Joana Esteves
da Cunha Leal
GIUSEPPE CINATTI
(1808-1879)
PERCURSO
E
OBRA
volume I
.- ••
Disserta^ão
de Mestrado em Historia da ArteContemporânea
Universidade Nova de LisboaFaculdade de Ciências Sociais e Humanas
Weha\-eheardbefore ofîhe endofthehistory
ofart.theend hothofartitselfand ofthe scholarly study ofart.Yeteverytirne thatapparentlyinevitable endwaslamented, thingsnevertheiess carriedon,
anusuallyin anentirelynewdirection.
AGRADECTMENTOS
A minha
primeira
e maiorexpressão
degratidão
cabe â ProfMargarida
Acciaiuoli de Brito,onenta-dora desta Dissertacâo. Devo-ihe muito mais do que valiosos contributos para o
aprofundamento
da análise dasquestôes
em debate, ou do que a chamada de atencão criteriosa para asimperfeicôes
a eliminar,pelo
investimento napesquisa
e na reflexão. A par do constanteencorajamento,
importa
salientar o
padrão
de severaexigência
que me animou aultrapassar
limitacôes e a fiindamentar uma postura de seriedade eempenhamento
que é, antes demais, umalicão de vidaAo Prof. José Eduardo Horta Correia
cabe,
igualmente,
um sentidoagradecimento, pela
redescober-ta do prazer deaprender
epelo
desenvolvimento dacapacidade
de ver eproblematizar
aarquitectu-ra. Uma
palavra
de reconhecimento é devida, também, ao Prof. José Custodio Vieira da Silvapela
contribuicão que as suas aulas trouxeram enquanto veiculo de sensibilizacão para a
importância
do estudodaarquitectura
da vidaprivada.
Ao Prof.
José-Augusto
Franca, que mepossibilitou
o acesso ao núcleo de desenhos inéditos deCi-natti,
ílindamentais paraopleno
desenrolar dapesquisa,
o meu sentidoagradecimento pela
confiancadepositada.
Devo,
também,
uma reconhecidapalavra
deagradecimento
ao Sr. D. Duarte Nuno deBraganca pela
possibilidade
de acesso aos edifícios da rua Antônio Maria Cardoso. Contribuicão fijndamental parao bom termo desta Dissertacão coube
igualmente
â Sf D. TeresaBurnay Eugénio
de Almeidapelo
acolhimentoentusiástico com que me abriu as portas de sua casa e
proporcionou
os melhores meios de trabalho noArquivo
da Casa deEugénio
de Almeida. Em Evora o meuagradecimento vai,
tam-bém,
para o Prof HelderAdegar
Fonseca,pela
revelacão do Diário de Carlos Basto epelas
discus-sôes em torno da
figura
de José MariaEugénio
de Almeida, e para oDomingos
Pulseira por todo oapoio
dado no curso dainvestigacao. Cumpre igualmente
mencionar adisponibilidade
dosfunciona-rios da Biblioteca
Pública,
particularmente
ao Sr. José Chitas, edoArquivo
Distrital.A Pintora Maria Keil
pela disponibilidade
com que sempre atendeu as minhas solicitacôes, nas diver-sas tentativas para encontrar o álbum dosprojectos
realizados por Cinatti para a decoracão dosinte-riores do
palácio
das Necessidadesepela
possibilidade
de conheceralguns
desenhosoriginais
doar-quitecto
italiano.Não
podia
deixar deregistar
o meu reconhecimento para com o Dr. Pina Navarro,responsável pela
Biblioteca Museu da Casa Pia de Lisboa. Do mesmo modo, expresso a minha
gratidão
å direccão daTorre do Tombo e, em
particular,
ao Prof Bernardo Vasconcelos e Sousa,pela
atenciosa solidarie-dade manifestada na tentativa de resolucão dealgumas
das lacunas documentais que afectaram ocurso da
investigacão.
A todos ostécnicos e auxiliares da mesmainstitui^ão
e. emparticular,
ao Dr, Paulo Tremoceiropelo apoio
com que tornou viável o acesso â documentacão dosarquivos
doMi-nistério do Reino, o meu sincero
agradecimento.
Umapalavra
cabeigualmente
aosprofissionais
doArquivo
da CâmaraMunicipal
de Lisboa do Arco doCego:
parte do êxito na localizacão dosprojec-tos
originais
riscados porGiuseppe
Cinatti é devida ao seuempenhamento.
Também aos técnicos doArquivo
Histôrico do Ministério das Obras Públicas, eespecialmente
ao SrEspiga, pelo
seuapoio
no curso dainvestigacão.
Cumpre
ainda referir o totaldisponibilidade
demonstradapela responsável
pelo
Arquivo
Histôrico da CâmaraMunicipal
deOeiras, Df Manuela Oliveira.Aos meus
colegas
Helena Lisboa Barata Mourae HelderCarita, totalgratidão
pela
carinhosaamiza-de,
constante estimulo e frutuosos debates, que tanto animaram o curso deste estudo. UmapalavTa
de reconhecimentodirijo igualmente
aocompanheirismo
e â amizade dos meuscolegas
de maratonano curso de mestrado Ana Coelho
(também,
pela
traducão de uma série de manuscritos em italiano descobertos noespôlio
de Jaime BatalhaReis),
Ana Ruivo, AlexandraCorvelo,
Femando Dias,Margarida
Conceicão,
Pedro Tostão, Rita Macedo, Sandra Santos, Teresa Serra e,finalmente,
ao PauloRodrigues pelo exemplo
dedisponibilidade
e desinteressada trocadeinforma^ão.
Aos meus
colegas
detrabalho,pela
amizadepartilhada,
pela
totalcompreensão
nas infinitas indispo-nibilidades epela
cumplicidade
com que sempre promoveram a realizacão destetrabalho,
o mais sin-ceroagradecimento.
Ás
amizades de toda avida: meu irmão, Antônio Maria Cunha Leal, Maria do Rosário Abreu e Ana Vasconcelos eMello. Semo seuapoio
este trabalho não teria sidopossível. Á
InezCalado e atodos os outrosamigos, particularmente,
ao Antônio Carvalho e å Manuela Dias,pela
paciência
com quesuperaram a
longa
ausência, cabe tambémumavivaexpressão
deagradecimento.
Å
minha família, em nome do convívioperdido,
pelo
ânimo e o carinho que sempre nela reencontrei.Uma
palavra especial
para a minha mãe e tiapela impiedosa
e atenta revisao final do texto, e aindapara os meus irmãos André, Carolinae Mariana
pela
ternurade que sempreme rodearam.Finalmente,
ao Luis,pelo
animoe serenidade que soube transmitir.Obrigada.
INTRODUCÃO
Este trabalho
pertende
dar uma visão sistematizada e critica do percurso e da obra doarquitecto-cenôgrafo Giuseppe
Cinatti Reconhecido como um dosprofissionais
maissignificativos
dopanora-ma da
arquitectura
oitocentista,
o artista italiano. activo emPortugal
apartir
de 1836, permaneceu.também,
como um dos seus mais obscurosprotagonistas.
Ensombradopela tragédia
dodesmorona-mento da torreemedificacão na ala conventual do mosteiro de Santa Maria de Belém, em Dezembro
de 1878, o entendimento da sua
producão
arquitectônica
esteve, desde então, condicionadopela
dúvida relativa as suas
habilitacôes,
bem como âlegitimidade
da entrega de uma obra de tamanharesponsabilidade
a umarquitecto
semcompetência
paraa assegurar. AIigacão
a actividadecenográ-fica
foi,
nesse contexto,empolada
e utilizada como argumentacão de basepara acusacoes sobre a falência técnica dos seus conhecimentos no domínio da construcão, enquanto que,
paralelamente,
contribuia para confirmar a
imprudência
generalizada
no campo do restauro e da conservacão dopatrimônio
monumental.A obra desenvolvida
pelo
arquitecto
italiano tem tido,precisamente
nesse sentido. umaimportância
pnmacial
parahistoriografia
da arte portuguesa porquanto vem cimentar duas concepcôesgenéricas
em relacão â
arquitectura
do século XIX.Fundamenta,
por um lado. a ideiade uma totalinapetência
dos técnicos em íuncâo no
país
e, por outro, associa-lhe umaimagem
desoladora dairresponsabili-dade
vigente
ao mais alto nivel dascompetências
nacionais afectas åsquestôes
desalvaguarda
patri-monial. Estes são apenas dois entre os
múltiplos
factores que alimentam uma visão acentuadamentenegativa
sobre aproducão
artísticaoitocentista,
vitimadapela desadequacão
do ensino artísticovei-culado
pela
Academia de Belas Artes, bem como por um falênciageneralizada
deaprofundamento
da culturaestética.
Compreender
e analisar aarquitectura
de Oitocentosparece-nos
hoje,
a escassos anos do séculoXXI, maisdo que um necessidade, uma
obrigacão.
Os edificios oitocentistas ao revalidarem o léxicoconstrutivo de epocas remotas
pareciam
romper o encadeamento «natural» da evolucão das estrutu-rasarquitectônicas,
não tanto por via do reencontropurista
com os valores do classicismo, masso-bretudo, pela
abertura ao historicismo romântico Opesado preconceito
relativo å sua heranca cons-truída, criticadapelo
seupendor
decorativista, eclético e revivaiista, tem determinado um debatefundadanos valores
depurados
eassépticos
do racionalismo moderno contribuiupara uma
desvalori-zacão endémica do que o século XIX teve para oferecer em termos de criacão
arquitectônica.
Nestecontexto, é forcoso salientar o trabalho
pioneiro
desenvolvidopor
José-Augusto
Franca. A analisesistemática que realizou sobre a arte de
Oitocentos,
marca umaviragem
profunda
nahistoriografia
contemporânea.
Formado na
perspectiva
daSociologia
daArte1
,José-Augusto
Franca foi oprimeiro
autor a defen-der emPortugal
o estudo daproducão
artistica num âmbito civilizacional. Tal como foidefinida,
aabordagem sociolôgica
da arte absorve os «factos artisticos» de formaintegral,
valorizando,
paraalém das condicôes inerentes ao acto
criativo,
dados relativos ao seu consumo e utilizacao, o quesignifica
que o estudo do artista tende a avancar a par da análise dos núcleos sociais consumidores,sejam
vendedores,
coleccionadores ou estudiosos. sem menosprezar nenhuma daspossibilidades
deleitura que esta visão
ampliada
trazconsigo2
. Assimequacionada,
a tese sobre A Arie emPortugal
no século XI)C dá-nos uma visão
global,
einédita,
da evolucãosôcio-cultural,
fundando bases deconhecimento que
suplantam preconceitos
estéticos e abrem vias deinvestigacao
até então descura-das. Nãoobstante,
o estudo daproducão
artística de Oitocentos tempermanecido
â margem das li-nhas dominantes de interessehistoriográfico.
Excepcão
é, no horizonte da culturaarquitectônica,
o domínio do restauropatrimonial
oqual, pela
actualidade da temática. tem incentivado um olhar críti-coretrospectivo
maisfrequente.
Outros, dentre os raros trabalhos desenvolvidos em torno da
arquitectura
de Oitocentos, parecem enfermar de uma visãosuperfícialmente perspectivada,
com tendência para isolar,pela
suasingular
curiosidade, o fenômeno dos revivalismos e centrar o discurso analítico numconjunto
de edifícios entroncados no ecletismo historicistada Pena,incapazes
deproporcionar,
porisso,
mais do queumaideia
fragmentada
da actividadeconstrutiva4
. As solucôes revivalistassurgem, assim, como uma
ar-madilha,
redutoras porquedesligadas
de um contexto maisgeral, inaptas
a relacionar-se com aper-sistência deumvínculo classicista e a maleabilidade criativa de
arquitectos
reconhecidospela
instabi-Iidade das suasopcôes
estéticas. Factorespreponderantes
como ageografia
dos locais deimplanta-'
Cfr. PicrreFRANCASTEL. Étudesdesociologiede I 'art. laed, 1970.
"Cfr. J.-A. FRANQA. «Le "fait artistique' dans lasociologie de l'art» in Lasociologiede l'art et sa vocation inter-disciplinaire. 1974.
'
A primeira edicão desta obra em dois volumes foi impressa em 1974. conhccendo sucessivas reedicôes actualizadas até 1991.
4
VercatálogodirigidoporRegina ANACLETO.com opatrocíniodaComissão dos Dcscobrimentos: O Xeomanuelino
cão ou o contexto da encomenda são, também,
frequentemente
secundarizados Este contexto afec-touparticularmente
apossibilidade
de um conhecimento maisabrangente
no domínio daarquitectura
privada,
que permaneceuignorado
apesardo valordasinforma^ôes
recolhidas por um núcleo deoli-sipôgrafos,
onde se destacam os nomes de Júlio de Castilho, Gustavo de MatosSequeira,
Vieira daSilva, Luís Pastor de Macedo ou Norberto de
Araújo.
O encontro com a
figura
deGiuseppe
Cinattiadquiriu
um novo sentido nesta encruzilhada de inte-resses maiores. 0 crescer da atencão votada ao séculoprecedente
pelo
aproíundamento
de um cada vez maior,desejo
decompreender
o interesse suscitadopelo
patrimônio
monumental e, também, odesenvolvimento
paralelo
daarquitectura.
A escolha íundamentou-se, âpartida,
napossibilidade
deestabelecer uma análise
paralela
entre construcôes de raíz e intervencoes de restauro, tendo estas suscitado umagenuína
curiosidade em torno da derrocadatrágica
das obras decomplemento
domo-numento-simbolo da nacão, o mosteiro dos Jerônimos. A definicão da temática
cimentou-se,
final edefinitivamente,
pelo
reconhecimento daimportância
do desenvolvimento de um trabalhomonográ-fico,
capaz deimpulsionar, pelo aprofundamento
das informacoesdisponiveis,
o conhecimento e areflexão sobre o
periodo
histôrico queelegeramos.
Iniciada a
investigacão
em torno da obra deGiuseppe
Cinatti,
cedo nos demos conta de que o uni-verso que a desvendar excedia asexpectativas
maisoptimistas.
A par da sua permanente actividadede
cenôgrafo
e das diversas intervencôes de restauromonumental, avolumavam-seos dados relativosâ sua prestacão como
arquitecto
dos espacos da vidaprivada.
Cinatti desenvolvera a base do seupercurso na construcão e melhoramento de
palacetes
de moradapensados
de acordo com asexpec-tativas da elite social do liberalismo. Nesse trabalho radicavam, afinal, os fiindamentos do seu
pres-tigio
e o reconhecimento da suacompetência
profissional.
Aimportância
que esta constatacãoas-sumiu no âmbito do estudo
desenvolvido,
condicionou a estrutura do texto que agora se apresenta.Tornara-se
imprescindivel
votar toda uma pane dadisserta^ão
a um tema que apartida
nãoparecia
merecermais do que umcapítulo
de desenvolvimento.0
destaque
conferido â análise da contribuicao do artista italiano na reformulacão daarquitectura
doméstica
surgiu,
assim, como umaconsequência
imediata das proporcôes que a tematica foicon-quistando
no curso dapesquisa.
O esforco para uma comprensãoabrangente
deste dominio da suamais obscuras da histôria da
arquitectura
emgeral
e, daarquitectura
oitocentista, emparticular.
Muitas foram as dificuldades a obstar. 0 estudo das condicôes de habitacão da renovada aristocracia liberal nãopoderia
ser entendido sem um esforcocomplementar
de introducão a uma temática tradi-cionalmentepreterida pelos
historiadores da arte, como a daarquitectura privada.
Por outro lado,apesar da
surpreendente organizacão
patente na maioria dosarquivos legados pelo
século XIX,hou-ve que
ultrapassar
a suadispersao,
a morosidade do trabalho depesquisa
em fundos documentaispraticamente
virgens,
ou ainda,simplesmente,
as lacunas da informacãodisponivel.
Se emalguns
casos tivemos a fortuna de encontrar, na posse departiculares,
fontes valiosíssimas para oaprofun-damento da
investigacão
iniciada, outros houve em que o aceso â informacão permaneceuirremedia-velmente inacessível.
0 sentido da evolucão deste trabalho determinou a necessidade
equacionar,
também, os vectoresmais
significativos
do universo social que confiara aoarquitecto
italiano o risco das suas moradasfamiliares,
já
que nessas construcôes eprojectos
seespelham
as suasaspiracôes,
gosto enecessida-des
quotidianas.
Recusamos, neste sentido, encerrar num conceito restrito o âmbito do debate destamonografia, optando
porumaabordagem
que tendeu a valorizaro contexto da encomenda e do pesodos programas na solucão final das obras
realizadas,
destacando em cadaedifício a sua inerentequa-lidade de «facto artístico».
Na
sequéncia
do que acabamos deexpôr
melhor secompreenderá
a estruturaadoptada
do decursoda
exposicão. Monográfico
por opcão consciente, esteinquérito
foi sistematizado atendendoprimei-ramente na análise de
alguns
dadoscapitais
â correctaequacão
do percurso doarquitecto
e docon-texto em que se desenvolveu. Era absolutamente necessario conhecer o encadeamento da histôria
pessoal
deGiuseppe
Cinatti anterior âchegada
a Lisboa, no inicio de1836,
sem descurar nenhumdos dados
apurados
relativos â sua formacao e ao ambiente académico e cultural de Milão que aha-viam condicionado. Entendemos
igualmente
que, tãoimportante
quanto aespecificacão
dealgumas
características distintivas da suapersonalidade,
seriapôr
em evidência as questôes maissignificativas
da histôria do
país
que o acolhia e noqual
se fermentavam as condicôes necessanas aodesenvolvi-mento da cultura
romântica,
seguida
pelo arquitecto
desde a suagénese,
simbolicamente assinaladaA
cenografia
alicercou, também, uma partesignificativa
deste estudo. Nela se descobriu umpapel
fundamental enquantorepositôrio
deumasensibilidade romântica eparadoxalmente
oposta aoespiri-to classicista que, de acordo com a sua formacão italiana, informa a
prática arquitectônica
de Cinatti até uma fase de maturacão,ja
consubstanciadapelas
intervencoes no âmbito do restauro demonu-mentos historicos.
Originalmente
ligada
a S Carlos, a sua actividade enquantopintor
de «vistas»pa-ra encenacão do teatro lírico abre
igualmente
a via deabordagem
a uma dasquestôes
primaciais
dosseus cerca de 42 anos de criacão portuguesa. Trata-se da
profunda
amizade que o uniu a Achille Rambois, seucompanheiro
italiano no trabalho daôpera,
base de umaparceria profissional
extensí-vel a todos os campos de actividade artistica. Indiscernivel no domínio da
cenografia,
a identidadecriadora de Cinatti sobressai,
porém,
com totaldetaque,
no dominio daarquitectura,
emborajamais
se possa minorizar o
papel
secundário assumidopelo
seucompanheiro,
a quem naturalmente sevo-tou
justificada
atencão.Depois
de se consideraremimportantes
contribuicôes emprojectos
e construcôesefémeras,
come-morativos de herois ou destinados a assinalaralguns
dos momentos extraordinários na histôria damonarquia
constitucional, evidenciados enquantoprelúdio
dacria^ão
arquitectônica
maisconsisten-te, abrimos uma
segunda
fase no desenvolvimento deste trabalho, naqual,
como atrás seexpôs,
seprocurou ordenar numa
sequência
cronoíôgica
e de formatão exaustiva quantopossível
as propostasdo
arquitecto
para o dominio da habitacãoprivada.
Veiculoprivilegiado
de umaimagem
depresti-gio,
masigualmente
condicionada por normas de sociabilidade que vieram consagrar, emdefinitivo,
valores de intimidade e de comodidade no
quotidiano
familiar, as moradas concebidas por Cinattipara a elite social do liberalismo foram analisadas enquanto testemunhos «civilizacionais», mas
tam-bém
explorando
aspotencialidades
de uma crítica formal. Quanto mais seampliava
eaprofundava
oestudo das obras identificadas, mais esse exercicio se relevou frutífero,
permitindo-nos
descobrir,através dele, a
pertinência
dodestaque
de umamarca autoral e, simultaneamente, o sentido evolutivode uma obra de total coerência.
A ilustracão de todo o seu percurso de criador de espacos de habitacão,
pautado
inicialmente,tam-bém,
pelo
trabalho dedecora^ão
de interiores, tomouindispensável
citar a incursão de Cinattinou-tros campos da
composicão arquitectônica,
como o da construcão de um asilo para criancas ou daremodelacão e «correccão» de salas de
espectáculo.
Justificadapela
importância
das obras emquais
nãodetinhamos,
âpartida,
mais do quebreves referências assinaladas nasbiografias disponiveis
sobre oarquitecto,
no trabalho deolisipôgrafos
ou noconjunto
das noticias tratadas porJosé-Augusto
Franca, numcapítulo
do estudo atrásmencionado,
dedicado ao fenômeno oitocentista do«palacete»,
que constituiu uma base critica de trabalho,singular
epreciosa,
no desafio queassumi-mos.
Terreno
praticamente virgem
ele foi, talvez por isso mesmo, extremamente aliciante. Apesquisa
atendeu sempre a duas vias deinvestigacão
complementares.
Ao mesmo tempo em queperseguia-mos a obra do
arquitecto,
com apreocupacôes
ainda ao nivel da descoberta dosprojectos
e dadata-cão
precisa
das obras, nem sempre tão bem sucedida quanto seria de esperar,já
que,particularmente
fora de Lisboa, os
arquivos municipais
são lacunares,procurámos igualmente gerir
asinforma^ôes
apuradas
sobre osprôprios
encomendadores. Embora a elite oitocentistatenha,
nos últimos tempos,cativado aatencãode
investigadores,
a Histôria social do século XIX permanece ainda poucoexplo-rada. Raros são, entre o núcleo dos
grandes capitalistas
dacapital,
os casos bem conhecidos. Ouni-verso
sociolôgico
em que Cinatti encontrara os seusprincipais
mecenas foi, nesse sentido, difícil dedefinir em termos satisfatôrios. Neste grupo dominante encontrava-se,
todavia,
ocomplemento
im-prescindível
âcompreensão
total de vectores fundamentais â realizacão deste trabalho, uma vez quelhe cabe a contextualizacão da obra do
arquitecto,
não sô no dominioespecífico
da construcão dosespacos da vida
privada,
mas também ao nível da intervencãopatrimonial
e urbanística.Inaugurando
a terceira e última parte da Dissertacão que agora se apresenta, a análise do trabalho desenvolvidopelo arquitecto
em Evoraabrangeu
vertentes de criacãodistintas,
que incluem tanto orisco de um
jardim público
como intervencôes de restauro monumental. A actividade de Cinatti nacapital alentejana
surge intimamenteligada
â influência da elite local. Em Lisboa a mesma viaexplica
a sua contratacão para as obras de
complemento
e restauro do mosteiro de Santa Maria de Belém,por vontade de uma das
figuras
mais carismáticas da ética e da culturaburguesas.
Fechamos,pois,
esta dissertacão com uma das questôes que
primeiro impulsionaram
a sua concretizacão. Os dadosapurados
no curso dapesquisa
exigem
oreequacionamento
daspermissas
maiores do debateanima-do quer em torno da
legitimidade
da entrega da execucão dosprojectos
para Beíém aoarquitecto
italiano e ao seu
companheiro
Achille Rambois, quer dadúvida sistemática em relacão âcompetência
tecnica de um
profissional
com mais de 30 anos de intensaproducão
arquitectônica
nopais.
Abre-se,de preservar os monumentos histôricos deteve como expoente da cultura romântica. As accôes de
restauro motivadas para
salvaguarda
dopatrimônio arquitectônico,
valorizado enquanto testemunhoexpressivo
dopassado
nacional, aparecemfrequentemente
marcadas por uma atitude fundamentada num ideal de «pureza de estilo». Nele se geraram as bases de um pensamento apto ajustificar
inter-vencôes que excederam o domínio da conservacão para considerarem
possibilidades
dereintegracao
ecomplemento
dos monumentos, norteadaspela
procura de«pseudo-unidade arquitectônica»,
ne-cessariamente idealizada. Cinatti faz parte
integrante
deste processo. A sua contribuicao foi tantomais
importante
quanto asconsequências
extremas do desastre de Belém acenderam o debate emtorno das questoes
patrimoniais,
motivando, nesse sentido, a reflexão e consciencializacão dos seuscontemporâneos.
0 percurso que
aqui
iniciamos oferece uma visão. tãocompleta
quantopossível,
da obra deGiusep-peCinatti.
Esperamos
com ela contribuir paraaprofundar
o conhecimento dealgumas
das faces me-nosexploradas
daproducão
artística dos anos do Romantismo emPortugal.
Outrodesejo
cumpre, âpartida,
confessar, Que ariqueza
do universo reencontrado, onde se deverá contabilizar uma grossa fatia das informacôes recolhidas semlugar
no âmbito da temática definida para este trabalho, possaanimar os
investigadores
futuros aprosseguir
vias depesquisa
paralelas
e, necessariamenteI PARTE
CINATTI:
FORMACÃO
E PERCURSO DE
UM
1.
FORiMACÃO,
ACOLHIMENTO E OBRACENOGRÁFICA
1.1. Lisboa, 1836.
Giuseppe
Cinattichegou
a Lisboa no início de 1836. Tinha entao 28anos1
.Aguardavam-no
no RealTeatro de S. Carlos, para onde fora contratado como
cenôgrafo
napreparacão
datemporada
que entãoinaugurava.
Asprofundas
raízes que desde essa data estabeleceu nacapital
portuguesa,muda-riam o rumo da sua vida, afastando definitivamente a
possibilidade
de um regresso ao seupaís
natal. EmPortugal,
apesar daagitacão política,
Cinatti encontrou um climapropicio
ao desenvolvimentoda suaactividade
profissional ligada primeiro
âcenografia, depois
â decoracão e,finalmente,
åarqui-tectura, definindo deste modo um percurso
compatível
com o sentido da suaforma^ão.
Filho de um«pintor decorativo»2
activo na Lombardia,completou
os anos maissignificativos
da sua educacãoem Milão, cidade para onde a sua família se transferira,. Ai terá acumulado a
experiência
do ofíciode seu
pai,
base apartir
daqual
desenvolveria aprática cenográfíca,
com o curso dearquitectura
naAcademia de Belas Artes deMilão, o
qual
foi, todavia, forcado a deixarincompleto,
nasequência
doenvolvimento num
episôdio
burlesco, que determinou a sua satda dopaís
e quase lhe custou a vida numa ousadatravessia dosAlpes
.'
Nasceuem Siena.em 1808.
:
Luigi Cinatti. sienês. faleccucom cercade 80anos. em 1868. Napedra tumular que Guiseppc Cinatti mandouaplicar na sepultura de seu pai pode ler-se: «Ê qui sepolto / Luigi Cinatti scncse / caro a tutti per brio e la schietezza dell'animo /professoconamoreI'artedellapitturadecorativa / moriottuagenario il giorno8 di marzodell'ano 1868 /
Giuseppe figlio nconoscentealdiletto ecompianto genitore»: BN. Espoliode Jaime Batalha Reis (E.4). C\. 89. pasta 26. Ovastoespôliodocumental deixadopor Jaime Batalha Reis inclui um pequeno núcleo decorrespondência relatĩ\o á familia Cinatti. o que se explica pelofacto de se terconsumado. em 1872. o seu casamento com Ccleste, filha de
Guiseppc Cinatti.Rcgiste-se aindaquedifĩcilmentese podeaceilar queLuigi Cinatti tcnha sido um«arquitecto
distin-to». como pretende Jaime Batalha Reis na biografîa que dedicou aocenôgrafo dc S. Carlos. em 1879. Para além de
ignorada pela histonografia italiana. parece-nos lôgicoque.caso asuaacti\idadenodomíruo daarquitecturase tivesse poralgum modotornado dignade distincão. essefacto teria sido salientado por seu fílhono texto que mandou inscre-ver na pcdra tumular. acima citado. Cfr. Jaime Batalha REIS. «José Cinatti» in 0 Ocidente.
- N. 40. vol. II
(15 de
Ago. 1879).p. 123.
'EmMilãoos Cinatti tinham «parentes prôximos. os Riccordi. editores de música.v F. Keil do AMARAL. Histôrias â margem de umséculo de histôria. 1970. 76.
'Cinattideixou Milão clandestinamente por seteresquivadodeexecutara vontadeexpressa no seu núcleo dc filiacâo
política que. ambicionando «mclhorcs dias para a sua terra
-opnmida (...) por um tiranete scm génio nem escrúpu-los».determinarao seuassassínio. Incapazdecometera tarcfa quea sorte lhe ditara. Cinatti foi tornadocomo traidor. Nestecontexto scjustifica a suafuga de Itália. «atra\essandoos Alpes.por onde se aventurou paraentrar em Franca. Nessa travessiasofreu muito: era Invernoe perdeu-se nas monlanhas. Não resistiuao fnoc á fome. caindo prostrado
na neve. Se nãofosse umdaquelescãesde S. Bernardo queos fradesdoHospíciodeGrimsel amestravampara procu-rar osviandantesperdidos. Cinatti teriaperecido. Levado para o Hospício foi socorrido e tratado. Ali permaneceu al-gum tcmpo. recuperandoasforcasedepoisdesenhandoepintando.comgrande aprazimentodos frades.a quem ofere-ceu cssasobras...»; Cfr. Idem. pp. 76-77. A testemunhara veracidade dcsta histôna existe no espôlioda fanulia Keil doAmaral umdesenhooriginal de Cinatti legendado: Ospiziodei Gormisel
-81,00piedaldi sopramare.
0
país
queo acolheu vivia ainda a turbulênciado rescaldo deuma guerra civil de dois anos.Momen-tos de
grande
instabilidadepolitica
sobrevieram â euforia da vitôria dopartido
liberal em 1834. Amorte súbita de D. Pedro IV dera prematuramente a coroa a D. Maria II,
jovem
«estrangeirada»5
que contava então apenas 15 anos. Casada em 1835 e
logo
viúva, a Rainha esperava a vinda do seusegundo
marido, oprincipe
deSaxe-Coburgo-Gotha.
D. Fernando,«personalidade-chave
da culturaartística portuguesa do
romantismo»6
,chegou
a Lisboa exactamente no mesmo ano em que Cinatti,mas a 8 de Abril. A coincidência
temporal
da vinda doprincipe
alemão e doarquitecto
italianocon-tribui para iluminar, no panorama da cultura portuguesa de oitocentos, a sincronia entre a
consolida-cão do
regime
liberal e o processo de instauracão do romantismo, nestasegunda
metade dos anos307.
Numa breve análise dos acontecimentos de 1836, facilmente se detectam outros sinaisindicati-vos da nova
época
que, com maior ou menor consistência, o triunfo do Liberalismo e odesenvolvi-mento da sociedade
burguesa
consolidavam. Os seus mais conscientes promotores vinham, sem dú-vida, do universo das letras. Almeida Garrett e Alexandre Herculano foram, na cultura nacional osgeradores
da consciência romântica na suaexpressão
mais elevada.Desde 1834, com a revalidacão dos
princípios
da revolucão de 1820, ainda que atenuadospela
mo-deracão da Carta, as novas estruturas liberalistas definitivamente estabelecidas em
Portugal
com asubida ao trono de D. Maria II,
apelavam
a um esforco«civilizador»,
como lhe ditavam as suasraí-zes iluministas.
Suplantando
a «fraternidade» e a«igualdade»
deinspiracão jacobinas,
embora comelas mantivesse uma estreita relacão, a «instruccão
pública»
era assumida como uma das tarefaspri-maciais da
monarquia constitucional8
. Disso beneficiaria a curto prazo, não semalguma
ambiguida-de, o ensino das artes, da música, da dancae do teatro.
Ao tomaro
poder
em 1836, o governo setembrista concentrou parte dassuasenergias
na reforma do sector educativo. No dominio do ensino artístico, as directrizes ditadas apenas três semanasapôs
atomado do
poder
por Passos Manuel, davam corpo a uma série de intencôes anunciadasanterior-'OIiveiraMARTINS.Portugal Contemporâneo. 10a ed. vol.2. 1996. p.63.
"
J.-A. FRANQA. ORomantismoemPortugal. 2° vol . 1974. p 481
«1835 (ou 1834). pax Iiberalĩs. é uma data índiscutível: marca o comeco do proccsso romântico nacional (...)»: in
Idem. l°vol. p. 10
8
mente
pelos
protagonistas
da revolucão liberal de209,
que se haviam insinuadologo
em 1834. Aoprimeiro
governo de D. Pedro IV coubera a decisão de formar uma comissão para o estudo de umaReforma
GeralJos Estudos doReino,
aqual
Almeida Garrett foi, desdeIogo,
chamado asecreta-riar10
. A ideia da instituicão de Academias de Pintura, Escultura eArquitectura
prevista
no âmbito
dessa reforma não concretizada, foi retomada em Fevereiro de 1835
pelo
ministro do Reino do go-verno doduque
de Saldanha,Agostinho
José Freire. Aprecipitacão
dos acontecimentospoliticos
determinou,porém,
que coubesse a Passos de Manuelpublicacão
dos decretos fundadores das Aca-demias de Belas Artes de Lisboa(25
deOutubro)
e do Porto(22
deNovembro), fechando,
já
numcontexto romântico. um processo que há muito se anunciava.
Apesar
do amargo fim do ministrocartista11
, osprincípios
aprovados
para a fundacão das duas instituicôes votadasao ensino artístico
não renegavam nenhuma das intencôes propostas em 1835, limitando-se a traduzi-las com pequenos
ajustes.
Aideologia
liberal que as fundamentava e os meiosdisponibilizados,
oudisponíveis,
eramafinal os
mesmos12
.Na
capital,
a Academia condenada ao edifício do recentemente extinto convento de S. Francisco daCidade, local ondese haviareunido o
espôlio
artístico recolhido dasmúltiplas
instituicôes monasticas votadas ao abandono e ao saqueapôs
apublicacão
do decreto de AntônioAugusto
deAguiar,
em 1834, foi castrada na suagénese
pela
inexistência de um corpo docente apto a servi-la. Alarga
maioria dos
professores
seria ainda recrutado naAjuda,
comexcepcão
dopintor
Antônio Manuel da9A ideia da instituicãodeum centro de ensino das Belas Artes foi. pela primeira vez. apresentadaås cortespor um lente de Coimbra. Trigosode AragãoMourato. Sobrea cnacão do Liceo e doAtheneo das BellasArtes (doqual
Se-queiraseria nomeadopresidente perpétuodo conselho dedircccão)verJ.-A. FRA.NCA. opcit. 3a ed.. vol. 1. 1991. pp 205-208. Este autor chama particularatencão para aactualidade dos estamtos doAtheneo, que «previam uma
mstru-cão regular. aberta ao sexo feminino (comcertos cuidados na admissâo. porém. e em estudos separados). e gratituta para quemtivesse falta de meios: cinco aulas de modelo vivo( que seria tambémfeminino). deestátua ede arquitectu-ra (com estudo de perspectiva e de geometria prática). e de "exemplares de histôria natural". numa abertura para a
paisagemeparaanatureza-morta. constituiamo cursodedesenho. aoqual sejuntavaoensinodepintura . esculturae
arquitectura». Aesteprograma pedagôgicoaliava-sea atribuicão de bolsas deestudo para Roma e Paris e a organiza-cáo rcgular de concursos e exposi?ôes. A Vilafrancada impossíbilitou a concreti/xicão ímediata destes ideais. írreme-diavelmenteperdidosapesardos esforcos movidosa partirdaentrada em\igordaCarta.em 1826. A Academia deS. Miguel . criada nocontextoabsolutista.nasobrasda Ajuda.foi
umepisôdiosem histôna noensmodasarlesdopais.
10
J.-A. FRANCAvê nele. porém.a verdadeira«alma destaconussão»: in opcit. 1°vol.. 1974, p. 143.
11
AgostinhoJosé Freire foi assassinado nasequência do golpe palaciano anti-Setcmbrista. «Belcnzada»: cfr. Oliveira
MARTINS. opcit. 10° ed. 2° vol.. 1996, pp.67-68.
12«Do diploma deAgostinhoJosé Frcirepassaramao decreto de PassosManucl asideiasbásicas da Academia
-e logo
o seu propôsito iluminista. "O fim dc promover a cmlizacão geral dos Portugucses. difundir por todas as classes o
gostodo belo. e proporcionarmeios de melhoramento aosofíciose artes fabns pela clcgância das formas e seus arte-factos" (...)»: J.-A. FRANQA. opcit. 3â ed.. vol. 1. 1991. p. 219. Ver também. do mcsmoautor. «0 Setembnsmo no
cnsinodasartesedoteatro». inO Liberalismo naPenínsulaIbéricanaprimeirametadedosêcuh A7.V. 2°vol.. 1981.
pp. 197-202.
Fonseca,
enriquecido
pela experiência
de oito anos depermanência
em Roma. 0 neoclassicismo do programa dopalácio
real,
há muito reduzido aos limitespossíveis
da criacão nacional*
, informavaa
todos os niveis o programa do
ensino,
que assim descoloria o esforco do investimento. No Porto a situacão seriaequivalente.
Todavia,
sob o ponto de vista da actividadearquitectônica,
o que maisimporta
destacar,
â data dachegada
deGiuseppe
Cinatti,
é apersistência
da maiscompleta paralisia.
Ascontingência políticas
aque o
país
estevesujeito
desde operiodo
dasInvasôes Francesas atéao eclodirda guerra entreabso-lutistas e liberais, não
poderia
ter favorecido o investimento construtivo. Com asfinan^as
esgotadas,
maugrado
os intentos da desamortizacão, agrande
obra daAjuda paralisou
a um terco do seupro-jecto
original14,
enquanto a necessidade de instalacão dosservi^os
públicos
eraultrapassada pela
adaptacão
das fábricas conventuaisdesocupadas.
Tanto quanto a Academiade Belas Artes, opalácio
das cortes, alma do constitucionalismo, teve de
adaptar-se
ao edificio de S. Bento da Saúde,apôs
algumas
obras de remodelacão. Sô o desenvolvimento da economiacapitalista proporcionaria,
em breve, uma alteracão da situacão, cimentando condicôes básicas ao lancamento da iniciativaprivada,
num contexto em que Cinatti teriajá
umpapel
fundamental adesempenhar.
Intimamente
ligada
â accão doprimeiro
poeta do romantismoportuguês15
esteve areforma do ensi-no das artes dramáticas com a criacão do Conservatôrio Nacional. Tanto quanto as Academias deBelas Artes ou a reforma do ensino básico e secundário e as
primeiras
tentativas de criacão deesco-Ias de ensino
politecnico,
o teatro mereciaplena
atencão, também ele tomado como agente de «civilizacão» e escola de «bom gosto». Desde 1834 acompanhia
francesa trazidapelo
empresário
Emiho Doux, animavao teatro da rua dos Condes. Mas o que o programa setembrista procurava era a revitalizacão do teatroportuguês.
13«Aarteportuguesaaté meados doseculodependeu daquiloque fizeram (eensinaram)asequipas daAjuda
-quepor
seu ladocontinuaram. com nova masjáepigonal dosagem romana, a tradigãoportnguesa bastarda de Seteccntos De Vieira Lusitanoa Pedro AJcxandnno. a Cyrillo, aFuschini c aJoaquim Rafael (...)corre uma linha que se degrada e desactualiza.Na esculturaos continuadores deGiusti ou de Machado de Castro encadeiam-se bem num Joao José de
Aguiar, que nem sempre acusa a vantagemdeter aprendidoem Romacom Canova.»: J.-A. FRANCA, op cit. 3a ed.. vol. l.p. 108.
14
Sobre oproccssodeconstrucâo do palácioda Ajuda. obrados arquitectosFabn eCostae Silva. verJ.-A. FRANCA.
op cit.3aed.,vol.l, 1991. pp. 96-108.
Em 1835, o ministro
Agostinho
José Freire concretizara a criacão do Conservatôrio de Música,en-tãoentregue â direccão de
Domingos
Bomtempo.
0 de Artes Dramáticas teve de esperar porPassosManuel, para nascer em Novembro de 1836. Fora totalmente
arquitectado
por Garrett que assim en-carnavapragmaticamente
opapel
de «educador» danacão16
. A criacão desta academia devotada ãarte da
representacão,
mais inovadora do que o instituto musical que absorveu, a quem sedescobremantecedentes17,
foi,
desdeoprimeiro
momento, parteintegrante
de uma reformaglobal
dagestão
doteatro nacional. Esta
compreendia,
não sô a criacão de umôrgão
de governo a elarelativo, aInspec-cão Geral dos Teatros, que Garrett viria a
dirigir
ate 1841, mas também a fimdacão de um novo es-paco de encenacão que viria a ser o Teatro Nacional de D. MariaII18.
A revolucão teatral eracon-substanciada, ainda,
pela
prôpria producão
de Garrett comodramaturgo
Ao contrário de Almeida Garrett, em quem os Setembristas encontraram um bnlhante colaborador, Alexandre Herculano representou, duranteestes anos, a
oposicão
cartista. Em 1836, exonerou-se docargo
público
que Ihefora confiado, como bibliotecárioresponsável,
em Coimbra,pela
«arrecadacãoda
opulenta
LivTaria de Santa Cruz». Nesse ano veio, também ele, para Lisboa.Aqui publicou já
aprimeira
parte da l'oz doProfeta, opúsculo
«em prosacadenciada,
em pequenosperíodos
imitando alinguagem
biblica, mas modelados sobre os escritos revolucionános de Lamenais, Palavras de um Crenîe{...)>/.
Em 1837 foi-lhe entregue a direccão da revista lancadapela
«Sociedade Promotorade Conhecimentos
Úteis»:
0 Panorama. Nesteperiôdico
semanal de formatoenciclopédico,
Hercu-lano deixou transparecer toda a suaindignacão
perante a abolicão da Carta, escrevendo, nessecon-texto,
alguns
dosartigos
críticos maissignificativos produzidos
naépoca,
bem como as suaspnmei-16
«0intelectual romântico. nalinha de desenvohimentode umaposicão que vinhajádo século XVIII. scntiu-se
par-ticipante deuma "repúblicadas letras" constituida por todosaqueles que. tendoasccndidopor mérito (e nãopor
nas-cimento ounqueza)aopapeldemediadores da verdade.deviamirradiá-la. tendoemvista reformara"alma nacional Por isso todo o intlectual romântico.principalmente na primeira fasedo romantismo. assumiu-se. também.
como um
cducador. e defendeu quc sô uma profunda revolucâo cultural poderia ajudar á construcâo de uma nova sociedadc ( )»• Fernando CATROGA. «Romantismo. literaturaehistôna» inHistôria dePortugal.op cit. vol. 5. 1993. p. 545.
17
O semináno da Patnarcal que William BECKFORD tanto gostava devisitar; cfr. Diario de William Beckford
em
PortugaleEspanha. 3a cd.. 1988.
1S«(
')
outra diligcncia scjogava radicalmente nestas iniciativas nodominio teatral: a edificacão de um vcrdadeiro tcatrodeprosa. equiparável âôpera deS. Carlos. construcão nobre. emcontrastecom ospardieirosexistcntes na Rua dos Condesou da Alegna. ainda resultantes da improvisãodc depois do Terramoto.»; J.-A. FR\NCA. «0 setembns-mo noensinodas artesedoteatro» in op cit.2C vol.. 1981.p. 202.,9ComoseuAuto de GilI'icenie. publicadocm 1838. Garrctt cstabeleciao «pontodcpartidadorenovamento roman-tico» tambémaonível dadramaturgia nacional;J.-A. FRANCAopcit. 2' voL 1974. p. 399.
:;,Teôfilo BR^GA. HistôriadoRomantismo emPortugal. 1880. p. 285. Oautor acresccntaamda: «A chamada
Re\o-lugãodeSetembroproduziuem Herculanoumdesalento moral. epela primeira vc/.dcscreu dos destinos da patrta.estc
cstadosentimental éso oquese acha na Iozdo Profeta e nadamais. Aprosa biblica fcz impressâo sobreos conscn
a-doresCartistas. e o nomede Herculanorepetia-se: veioentãopara Lisboaem fins de 1836».
rasnovelas
histôricas21
. Nostextospublicados
em0Panorama, TeôfiloBraga
descobre os alicerces
do «extraordinário
poder
espiritual
que exerceu inconscientemente sobre a nacão portuguesa»"
Pode talvez considerar-se que. se accão
política
de Garrett nos aponta o lado mais fecundo das op-côes tomadas noquadro
político
dos anos imediatos ao fim da guerracivil,
Herculanorevela-nos,
pelo
contrário,
o seu lado mais obscuro. Aquestão
patrimonial
justificava plenamente
as suas diatri-bes. A extincão das ordensreligiosas
em 1834. por decreto assinado ainda por D. PedroIV,
nocontexto
geral
dadesamortizacão,
condenara osbens nacionais åscontingências
da venda em hastapública,
oupior,
do saque e das mutilacôes. Contra «oespírito
destruidor destageracão
que oravi-ve», Herculano, com
eloquência profética,
a quejá
recorreraantes, lancou, em 1838, o seu brado «afavor dos monumentosda
histária,
da arte e daglôria
nacional que todos os dias vemos desabar emruínas))23
. Comgénio
decria<?ão literária,
denunciou os efeitos devastadores dasaccôes vandálicas
do seu tempo sobre a heranca monumental das
épocas passadas, apelando
â suasalvaguarda.
Nisso acultura romântica portuguesa deve-lhe um esforco
pioneiro24
, aoqual,
em breve, se aliaria AlmeidaGarrett25
. Aopercorrer o
país
motivadopela
recolha esalvaguarda
das tradicôes do cancioneiropo-pular,
em 1843, o poetaescreveu um relato da suaviagem, já
isento dooptimismo
que pautara a suaaccão no final dos anos 30. Num contexto de crítica â sociedade
burguesa,
Garrett denunciaria os atentados lesapatrimônio
que anotara no percurso que o conduzira aovale de Santarém .Avalorizacão
patrimonial
de Herculano esteve, evidentemente, muito distante do interesse decolec-cionismo e
antiquariato
detectável apartir
de finais do século XVIII, naturalmente afecto aopatn-mônio
môvel27
. Mas não sô. Nos seustextos de 1837 e 1838 sobressai a consciênciacontemporânea
:1
Em 1838publica O CasteîodeFariae. no anoimediato. ofamoso conto.lAbobada.
22
In Idem. p. 287.
:3
Alexandre HERCULANO. «Monumcntos(I)»inO Panorama. - N. 69
(1838). Asequência delextos publicadospor
Herculano nesta revista sobre a questão do patnmônio foram mais tarde reunidos. como é do domínio comum. nos
Opúsculoscomotítulogenérico«MonumentosPátrios». 24
VerDa\id Mourão FERREIRA. Alexandre Herculanoe avalorizagãodopatnmônioculturaîportuguês. 1977. 25
Para além daaccâo dos dois nomesmaiores da culturaromanticaportuguesa é forcoso citara accaodehomenscomo o Cardeal Saraiva e o prôprio rei D. Fernando II. Saliente-seporém o trabalho ptoneiro de Luís Mouzinho de Albu-querque responsável. no mosteiro da Batalha. pela primeira íntervcncão de restauro monumental no país de acordo comcritérios precocemente sustentados pela preocupacão «científica» de reintegra^ãodo edificio na unidade do seu estilo original. imciada em 1840; ver Luis Mouzinho deALBUQUERQUE. MemôriaInéditaacerca doedificio
mo-numentaldaBatalha. 1854.
:60 romance l'iagensnaminha terrafoi originalmente publicadona Revista í'niversal Lisbonense. dirigida por An-tônioFclicianode Castilho. entreAgosto e Dezembrode 1843. A continuidade daedicão foi entãoquebrada. voltando a retomar-sejá em Junho 1845. prosseguindoentâoaté Dezembrode 1846.
:
da
importância
dapreservacão
dos monumentosarquitectônicos
enquanto testemunhos capazes deiluminar, na sua essência cultural e estética, o devir histôrico da nacão. Este conceito de «monumento/documento», investia o
paîrimônio
construído de umaqualidade
instrutiva, em moldesque
exigiam
a sua reabilitacão no âmbito doprimado
civilizador assumidopelo
Liberalismo,fortale-cendo consequentemente a nocão de
responsabilidade
civil na sua conserva^ão"'Ao
conjunto
destes ideais Herculano aliava o fervor nacionalista da sua sensibilidade romântica, que o induziuigualmente
a batalhar contra o«preconceito
de queem arte sô o grego e o romano é belo».Assim o afirmava num
artigo
significativamente
intitulado «AArquitectura
Gôtica» no númeroinau-gural
de 0 Panorama Alexandre Herculano, «medievalista por voca^ão romântica e poropcão
ideolôgica»29,
demonstra ai, tal como anunciara em 1835, a ruptura consumada com o fundamentoda estética clássica, ou
seja,
da arte como imitacão da natureza.Repudia
a mimesis aristotelica a fa-vor de um idealismo herdado de Platão,enriquecido
comleituras de Kant e dos filôsofos doprimeiro
romantismo
alemão30
. Nos textos de Schiller, Mme. Staél e, sobretudo, napoesia
deKlopstock,
Herculano bebe a ideia da essência
religiosa
da arte que, em 1837.transpareceria
no texto onde alertava para o facto de «em o nossopaís
os monumentos do estilogôtico
terem sido assazdespre-zados, e até abarbaridade e
ignorância
lhes tem feito uma guerra cruel».Sem as hesitacôes de Garrett, inicialmente solidário com os
princípios
estéticos do classicismo, ,Herculano
empenhava-se
também no combatepela
renovacão moral da sociedade portuguesa. Talcomo Lamartine defendera em Franca, acreditou que nosfundamentos do cristianismo sedescobriam
sôlidos valores morais
adaptados
ao contextosociolôgico gerado pela
derrota definitiva doabsolu-tismo. Na arte
gôtica
redescobriu a pureza daespiritualidade
cristã, que valorizou,contrapondo-a
å:í<
Cfr. Jorge CUSTÔDIO. «De Alexandre Herculano á Cartade Veneza»inDarFuturoaoPassado. 1993. p 41 :9J.-A. FRANQA. «Aarte medieval portuguesa na visãodc Herculano» inAlexandre Herculano á luz donosso
tem-po: ciclo deconferências. 1977, p. 49.
3U
Alexandre HERCULANO. «Poesia: Imita?ão-Beio-Unidade» inOpúscuhs. vol. 5. 1982;tcxto original publicado no
Porto in Repositôrio Literário (1835). Há que fazcr algumas reservas quanto ao aicance das referências alemãs de Herculano(como para Garrctt). Apesardos esforcos. J.-A. FRANCAalerta-nos parao facto de quedifícilmentc pcne-travam o «caosdoSturm undDrang»: inop cit. 1°vol.. 1974. p.207.
31
Assinale-se queoprimeiro poema deGarrett foi consagrado a Catão. oherôi romano. Comosintetiza J.-A.
FRAN-CA «A visão de Herculano da arte medieval portuguesa integra-se na histôria da mentalidade romântica nacional
-ou. mclhor. venfica. ístoé controlaetorna\erdadciracssa mentalidadc Aquiloquenos seuscompanhenosdegerasão podia ser moda ímportada. ouadoptadacomonova pclc(...). ou queno espíntodeles podia revelar hesita^ôes. cm
so-breposicôesculturais(e éo casodeGarren. ora prefcrindoa arte neoclássicaoraa romãntica, entre 1821 e 1845, pclo mcnos). nasua prôpna mentalidadeera umdadoadquindo c fundamental.jamais postoem discussão ou reconsidera-do»; in «Arte medieval portuguesa navisão de Herculano» im op cit. 1977, p. 49.
racionalidade
prôpria
daideologia
neoclássica. Nessesentido,
destacou nas suas formasarquitectô-nicas
«(...)
as torreserguidas
noscampanários,
cujos
cimospiramidais pareciam
apontar para o céu-as colunas
delgadas
e subindo aprodigiosa
altura, semelhantes ao pensamento que se ergue até aotrono do Senhor
(...).»''2
.Para Herculano também nestas estruturas se revelava o
«génio»
nacional,
â maneira dovolksgeist
hegeliano,
anterior åcorrupcão
e decadência trazidaspelo
clericalismo epela Inquisicâo joaninos.
Assim o haveria de traduzirno conto degrande
sucesso escrito em 1839-A Abôbada. Na evidência
de que sô um
arquitecto português
(Afonso
Domingues)
poderia
acabar uma obra que era ummo-numento ã
prôpria
nacionalidade^, sepode
entroncar, como bem viuJosé-Augusto
Franca, odesfa-vor de Herculano em relacão â entrega,
já
no início dos anos 40, da obra do Teatro Nacional de D.Maria II aFortunato
Lodi,
italiano, comoCinatti^4
.Enquanto
no dominio das letras e do pensamento, o romantismo, sentido como triunfo da liberdadede
espírito
e, sobretudo, depotenciamento
de um sentimentonacionaF5
,ganhava
terreno, no campo da criacãoartística,
tal como a nova Academia o acarinhava,prolongava-se
oespirito
neoclássico daAjuda.
O ambiente decria^ão
artistica lisboeta era, nesse sentido, tãoambíguo
quantoaquele
que,em
Milão,
condicionara aformagão
deGuiseppe
Cinatti,
embora por razôes bem distintas das que sepodiam
detectar nacapital
lisboeta.A coexistência de duas ordens de pensamento, que desde finais do século XVIII
opunham,
dialecti-camente, o
primado
clássico åpoética
romântica, abriu o caminho a uma guerra deteôricos,
partidá-rios do
gôtico
versus defensores da heranca greco-romana, que teve o seu expoente em Franca entre1844 e 1846. Nunca estas dissencôes parecem ter
perturbado
o pacatoempirismo
do meio artístico nacional. Oprojecto
neoclássico de Lodi para o Teatro de D. Maria II não foi sentido como umaa-fronta ao gosto
pitoresco
da Penapromovido
por D. Fernando II, que o antecedealguns
anos. Ascriticas ferozes desferidas contra o edifício monumental do Rossio estavam
longe
de terqualquer
fundamento estético, sendo,
pelo
contrário,
bastantesignificativo
que aprimeira
grande
obrapública
•:
AJexandreHERCULANO. «A Arquitectura G6tica»in OPanorama.
-N.l (Maio 1837).
' '
AMosteirode Santa Mana daVitôria foi fundadopor D. João I nascquênciadavitôriadeAljubarrota.
4
Para oaprofundamcntoda questâoverJ.-A. FRANCA.«Arte medievalportuguesa navisãode Herculano» inop cit. 1977.
«Maisdo que um licão cívicaecristã.o romantismo português prctendia(...)dar uma licão denacionalismo»: J.-A.