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Democracia cultural: cultura, sociedade e política no Brasil contemporâneo

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Academic year: 2021

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Escola de Sociologia e Políticas Públicas

Democracia cultural

Cultura, sociedade e política no Brasil contemporâneo

Laara Aiqueça Carneiro Hügel

Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de

Mestre em Empreendedorismo e Estudos da Cultura

Orientadora:

Doutora Maria João Vaz, Professora Auxiliar ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

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Escola de Sociologia e Políticas Públicas

Democracia cultural

Cultura, sociedade e política no Brasil contemporâneo

Laara Aiqueça Carneiro Hügel

Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de

Mestre em Empreendedorismo e Estudos da Cultura

Orientadora:

Doutora Maria João Vaz, Professora Auxiliar ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe, aos meus avós e aos meus irmãos, por tudo e mais alguma coisa; ao meu amor alado pelo carinho e paciência; ao Quindim por estarem sempre por aí, mesmo espalhados cá e lá; ao Rio e ao Brasil, cantões preferidos que me orgulham da cultura que traduzem; à Lisboa, ao que a cidade me apresentou e às pessoas que me trouxe; à EAV Parque Lage, à arte e aos parceiros que me presenteou; à UFRJ e professores que me incentivaram no processo; ao ISCTE e à minha orientadora Maria João Vaz pelo interesse em me ajudar a pesquisar as tristes transformações que por aí vem.

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RESUMO

O estudo realizado no âmbito da dissertação de mestrado em Empreendedorismo e Estudos da Cultura centra-se na exploração do conceito de democracia cultural nas políticas públicas brasileiras dando especial atenção às transformações no campo político que se sucederam ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff em maio de 2016. O trabalho será desenvolvido à luz de discussões recorrentes nos estudos sobre a cultura – tal como a desconstrução da tríade hierárquica cultura de elite, cultura de massas e cultura popular – e das contribuições que o antropólogo argentino Néstor García Canclini traz em Culturas Híbridas – estrategias para entrar y salir de la modernidad (1989). Já o paradigma da democracia cultural trará como princípio a distinção introduzida por Grosjean e Ingberg (1980) entre políticas que têm como base a animação sociocultural e outras, a que chamam paternalistas, que se fundamentam na difusão cultural. A discussão será alargada e ponderada a partir de João Teixeira Lopes (2007) e o que chama de políticas culturais de terceira geração. Após amplo enquadramento teórico, o trabalho analisará as políticas públicas brasileiras para cultura, com foco no período entre 2003 e 2016, para então se dedicar à nova fase política brasileira e as implicações que esta imporá à cena cultural do País. Para tanto, o estudo analisará as repercussões do impeachment de Rousseff na sociedade civil ligada ao setor cultural, em especial a partir do movimento Ocupa MinC; as diretrizes e propostas do novo Ministério; e a correlação entre cidadania e inclusão cultural no Brasil contemporâneo.

Palavras-chave: políticas públicas culturais; democracia cultural; Brasil; impeachment; Ocupa MinC; cidadania.

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ABSTRACT

The study carried out within the scope of this master's thesis on Entrepreneurship and Culture Studies focuses on the exploration of the concept of cultural democracy in Brazilian public policies, paying special attention to the transformations in the political field that followed the removal of President Dilma Rousseff in May, 2016. The work will be developed in the light of recurrent discussions in studies on culture - such as the deconstruction of the hierarchical triad elite culture, mass culture and popular culture - and the contributions that the Argentine anthropologist Néstor García Canclini brings in Hybrid Cultures - strategies for entering and leaving modernity (1989). On the other hand, the cultural democracy paradigm will bring the distinction introduced by Grosjean and Ingberg (1974; 1980) between policies based on sociocultural animation and others, which they call “paternalistic,” which are based on cultural diffusion. The discussion will be broadened and pondered from João Teixeira Lopes (2007) and what he calls “third generation cultural policies.” After a broad theoretical framework, this thesis will analyze the Brazilian public policies for culture, focusing on the period between 2003 and 2016, to then dedicate itself to the subsequent state of affairs in Brazilian politics and its implications in the cultural landscape of the Country. For this purpose, this thesis will analyze the repercussions of Rousseff's impeachment on civil society linked to the cultural sector, especially from the Ocupa MinC movement; the guidelines and proposals of the new Ministry; and the correlation between citizenship and cultural inclusion in contemporary Brazil. Keywords: cultural public policies; cultural democracy; Brazil; impeachment; Ocupa MinC; citizenship.

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SUMÁRIO

1. Introdução...01

1.1. Problemática e objetivos...01

1.2. Fundamentos e motivações...03

1.3. Etapas de pesquisa e metodologia...03

1.4. Estrutura e revisão de literatura...06

2. Culturas e políticas...09

2.1. Debates acerca da cultura...09

2.2. Da democratização à democracia cultural...15

2.3. Culturas híbridas: políticas culturais e a realidade sul-americana...20

3. Brasil: quais políticas públicas para a cultura...25

3.1. Ausências, autoritarismo e descontinuidade...25

3.2. Cultura é um bom negócio: a vez do neoliberalismo...30

3.3. A democracia chega à cultura...35

3.4. Histórias de vida e políticas culturais...46

4. Política, sociedade e cultura no Brasil contemporâneo...51

4.1. Os setores da cultura, ruptura e transformações político-sociais...51

4.2. O fim do Ministério da Cultura...57

4.3. O retorno do Ministério da Cultura e o movimento Ocupa MinC...63

4.4. Ocupa MinC Rio de Janeiro: a ocupação como performance...68

4.5. Marcelo Calero e Roberto Freire: um novo velho MinC...78

5. Considerações finais e breve análise prospectiva...85

6. Referências bibliográficas e fontes...95

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS DEM – Democratas

FUNARTE – Fundação Nacional das Artes FNC – Fundo Nacional de Cultura

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ISA – Instituto Socioambiental

IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional MinC – Ministério da Cultura do Brasil

MMIRJDH – Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos

ODC – Observatório da Diversidade Cultural PCdoB – Partido Comunista do Brasil

PFL – Partido Social Democrata PL – Proposta de Lei

PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNC – Plano Nacional de Cultura

PNCV – Política Nacional de Cultura Viva PPS – Partido Popular Socialista

PSC – Partido Social Cristão PSD – Partido da Frente Liberal

PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira PT – Partido dos Trabalhadores

SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional SNC – Sistema Nacional de Cultura

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“(...) están surgiendo otras formas de subjetividad a cargo de nuevos actores sociales (o no tan nuevos), que ya no son exclusivamente blancos, occidentales y varones”.

Canclini (1989), Culturas Hibridas – estrategias para entrar y salir de la modernidad, p. 313

“(...) no Brasil, uma política cultural torna-se inseparável da invenção de uma cultura política nova”.

Chauí (1995), Cultura política e política cultural, p. 80

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1. INTRODUÇÃO

1.1. Problemática e objetivos

O estudo elaborado para a conclusão do mestrado em Empreendedorismo e Estudos da Cultura visa responder à questão axial: qual o lugar de políticas públicas para a cultura baseadas no conceito de democracia cultural no contexto brasileiro e quais as transformações, dentro desse escopo, que decorreram da rutura macropolítica protagonizada pelo afastamento da então presidenta Dilma Rousseff em maio de 2016?. Tal tipologia de política pública será privilegiada na abordagem aqui realizada tendo em vista a resposta que apresenta às necessidades históricas, sociais e políticas intrínsecas à realidade brasileira, como se verá no decorrer do trabalho.

A pergunta de partida acima exposta reúne em si diversas questões as quais se pretende abordar no presente estudo. A primeira delas, de cariz teórico, visa explicar qual a conceitualização de cultura que melhor se aplica às políticas de democracia cultural, bem como analisar discussões recorrentes nos estudos culturais acerca da compartimentalização e hierarquização da cultura em popular, de massa e erudita. A segunda pretende, para além de descrever as políticas públicas brasileiras ao longo de sua história e identificar, quando presente, elementos correspondentes ao conceito trabalhado, apresentar quais são os impactos desse tipo de política na sociedade brasileira.

Por fim, ao analisar o período contemporâneo da política brasileira, nos deparamos com algumas questões a serem respondidas: que relação têm os acontecimentos da macropolítica brasileira com as políticas públicas estritamente culturais, ou seja, aquelas de responsabilidade dos órgãos executivos designados para responder às demandas nomeadamente culturais? Existe relação causal entre as decisões políticas tomadas no âmbito da cultura pelo novo governo e o posicionamento político da sociedade civil ligada à cultura em relação ao impeachment de Rousseff? Como a pauta de reivindicações do movimento social Ocupa MinC dialoga com o conceito de democracia cultural e esse, por sua vez, com as demais políticas públicas brasileiras?

As derradeiras questões abordadas pelo trabalho se desenvolverão, portanto, entorno das seguintes áreas temáticas: políticas públicas da cultura e manifestações sociais de cunho político-cultural, inseridas no contexto temático da macropolítica brasileira. Por políticas públicas entenderemos, sob a perspectiva de Celina Souza que recorre a B. G. Peters (Souza, 2006), “a soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou através de delegação, e que influenciam a vida dos cidadãos” (p. 24). No caso de políticas públicas da cultura, mantemos a mesma definição, ao entendermos que todos, de forma mais ou menos direta, são

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impactados pelas políticas públicas culturais: profissionais e públicos da cultura, em maior medida, mas também a sociedade civil como um todo. Por manifestações sociais entender-se-á “ações sociopolíticas contruídas por atores coletivos de diferentes classes sociais, numa conjuntura específica de relações de força na sociedade civil” (Gohn, 1997: 251). No caso aqui apresentado, trata-se ainda de um movimento organizado e protagonizado por profissionais e cidadãos ligados aos diversos setores culturais, que dispõem de instrumentos particulares às manifestações sociais, mas também ao campo artístico (como concertos, performances, crônicas, etc.). Por fim, ambas as áreas temáticas enquadrar-se-ão dentro do contexto macropolítico1 brasileiro contemporâneo, cujo recorte cronológico será melhor apresentado no decorrer da introdução.

Tendo como objetivo primário responder à pergunta axial anteriormente exposta, apresento a seguir os objetivos secundários a serem extraídos da fase de pesquisa do trabalho. São eles: contextualizar historicamente as políticas públicas culturais brasileiras; descrever e analisar as políticas públicas culturais implementadas entre 2003 e 2016 – período inaugurado pelo Ministério da Cultura de Gilberto Gil e encerrado no Ministério de Juca Ferreira; analisar o lugar da democracia cultural no histórico apresentado em contraposição aos paradigmas da democratização da cultura e das políticas públicas carismáticas; analisar se as políticas públicas implementadas entre 2003 e 2016 tiveram algum impacto na politização da sociedade civil envolvida na cena cultural brasileira e qual a influência de tal processo de conscientização nas manifestações político-culturais relacionadas ao fim do MinC; analisar o posicionamento dos setores da cultura em relação ao impeachment de Rousseff; acompanhar e descrever as transformações ocorridas nas políticas públicas para a cultura após o afastamento e, em seguida, deposição de Dilma Rousseff, no período que compreende maio e dezembro de 2016; e, por fim, analisar a resposta da sociedade civil a tais transformações a partir do estudo de caso do movimento artístico-social Ocupa MinC.

Em suma, o trabalho visa relacionar os conceitos discutidos, o histórico de políticas públicas culturais no Brasil e as orientações políticas do novo governo frente a sociedade civil organizada.

1 “Fenômeno político superior, bem como o respectivo reflexo no Estado-Aparelho de poder, aquilo que os

anglo-saxônicos qualificam como government, isto é, o conjunto das instituições públicas”. Disponível em: <http://www.iscsp.ulisboa.pt/~cepp/procura_da_ciencia_politica/56_a_macropolitica.htm>. Acesso em 15 mar. 2017.

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1.2. Fundamentos e motivações

O tema abordado, bem como as questões de investigação expostas, surge a partir da necessidade de estudar e compreender o contexto político brasileiro que vem se transformando profundamente em um curto espaço de tempo à luz dos impactos dessas transformações no apoio à cultura (em seu sentido alargado, como veremos mais a frente), a seus públicos e a profissionais da área. Nesse sentido, a repercussão do fim do Ministério da Cultura logo após afastamento de Dilma Rousseff2 e o desencadeamento da série de manifestações político-culturais do movimento Ocupa MinC tornaram ainda mais relevantes o estudo e análise do processo político contemporâneo brasileiro no âmbito dos setores da cultura e das políticas públicas culturais.

A gravidade da situação política brasileira faz ainda urgente que se investigue, analise e discuta academicamente os processos reflexivos, protagonizados pelo governo vigente e pela sociedade civil ligada à cultura, que estão acontecendo, de forma a observar o que os atores sociais estudados denunciam como retrocessos sociais em curso (apresentados na última sessão do trabalho) e averiguar, a partir de pesquisa acadêmica intensiva, os impactos desse processo nas políticas culturais públicas e, por sua vez, o efeito destas na cena cultural brasileira.

Por se tratar de um processo deveras recente, o trabalho possui ainda, em termos de relevância, a vantagem de ser pioneiro. Vantagem essa que se revela desvantagem em termos de suporte bibliográfico, uma vez que o estado da arte da literatura acadêmica ainda é inexistente acerca dos processos políticos, sociais e culturais desencadeados após as transformações políticas de 2016, o que deverá ser suprido pela pesquisa intensiva a ser apresentada na próxima sessão.

1.3. Etapas de pesquisa e metodologia

O desenho da pesquisa realizada para o presente trabalho, bem como o suporte metodológico para realização das fases de investigação tiveram como base o Manual de Investigação em Ciências Sociais, de Raymond Quivy e Luc Van Campenhoudt (1992); os livros Social Research Methods de Alan Bryman (2012 [2001]); Como perguntar?, de William Foddy (1999); O Inquérito – Teoria e Prática, de Rodolphe Ghiglione e Benjamim Matalon (1997); e Histórias de Vida – Teoria e Prática, de Jean Poirier, Simone Clapier-Valladon e Paul Raybaut (1995).

2 Após pressão popular dos setores culturais o Ministério da Cultura voltou a fazer parte do corpo institucional do

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A partir das sete etapas de pesquisa em ciências sociais de Quivy e Campenhout (1992), um primeiro esboço do trabalho foi construído: formulação da pergunta de partida; exploração realizada através de revisão bibliográfica; elaboração da problemática apresentada na primeira sessão do trabalho; construção do modelo de análise, a ser abordado a seguir; recolha e observação de dados primários e secundários; análise dos dados; e elaboração das conclusões finais na escrita da dissertação. A pergunta de partida, posteriormente desenvolvida na problemática apresentada após revisão bibliográfica, indaga acerca do lugar da democracia cultural nas políticas públicas brasileiras de cultura e o destino do conceito na práxis cultural do País após o impeachment de Rousseff em 2016.

Já a construção do modelo de análise, fundamentada em Bryman (2012 [2001]), foi dividida em duas etapas. A primeira, referente ao papel da democracia cultural no histórico das políticas públicas brasileiras, foi desenvolvida através do modelo hipotético-dedutivo. Após revisão bibliográfica, a hipótese levantada pelo trabalho é de que um conjunto de políticas voltadas para a democracia cultural foi inaugurado somente em 2003 com o Ministério de Gilberto Gil e que, levando em consideração a grande diversidade cultural presente no País, bem como a acentuada desigualdade regional em termos socioeconômicos e o histórico de carência de inclusão da sociedade civil nas decisões do Estado, tais políticas representaram um significativo avanço democrático para o setor. A fim de confirmar ou refutar tal hipótese, uma detalhada análise de dados diversos (como estatísticas sobre os programas de governo e pesquisas encomendadas pelo Estado acerca do funcionamento da gestão cultural nos municípios brasileiros) e documentos (textos legislativos, diretrizes programáticas de governo, discursos, entre outros) foi realizada.

Foram aplicadas três entrevistas semiestruturadas (Ghiglione e Matalon, 1997; Poirier, Clapier-Valladon e Raybaut, 1995) através da técnica da história oral a fim de ilustrar a discussão realizada nas análises de dados. Os três entrevistados, tratados de forma anônima na dissertação (a quem chamaremos A, B e C), oriundos de diferentes estados brasileiros e com distintas trajetórias de vida, não podem ser tomados como única referência para o estudo, uma vez que as respostas não chegam ao chamado ponto de saturação teórica (Fontanella et al, 2011) que requer o apuramento científico nas ciências sociais, assim como não são representativos dos mais de 200 milhões de brasileiros e suas diferentes relações com a cultura, mas introduzem ao tema aspetos relevantes para pensar criticamente as políticas públicas implementadas nos últimos aproximados trinta anos.

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Por outro lado, para responder às questões que permeiam a nova fase política brasileira – as mudanças nas políticas públicas culturais após o impeachment; as relações dos setores da cultura com o momento macropolítico brasileiro; as respostas da sociedade civil às mudanças no Ministério da Cultura; e o novo lugar da democracia cultural no País – foi empregado o modelo de análise hipotético-indutivo. De cariz mais descritivo, o modelo indica que as hipóteses sejam formuladas após recolha, observação e análise dos dados. Por se tratar de período demasiado recente da história do País, apresenta-se mais indicado para uma análise a mais neutra possível do processo3.

Baseado na análise de acontecimentos contemporâneos, em certos momentos concorrentes à pesquisa, dados extraídos de três principais fontes foram analisados: documentos oficiais do Governo (textos deliberativos, legislativos, etc.); materiais produzidos pelos media (convencionais e independentes); e conteúdos virtuais disponibilizados em redes sociais (produzidos tanto pelo movimento Ocupa MinC em sua página oficial no Facebook quanto por políticos que tenham emitido pareceres relacionados à situação da cultura no País através também do Facebook e de tweets).

A fim de analisar mais de perto a interação entre os setores da cultura que fazem parte da sociedade civil e os acontecimentos políticos a eles relacionados, o trabalho seguiu o desenho de estudo de caso para trabalhar tal em da investigação. A escolha do movimento Ocupa MinC para tal pode ser enquadrada no que Bryman (2012 [2001]) chama de “unique case”, o que não significa a não existência de outros, mas sua proeminência no assunto estudado, dada a centralidade e repercussão mediática e política que o movimento suscitou no País.

Para além das fontes anteriormente citadas, o estudo do movimento Ocupa MinC realizou-se também através de entrevistas semiestruturadas dirigidas a quatro integrantes do grupo, também aqui mantidos em anonimato, a quem chamaremos OMA, OMB, OMC e OMD. Apesar de se tratar de um movimento com repercussão e difusão nacional (todos os estados brasileiros chegaram a apresentar uma ocupação sob a mesma denominação), o mesmo teve seu

3 Marco Schneider (2013), em Ética e epistemologia: alerta contra a “neutralidade axiológica” na pesquisa em

comunicação contemporânea alerta que é preciso ter consciência e vigilância em relação à neutralidade

metodológica, tanto quanto a que se tem com a neutralidade axiológica, sendo ambas, em estado puro, impraticáveis. Segundo o autor, “sabemos que as matrizes teóricas e epistemológicas das quais se desdobram os métodos e técnicas de pesquisa possuem uma relação mais ou menos íntima, ainda que nem sempre declarada, com posicionamentos éticos e, no fim das contas, políticos, os quais, por sua vez, derivam, por um lado, de uma ou outra concepção do ser, do real, isto é, de uma ontologia, e, por outro, das condições de trabalho do pesquisador” (p. 222). Refutamos aqui, portanto, a crença em estudos e suas respetivas metodologias de pesquisa completamente neutras, tal como advogado pela corrente positivista das ciências sociais (Bryman, 2012 [2001]). Por se tratar de um tema que envolve um momento político controverso para o Brasil, o cuidado com as escolhas metodológicas apresentam-se, entretanto, primordiais para um bom resultado de trabalho.

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início no município do Rio de Janeiro, local onde se realizaram as entrevistas. O pouco tempo disponível na cidade somou-se às dificuldades inerentes à realização de entrevistas4. Foi, entretanto, o suficiente para compreender os principais aspetos do grupo, uma vez que nesse caso aproximou-se da já citada saturação teórica. Das quatro entrevistas realizadas, três foram aplicadas aos idealizadores e articuladores da primeira ocupação, de forma que os princípios do movimento estão deveras explícitos nos depoimentos gravados.

Vale ressaltar que em ambos os modelos de análise predominou a abordagem qualitativa de recolha e análise de dados. Tendo em vista o próprio conceito de democracia cultural (a ser desenvolvido no primeiro capítulo), a necessidade de uma análise do político, do social e do cultural vão ao encontro da característica epistemológica que Bryman (2012 [2001]) atribui à pesquisa qualitativa: “the stress is on the understanding of the social world through em examination of the interpretation of that world by its participants” (p. 380).

1.4. Estrutura e revisão de literatura

A dissertação encontra-se dividida em três capítulos, sendo o primeiro composto por discussões conceituais acerca da cultura, das políticas públicas e da sociedade moderna latino-americana; o segundo, que aborda o histórico das políticas públicas brasileiras e, de forma mais profunda, o período que compreende 2003 a 2016, correspondente à permanência do Partido dos Trabalhadores à frente da Presidência da República; e, por último, o terceiro capítulo, que trata das transformações políticas desencadeadas pelo impeachment de Rousseff em 2016 e a resposta dos setores da cultura a tais transformações.

A fim de discutir sobre políticas públicas culturais, faz-se necessário discorrer primeiro a respeito do conceito de cultura e seus públicos, o qual abordaremos a partir da dimensão antropológica descrita – por exemplo – pela pesquisadora brasileira Isaura Botelho (2001) e do artigo O que é o público?, da antropóloga mexicana Ana Rosas Mantecón (2009), respetivamente. Ainda sobre o assunto, um breve histórico das teorias culturais será reconstituído a partir de autores como Denys Cuche e Roque de Barros Laraia (2001 [1986]) para posteriormente apresentar (e em seguida refutar) a compartimentalização e hierarquização da cultura – em erudita, de massa e popular. Autores como Maria Lourdes Lima dos Santos (1988); Peter Burke (1997; 2008), acerca da cultura popular; e Umberto Eco (2015 [1964]), voltado para a cultura de massas, bem como a contestação de alguns elementos da Escola de

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Frankfurt que se fazem presentes na Dialética do esclarecimento – fragmentos filosóficos (Horkheimer e Adorno, 1985 [1947]), também serão importantes nesta sessão.

Acerca das políticas públicas para cultura e do conceito central para o trabalho, temos como base o livro Da democratização à democracia cultural: uma reflexão sobre políticas culturais e espaço público (2007) do sociólogo português João Teixeira Lopes, para além de Maria Lourdes Lima dos Santos (org., 2010), Marilena Chauí (1995), entre outras. O conceito de democracia cultural foi ainda resgatado da distinção introduzida por Grosjean e Ingberg (1980) entre políticas que têm como base a animação sociocultural e outras, a que chamam paternalistas, que se fundamentam na difusão cultural.

Por fim, destacar-se-á a teoria das culturas híbridas (1989), do antropólogo argentino Néstor García Canclini, que vem ao encontro das abordagens anteriores e contextualiza a realidade – e a modernidade – social, política e econômica latino-americana, a qual usaremos como prisma analítico para o Brasil.

Já no segundo capítulo do trabalho, encontramos nos pesquisadores Lia Calabre (2014; 2015), Maria Amélia Corá (2014), Antonio Albino Canelas Rubim (2007; 2013), Alexandre Barbalho (2015), e novamente Botelho (2011), entre outros, uma consistente sistematização e caracterização das políticas públicas brasileiras ao longo da história. Em Breve panorama da literatura sobre políticas culturais públicas no Brasil (Bezerra e Guerra, 2012) foram identificadas diferentes dimensões a serem analisadas nas políticas culturais dos diversos períodos políticos brasileiros, a saber: perspetiva oficial – isto é, do governo – sobre o que é cultura e seus públicos; a qual grupo sociocultural as políticas públicas são dirigidas; qual ideologia por trás de tais políticas e suas nuances – liberal, autoritária, populista, neoliberal e/ ou neodesenvolvimentista; se atentas primordialmente à difusão ou à produção cultural; e quais objetivos dessas políticas – se promoção da diversidade cultural, da inclusão, da relação entre cultura e identidades, da regeneração geográfica e da qualidade de vida da população ou da relação cultura e imagem nacional (Reis, 2007; Bezerra e Guerra, 2012).

Nessa segunda sessão, a discussão bibliográfica será complementada pelas análises de dados e das entrevistas anteriormente descritas.

Já o último capítulo do trabalho pouco pôde usufruir da literatura acadêmica, visto que apresenta objetos de investigação demasiado recentes – transformações nas políticas públicas culturais frente ao processo de impeachment da então presidenta que se inicia em 12 de maio de 2016 e culmina com seu afastamento definitivo em 31 de agosto de 2016; a resposta dada

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pela sociedade civil ligada à cultura a tais processos políticos; e a transformação em outros campos da política que dialogam com o conceito de democracia cultural. Uma pesquisa qualitativa, tal como já descrita deverá suprir a referida lacuna.

Um último destaque é dado à publicação Conceptualizing culture in social movement research, editado por Britta Baumgarten, Priska Daphi e Peter Ullrich (2014), cujos artigos apresentam algumas das dimensões utilizadas para formatar a grelha de entrevistas dirigida aos integrantes do Movimento Ocupa MinC e para analisar o mesmo (a partir das entrevistas a seus articuladores e dos demais dados de investigação citados). São essas dimensões: o contexto nacional; a criação interna de práticas comuns (estratégias para alcançar determinados objetivos, técnicas de decisão, etc.); o diálogo – ou conflito – entre diferentes visões de mundo dentro do movimento; o espaço de atuação como simbolismo; o caráter psicológico da atuação na ocupação; a utilização da performance (artística ou não) dentro do movimento; e os resultados alcançados pelo grupo.

Não havendo, novamente, literatura que relacione o conceito de democracia cultural e os novos processos políticos do País – como acontece em Lacerda (2010; 2013) que associa o programa Cultura Viva (Brasil, 2004) ao conceito, algumas considerações serão, portanto, elaboradas exclusivamente a partir da pesquisa anteriormente referida.

Apresenta-se, assim, o desenho percorrido durante a investigação, cujas apreciações encontram-se expostas nos capítulos que seguem e algumas possíveis conclusões, na derradeira sessão.

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2. CULTURAS E POLÍTICAS

A fim de desenvolver o quadro teórico utilizado como base para o presente trabalho, faremos a seguir uma breve contextualização do termo cultura – e seus públicos – numa perspetiva diacrônica, tendo em vista apresentar a dimensão que conceitualmente mais se aproxima da proposta de política pública que, como será demonstrado, melhor se adequa ao cenário brasileiro. Em seguida, descrever-se-á o conceito de democracia cultural, as diferenças que assume de políticas de democratização da cultura ou de cunho carismático, apresentando também um breve histórico das políticas públicas culturais ocidentais. Por fim, Néstor García Canclini nos apresenta em seu livro Culturas híbridas – estrategías para entrar y salir de la modernidade (1989) interessantes contribuições para pensar política, cultura e sociedade em um Brasil latino-americano.

2.1. Debates acerca da cultura

De forma a não estender demasiado a descrição conceitual de cultura, dois principais debates serão abordados: a partir de Denys Cuche (1999), o debate franco-alemão sobre cultura (ou civilização); e o desenvolvimento desse debate pela antropologia, onde sumariamente serão apresentadas as teorias de Franz Boas (1896), Clifford Geertz (1966; 1978) e Fredrik Barth (1998 [1969]) – os dois primeiros a partir do livro Cultura: um conceito antropológico, de Roque de Barros Laraia (2001 [1986]). Já as dimensões antropológicas ou sociológicas da cultura e sua relação com a elaboração de políticas públicas fica a cargo da pesquisadora brasileira Isaura Botelho (2001). Peter Burke (1997; 2008), Umberto Eco (2015 [1964]), e Maria Lourdes Lima dos Santos (1988) são então trazidos a fim de aprofundar o debate acerca da necessidade de des-hierarquização e des-compartimentalização da cultura em erudita, de massa e popular. Para tanto, alguns elementos herdados da Escola de Frankfurt, em especial de Adorno (2003 [1944]; 1985 [1947]) e Horkheimer (1985 [1947]) serão discutidos. O conceito de públicos será, por sua vez, abordado a partir da antropóloga Ana Rosas Mantecón, de forma a estabelecer sua visão como prisma conceitual para o trabalho.

O primeiro debate, de acordo com Cuche, se inicia quando a palavra ‘cultura’ (‘culture’ ou ‘kultur’) – bem como princípios do pensamento Iluminista – é importada pela aristocracia alemã do século XVIII, mas uma vez apropriada pela burguesia evolui rapidamente para o que passaríamos a conhecer como dimensão romântica da cultura. O afastamento entre ambas as concepções de cultura, a contestação da ideia de ‘civilização’ única e universal que carregava o termo francês se dá num contexto de ressentimento e necessidade de reafirmação social da intelectualidade burguesa alemã frente à corte aristocrática. Isso significava, portanto, contestar

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seus valores e formas de estar; reafirmar a língua alemã, em oposição à francofonia da corte; opor o que era considerado uma ‘imitação’ da sociedade francesa à ‘autenticidade’ da cultura do povo alemão, de sua essência, seu ‘espírito (Volksseele) – ideias essas que vinham ao encontro do desejo político pela unificação alemã.

Em A Apoteose da vontade romântica, de Isaiah Berlin (1999), percebemos de forma mais clara tal embate a partir do romantismo de Johann Gottfried von Herder. Foco aqui na análise de Berlin do pluralismo em Herder: o filósofo identificava uma multiplicidade de valores e ideais, igualmente válidos, ainda que muitas vezes incompatíveis, e sempre incomensuráveis nas diferentes culturas. Dito de outra forma, “nada é mais fatal do que a tentativa de assimilação do Mittelpunkt de uma cultura com os de outra” (Berlin, 1999: 176)5,

o que torna impossível compreender (e desonesto julgar) determinada cultura sem por ela ter empatia e dela fazer parte. Tal ideia ia de encontro a pretensa universalidade da cultura, associada à ideia de civilização e de uma razão universal, advogada pelo iluminismo francês.

Pode-se dizer que as contribuições do filósofo alemão foram deveras importantes para pensarmos (contestarmos) criticamente o evolucionismo linear, a conceção acrítica e paternalista da alta cultura e da educação – etnocêntrica e elitista – como salvadoras, paradigma tanto iluminista quanto, posteriormente, positivista. Como lembra João Teixeira Lopes, o romantismo não desfez “a construção erudita de um povo modelar” (Lopes, 2007: 21). A cultura popular era então idealizada, fetichizada e apropriada pela burguesia para que uma “verdadeira cultura alemã” pudesse por ela ser apresentada. Cuche, na direção do que afirma Lopes, diz que a cultura propagandeada pela intelectualidade burguesa germânica também não pertencia ao povo simples, fazendo com que tal intelligentsia se considerasse “de certa maneira investida da missão de desenvolver e fazer irradiar a cultura alemã” (Cuche, 1999: 25).

Passando agora para a conceitualização de cultura no meio da antropologia, destacamos primeiro Franz Boas (1858-1949) e o chamado particularismo histórico (também conhecido como Escola Cultural Americana), que, refutando Edward Tylor (1832-1917) e sua teoria evolucionista linear, afirma que “cada cultura segue os seus próprios caminhos em função dos diferentes eventos históricos que enfrentou” (Laraia, 2001[1986]: 36). Boas (1896) advoga para análise da cultura uma abordagem multilinear: “cada grupo humano desenvolve-se através de caminho próprio, que não pode ser simplificado na estrutura tríplice dos estágios [selvageria,

5 Tal ideia também está presente em Boaventura de Sousa Santos (2009) em Direitos Humanos: o desafio da

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barbarismo e civilização]. Esta possibilidade de desenvolvimento múltiplo constitui o objeto da abordagem multilinear” (Ibidem: 114).

Em 1978, Clifford Geertz introduz importante elemento à análise dos eventos culturais: retira do plano individual a atribuição de significados. Para o antropólogo, “os símbolos e significados são partilhados pelos atores (os membros do sistema cultural) entre eles, mas não dentro deles. São públicos e não privados” (Laraia, 2001[1986]: 63-64). Aproveitamos desse ponto uma das ideias centrais ao trabalho, que é a relação entre cultura e sociedade e a importância de assim a pensar para entendê-la e confrontá-la frente às instituições governamentais responsáveis pela elaboração de políticas públicas que afetam direta ou indiretamente a vida cultural da população.

Por fim, Fredrik Barth concentra em seu estudo Ethinic Groups and Bounderies: the Social Organization of Cultural Difference (1998 [1969]) outras características relacionadas à cultura importantes para compreender a visão aqui defendida do termo. Para Barth, cultura é um processo heterogêneo e dinâmico, portanto mutável; o antropólogo refuta as concepções essencialistas e reificantes da cultura6: “the elements of the present culture of that ethnic group have not sprung from the particular set that constituted the group`s culture at a previous time” (Barth, 1998 [1969]: 39). Trata-se, assim, de uma definição relacional e situacional da cultura, cujos preceitos vão ao encontro da problemática aqui articulada.

Quando analisamos as políticas públicas culturais (a ser discutido posteriormente), faz-se importante entender a qual dimensão cultural as mesmas faz-se relacionam. A pesquisadora Isaura Botelho (2001) divide, para fins de tal análise, a cultura em duas dimensões: a antropológica – em que “a cultura é tudo que o ser humano elabora e produz, simbólica e materialmente falando” (Botelho, 2001: 74); e a sociológica, que se refere à produção consciente de sentidos “através de meios específicos de expressão” (Ibidem).

Alguns pontos devem então ser desenvolvidos a partir de tais conceitualizações. Em primeiro lugar, ambas são importantes para pensar a relação entre cultura e política. O primeiro conceito impõe o desafio de que políticas nele baseadas não fiquem somente na retórica, uma vez que a partir do momento em que “tudo” é considerado cultura, corre-se o risco de não pensar estratégias políticas específicas e eficazes. Por outro lado, o termo abrange um espectro maior de manifestações culturais que tradicionalmente não são legitimadas pelo setor da sociedade

6 Defendida também pelo sociólogo António Firmino da Costa (2002) em Identidades culturais urbanas em época

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que detém o poder político e/ ou econômico. Nesse sentido, políticas voltadas para o paradigma da democracia cultural encontram maior sustentação no conceito alargado de cultura. É imprescindível, entretanto, que tais políticas não excluam a “expressão artística em sentido estrito” (Botelho, 2001: 74), a chamada dimensão sociológica em Botelho, uma vez que, também esta, não só faz parte, como tem importante função nas relações sociais, culturais e políticas da sociedade.

Outro conceito fundamental de delimitar é o de públicos e sob qual perspectiva devemos aqui abordá-lo. Ana Rosas Mantecón em O que é o público? (2009), nos traz tal visão. A autora entende os públicos de cultura para além do âmbito cultural, como parte de um corpo social e econômico, o que torna necessário, portanto, entender a influência das relações de poder e de desigualdade sobre as diferentes formas de consumir cultura. Ainda de acordo com o mesmo artigo, tais públicos não são meros receptores e interpretadores de conteúdo, mas sujeitos ativos nesse processo. Nesse sentido, faz-se importante a descrição dos pactos de consumo de Mantecón. Segundo a autora, dentro desses pactos os públicos são sujeitos “que desenvolvem práticas de negociação, apropriação e produção de sentido (...) dentro e fora do campo cultural” (Mantecón, 2009: 23) e a concepção de audiência homogênea dá lugar à ideia de públicos plurais.

Ao encontro desse sentido atribuído aos públicos da cultura, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (2001) explica também os factos culturais sob a mesma perspectiva: “são sempre processos sociais totais, isto é, abarcam e imbricam diferentes aspectos da realidade em sua realização (aspectos económicos, sociais, políticos, jurídicos, morais, artísticos, religiosos entre outros), e são capazes de articular em seu interior valores e interlocutores muito diferenciados” (p.10).

Um último conceito acerca dos públicos de cultura a ser discutido é o de não-públicos em Francis Jeanson: “une immensité humaine composée de tous ceux qui n’ont encore aucun accès ni aucune chance d’accéder prochainement au phénomène culturel sous les formes qu’il persiste à revêtir dans la presque totalité des cas”. (Jeanson, 1973: 119-120). O conceito de democracia cultural, conforme descreveremos mais a frente, vai de encontro à ideia dessa massa de pessoas sem acesso à cultura, uma vez que, ampliado o conceito do termo, somos todos, passiva ou ativamente, públicos da cultura.

Em Culturas populares e cultura de elite (1997), Peter Burke traça a evolução da História Cultural Clássica para a Nova História Cultural, de onde depreendemos que as principais diferenças entre ambas são as premissas aqui anteriormente expostas: a última

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entende que a cultura – mesmo dentro de determinada época e país – não é homogénea e estática, mas sim diversificada e dinâmica, bem como reconhece a dimensão mais alargada do termo. Outro ponto que diferencia ambas as Histórias Culturais está no próximo debate a ser tratado: a permeabilidade na divisão entre cultura de elite e cultura popular. Burke traz então à tona as ideias de Mikhail Bakhtin acerca da interação entre elite e classes populares através do processo que Ginzburg (2008[1987]) chama de circularidade cultural. Tendo como objeto de estudo o Renascimento italiano do século XVI (a influência do popular nas obras renascentistas e da reprodução das mesmas no universo popular), o pensamento bakhtiniano entende as trocas culturais como “um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo” (Ginzburg, 2008[1987]: 10).

Maria Lourdes Lima dos Santos também nos traz em Questionamento à volta de três noções (1988) três ideias decorrentes da afirmação, traduzida do texto De la culturanalyse à la politique culturelle, de Edgard Morin: “la culture, dans notre société c'est le système symbiotique-antagoniste de multiples cultures, chacune non homogène” (1969:8). São elas: a pluralidade de culturas dentro de uma sociedade; o entrosamento entre elas; e as conflitualidades entre as mesmas. Acerca dessa relação e conflitualidades, no que diz respeito à cultura erudita e à cultura popular, Maria de Lurdes Lima do Santos recorre a Michel de Certeau (Santos, 1988), referindo que este introduziu dois importantes postulados: a necessidade de se superar o elitismo etnocêntrico – “que leva os representantes do saber constituído a afirmar a sua própria praxis como aquela que acciona a transformação do mundo” (p. 692) – e a de romper com “uma ideologia das culturas dominadas entendidas como efeitos de difusão retardada, passiva ou mesmo degradada da cultura emitida pelas elites” (Ibidem).

Santos também chama atenção para o “acentuado etnocentrismo de classe” que subjaz à teoria crítica da Escola de Frankfurt (com exceção de Walter Benjamin), onde a cultura cultivada não é necessariamente instrumentalizada para a dominação7. Em Dialética do esclarecimento, 1949, Adorno e Horkheimer apresentam posicionamentos deveras diferentes do segundo postulado de Certeau: “se é verdade que as canções folclóricas podem ser consideradas como resultando de uma degradação do património cultural de camadas superiores, em todo caso, foi num processo longo e muito mediatizado da experiência que seus elementos adquiriram sua forma popular” (Horkheimer e Adorno, 1985 [1947]: 22). Os autores, cujos contributos acerca das problemáticas que rondam a indústria cultural em nada são

7 Processo representado em Bourdieu (1972), citado por Santos (1988), a respeito dos “efeitos do poder simbólico”

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desprezíveis, apresentam, entretanto, um acentuado elitismo, uma concepção de cultura deveras hierarquizada, compartimentalizada e, assim sendo, rígida e anacrónica8 para conceber a sociedade moderna, as diferentes culturas que nela subsistem e, consequentemente, as demandas políticas que a elas se orientam.

Para além da discussão cultura dominada/ cultura dominante, Maria Lourdes Lima dos Santos apresenta também o debate acerca da mercantilização da cultura e como a era da reprodutibilidade técnica (Benjamin, 1955) introduz um novo elemento nessa relação: “o alargamento do público e da reprodutividade dos bens culturais, a que progressivamente se iria assistindo com o avanço da industrialização e do capitalismo, repercutir-se-ia com efeitos contraditórios sobre a inevitável reavaliação das legitimidades culturais” (Santos, 1988:700).

Por fim, outra importante contribuição para o debate acima exposto é a obra Apocalípticos e integrados, de Umberto Eco (2015 [1964]). Nela, o filósofo apresenta alguns elementos que rebatem a segmentação da cultura em três patamares hierárquicos (popular, erudito e de massas): “este ideal de cultura democrática impõe uma revisão do conceito dos três níveis culturais (high, middle e low), os quais são despojados de algumas conotações que os tornam tabus perigosos” (p. 67). Para Eco, “os três níveis não representam três graus de complexidade [diferentes]” e “(...) não coincidem, portanto, com três níveis de validade estética” (p.69) – este último, relacionado à capacidade de inovação, segundo o autor, presente nos três níveis.

A posição de Eco em relação à compartimentalização da cultura em três níveis está associada ao que o autor atribui à intolerância classista:

“Não é certamente despropositado procurar na base de cada ato de intolerância para com a cultura de massas uma raiz aristocrática, um desprezo que só aparentemente se dirige à cultura de massas, mas que, na verdade, se refere às próprias massas (...). (...) no fundo, existe sempre a nostalgia de uma época em que os valores da cultura eram um apanágio de classe e não eram postos indiscriminadamente à disposição de todos” (Eco, 2015 [1964]: 51).

8 Há que situar geograficamente e temporalmente o pensamento da Escola de Frankfurt na sociedade alemã

pós-nazismo, que pode (não só) ter influenciado a visão suspeita de seus autores acerca da cultura de massas. Umberto Eco (2015 [1964]) descreve a atuação dos radicals nos Estados Unidos, que combatem a massificação no País e afirma que “sua crítica é indubitavelmente progressista nas intenções, e a desconfiança pela cultura de massas é desconfiança por uma forma de poder intelectual capaz de conduzir os cidadãos a um estado de sujeição gregária, terreno fértil para qualquer aventura autoritária” (p. 52). Não justifica academicamente, entretanto, o preconceito cultural anteriormente apresentado.

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Na mesma vertente, apesar dos elogios à crítica de Dwight MacDonald acerca do que chama midcult e masscult, Eco afirma que, afinal, ainda assim “reflete uma concepção fatalmente aristocrática do gosto” (Ibidem: 53).

Acerca da fruição cultural e o que hoje chamamos omnívoros (Peterson e Kern, 1996) ou perfis culturais dissonantes (Lahire, 2004)9, Eco apresenta o exemplo de um leitor de Ezra Pound e de um leitor de romances policiais, afirmando que “cada um de nós pode ser um e outro” (p. 70). O filósofo reconhece, entretanto, o problema do acesso simbólico que o leitor de romances enfrentará para ler Pound e a esse respeito propõe uma ação político-social. Eco atribui em seu texto duas dimensões de políticas a serem alcançadas conjuntamente: uma que enfrente o problema da escolaridade e do tempo livre e outra que reconheça “uma paridade em dignidade dos vários níveis” (p.72), ou seja, que não deslegitime os romances policiais. Como veremos na sessão que segue, ainda que aí não utilize o termo “democracia cultural”, a mesma já se avulta na obra do autor.

2.2. Da democratização à democracia cultural

A fim de chegar ao conceito de democracia cultural serão antes descritos os paradigmas da democratização da cultura (e seu histórico) e das políticas públicas carismáticas. A respeito do primeiro, Pierre Bourdieu (1966 e 1983[1976]) traz grandes contribuições críticas, mas ainda sem transcender algumas questões, tal como a superação da tríade hierárquica cultura de elite, de massas e popular, anteriormente abordada. Autores como João Teixeira Lopes (2000 e 2007) serão aqui utilizados para retomar esse debate, desta vez diretamente orientado para a elaboração do conceito de democracia cultural. Já a relação entre os conceitos de difusão cultural/ democratização da cultura e animação sociocultural/ democracia cultural, ficarão a cargo de Etienne Grosjean e Henri Ingberg (1980).

No final da década de 1950 do século XX, André Malraux, primeiro a ocupar o cargo de ministro para Assuntos Culturais da França, baseava “suas ações na estratégia de estimular uma aproximação entre a cultura ocidental [cultivada] e as classes populares através da facilitação do acesso ao patrimônio” (Lacerda, 2010: 2) e com esse objetivo promoveu a descentralização de equipamentos culturais através das chamadas Maisons de la Culture. Segundo Philippe Urfalino, acerca do histórico de políticas culturais na França, “o que se pode com boas razões chamar de ‘política cultural’ foi inventada em 1959” (2015: 11).

9 Possuem objetos de análise diferentes: Peterson estuda o tema a partir da cena musical estadunidense analisando

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Na década seguinte, em 1966, Pierre Bourdieu e Alain Darbel publicam O amor pela arte – os museus de arte na Europa e seu público (2003 [1966]), conclusão de uma pesquisa levada a cabo pelo primeiro, cujo legado demonstrou que a quantidade e a estrutura do capital acabavam por determinar os gostos de classe, que por sua vez determinavam a frequência aos equipamentos culturais tradicionais e que, portanto, não bastava eliminar as barreiras físicas presentes entre o público e determinadas formas de arte, mas também suas barreiras simbólicas, desmistificando o paradigma da democratização cultural tal como Malraux a aplicava. Nas contribuições de Bourdieu, entretanto, permanece uma “distinção essencialista do juízo de gosto, [que] subdivide e hierarquiza a cultura em Cultura Erudita, Cultura de Massas e Cultura Popular” (Marques, 2014: 43).

A teoria dos gostos de Pierre Bourdieu tem como princípio a relação causal entre as posições dos indivíduos no espaço social e seus respectivos estilos de vida. Bourdieu nos descreve, assim, como os sistemas “de disposições duráveis” (Bourdieu, 1983[1976]: 18), ou habitus, sob a forma de “preferências sistemáticas” (Ibidem) – gostos – são determinados pelo volume e estrutura de capital econômico e cultural10, que por sua vez dependem da trajetória do indivíduo (biografia, herança parental simbólica e material, contextualização histórica, percurso escolar, etc.). Nas palavras de Bourdieu: “o conhecimento das características pertinentes à condição econômica e social (o volume e a estrutura do capital apreendidos sincrônica e diacronicamente) só permite compreender ou prever a posição de tal indivíduo ou grupo no espaço dos estilos de vida” (Ibidem: 19).

Na estrutura de gostos vemos implícita a divisão da cultura em alta cultura (de acesso a quem possui alto capital simbólico e econômico) e baixa cultura. Caro ao conceito de democracia cultural, o fim da “tricotomia hegemônica” (Lopes, 2007), que também inclui a cultura de massas, é contextualizado na (pós-) modernidade do capitalismo desorganizado (Lash; Urry, 1987) ou tardio (Jameson, 1990), onde a relação entre cultura e economia é resignificada, “eclipsando a distinção entre base e superestrutura” (Ibidem: 32) e fazendo, assim, sucumbir o modelo hierarquizado de cultura (Santos, 1994; Crane, 1992 apud Lopes, 2007). As considerações finais trarão questionamentos acerca de tal visão (pós-) moderna, mas no atual estágio do trabalho, assim será considerada.

10 O capital cultural pode ainda ser desmembrado em capital cultural incorporado; objetivado; e institucionalizado.

O primeiro corresponde à socialização quotidiana; o segundo à materialização de bens; por fim, o último representa as titulações escolares e acadêmicas do indivíduo.

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Antes de chegarmos de vez à democracia cultural, vale ainda apontar outro tipo de políticas culturais, as carismáticas, cujo apoio se dá a criadores e formas de arte já socialmente reconhecidos. O instrumento mais utilizado por tal são as políticas de mecenato, sejam elas através de financiamento direto (políticas do setor privado) ou de incentivos fiscais (conjugação entre Estado e segundo/ terceiro setor). Perceber-se-á ao longo do próximo capítulo a importância que teve e tem tal paradigma na história das políticas públicas culturais brasileiras. Chegamos então ao conceito de democracia cultural, que será aqui abordado a partir da obra Da democratização à democracia cultural: uma reflexão sobre políticas culturais e espaço público (2007) do sociólogo João Teixeira Lopes. Seus pontos axiais, sumariamente, remetem: à negação da hierarquização cultural, “classificatórios e estigmatizantes da cultura como violência simbólica” (Lopes, 2007: 97); ao direito à cultura em sua dimensão individual e coletiva: “só há democracia cultural na dignificação social, política e ontológica de todas as linguagens e formas de expressão cultural” (Ibidem); à tríade criação/ distribuição/ recepção, onde a produção cultural, a participação e o alargamento de públicos aparecem interligados e fazem-se fulcrais; à importância da formação de públicos, atentando para sua concepção plural e heterogênea; à necessidade de “criação de uma nova profissionalidade” (Ibidem: 100), a do animador ou mediador cultural; e, por último, à importância da conciliação metodológica entre quantitativo e qualitativo na pesquisa dos públicos para a elaboração de políticas de democracia cultural eficazes.

Ainda sobre a problemática da “tricotomia hegemônica” (Lopes, 2007), em A Cidade e a Cultura: um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (2000), o sociólogo nos afirma que “este modelo, fortemente hierarquizado assentava numa concepção essencialista e etnocêntrica de cultura, opondo ‘homens cultos’ ou ‘cultivados’ à massa bárbara e ignorante” (Lopes, 2000: 18). À negação de tal visão essencialista, também refutada pela antropologia cultural antes abordada, acrescentamos a dimensão mais alargada da cultura, já discutida a partir de Botelho (2001). Lopes nos chama atenção, entretanto, tal como Botelho, para o risco da abordagem estendida de cultura: “está em toda a parte e em lado nenhum” (Lopes, 2007: 16), ressaltando, porém, sua “vantagem, enorme, de trazer para o palco o que a ciência social positivista remete invariavelmente para os bastidores” (Ibidem: 18).

Tendo em vista o processo de evolução (ou involução) das políticas públicas brasileiras a ser abordado nos próximos capítulos, dos três níveis da hierarquia, faz-se importante destacar o conceito de cultura popular e seu processo de legitimação a partir da democracia cultural. Lopes (2007) critica a marginalização das artes populares, apenas recuperadas “como folclore,

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patrimônio, cultura morta ou moribunda” (Silva, 1994: 99); “a nostalgia da pré-modernidade” (Lopes, 2007: 29). Atribuições estas rebatidas por Vivian Catenacci (Cultura popular – entre a tradição e a transformação, 2001) em referência à Canclini (1989):

“É preciso pensar em tradição e transformação como complementares entre si e não excludentes. Pois o termo tradição não implica, necessariamente, uma recusa à mudança, da mesma forma que a modernização não exige a extinção das tradições e, portanto, os grupos tradicionais não têm como destino ficar de fora da modernidade” (Catenacci, 2001: 35).

Ainda segundo Lopes, a legitimação do conceito de cultura popular reconhece “a existência de racionalidades, símbolos e modos de expressão específicos que requerem uma análise tão sofisticada quanto a cultura erudita e sobrelegitimada” (Lopes, 2000: 53).

O último ponto a ser discutido antes de passarmos à teoria das culturas híbridas de Canclini (1989) dentro da realidade sul-americana, é a relação entre difusão cultural e democratização da cultura e animação sociocultural e democracia cultural. Segundo Jaume Trilla (1998) em Animación sociocultural – teorías, programas y ámbitos, “una cosa es tomar a los individuos y comunidades como meros receptores de la cultura (difusión), y otro asunto es pretender hacer de ellos agentes activos de ésta (animación)” (p.16). Apesar de por vezes colocadas em extremos opostos, Trilla nos mostra que políticas de difusão e de animação podem – e devem – ser complementares (assim como vemos em Lopes, 2007). Outra problemática presente na afirmativa acima diz respeito sobre a necessidade de “as fazer agentes ativos”, como se já não os fossem. O papel de políticas voltadas para democracia cultural pode ser entendido antes como instrumento de empoderamento dessa ação – que, entretanto, já existe, não sendo necessário fazê-la existir.

E. Grosjean e H. Ingberg (1980) explicitam a distinção entre democratização da cultura – ou dinâmica cultural descendente (Bassand, 1992 apud Trilla, 1998) ou políticas de primeira geração (Lopes, 2007) – e democracia cultural (dinâmica cultural ascendente ou políticas de terceira geração11). A primeira, segundo Trilla, baseia-se num conceito patrimonialista da cultura: “se democratiza el consumo cultural, pero la definición y la creación de la cultura sigue siendo elitista” (1998: 17), enquanto a democracia cultural põe “en tela de juicio la noción patrimonial de la cultura, y em consecuencia la política de más amplia repartición de sus

11 Para Lopes (2007), as políticas de primeira geração correspondem às políticas tal como exemplificadas na ação

de André Malraux; as de segunda geração são políticas que incorporam a necessidade de articular a “educação formal, informal e não-formal” (p. 95) às políticas de primeira geração. As de terceira geração correspondem a já explicitada políticas de democracia cultural. Para Lopes nenhuma das gerações de políticas devem ser descartadas: “não faz sentido abdicar dos contributos das várias gerações de políticas culturais” (p. 94).

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beneficiarios, para reemplazarla por um concepto que confia la definición de la cultura a la misma población” (Grosjean e Ingberg, 1980: 81).

A partir da democracia cultural haveria ainda uma revalorização da cultura popular frente a cultura de elite. Sobre esse aspecto, Trilla complementa afirmando que a difusão e conservação da cultura patrimonial não se opõe ao cultivo e potencialização da cultura popular, que são antes duas vertentes complementares que devem ser integradas às políticas culturais (1988: 18).

Manuel Rodrigues Martins também discorre sobre políticas culturais de caráter elitista, que “preocupam-se fundamentalmente com o desenvolvimento das artes a nível profissional e a conservação do património cultural” (2005: 107), cujo interesse maior está na difusão de equipamentos culturais tradicionais (i.e. museus, bibliotecas, teatros, entre outros), as contrapondo às políticas orientadas para animação sociocultural e ao associativismo. Sobre as últimas, afirma que representam “a evolução das políticas culturais [que] procura chegar ao conjunto da população do país” e que “para conseguir esses propósitos, a animação sociocultural jogou um papel decisivo, mediante acção tendente a incorporar amplos sectores da população, tanto ao acesso como à participação na vida cultural” (Ibidem).

Dentro desse contexto, ainda segundo Martins (2005), as políticas de democracia cultural têm como princípio o respeito ao pluralismo cultural da sociedade civil; a descentralização das atividades culturais: “[que] pressupõe que as decisões sejam tomadas no nível mais próximo à população destinatária” (Ibidem); o respeito à liberdade artística; e a realização pelo Estado de atividades complementares e subsidiárias que sejam importantes para a população, mas que não estejam sendo – nem possam ser – desenvolvidas pela sociedade civil.

Em suma, a democracia cultural se constitui “renegando critérios absolutistas e essencialistas de gosto, enquanto exercício de violência simbólica; entendendo-a como direito individual e coletivo à cultura, alicerçado na missão de serviço público” (Lopes, 2007: 103); através de ações heterodoxas de formação de públicos; da institucionalização de uma nova cultura organizacional; e do progresso nas metodologias de estudos de públicos (Ibidem). Para tanto, faz-se importante aplicar na praxis política o conceito antropológico de cultura – para além do sociológico (Botelho, 2001), bem como uma concepção não essencialista, estática e homogênea do termo (Barth, 1998 [1969]), como ficará mais claro na sessão que segue acerca da realidade e necessidade político-cultural da América Latina.

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2.3. Culturas híbridas: políticas culturais e a realidade sul-americana

Em Culturas híbridas – estrategias para entrar y salir de la modernidad (1989), Néstor García Canclini nos apresenta uma visão complexa a respeito da tradição e modernidade latino-americanas. Apesar de parecer demasiado generalista pensar na América Latina como um todo, tal abstração teórica é possível, pois como perceberemos ao longo dos demais capítulos, muitas das características socioeconômicas e políticas descritas pelo antropólogo podem ser referidas à situação brasileira. O mesmo se aplica a respeito da data de sua obra – ainda que já se tenha passado 28 anos, muitos de seus elementos estão cada vez mais presentes na sociedade brasileira contemporânea.

Uma vez que o paradigma da democracia cultural está intimamente relacionado à participação da população na cena cultural de um país, de uma localidade, de uma sociedade, através de um processo político idealmente caracterizado de baixo para cima, faz-se importante entender em qual realidade socioeconômica, cultural e política essa sociedade está inserida historicamente. Canclini resume tais aspectos na ideia de que tivemos um modernismo exuberante com uma modernização deficiente (1989: 65). Por modernismo, Canclini entende as inovações no campo artístico-cultural; por modernização, o desenvolvimento socioeconômico e político da população. Segundo o autor, o que aconteceu foi uma “modernización en expansión restringida del mercado, democratización para minorías, renovación de las ideas pero con baja eficacia en los procesos sociales” (Canclini, 1989: 67).

O modernismo cultural latino-americano – bem como o europeu – é atribuído pelo autor à intersecção de diferentes temporalidades históricas, ao que chama de heterogeneidade multitemporal da cultura moderna, tratando-se da justaposição e cruzamento de tradições populares12, da tradição das antigas elites aristocráticas e das ações políticas, educativas e comunicacionais modernas (Canclini, 1989: 71-72). Ao mesmo tempo, se a democracia não funciona para uma maioria (descaracterizando-a, portanto) e a desigualdade socioeconômica mantém-se, perpetua-se também uma concepção aristocrática diante da visão de cultura na América Latina, tal como acontece à cultura visual e sua rígida segmentação em arte ou artesanato (Ibidem: 67). A respeito dessa compartimentalização da cultura (já antes rebatida) em popular, de elite e de massas, Canclini também é crítico, conforme ficará claro através da exposição do termo culturas híbridas, mais a frente.

12 Segundo Canclini (1989), tais tradições populares são as tradições indígenas, no caso da região mesoamericana

e andina. No caso brasileiro, considerando a investigação realizada para o próximo capítulo, diria que indígenas e africanas.

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Tal antítese modernismo cultural/ atraso socioeconômico e político (como demonstrado, processos não paradoxais) induz outras questões a serem discutidas acerca da cultura e políticas culturais na região: o lugar da iniciativa privada nas políticas culturais e dos media na política latino-americana; a elaboração de políticas culturais e sua relação com a sociedade e públicos da cultura; a relação entre o erudito e o popular na região; e a hibridização cultural contemporânea.

Em relação às transformações nas políticas culturais no século XX, Canclini nos apresenta dois padrões: estratificação institucionalizada das produções culturais (em popular, erudito e de massas), citando como exemplo a criação no México, na década de 1940, do Instituto Nacional de Bellas Artes (dedicado à cultura erudita) e do Museo Nacional de Artes e Industrias Populares, bem como do Instituto Nacional Indigenista voltados para a cultura popular (museologizada); e “la reorganización de las relaciones entre lo público y lo privado, em beneficio de las grandes empresas y fundaciones privadas” (Canclini, 1989: 84), que o autor atribui às tendências neoconservadoras geradas pela crise econômica de 1982, que deram às empresas o papel de “promotoras de la cultura de todos los sectores” (Ibidem: 88).

Como veremos, ambos os processos – divisão oficial entre cultura erudita e popular e estreitamento das relações público-privado, com vantagens para o último – também aconteceram no Brasil, ficando esse último perpetuado através das políticas de financiamento por renúncia fiscal iniciados na década de 1980 do século passado.

Em relação à indústria de massas, Canclini descreve importante fenômeno que assola o continente na segunda metade do século passado, o surgimento de grandes conglomerados televisivos (cita o grupo CAYC na Argentina, Televisa no México e a Rede Globo no Brasil), responsáveis pela criação de uma nova mentalidade empresarial voltada para a cultura (1989: 89). O antropólogo também atribui a tais conglomerados importante força econômica e política em seus países, citando a proximidade do grupo CAYC com os governos militares argentinos. O mesmo pode ser atribuído à Rede Globo no Brasil e o apoio da emissora à Ditadura Civil-Militar de 1964-198513.

Dessas transformações citadas, o autor chega à seguinte conclusão:

“Al llegar a la década del noventa, es innegable que América Latina si se ha modernizado. Como sociedad y como cultura: el modernismo simbólico y la modernización socioeconómica no están ya tan divorciados. El problema reside en que

13 O apoio da empresa ao golpe de 1964 pode ser confirmado a partir do reconhecimento pela própria: “Apoio

editorial ao golpe de 64 foi um erro” (O Globo, 2013). Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604>. Acesso em: 27 mar. 2017.

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la modernización se produjo de un modo distinto al que esperábamos en decenios anteriores. En esta segunda mitad del siglo, la modernización no la hicieron tanto los Estados sino la iniciativa privada. La “socialización” o democratización de la cultura ha sido lograda por las industrias culturales en manos casi siempre de empresas privadas más que por la buena voluntad cultural o política de los productores. Sigue habiendo desigualdad en la apropiación de los bienes simbólicos y en el acceso a la innovación cultural, pero esa desigualdade ya no tiene la forma simple y polar que creímos encontrarle cuando dividiamos cada pais en dominantes y dominados, o el mundo en imperios y naciones dependientes” (Canclini, 1989: 92-93).

A partir do contexto apresentado, Canclini discorre acerca das políticas culturais implementadas na região. Em um processo similar ao descrito em França na década de 1960, o autor relembra um estudo do consumo artístico no México que, da mesma forma que Bourdieu (1966), demonstrava falhas na relação obras-públicos, a dificuldade dos últimos em acessar as primeiras. Em consonância com a sessão anterior, Canclini introduz a problemática da democratização da cultura no continente sul-americano, ainda caracterizado pelos “desencuentros entre modernización social y modernismo cultural” (p.142).

O autor discute também a importância de entender os públicos como grupos heterogêneos e ativos em relação à obra moderna (obra aberta em Eco, 1989 [1962]), “sobre todo em las sociedades complejas, donde la oferta cultural es muy heterogénea, coexisten varios estilos de recepción y comprensión, formados em relaciones dispares em bienes procedentes de tradiciones cultas, populares y masivas” (Canclini, 1989: 142). A coexistência de temporalidades históricas distintas na América Latina do século XX acentua ainda mais a heterogeneidade cultural e de públicos descrita pelo autor e a necessidade de pôr em causa a existência de leituras “legítimas” únicas (Ibidem: 144). Canclini nos mostra que chegamos não a “uma” modernidade, mas a diversos “procesos desiguales y combinados de modernización” (Ibidem: 146).

Dentro desse quadro, duas perguntas na obra do antropólogo fazem-se fulcrais para o trabalho aqui apresentado e a discussão acerca do conceito de democracia cultural: “¿es deseable que todos asistan a las exposiciones de arte? ¿Para qué sírve una política que trata de abolir la heterogeneidad cultural?” (Ibidem). Ao que Canclini responde que tais políticas acabam funcionando para acentuar diferenças e afirma que “divulgar masivamente lo que algunos entendemos por ‘cultura’ no siempre es la mejor manera de fomentar la participación democrática y la sensibilización artística” (Ibidem: 147).

Em suma, Canclini defende a criação de oportunidades que permitam a população ter acesso (real) às obras artísticas (políticas de segunda geração em Lopes, 2007), mas adverte sobre o cariz autoritário dos discursos democratizantes radicais. Para o autor, políticas

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