tal qual o costume, meros instrumentos de integração das normas
internas. Todavia, e nisso diferem substancialmente do costume, os princípios gerais de
direito brasileiros representam, juntamente com os seus congêneres estrangeiros, a
matéria-prima de formação dos princípios gerais de Direito Internacional, fontes de Direito das
Gentes.
No que pertine à alínea (d) do art. 38, que trata da doutrina e da jurisprudência
internacionais, alguns autores, a exemplo de Guido Soares46, afirmam que, pela razão de estarem capituladas no Estatuto da Corte Internacional de Justiça, tanto as decisões judiciais
quanto os ensinamentos dos mais altamente qualificados publicistas das várias nações
constituem fontes de Direito Internacional. Entretanto, parece haver um equívoco nesse
entendimento, relacionado ao próprio conceito de fonte de direito. Se fonte (formal) de direito
é o meio pelo qual o direito se revela, tem-se, em sentido contrário, que o produto revelado
pela fonte é, necessariamente, direito. Ora, se é direito, é obrigatório. Se é obrigatório, não
pode deixar de ser aplicado. A expressa ressalva feita às disposições do artigo 5947 do Estatuto deixa claro que as decisões anteriores dos tribunais internacionais não vinculam o
pronunciamento da Corte da Haia, isto é, não são obrigatórias — não sendo vinculantes, não
são, portanto, direito. Parece mais apropriado entender a doutrina internacionalista e a
jurisprudência dos tribunais internacionais, nos exatos termos da alínea (d) do art. 38, como
meios auxiliares para a determinação das regras de direito, ou, em outras palavras, como
meios auxiliares para o manejo das fontes formais de Direito Internacional, com os quais se
buscará melhor identificar e interpretar os comandos nelas expressos.
46
Tratados, costumes e princípios gerais de direito: eis, portanto, as fontes típicas
de Direito Internacional, às quais se convencionou chamar de codificadas, justamente por
estarem positivadas no art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Entretanto, a
despeito da reconhecida autoridade desse dispositivo, é tranqüila na doutrina a noção de que o
rol de fontes nele estabelecido é meramente exemplificativo. Degan48 observa, ilustrativamente, que o subparágrafo (b) do art. 38 do Estatuto descreve o costume
internacional como a prova de uma “prática geral” aceita como direito. Isso poderia significar
que apenas o costume internacional geral seria considerado fonte de Direito das Gentes.
Todavia, a prática dos Estados, alguns julgamentos da própria Corte da Haia e a doutrina
jusinternacionalista já reconheceram, de há muito, a existência do direito costumeiro
particular, cujas regras são muito próximas de acordos não escritos entre dois ou mais
Estados, sendo, no entanto, em vários aspectos diferenciadas do costume internacional geral.
Guido Soares49 critica a lacuna em comento, que entende injustificada em face da emergência das organizações regionais de integração econômica do tipo “mercado
comum”, no âmbito das quais são instituídos órgãos comunitários que, por delegação de
poderes dos Estados-Partes, elaboram normas especiais e regionais, dirigidas aos Estados, aos
próprios órgãos comunitários, a pessoas jurídicas de direito interno e até mesmo a indivíduos.
Aduz, nesse sentido, que as decisões das organizações internacionais interestatais50, bem assim as declarações unilaterais dos Estados constituem fontes unilaterais de Direito
47
“Art. 59. A decisão da Corte não é obrigatória senão para as partes em litígio e respeito ao caso alvo de decisão”.
48
DEGAN, V. D. Sources of International Law. The Hague: Martinus Nijhoff Publishers, 1997. p. 6. 49
SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2002. p. 56.
50
Internacional (em contraposição com as fontes de natureza bilateral ou multilateral, assim
entendidas as construídas a partir do consenso entre Estados, entre Estados e organismos
internacionais, ou do consenso de organismos internacionais entre si).
Degan51 explica que são fontes de Direito Internacional as declarações unilaterais por meio das quais um Estado assume determinada obrigação legal nova, renuncia
a direitos de que seja titular, ou adquire novos direitos. Os efeitos jurídicos das declarações
unilaterais não são diferentes dos efeitos decorrentes dos acordos firmados pelo Estado, tanto
escritos (tratados), quanto não escritos (direito costumeiro particular). Quanto às decisões das
organizações interestatais, reconhece a tendência de virem a ser consideradas fontes
autônomas de Direito Internacional. Entretanto, por considerar que as organizações com
poder para editar regras (básicas) internacionais ainda são em número reduzido (apenas três,
segundo o autor: Organização Mundial da Saúde, Organização Mundial de Meteorologia e
Organização Internacional da Aviação Civil), entende prematura a afirmação de que suas
decisões são fontes de Direito das Gentes.
Concordamos, no entanto, com Guido Soares, incluindo no rol de fontes de
Direito Internacional não só as decisões unilaterais dos Estados, mas também as decisões das
organizações interestatais, nas hipóteses em que lhes tenha sido deferido, pelos Estados que as
instituíram, competência para editar normas internacionais sobre determinada matéria.
Além das fontes até aqui enumeradas, convém ressaltar a existência de um
conjunto de normas jurídicas com grau de normatividade menor do que as tradicionais, mas
nem por isso menos significativas. Tratam-se de normas a que a doutrina, por decisiva
51
influência de autores norte-americanos, denomina soft law, em oposição às normas
tradicionais, que passaram, então, a ser tratadas de hard law52. A idéia da soft law emergiu a
partir da relevância e da atuação crescente da diplomacia multilateral, com o fortalecimento
da vertente de enfatizar-se o dever de cooperação contido nas normas internacionais (em
contraposição à feição de direito de manutenção do status quo). De fato, a soft law nasce nos
foros das negociações multilaterais, ambiente em que os Estados costumam estar mais
preocupados com a solução das questões emergentes na cena internacional, de maneira
rápida, adequada e eficiente, sem muita preocupação com a roupagem jurídica de suas
decisões comuns53. As denominações das normas que compõem a soft law têm variado: non binding agreements, gentlemen’s agreements, códigos de conduta, memorandos, declarações
conjuntas, declarações de princípios, atas finais e até mesmo acordos e protocolos, que são
expressões mais comumente empregadas para a designação de tratados54.
Por último, também são fontes de Direito Internacional as normas objeto desta
dissertação. As normas imperativas de Direito Internacional geral constituem o direito “que
obriga”, o direito “imperativo”. Francisco Rezek55 afirma que o jus cogens foi originalmente teorizado por juristas alemães de expressão, como Alfred Verdross e Friedrich von Heydte,
nos anos precedentes à Segunda Guerra Mundial. O tema, contudo, já inquietava os
pensadores do Direito medievais, a exemplo de Hugo Grotius. No entanto, foi, de fato, apenas
no século XX que o tema ganhou contornos de cientificidade. Rezek conceitua jus cogens
como o “conjunto de normas que, no plano do direito das gentes, impõem-se objetivamente
52
SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2002. p. 136. 53
SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2002. p. 137.
54
SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2002. p. 138. 55
aos Estados, a exemplo das normas de ordem pública que em todo sistema de direito interno
limitam a liberdade contratual das pessoas”56.
56
4. H
IERARQUIA DASF
ONTES.
Diversas são as opiniões encontradas na doutrina a respeito da hierarquia das
fontes de Direito Internacional. A solução dada a essa questão depende da concepção que se
tenha sobre a natureza e o fundamento do Direito das Gentes57. Por outro lado, o fato de os criadores das normas de Direito Internacional serem simultaneamente os seus sujeitos defere
uma autoridade ímpar aos Estados no que tange à sua submissão às regras internacionais. Os
Estados interpretam as obrigações a que estão submetidos e decidem sobre a licitude da
própria conduta. Daí a natureza fragmentária e a relatividade (v.g., a mesma norma pode valer
para o Estado A em relação ao Estado B, mas não em relação ao Estado C) do Direito
Internacional, conseqüências da relação de igualdade entre as soberanias e da estrutura não
institucionalizada da sociedade internacional58.
Partindo-se de uma concepção voluntarista do fundamento do Direito
Internacional, costuma-se afirmar que as normas internacionais não diferem, na essência,
umas das outras, tendo em vista que o seu valor e efeitos jurídicos são, em última análise,
baseados na vontade ou na aceitação dos Estados. Dessa forma, por terem as normas
internacionais o mesmo fundamento (a vontade estatal), não haveria razão para qualquer
hierarquização. De fato, não existe no Direito Internacional nem uma centralização de poder,
que garanta o cumprimento da lei, nem uma distinção hierárquica dos modos de elaboração
57
TRUYOL Y SERRA, Antonio. Théorie du Droit International Public: Cours Général. Recuéil des Cours. Collected Courses of The Hague Academy of International Law. Tomo 173. vol. IV. Dordrecht: Martinus Nijhoff, 1992. p. 257.
58
CARRILLO SALCEDO, Juan Antonio. Reflections on the Existence of a Hierarchy of Norms in International
Law. European Journal of International Law. Vol. 8 (1997). nº 4. p. 1. Disponível em:
das normas internacionais. Pierre-Marie Dupuy59 comenta essa não diferenciação hierárquica, chamando a atenção para uma tripla equivalência: entre as normas internacionais, entre as
regras para edição dessas normas e entre as fontes de Direito Internacional.
Sob a perspectiva do direito positivo, tem-se sustentado a equivalência das
fontes de Direito Internacional com o argumento de que o artigo 38 do Estatuto da Corte
Internacional de Justiça, ao contrário da XII Convenção da Haia de 1907 (que não chegou a
entrar em vigor), não prevê nenhuma hierarquia entre tratados, costumes e princípios gerais
de direito. Truyol y Serra60 alega que o referido artigo estabelece apenas uma “ordem de aplicação” das fontes, concluindo, em seguida, que os princípios gerais de direito teriam um
caráter subsidiário.
Dominique Carreau61, discordando do que chama interpretação clássica do art. 38 do Estatuto da Corte da Haia, afirma notar uma hierarquia entre as fontes de Direito
Internacional. Refere-se, em seguida, à jurisprudência e à doutrina62, que teriam menor valor do que as fontes “principais” — os tratados, costumes e princípios gerais de direito — e, mais
adiante, indica a existência de uma supralegalidade internacional, composta por normas
superiores, as quais seriam impostas a todos, sem espaço para derrogação. Carrillo Salcedo63, ressaltando a noção de comunidade internacional, a transformação do Direito das Gentes de
59
Apud CARRILLO SALCEDO, Juan Antonio. Reflections on the Existence of a Hierarchy of Norms in International Law. European Journal of International Law. Vol. 8 (1997). nº 4. p. 2. Disponível em: <http://www.ejil.org/journal/Vol8/No4/art3.pdf>. Acesso em: 12 set. 2005.
60
TRUYOL Y SERRA, Antonio. Théorie du Droit International Public:Cours Général. Recuéil des Cours. Collected Courses of The Hague Academy of International Law.Tomo 173. vol. IV. Dordrecht: Martinus Nijhoff, 1992. p. 257.
61
Dominique Carreau, Droit International, 3ª ed., Édition A. Pedone, Paris, 1991, pp. 65/68. 62
A rigor, doutrina e jurisprudência são meios auxiliares para o manejo das fontes de Direito Internacional, e não fontes propriamente ditas (vide Cap. 3 desta dissertação).
63
CARRILLO SALCEDO, Juan Antonio. Reflections on the Existence of a Hierarchy of Norms in International
um direito de cooperação para um direito de coexistência, bem como a admissão de que
existem normas de imperatividade absoluta e obrigações impostas erga omnes, também
identifica clara hierarquização das fontes de Direito Internacional.
Nada obstante, a interpretação clássica a que se refere Carreau parece, de fato,
permear a doutrina internacionalista, que não raro se refere à ausência de hierarquia entre as
fontes de Direito das Gentes. Entre os doutrinadores brasileiros, merece destaque a opinião de
Guido Soares64, no sentido de que “inexiste qualquer hierarquia entre as fontes formais do Direito Internacional Público”. Cumpre registrar, no entanto, que o saudoso Professor da
Universidade de São Paulo foi por nós questionado sobre a incoerência de sustentar-se a
existência, por um lado, de fontes de Direito Internacional de menor conteúdo normativo do
que os tratados, costumes e princípios gerais de direito — soft law — e, de outro, de normas
de imperatividade absoluta, insuscetíveis de derrogação — jus cogens — e, ainda assim,
falar-se em ausência de hierarquia entre as fontes de Direito Internacional. Após algumas
reflexões e proficientes debates, Guido Soares reviu o seu entendimento para reconhecer a
hierarquização das fontes de Direito Internacional65.
Com efeito, a idéia de inexistência de hierarquia só se sustenta no que se refere
às chamadas fontes codificadas de Direito Internacional. Tratados têm, de fato, a mesma força
hierárquica do que os costumes, sendo certo afirmar que eventuais antinomias entre a norma
escrita e a consuetudinária resolvem-se pelos conhecidos princípios da especialidade (lex
specialis derogat lex generalis) e da anterioridade (lex posteriori derogat lex anteriori).
<http://www.ejil.org/journal/Vol8/No4/art3.pdf>. Acesso em: 12 set. 2005.
64
SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2002. p. 57. 65
Procuradoria-Todavia, a admissão de regras com normatividade inferior à das fontes
codificadas e, em especial, a indisputada constatação da existência das normas de jus cogens
não deixam margem a dúvidas: o Direito Internacional contemporâneo não pode mais
conviver com a insubsistente noção de ausência de hierarquia entre as suas fontes. Nesse
diapasão, podemos, inclusive, importar o método kelseniano de hierarquização das normas
jurídicas, para, em seguida, assentarmos, no topo da pirâmide das fontes de Direito Inter
Gentes, as normas objeto deste trabalho, de autoridade superior a qualquer outra manifestação
de normatividade.
Soft Law
Tratados, Costumes, Princípios Gerais de Direito, Atos Unilaterais e Decisões de Organizações Internacionais
- Hard Law –
Jus Cogens
Com tal hierarquização, talvez se possa construir no Direito Internacional
raciocínio inspirado na idéia de controle de constitucionalidade de normas internas. O
controle, no plano internacional, seria, mutatis mutandis, o exercício de verificação da
conformação das normas internacionais com o jus cogens. Entretanto, diferentemente dos
sistemas jurídicos internos, em que a via jurisdicional constitui instância segura para a
declaração da inconstitucionalidade, a não institucionalização da sociedade internacional, não
raro, faz com que tal controle fique, na prática, a cargo dos próprios Estados, os quais são
também potenciais violadores do jus cogens. Nesse quadro, não se pode afastar da sociedade
internacional, coletivamente considerada, o encargo de garantir a incolumidade das normas de
jus cogens. A construção de mecanismos eficazes para tanto é, todavia, questão que