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Complexidade Moriniana e as policrises da COVID-19: por uma educação humanizadora frente à crise planetária

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Academic year: 2020

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COMPLEXIDADE MORINIANA E AS

POLICRISES DA COVID-19: POR

UMA EDUCAÇÃO HUMANIZADORA

FRENTE À CRISE PLANETÁRIA

Cristiano Sordi Schiavi1

Érik Álvaro Fernandes2

Eugenio Avila Pedrozo3

Resumo: O novo coronavírus (COVID-19) é uma forte evidência empírica de que a vida deve ser vislumbrada a partir da complexidade, conforme propõe Morin. Através dessa perspectiva, a crise sanitária se converte em policrises que afetam os vários âmbitos da vida, evidenciando a necessidade de reformas ecológica, econômica, política, social, educacional, do pensamento e da moral. Neste ensaio teórico busca-se articular esses âmbitos com a pandemia do COVID-19 para oferecer aos educadores a possibilidade de refletir sobre o mundo e a vida, com o objetivo de gerar inquietações que os levem a assumir uma educação complexo-humanizadora.

Palavras-chave: Educação; Complexidade; COVID-19.

Abstract: The new coronavirus (COVID-19) is a strong empirical evidence that life must be glimpsed from complexity, as proposed by Morin. Through this perspective, the health crisis becomes polycrises that affect the various spheres of life, highlighting the need for ecological, economic, political, social, educational, thought and moral reforms. This theoretical essay seeks to articulate these areas with the COVID-19 pandemic to offer educators the possibility of reflecting about the world and life, with the aim of generating concerns that lead to assume a complex-humanizing education.

Keywords: Education; Complexity; COVID-19.

1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: cristianosordi@hotmail.com, Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/5749597465270521

2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: erik.alvaro@hotmail.com. Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/0163088818426425

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Introdução

Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? As questões, apresentadas no início da obra de Morin (1986), intitulada Para sair do século

XX, são essenciais para promover uma reflexão política no contexto da crise

planetária atual, apontando caminhos alternativos de como viver, agir e transformar a sociedade, para o século XXI. Sobre a ‘crise’, Morin (1986) não apenas expressa-a como a manifestação de uma fratura numa continuidade, mas também, como um aumento das possibilidades e, portanto, das incertezas. No contexto de crise, é preciso levar em consideração essas incertezas e encontrar possibilidades de apreensão do conhecimento capazes de auxiliar nas reflexões sobre as complexas questões atuais, enfrentando principalmente as dificuldades e os erros que surgem no próprio processo do conhecimento. Desse modo, conforme aponta Morin (2010, p.56), “convém fazer a convergência de diversos ensinamentos, mobilizar diversas ciências e disciplinas, para ensinar e enfrentar a incerteza”, rompendo com a tradicional lógica disjuntiva.

Entretanto, Morin (1986) questiona se a humanidade, a partir de uma visão complexa, realmente foi capaz de perceber os eventos ocorridos no século XX. Além disso, no livro A Via para o Futuro da Humanidade, Morin (2015) destaca novamente suas apreensões com o futuro da humanidade, realçando a ‘Globalização’, a ‘Ocidentalização’ e o ‘Desenvolvimento’ como os três alimentos responsáveis por uma pluralidade de crises interdependentes (crise cognitiva, as crises políticas, as crises econômicas, as crises sociais que produzem, por si só, as crises da ‘Globalização, da ‘Ocidentalização’ e do ‘Desenvolvimento’). Nas palavras de Morin (2015, p. 33, grifo do autor), “a

gigantesca crise planetária é a crise da humanidade que não consegue atingir

o estado de humanidade”. Ainda vale enfatizar que, quando o autor proferiu

esses alertas, a pandemia do novo coronavírus (COVID-19) não existia no horizonte.

A partir da percepção dessa crise planetária, Morin (2015, p. 35) continua questionando se a civilização estaria rumo ao abismo, destacando duas barbáries que se encontram extremamente aliadas: “a barbárie oriunda de

eras históricas imemoriais, que mutila, destrói, tortura, massacra; e a barbárie fria e insensível da hegemonia do cálculo, do quantitativo, da técnica, do lucro

nas sociedades e nas vidas humanas”. Conforme Morin (2010, p. 16), a ciência

econômica encontra-se isolada das outras dimensões humanas e sociais que, no entanto, lhe são inseparáveis, o que torna a política econômica, em suas palavras, “a mais incapaz de perceber o que não é quantificável, ou seja, as paixões e necessidades humanas”. Assim, finaliza o autor, a economia é, ao mesmo tempo, ciência mais avançada, matematicamente; e mais atrasada, humanamente.

No atual cenário de policrises, o ‘Desenvolvimento’ é um vocábulo dominante nas discussões políticas a respeito do futuro da humanidade, sendo necessário examiná-lo, no cenário político atual, como revelador tanto de suas

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insuficiências quanto de suas potencialidades, principalmente porque esses pontos são fundamentais para lidar com os aspectos multidimensionais da realidade complexa. Ademais, não se pode esquecer o ensinamento do autor a respeito da interdependência das reformas para se pensar o futuro da humanidade e construir um mundo melhor. Segundo Morin (2015, p. 381), “a

reforma de vida, a reforma moral, a reforma do pensamento, a reforma de educação, a reforma de civilização, a reforma política, todas elas mobilizam umas às outras e, por isso mesmo, seus desenvolvimentos lhe permitirão se

dinamizar entre si”.

Nesse contexto, o presente artigo, em formato de ensaio teórico, assume dois pressupostos fundamentais para se pensar o papel dos educadores ambientais frente à crise de pandemia do COVID-19: (1) a reforma da educação não pode ser vista de maneira isolada, sendo necessária uma visão complexa acerca da crise planetária (pluralidade de crises interdependentes - policrises) e, seu entrelaçamento com a crise da humanidade (tríade ‘Globalização’, ‘Ocidentalização’ e ‘Desenvolvimento’); (2) o COVID-19 é mais um sinal da crise da humanidade que está em curso e precisa ser exposta e estudada por meio do paradigma da complexidade, conforme a própria compreensão de Morin (2015). Nesse contexto, os educadores possuem um papel crucial para mudar a situação atual de injustiças sociais e ecológicas, contribuindo para uma humanização frente à crise planetária. Dito isso, o artigo apresenta sete seções de problematizações, destacando e apontando as reformas ecológica, econômica, política, social, moral, do pensamento e da educação, e suas relações com a pandemia por meio de artigos científicos e reportagens, instaurando a possibilidade de reflexão a partir da religação entre as reformas e os saberes. Na última seção, são apresentadas as considerações finais para os educadores frente ao mundo pós pandemia pelo COVID-19.

Reforma ecológica

Conforme Odum (1969), a palavra ‘Ecologia’ deriva do grego oikos, que significa ‘casa’, e ‘logos’ que significa ‘estudo’, sendo assim o estudo das ‘casas’, ou por extensão, ‘ambientes’. Nesse estudo da ‘casa ambiental’ estão incluídos todos os organismos contidos nela e todos os processos funcionais que a tornam a casa habitável (ODUM, BARRET, 2015). Nas últimas décadas, as contribuições teóricas da ecologia ganharam força no debate social, questionando a crise existente na relação sociedade-natureza, alicerçada em uma visão antropocêntrica, na qual a natureza passou a ser objeto da ciência reducionista, atendendo às necessidades humanas.

Segundo Morin (2015), a origem da crise ecológica está associada a uma grande disjunção do Ocidente, em dois momentos principais. Primeiro, com o monoteísmo, judeu, depois cristão e islâmico, separando o ser humano do mundo animal, no momento em que atribui o privilégio supremo de ter sido

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no século XVII, quando Descartes reconhece o homem como único indivíduo do universo, e único, a possuir uma alma da qual os animais seriam desprovidos. Nesse momento, o desenvolvimento técnico, econômico, capitalista da civilização ocidental inicia a conquista da natureza, objetificando tudo que é vivo e legitimando sua escravização, manipulação e destruição e, assim, as ciências do século XX vão mantendo a separação homem/animal e cultura/natureza (MORIN, 2015).

Sobre a ecologia, Morin (2015) afirma ser a primeira ciência sistêmica e transdisciplinar a aparecer com uma visão restaurada da relação ser humano-natureza. Morin (2015) cita a importância da eco-organização viva ter sido ampliada para a biosfera por Ehrlich; no relatório Meadows emerge o alerta sobre a ameaça de degradação da biosfera e, finalmente, Lovelock reconheceu a existência de um superorganismo vivo na biosfera. Para Ehrlich (1974), a questão populacional é considerada um dos principais obstáculos à solução dos problemas humanos, criticando o sistema econômico e suas bases de pro-dução e consumo, que extrapolam os limites dos ecossistemas e acentuam as desigualdades dentro e entre as nações. Nesse contexto, segundo Ehrlich (1974, p. 203), os ecossistemas correm um grande perigo, pois essa “ameaça

reside na destruição potencial, pelas próprias atividades do homem, daqueles sistemas ecológicos dos quais depende a própria existência da espécie huma-na”. Em virtude de um cenário ameaçador aos ecossistemas, decorrente das

atividades humanas, a “Teoria de Gaia”, elaborada por Lovelock, busca repensar a relação sociedade-natureza. De acordo com Lovelock (2010), o maior valor dessa teoria esteja, talvez, na sua metáfora da Terra viva, que lembra o ser humano do seu pertencimento a ela.

Na obra Limites do Crescimento advertiu a respeito da necessidade de mudanças radicais nos modelos de produção e consumo, pois, caso contrário, os limites seriam alcançados em algum momento dos próximos 50 anos, com base na análise de cinco grandes tendências globais, e de suas interações, a saber: industrialização acelerada, rápido crescimento demográfico, subnutrição generalizada, erosão de recursos não renováveis e destruição do meio ambien-te (MEADOWS et al., 2007). Para Meadows et al. (1973), a promessa de que o padrão de crescimento levaria à igualdade humana é um do mitos mais aceitos na sociedade, pois o estudo Limites do Crescimento mostrou que os padrões atuais de crescimento de população e de capital aumentavam a diferença entre o ‘rico’ e o ‘pobre’, em âmbito mundial, tendo como resultado final uma constante tentativa de crescer, que levaria ao colapso desastroso.

Após algumas décadas da publicação do estudo Limites do

Crescimen-to, as discussões acerca do mundo esperado para as futuras gerações e sua

viabilidade civilizacional continuam no centro das atenções. Destacam-se, atualmente, nas discussões científicas a respeito das limitações físicas da Terra e as atividades humanas, a ‘Pegada Ecológica’, o ‘Antropoceno’ e o ‘Capitaloceno’. Segundo Wackernagel e Rees (1998), a análise da ‘Pegada Ecológica’ é uma ferramenta de contabilidade que permite estimar os requisitos

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de consumo de recursos e de assimilação de resíduos de uma população ou economia humana, definida em termos de uma área de terra produtiva correspondente. Anualmente, é estimado o ‘Dia de Sobrecarga da Terra’, que marca a data em que a demanda anual da humanidade sobre a natureza excede o que os ecossistemas da Terra podem regenerar naquele ano. Os dados mostram 29 de julho de 2019 como o ‘Dia de Sobrecarga da Terra’, e a humanidade usando a natureza 1,75 vezes mais rápido do que os ecossistemas do planeta podem regenerar, ou seja, correspondendo ao consumo de 1,75 planetas Terra (GLOBAL FOOTPRINT NETWORK, 2019a).

Nas publicações do antropoceno, há dados científicos, no pensamento dominante tradicional, que explicitam claramente que atingimos e inclusive ultrapassamos vários limites de resiliência da biosfera terrestre (ROCKSTROM

et al., 2009; HOEKSTRA; THOMAS; WIEDMANN, 2014). O ‘Antropoceno’,

segundo Steffen, Crutzen e McNeill (2007), é a época atual em que os seres humanos e as sociedades tornaram-se uma força geofísica global, que teve início por volta de 1800 com a industrialização, cuja característica central foi a enorme expansão do uso de combustíveis fósseis e a intensificação das atividades produtivas. Um importante trabalho, elaborado por Rockstrom et al. (2009), ilustra como as atividades humanas causam mudanças ambientais drásticas na era do ‘Antropoceno’, entre as quais, mudanças climáticas, perda da biodiversidade, excessos no ciclo do nitrogênio e do fósforo, depleção do ozônio estratosférico, acidificação dos oceanos, uso da água, carga de aerosóis atmosféricos, mudanças no uso da terra e poluição química compõem os limites planetários, que definem o espaço operacional seguro para a humanidade, em relação ao sistema terrestre, e estão associados aos subsistemas ou processos biofísicos do planeta. Eles indicam que vários desses limites foram ultrapassados (ROCKSTROM et al., 2009). Em oposição à periodização dominante do ‘Antropoceno’, Moore (2017) defende a denominação ‘Capitaloceno’, enfatizando a centralidade do pensamento histórico em lidar com as crises planetárias do capitalismo no século XXI. Embora reconheça que as mudanças ambientais aceleraram acentuadamente após 1850, e especialmente após 1945, Moore (2017) considera fundamental explicar essas transformações, identificando como elas se encaixam nos padrões de poder, capital e natureza, estabelecidos quatro séculos antes.

Nessa conjuntura, Morin (2015) chama atenção para uma resposta à ameaça ecológica que não seja apenas técnica, pois as vias ecorreformadoras precisam caminhar, prioritariamente, por meio de uma reforma no modo de pensar, englobando a relação entre a humanidade e a natureza em sua com-plexidade, como será visto na seção reforma do pensamento. No caso da pan-demia do COVID-19, enxerga-se na discussão sobre o surgimento do vírus uma possível relação conflituosa entre a humanidade e a natureza. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, a crise da pandemia do COVID-19 é reflexo da degradação ambiental, uma vez que as doenças transmitidas de animais para seres humanos crescem cada vez mais,

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humana (ONU, 2020; UNODC, 2020). No Brasil, essa ameaça é preocupante, pois a Amazônia cada vez mais sofre com as queimadas e a degradação ambiental. Conforme Nobre et al. (2016), as florestas tropicais da Amazônia têm desaparecido rapidamente nos últimos 50 anos, em razão do desmatamento associado à agricultura e a extração de madeira irregular, apresentando altos riscos de mudanças irreversíveis na biodiversidade e nos ecossistemas.

Desde os estudos da década de 70 até as pesquisas atuais sobre os li-mites planetários, a degradação ambiental é mencionada como uma grande ameaça para o futuro da humanidade, em razão das atividades desenvolvidas no ‘Capitaloceno’. Assim, a tríade ‘Globalização’, ‘Ocidentalização’ e ‘Desen-volvimento’, apontada por Morin (2015) como responsável pela crise planetária, pode estar diretamente associada também ao surgimento da pandemia do COVID-19.

Reforma econômica

Embora diversas áreas do conhecimento tenham incorporado a noção de ‘Sustentabilidade’, Veiga (2010a) lembra que seu sentido tem origem nas reflexões de duas disciplinas consideradas científicas: a economia e a ecologia. Na classificação realizada por Veiga e Cechin (2009), três concepções bem diferentes envolvem o debate no âmbito da economia e da ‘Sustentabilidade’ - ‘Sustentabilidade Fraca’, ‘Sustentabilidade Forte’ e a perspectiva ‘Biofísica’. Nessa discussão, Veiga (2010b) ressalta um grande impasse existente entre duas teses extremas: a fábula panglossiana que acredita não existir dilema entre conservação ambiental e crescimento econômico (‘Sustentabilidade Fraca’ e ‘Sustentabilidade Forte’) versus a fatalidade entrópica que alerta sobre o inexorável aumento da entropia (perspectiva ‘Biofísica’).

Em relação à hipótese panglossiana, Veiga (2010b) menciona Solow como um dos autores notórios da ‘Sustentabilidade Fraca’. No entendimento de Solow (1993), a ‘Sustentabilidade’ envolve a conservação da capacidade generalizada de produzir bem-estar econômico, valorando os recursos naturais pela sua capacidade de fornecer bens e serviços utilizáveis, em um mundo cotidiano de substituições e trocas. Para Veiga (2010b), Solow aposta na preservação da capacidade produtiva para um futuro indefinido, pela ilimitada substituição dos recursos não renováveis e guiado pelo pressuposto do otimismo tecnológico. Nessa perspectiva, segundo Veiga (2010b, p. 123), a ‘Sustentabilidade’ é vista como capital total constante, sendo que o “estoque de

recursos naturais pode até ser exaurido, desde que esse declínio seja progressivamente contrabalançando por acréscimos proporcionais, ou mais do

que proporcionais, dos outros dois fatores-chave - trabalho e capital produzido”.

Em discordância à postura de Solow, sob a liderança intelectual de Pearce, Veiga (2010b) aponta uma vertente de economistas neoclássicos menos otimistas quanto às possibilidades de substituição total entre capitais, preferindo, em razão disso, propugnar o que chamam de ‘Sustentabilidade

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Forte’. Nessa corrente, é reconhecido que o capital natural é exaurível e, por isso, os danos ambientais provocados por certas atividades devem ser compensados de alguma forma por outras, com a manutenção do capital natural como critério de justiça intergeracional (VEIGA, 2010b). Pearce e Turner (1990) argumentam, assim, sobre a necessidade de conservar o capital natural, como uma regra essencial para a economia sustentável.

Segundo Veiga (2010b), a atribuição do valor econômico e, portanto, preço, apenas a bens que sejam produtíveis e apropriáveis, representa um reducionismo microscópico indispensável ao sistema econômico e sua contabilidade social, pois os bens correspondem a uma ínfima parcela do universo formado por todos os seres vivos e objetos que compõem a biosfera. É um raciocínio dominado pela centralidade das lógicas: econômica, financeira, de mercado, liberdade, relação causa-efeito (mensurável) e neoliberal. Dessa forma, o sistema econômico foi consolidado pelo crescente distanciamento da natureza, e toda tentativa de incorporar variáveis ambientais nas contabilidades podem representar resultados suspeitos, em razão dos obstáculos conceituais e práticos (VEIGA, 2010b), inclusive pela dificuldade de mensuração.

Em oposição à ‘Sustentabilidade Fraca’ e a ‘Sustentabilidade Forte’, a perspectiva ‘Biofísica’ emprega os aportes teóricos da ecologia e da termodi-nâmica, tendo como expoentes os autores Georgescu-Rogen e Daly. Segundo Veiga (2010b), a oposição entre os economistas ecológicos e todas as outras correntes não é o uso de técnicas de valoração, mas sim a crítica de Georgescu-Roegen à tese de Solow, de que os recursos naturais e capitais são geralmente complementares e não substitutos, sendo que pensar como substitutos, de acordo com Solow, contrariaria duas leis da termodinâmica. De acordo com Georgescu-Rogen (1971), o processo econômico, em vez de se pautar pela mecânica, como tradicionalmente representado na economia matemática, é um processo entrópico. Dessa maneira, Veiga (2010a) explica o posicionamento de Georgescu-Rogen na direção da retração, pois o crescimento é visto sempre como depleção e, portanto, encurtamento de expectativa de vida da espécie humana.

Conforme Veiga (2010b), um desdobramento menos pessimista para superar o crescimento econômico é feito por Daly, que resgata, principalmente, no autor Mill, a ideia de condição estacionária (stationary state), que Daly chama de steady-state economy. Segundo Daly (2004), a economia, em suas dimensões físicas, é um subsistema aberto do ecossistema terrestre, o qual é finito, não-crescente e materialmente fechado, e à medida que o subsistema econômico aumenta, ele passa a incorporar uma proporção cada vez maior de recursos do ecossistema total, chegando ao limite de 100% de alguns deles. Por essa razão, Daly (2004) alerta sobre a insustentabilidade do crescimento, uma vez que o conceito de uma escala ótima da economia agregada relativa ao ecossistema está completamente ausente da teoria macroeconômica corrente. Portanto, para um ataque sério à pobreza e para garantir que os ecossistemas possam continuar e renovar-se ano após ano, Daly (2004)

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considera que o ‘Desenvolvimento Sustentável’ deve ser pautado sem crescimento, com o controle da população e a redistribuição da riqueza, abandonando o slogan vazio do ‘Crescimento Sustentável’, a partir de uma compreensão de que a economia de crescimento nulo não é estática, e sim continuamente mantida e renovada como um subsistema de estado estacionário do meio ambiente.

Pensando para além das alternativas, Morin (2015) sugere um caminho simultâneo (‘Mundialização e Desmundialização’, ‘Crescimento e Decresci-mento’, ‘Desenvolvimento e EnvolviDecresci-mento’, ‘Conservação e Transformação’) para alcançar a ‘Política da Humanidade’. Em relação ao ‘Crescimento e Decrescimento’, deve-se escolher, assim, o que vai crescer e o que deve decrescer, aproximando-se de uma visão menos radical que o ‘Decrescimento’. Na situação da pandemia do COVID-19, observou-se em Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, a redução da poluição em 22% durante o período de quarentena, em razão, principalmente, da diminuição no número de carros, ônibus e caminhões em circulação, configurando-se um resultado positivo para a saúde da população, pois a poluição do ar é a principal causadora de problemas respiratórios (UFCSPA, 2020). Esse caso pode ser relacionado com uma das vias econômicas apontadas por Morin (2015), em que o crescimento de uma economia pautada em energias renováveis compensaria o decrescimento das energias poluentes, carvão e petróleo. Para isso, a fiscalização e taxação das atividades poluentes ajudariam na transição para o ‘renovável’; precificando produtos gerados pela economia poluente, e integrando seus custos sanitários, sociais e ambientais (MORIN, 2015).

Reforma política

Para a política, Morin (1986) considera vital que ela possa alçar ao nível da complexidade do próprio problema político e possa responder ao querer-viver da espécie humana. Segundo o autor, a política produz visões cada vez mais unidimensionais, para sociedades cada vez mais multidimensionais, e com isso, produzem mitos que, no entanto, são inconscientes de serem mitos. Assim, para Morin (1986), o pensamento mutilado, carente, cego pode levar à regressão e ao desastre, sendo o pensamento complexo um caminho necessário para compreender os problemas fundamentais das sociedades e da história. Para Sunkel e Paz (1974), o ‘Desenvolvimento’ tornou-se o tópico do Pós-Guerra, com a Carta das Nações Unidas reconhecendo os propósitos do ‘Desenvolvimento Econômico’ e ‘Social’. Cumpre-se, assim, examinar o vocábulo político ‘Desenvolvimento’, uma vez que domina as discussões a respeito do futuro da humanidade.

Sunkel e Paz (1974) classificam três principais enfoques sobre o “De-senvolvimento”: ‘Desenvolvimento’ como crescimento; ‘Subdesenvolvimento’ como etapa; e, ‘Desenvolvimento’ como processos de mudanças estruturais. O primeiro enfoque define o ‘Desenvolvimento’ em termos de renda por habitante

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e o processo de ‘Desenvolvimento’ em termos de taxa de crescimento, utilizando como indicador ou medida mais adequada a renda por habitante. No segundo enfoque, o ‘Desenvolvimento’ é concebido como uma sucessão de etapas, desde a mais primitiva, ou tradicional, até a mais desenvolvida ou moderna, exibindo também fases intermediárias com características específicas (SUNKEL; PAZ, 1974). No aspecto ideológico desse enfoque, Sunkel e Paz (1974) observam semelhanças com o enfoque do caso anterior, concebendo o ‘Desenvolvimento’ das sociedades “Subdesenvolvidas” como o caminho/etapa a ser trilhado em seu modelo da moderna sociedade industrial. Em contraste, no terceiro enfoque do ‘Desenvolvimento’, é construída uma abordagem para examinar a realidade do “Desenvolvimento” latino-americano, defendendo, com base na observação histórica sistemática, que o subdesenvolvimento é parte do processo histórico global do desenvolvimento, isto é, duas faces da mesma moeda (SUNKEL; PAZ, 1974).

Para Furtado (1996), prepondera uma visão mítica do Desenvolvimento Econômico nas Ciências Sociais, que escamoteia problemas sociais e ecológicos. Furtado (1996) denuncia, então, o mito do ‘Desenvolvimento Econômico’ e seu caráter predatório de civilização, no qual o valor econômico provoca, na grande maioria dos casos, processos irreversíveis do mundo físico, citando Georgescu-Rogen como um dos poucos economistas que se tem preocupado seriamente com esse problema. Limitando-se a observar o quadro estrutural do sistema capitalista, Furtado (1996) aponta a ampliação do fosso entre um centro em crescente homogeneização e uma constelação de economias periféricas, cujas disparidades aumentam, em razão do processo de acumulação. Para Furtado (1996), o estudo Limites do Crescimento destrói o mito do ‘Desenvolvimento Econômico’, com a sua conclusão geral a respeito da impossibilidade de extensão ao conjunto do sistema capitalista das formas de consumo que prevalecem atualmente nos países cêntricos, representando uma demonstração cabal do privilégio de uma minoria que leva, na tentativa de sua generalização, ao colapso de toda uma civilização.

Segundo Amaro (2002), nos últimos 30 anos, em particular, o conceito de ‘Desenvolvimento’ tornou-se mais complexo e menos linear na sua concepção e aplicação, ganhando seis novos conceitos: ‘Sustentável’; ‘Local’; ‘Participativo’; ‘Humano’; ‘Social’; e ‘Integrado’. Outra abordagem do ‘Desenvolvimento’ é apresentada por Sen (2000), que considera a perspectiva das liberdades dos indivíduos como elementos constitutivos básicos. Sen (2000, p. 25, grifo do autor) assinala, assim, cinco tipos de liberdade: “(1)

liberdades políticas, (2) facilidades econômicas, (3) oportunidades sociais, (4) garantias de transparência e (5) segurança protetora.

Em relação ao ‘Desenvolvimento Sustentável’, Amaro (2002) assinala sua origem a partir da consciência ambiental afirmada institucionalmente a par-tir de 1972 (Conferência de Estocolmo e estudo do Clube de Roma). O autor procura conciliar o desenvolvimento com preocupações ambientais baseado no conceito de ‘Ecodesenvolvimento’, reforçado em 1987 pelo conceito de

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‘Desenvolvimento Sustentável’, apresentado e proposto no Relatório ‘O Nosso Futuro Comum’. Consoante Nobre e Amazonas (2002), o ‘Desenvolvimento Sustentável’ tornou-se guia do processo de institucionalização da questão ambiental na agenda política internacional, passando a incorporar tal dimensão na formulação e implementação de políticas públicas, tanto nos Estados Nacionais quanto nos órgãos multilaterais e de caráter supranacional. Segundo Sachs (2002), na preparação da Conferência de Estocolmo, duas posições diametralmente opostas foram assumidas, uma que previa abundância e outra que previa uma visão catastrofista, resultando na escolha do paradigma do caminho do meio como uma alternativa de um outro ‘Desenvolvimento' para além do ‘Crescimento Econômico’, a partir de uma a abordagem fundamentada na harmonização de objetivos sociais, ambientais e econômicos.

Assim, de acordo com Sachs (2004), o ‘Ecodesenvolvimento’, mais recentemente renomeado ‘Desenvolvimento Sustentável’, precisa obedecer ao duplo imperativo ético da solidariedade com as presentes e futuras gerações, bem como promover o ‘Crescimento Econômico’ na companhia de impactos positivos em termos sociais e ambientais. Salienta-se então que o ‘Crescimento’ não garante por si só o ‘Desenvolvimento’, podendo estimular inclusive o ‘Mau Desenvolvimento’, processo no qual o crescimento do PIB é acompanhado de desigualdades sociais, desemprego e pobreza crescentes (SACHS, 2004). Segundo Veiga (2010a), Sachs foi o autor que melhor conseguiu evitar simultaneamente o ambientalismo pueril, que pouco se preocupa com pobrezas e desigualdades, e o desenvolvimento anacrônico, que pouco se preocupa com as gerações futuras. Contudo, o ‘caminho do meio’ sintetizado por Sachs, conforme Veiga (2010b), só faz parte da retórica política-ideológica. Para Acselrad (1999), há uma disputa entre os diferentes discursos na noção de ‘Desenvolvimento Sustentável’ pela expressão mais legítima. Nessa disputa em torno da construção social do conceito de ‘Desenvolvimento Sustentável’, Leff (2008) critica a conversão do sentido crítico de ambiente numa proclamação de políticas neoliberais que se inseriram na retórica do ‘Desenvolvimento Sustentável’, prometendo alcançar os objetivos de equilíbrio ecológico e da justiça social por uma via fundamentada no ‘Crescimento Econômico’, orientado pelo livre mercado.

Rejeitando a noção de ‘Desenvolvimento’, uma vez que o mesmo é reduzido inevitavelmente ao ‘Crescimento Econômico’, Veiga (2015) cita a corrente do ‘Pós-Desenvolvimento’. Um dos autores que se destaca no debate acerca do ‘Pós-Desenvolvimento’ é Acosta, que em sua obra chamada o ‘Bem Viver’ tem inspiração em experiências e práticas existentes nos Andes e na Amazônia, assim como em outros lugares do planeta. Segundo Acosta (2016), o ‘Bem Viver’ não pode ser simplesmente associado ao ‘bem-estar ocidental’, sendo necessário recuperar uma cosmovisão dos povos e nacionalidades indí-genas e propor um enfrentamento da colonialidade do poder. Ademais, Acosta (2016) critica a inviabilidade do estilo de vida dominante que não conduz e nem conduzirá ao ‘Desenvolvimento’, pois parte de uma concepção equivocada do crescimento material, baseado em inesgotáveis recursos naturais e em um

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mercado capaz de absorver tudo o que for produzido, sem que a maioria das pessoas estejam alcançando o bem-estar material e, ainda por cima, sendo afetadas sua segurança, liberdade e identidade.

Nesse contexto, Morin (2015) critica a expressão ‘Desenvolvimento’ e a inserção do seu epíteto Sustentável’. Para Morin (2015), o ‘Crescimento’ é concebido como o motor evidente e infalível do ‘Desenvolvimento’, e o ‘Desenvolvimento’ como o motor infalível do ‘Crescimento’, com ambos os termos constituindo-se de maneira simultânea fim e meio um do outro. Desde os anos 1990, Morin (2015) observa uma amplificação de todos os aspectos negativos do atual ‘Desenvolvimento’ decorrentes de um capitalismo planetário desenfreado, nas condições da globalização neoliberal (privatização dos serviços públicos e das empresas do Estado, primazia dos investimentos especulativos internacionais, desregulamentações generalizadas). Na concepção tecnoeconômica do ‘Desenvolvimento’, Morin (2015) adverte o cálculo como seu instrumento de conhecimento à vida, manifestados pelos índices de crescimento, de prosperidade, de lucros e de estatísticas que pretendem medir tudo. Morin (2015) critica, então, o ‘Desenvolvimento’ que pretende ser solução, mas que ignora o fato das sociedades ocidentais estarem em crise exatamente por causa da escolha desse ‘Desenvolvimento’, consolidado no século XX, bem como a inserção de seu epíteto ‘Sustentável’, que não aperfeiçoa em profundidade a própria ideia de ‘Desenvolvimento’, suavizando e recobrindo como uma pomada calmante. Isso é resultado, segundo Morin (2017), de quatro motores conduzidos de forma descontrolada para impulsionar a ‘nave terra’, que poderia ser denominada, também, “biosfera terra”, rumo ao abismo: ciência, técnica, economia e lucro, interdependentes. Cada um desses motores possui uma carência ética radical: a ciência exclui todo juízo de valor e todo retorno à consciência do cientista; a técnica é puramente instrumental; o lucro invade todos os campos, inclusive os seres humanos e seus genes.

Na discussão apresentada dos fatores que levam à ‘Política da Humanidade’, Morin (2015) indica um caminho para além das alternativas e da ideia de ‘Desenvolvimento’, através da orientação ‘Desenvolvimento e Envolvimento’, baseando-se na complementaridade entre o que há de valioso na ideia atual de ‘Desenvolvimento’, para inserir em contextos singulares de cada cultura ou nação, e a noção de ‘Envolvimento’, para a conservação das proteções comunitárias, a salvaguarda das qualidades que o ‘Desenvolvimento’ tende a destruir, e o retorno aos valores não materiais de sensibilidade, de coração e de alma.

Assim, segundo Morin (2015), é preciso uma ‘Política de Civilização’ para contornar os efeitos negativos do “Desenvolvimento”, aprimorando seus efeitos positivos. Em relação aos efeitos negativos, Morin (2015) cita alguns sintomas do mal de civilização, em razão do ‘Desenvolvimento’, que representam duas ameaças sobre as sociedades e os seres humanos: a degradação ecológica dos meios de vida e a degradação das qualidades de

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vida. Em oposição ao mal de civilização, Morin (2015) propõe uma ‘Política de Solidariedade’ e uma ‘Política de Qualidade de Vida’, para compor uma ‘Política de Civilização’. A respeito da ‘Política de Solidariedade’, segundo Morin (2015, p. 78), “a sociedade só pode progredir em complexidade, ou seja, simultaneamente em liberdade, em autonomia e em comunidade, se progredir em solidariedade”. Sobre a ‘Política de Qualidade de Vida’, torna-se imperativo o bem-estar no sentido existencial, e não basicamente no sentido material, privilegiando a convivência e contra a irresponsabilidade e o egocentrismo. Nesse contexto, o objetivo da política não deve ser criar as condições de felicidade, que lhe escapam, e sim favorecer e facilitar que o ser humano possa viver poeticamente, desfrutando as qualidades de vida (MORIN, 2015).

Para a construção dessa ‘Política de Civilização’, Morin (2015) enfatiza a necessidade do pensamento político transpor o economicismo atual. Entre as principais críticas, apontadas por Morin, é realçada a expansão universal da economia neoliberal, após 1989, que culminou com o processo de mundialização econômica, transformando-se em globalização. Morin (2015) deixa claro, assim, a inseparabilidade da via política e as outras vias, sendo que, por sua vez, a via econômica também está implicada nas outras vias, e as outras vias estão implicadas na via econômica. A partir da ‘Política da Humani-dade’, fundada no conceito de ‘Terra-Pátria’, e da ‘Política de Civilização’, pau-tada na ‘Política de Solidariedade’ e na ‘Política de Qualidade de Vida’, a hu-manidade pode se inspirar em ideias para além do ‘Desenvolvimento’, enfren-tando a crise planetária (policrises decorrentes da ‘Globalização’, ‘Ocidentaliza-ção’ e ‘Desenvolvimento’). No caso da pandemia do COVID-19, a humanidade pode desenvolver a consciência do seu destino comum, através da ‘Política da Humanidade’ e da noção de Terra-Pátria, que integraria a humanidade em uma grande pátria comum, sem negar as pátrias singulares. Além disso, é impres-cindível a construção de uma ‘Política de Civilização’ pós pandemia para en-frentar a crise planetária decorrente da tríade ‘Globalização’, ‘Ocidentalização’ e ‘Desenvolvimento’. Com isso, pode-se aproximar da ética complexa proposta por Morin (2017), no tomo 6 do Método.

Reforma social

Nas discussões da reforma social, são destacados os problemas da demografia e da desigualdade. Com relação à questão populacional no mundo, os dados indicam o contínuo crescimento populacional global, embora a taxa de crescimento esteja diminuindo, sendo que a população mundial pode parar de crescer por volta do final do século XXI, atingindo 10,9 bilhões em 2100 (ONU, 2019). Importante destacar a variação elevada da taxa de crescimento entre as regiões no período de 2019 até 2050, com taxas mais altas nos países mais pobres, o que requer um desafio adicional para atender os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ONU, 2019).

Nesse cenário, Morin (2015) enxerga a necessidade de medidas em fa-vor da limitação dos nascimentos onde existe superpopulação e de estímulo à

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procriação onde existe subpopulação, devendo levar em consideração uma política de humanidade que favoreça correntes sociológicas de regulação dos nascimentos e que atue, entre outras coisas, sobre o consumo, a alimentação, a agricultura, e a água. No que se refere ao consumo, percebe-se uma discre-pância nas datas que são atingidas o ‘Dia de Sobrecarga da Terra’ pelos paí-ses. Enquanto os Estados Unidos da América atingem o ‘Dia de Sobrecarga da Terra’ no dia 14 de março, a Indonésia atinge essa marca no dia 18 de dezem-bro (GLOBAL FOOTPRINT NETWORK, 2019b). Dessa maneira, Morin (2015) lembra a respeito da complexidade da questão demográfica, pois envolve reformas conjugadas e simultâneas, como, por exemplo, uma reforma de repartição e da distribuição para diminuir o superconsumo dos ricos e crescer o consumo dos pobres.

Sobre a reforma social, é preciso compreender o período atual do capitalismo que rege a organização social e política. Bresser-Pereira (2009) vê a globalização como o estágio atual do sistema econômico capitalista, resultante de um processo contínuo de transformação e integração econômica, social e política desde os anos 1970, no qual os mercados tornam-se abertos e todos os Estados-nação orientam-se pela lógica da acumulação e competição capitalista. Na etapa da globalização, embora fale-se insistentemente na morte do Estado, Santos (2015) afirma que o mesmo é fortalecido para atender às finanças e de outros grandes interesses internacionais, em vez de cuidar das populações, cuja vida está cada mais difícil, configurando, assim, uma globalização perversa.

Segundo Dowbor (2008), a economia precisa ser democratizada, uma vez que hoje 435 famílias no mundo manejam a seu bel-prazer recursos superiores à renda da metade mais pobre da população mundial, levando o planeta por caminhos cada vez mais irresponsáveis. E esse grau de concentração está crescendo. Aliás, o ressurgimento do papel importante, ou até central, do Estado pode ser uma das questões centrais a serem discutidas durante e pós COVID-19. Mais recentemente, o relatório World Inequality

Report 2018 mostra um aumento na desigualdade de renda em quase todas as

regiões do mundo nas últimas décadas, mas em velocidades diferentes, sendo que as políticas e instituições nacionais desempenham um papel fundamental para a formação da desigualdade. Em 2016, a parcela da renda nacional total representada apenas pelos 10% mais ricos desse país (com 10% da renda) foi de cerca de 55% na África Subsaariana, Brasil e Índia (WORLD INEQUALITY LAB, 2018). Para Morin (2015), a ‘Política da Humanidade’ não tem como missão igualar tudo, conduzindo a uma destruição das diversidades, mas visualizar vias reformadoras para a redução progressiva das piores desigualdades.

Na pandemia do COVID-19, a desigualdade social no Brasil se reflete nas desigualdades de renda e acesso a serviços básicos sanitários e de saúde, com dados que confirmam chances de morte de um paciente preto ou pardo analfabeto (76%) 3,8 vezes maiores que um paciente branco com nível

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superior (19,6%) (PUC-RIO, 2020). Nesse período, ressalta-se também o aumento do desemprego, e a criação pelos governos de auxílios emergenciais para a população em diferentes países, repensando o papel do Estado na economia. No futuro pós pandemia, mudanças drásticas na configuração do trabalho no mundo se avizinham com a ‘Inteligência Artificial’ e a ‘Revolução 4.0’, além de possíveis novas e distintas crises, que podem aumentar o desemprego, a pobreza e a desigualdade, ganhando força, então, a ideia de uma renda mínima universal que garanta qualidade de vida para a população mundial.

Reforma da educação

A educação se comporta como regeneradora do conhecimento ao reexaminar e atualizar a si própria, uma vez que ela pode ser compreendida como o espaço onde se conserva, memoriza, integra e ritualiza uma herança cultural de saberes, ideias e valores. Além disso, este espaço se apresenta como dinâmico, pois a própria educação se encarrega de examinar, atualizar e transmitir os conhecimentos (MORIN 2015, 2007). Logo, ela é permeada por uma dinâmica que envolve a tradição/estabilidade e a inovação/instabilidade.

Além desse dinamismo, a educação ainda se encontra envolta em dilemas que abrem espaço para que uma abordagem quantitativa paute as soluções, marginalizando a dimensão cultural-humanista (MORIN, 2015, 2007). Essa situação pode ser vislumbrada em dois aspectos primordiais: na adoção da separação dos objetos de estudo do seu contexto e na divisão do conhecimento em disciplinas especializadas. Nestas condições, o contexto é sistematicamente ignorado e a “distância” entre as disciplinas impede que se constituam relações entre elas, o que em última instância, elimina a possibilidade de vislumbrar o conhecimento a partir da complexidade. Segundo Morin (2007, p. 18), “o ideário das escolas elementares ordena que se reduza o complexo ao simples, que se separe o que está ligado, que se unifique o que é múltiplo, que se elimine tudo aquilo que traz desordens ou contradições para nosso entendimento”.

Diante disso, é necessário realizar a reforma da educação para justamente, romper com esse movimento generalizado de apenas fornecer conhecimentos, sem se preocupar com o contexto, seus significados e limites. Com isso, o conhecimento poderia se expandir e se complexificar, estabelecendo inter-relações entre conhecimentos tidos como parciais e locais e aqueles considerados globais (MORIN, 2015). Além disso, as transformações oriundas dessa reforma permitiriam que os professores se reconectassem com sua missão cívica e ética e os estudantes reencontrassem seu interesse e paixão pela educação, estabelecendo um ensino relacional por natureza, no qual a qualidade dessas relações entre professores e alunos é a fonte para a superação das dificuldades e meio para a realização de ambos (MORIN, 2015). A partir da leitura de Morin (2015, 2007), percebe-se que a reforma da educação deve ocorrer simultaneamente em dois âmbitos: i) na estrutura de

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ensino, para que ela possa comportar e lidar com as demandas da sociedade e; ii) na forma de conceber o conhecimento, articulando-o para lidar com a complexidade da vida. Nesse sentido, deve-se avançar e aprofundar em conhecimentos e abordagens teóricas de natureza multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, para tratar das policrises e do COVID-19, em particular.

Se de um lado, a educação já precisa lidar com problemas complexos, de outro, o contexto de pandemia do COVID-19 impôs novas demandas, as quais merecem uma reflexão. Com o avanço da pandemia, as instituições de ensino tornaram-se possíveis fontes de contágio em massa e, ainda que os estudantes não estejam classificados como grupo de risco, a possibilidade de eles serem vetores de contágio levou à interrupção das aulas no país. Diante disso, a escolha de possíveis soluções para a pandemia do COVID-19 geram complexificações, pois, quando se escolhe um caminho, enfrenta-se o dilema dos impactos sociais e ambientais ao longo do tempo, principalmente quando se faz a opção pelo paradigma tecnoeconômico dominante.

A paralisação mundial devido a pandemia impactou diretamente a educação em dois aspectos principais: na estrutura organizativa do ensino e nas relações sociais que se estabeleciam no espaço educacional. No primeiro caso, o calendário escolar estabelecido para o ano de 2020 não será cumprido, implicando em defasagem no ensino, perda de importantes atividades formativas, diminuição da possibilidade de acesso ao ensino superior ou pós-graduação, além de problemas financeiros, políticos e psicológicos para todos os envolvidos no ensino. No segundo caso, as relações sociais entre professores e alunos e entre estes e seus colegas também foram interrompidas, o que impacta sobremaneira na formação social e cultural dos alunos, especialmente nas séries iniciais. Como forma de amenizar essa situação a medida adotada foi a mediação do processo de ensino e aprendizagem por dispositivos digitais, substituindo a relação social direta no espaço escolar pela relação à distância, separando os principais agentes envolvidos no processo e modificando especialmente o espaço familiar.

A adoção da mediação digital pareceu ser a solução lógica que resolveria a maioria dos problemas, entretanto novos obstáculos emergem e restringem a educação, como por exemplo, o acesso à ela estar condicionado a capacidade de dispor economicamente de um dispositivo digital e de acesso à internet; a necessidade de uma infraestrutura adequada e de equipamentos para desenvolver a modalidade de educação à distância; as novas competências necessárias aos professores e alunos para ensinar e aprender através desse meio e, em especial, a rearticulação social para acomodar os vários papéis sociais (aluno, professor, tutor, empregado, gerente, proprietário de negócio, mãe, pai, filho, entre outros) em um mesmo espaço. Atualmente, os calendários do ensino público e privado estão desalinhados entre si, assim como nos seus diferentes níveis de escolaridade.

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Essa argumentação demonstra claramente como o COVID-19 acaba atuando em múltiplas realidades (MOL, 2002), pois seus impactos vão ressonando e reverberando em outros âmbitos como na família, nos professores, nos colaboradores e nos alunos, nos papéis e relações sociais entre eles, na desigualdade social e no acesso à tecnologia, na falta de conhecimentos necessários para ensinar virtualmente, entre outros. Contudo, apesar das dificuldades decorrentes da pandemia, é imprescindível refletir sobre as possibilidades de um novo sistema de educação fundado no ato de religar o que está separado e que seja capaz de abordar os problemas da educação a partir da complexidade (MORIN, 2015). No caso brasileiro, é importante ressaltar que as condições das escolas nas diferentes regiões e contextos brasileiros diferem muito entre si e, tal fato, também precisa ser levado em consideração.

Portanto, a pandemia do COVID-19 pode ser uma excelente oportunidade de reflexão sobre o sistema educacional através do paradigma da complexidade. Entretanto, Morin (2015, p. 201) aponta que “uma reforma da educação em múltiplos aspectos como essa é inseparável da reforma do pen-samento”, na qual somente mentes transformadas podem reformar o sistema educacional e vice-versa. Nesse sentido, ambas reformas se estabelecem a partir de um circuito recursivo que se retroalimenta, de modo que, uma reforma pode ser impulsionada e impulsionar a outra, contribuindo para a construção de uma política educacional humanizada e civilizatória (MORIN, 2015).

Reforma do pensamento

Ao longo do artigo, percebe-se o surgimento de crises em vários âmbitos da vida natural e social, as quais podem ser reunidas sob um mesmo rótulo chamado “crises da humanidade”, no qual pode-se perceber claramente a complexidade e a multidimensionalidade dessa crise. Além disso, Morin (2015) argumenta que essas policrises que se manifestam nos vários âmbitos da vida têm em comum o fato de estarem enraizadas na crise do pensamento, caracterizada principalmente por uma racionalidade que insiste em simplificar o complexo para obter respostas.

Essa condição para Morin (2003, p. 25) mostra que “quanto mais os problemas se tornam multidimensionais, mais há incapacidade para pensar essa multidimensionalidade; quanto mais a crise avança, mais progride a incapacidade de pensá-la” e, como resultado, essa incapacidade de levar em consideração o contexto e o complexo acaba produzindo inconsciência e irresponsabilidade, como nas situações envolvendo a pandemia do COVID-19, como por exemplo, o fato de tratarem essa pandemia como se fosse igual as enfrentadas no passado.

A inconsciência surge, também, da insistência em aplicar a mesma forma de pensar compartimentada para resolver problemas multidimensionais, nas quais as conclusões e respostas sempre são obtidas a partir da simplificação da realidade, que nesse caso é sustentada no obscurecimento,

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negligência, negação ou distorção de aspectos importantes da realidade. A irresponsabilidade se faz presente no processo de generalização das respostas, soluções ou resultados obtidos a partir da simplificação para a realidade complexa e multidimensional.

A tendência a unidimensionalizar a pandemia pode ser vislumbrada quando os discursos tendem a enfatizar somente a solução médica da nova vacina, ou dos aspectos econômicos e/ou políticos da doença, deixando de considerar os aspectos sociais e culturais do problema. Dessa forma, a discussão sobre vidas humanas pode ser facilmente reduzida a um argumento numérico-estatístico que relativiza incomensuravelmente o problema, traduzindo-o como um “efeito colateral” que não pode ser evitado e que, em termos numéricos, ele nem se compara a outras “tragédias reais” que a humanidade enfrentou.

O fato de alguns infectados somente sentirem sintomas parecidos com uma gripe, a falta de remédio ou vacina com eficiência comprovada e os constantes ataques à legitimidade das ciências geram uma condição que desencadeia um processo de desqualificação das pesquisas científicas mundiais e de defesa da política eleitoreira anticientífica que, no caso brasileiro, difunde o uso de medicamentos sem comprovação científica, que podem comprometer a saúde dos pacientes. Essas são evidências empíricas da inconsciência e irresponsabilidade que podem afligir a todos nessa condição de pandemia.

Para Morin (2015, p. 185), essas tendências seguem uma tradição de pensamento que está fortemente enraizada na cultura global e que acaba convencendo a todos a “reduzir o complexo ao simples, separar o que está

ligado, unificar o que é múltiplo, eliminar tudo o que produz desordens ou

contradições em nosso entendimento”. Da constatação dessa condição é que o

autor propõe a necessidade de uma reforma do pensamento, “capaz de

enfrentar o desafio da complexidade do real, isto é, de compreender as ligações, interações e implicações mútuas, os fenômenos multidimensionais, as

realidades simultaneamente solidárias e conflituosas” (MORIN, 2015, p. 185).

Assim, considerando a necessidade de um pensamento complexo, pode-se vislumbrar a possibilidade de lidar com a incerteza, sem deixar de conceber a organização, ao tornar-se apto a unir, contextualizar, globalizar sem deixar de reconhecer nesse macro aspecto o singular, o individual e o concreto (MORIN, 2003). Nesse sentido, quanto mais se compreende as relações essenciais entre natureza e cultura ou animal e homem, mais se estabelece o princípio de conjunção que permite situar a cultura na natureza, bem como, a humanidade na animalidade.

Para Morin (2003, p. 31) esse “modo complexo de pensar não tem

utilidade somente nos problemas organizacionais, sociais e políticos, pois um pensamento que enfrenta a incerteza pode esclarecer as estratégias do nosso

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uma forte evidência empírica da complexidade inerente aos desequilíbrios na vida das comunidades. Essa pandemia é caótica em um nível que sobrepuja as técnicas e pensamentos atuais, os quais são fontes em que emergem as soluções. Para ilustrar essa afirmação, considere que a origem é um vírus, um pequeno agente biológico visível somente em microscópio, mas que impacta em uma amplitude que envolve vários âmbitos, como a vida, o espaço familiar, a estrutura de trabalho, a economia em todos seus níveis, a política em toda sua estrutura, na moral dos comportamentos e ações, na solidariedade, entre outros, de tal modo que, nenhuma técnica ou solução atualmente desenvolvida é capaz de lidar com essa amplitude.

Portanto, somente um “pensamento capaz de compreender a

complexi-dade, não apenas de nossa vida, de nossos destinos, [...], mas também da era planetária, pode tentar realizar um diagnóstico sobre o curso atual de nosso

devir e definir as reformas vitais para a mudança” (MORIN, 2015, p. 187). Para

isso, ele deve superar a disjunção entre ciência e ética, necessária nos primei-ros séculos da ciência, mas que contemporaneamente não pode ser mantida, devido à necessidade de uma ética da religação e da solidariedade para en-frentar não apenas os problemas apresentados, mas também os problemas éticos.

Reforma moral4

A contemporaneidade é marcada pelas degradações éticas que atingem principalmente os aspectos biológicos (espécies), culturais (sujeitos sociais) e coletivos (sociedades). Por isso, Morin (2015) aponta a necessidade de conceber uma ética complexa que enfrente o encolhimento da responsabilidade e o enfraquecimento da solidariedade, resultantes da crise nos fundamentos éticos.

Parte desse encolhimento e enfraquecimento da responsabilidade e solidariedade pode ser atribuído a fatores construídos socialmente, mais intensamente no século XX, como a necessidade de disjunção entre conhecimento e ética na produção de uma ciência autônoma, o que contribuiu para a ampliação dos poderes de destruição e de manipulação, além do estreitamento da aliança entre ciências e tecnologia, formando a tecnociência, a qual entra em um processo de desenvolvimento descontrolado quando aliada à economia, produzindo consistentemente resultados indesejados como a degradação da biosfera e a multiplicação de ameaças à humanidade, conforme apontado em outros tópicos (MORIN, 2017).

Nessas condições, o ser humano alimenta fortemente o princípio da exclusão, responsável por garantir-lhe a identidade singular e, gradativamente, abandona o princípio da inclusão, responsável por constituir esse Eu na

4Conforme Morin (2017), a moral e a ética são inseparáveis, e algumas vezes recobrem-se. Assim, os

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relação com o Outro. O princípio da exclusão é inerente ao ser e seu exacerbamento leva ao egocentrismo e, consequentemente, ao egoísmo. No nível societal, ocorrem as lutas de egoísmos, as quais são permeadas pela rivalidade e competição.

Essa exacerbação do egocentrismo pode ser vislumbrada na defesa e priorização de outros interesses diante na pandemia do COVID-19, em especial, quando o governo brasileiro enfatiza a economia nos seus discursos, em consonância com parte do empresariado, que projeta perda de lucros e demissões em massa, atacando medidas sanitárias como o isolamento social. Entretanto, trata-se de um discurso falho, pois as crises econômica, social, sanitária, moral e política são interdependentes. Assim, quanto mais célere e efetiva for a resposta à crise sanitária, mais rápida as crises econômica e social podem ser enfrentadas.

Nesse sentido, a tecnociência tem um papel fundamental quando a abstração extrapola a interposição entre pensamento e realidade e passa a pautar os discursos, como por exemplo, as falas que ressaltam contundentemente a mínima porcentagem em um índice comparativo de mortes causadas por doenças. A discussão em torno dos valores leva o foco para a abstração e para números que comparativamente são insignificantes em comparações simplificadas e descontextualizadas. Com isso, cria-se um obscurecimento do que realmente está sendo “tratado” por aqueles números, as vidas humanas.

Por outro lado, Morin (2017) aponta que essa deterioração do tecido social pela individualidade abre espaço para o surgimento de bandos ou gangues que se articulam em torno de uma ética local, a qual também passa a desafiar as condições pandêmicas que a todo momento explodem na mídia. Nesse sentido, o pensamento é egoísta quando enfocam exclusivamente o seu bem-estar pós contaminação, pois não se encontram no grupo de risco. O problema é que uma pessoa que não apresenta risco de vida na exposição ao vírus pode se tornar um vetor de contaminação e, nesse caso, ser decisivo para a contaminação e morte de outras pessoas.

O olhar sobre esses fatos demarca ações egocêntricas e egoístas em um mundo onde “forças de separação, recolhimento, ruptura, deslocamento,

ódio, são cada vez mais poderosas. [Por isso], mais do que sonhar com a harmonia geral ou o paraíso, devemos reconhecer a necessidade vital, social e

ética de amizade, de afeição e de amor pelos seres humanos” (MORIN 2017,

p. 36). Essa necessidade é reforçada pelo entendimento de que toda ação em algum momento escapa da intenção do seu autor, devido as interações retroalimentadas do meio social, ou seja, o fato de uma pessoa não acreditar nas informações sobre a pandemia pode levá-la a executar ações negligentes que podem levar outras pessoas a morte, mas é lógico que se questionado, esse indivíduo racional e moralmente não deseja matar ninguém.

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deve conduzir para uma ética da responsabilidade, tendo como fundamento o reconhecimento do sujeito relativamente autônomo e uma ética da solidariedade, pautada principalmente no pensamento que religa (MORIN, 2017). Em especial, “todo olhar sobre a ética deve perceber que o ato moral é

um ato individual de religação; religação com um outro; religação com uma

comunidade, religação com uma sociedade” (MORIN, 2017, p. 21). Por isso, a

ética não deve ser tratada isoladamente, mas se inter-relacionar com a inteligência, produzindo a capacidade necessária para enfrentar a complexidade da vida, do mundo e da própria ética (MORIN, 2017).

Nessas condições éticas, pode-se compreender as incompreensões, ou seja, religando o que estava separado e isolado emerge a capacidade de compreender as degradações humanas engendradas pelo excesso de egocentrismo, pela obsessão econômica, pelo espírito tecnoburocrático e, além disso, desenvolve a capacidade de responder a essas demandas de forma ética, na qual pode haver a necessidade de complexificar as estratégias orientando-se por uma pluralidade de valores, os quais podem ser considerados a partir de relações antagônicas, contraditórias ou dilemáticas (MORIN, 2017).

O ser humano é caracterizado por esse duplo movimento ético, no qual há espaço para o egocentrismo, em que emana a identidade, e também há espaço para o altruísmo, em que emerge a amizade e o amor que desencadeiam a capacidade de se sacrificar pelos outros. O problema é que as sociedades contemporâneas tendem a evidenciar o egocentrismo em detrimento ao altruísmo. Por isso, se faz necessária a reforma moral, principalmente agora, diante de uma crise pandêmica na qual se vislumbra visivelmente o egocentrismo e o egoísmo pautando as ações, os discursos, os entendimentos, os sentimentos, em um processo de fragmentação e isolamento que necessitará, e muito, da ética complexa de responsabilidade (autonomia) e solidariedade (religações). Dessa maneira, no contexto da crise planetária e da pandemia do COVID-19, enfatiza-se o pensamento de Morin (2015, p. 356) de que “cada um pode agir em prol da humanidade, isto é, contribuir com a tomada de consciência da comunidade de destino de todos e inscrever-se nela como cidadão da Terra-Pátria”.

Para finalizar a discussão das reformas no ‘novo normal’, que já foi iniciado e se prolongará após COVID-19, reflete-se sobre a possibilidade de orientar o presente pela racionalidade tradicional ou avançar para uma orientação complexa. Nesse caso, é importante mencionar que se trata da complexidade moriniana, pois, existem outros tipos de complexidades, cujas premissas são próximas do pensamento tradicional, tais como: Santa Fé (modelizações), caos, catástrofes, entre outras. Na Tabela 1, esboça-se uma espécie de resumo das discussões das reformas, explicitando as diferenças entre o pensamento tradicional e a complexo. Alguns aspectos apresentados na tabela extrapolam o conteúdo exposto anteriormente, mas servem como uma importante fonte de estudo para a compreensão dos dois pensamentos abordados neste ensaio.

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Tabela 1: Agenda complexa para educadores ambientais para ‘novo normal’ pós-COVID-19

PENSAMENTO PENSAMENTO TRADICIONAL PENSAMENTO COMPLEXO Prioridade das esferas da vida

Economia acima das demais

esferas da vida Integração entre as esferas da vida

Visão sobre o COVID-19

Mais uma epidemia semelhante as anteriores

Sinal de uma crise humanitária com efeitos inesperados e amplificadores de outras crises Reforma ecológica

(relação sociedade-natureza)

Dominação da natureza, antropoceno e capitaloceno

Convivência igualitária com outros seres da natureza e o cosmos Reforma econômica (ecologia-economia) Crescimento econômico e economia ambiental (sustentabilidade fraca e forte) Perspectiva biofísica e crescimento-decrescimento Reforma econômica

(intercomunicações) Globalização Mundialização-desmundialização

Reforma política (posicionamento sobre desenvolvimento) Desenvolvimento como crescimento econômico, Tecnoeconômico, privatista, desregulamentação e lucro de poucos Desenvolvimento-envolvimento (comunitário, valores não

materiais) Reforma política

(propostas) Política liberal

Política da Humanidade (Terra-Pátria) e Política de Civilização (solidariedade + qualidade de vida) Reforma social

(demografia)

Taxas elevadas de crescimento populacional nas

regiões mais pobres

Limites de crescimento nas superpopulações e estímulo nas

subpopulações Reforma social (desigualdade) Convivência com desigualdades eco-sócio-econômicas

Redução progressiva das piores desigualdades

Reforma da educação (objetivos)

Busca de soluções usando abordagens quantitativas

Valorização da dimensão cultural-humanista

Reforma da educação

(tipo de conhecimento) Especializado e reducionista Sistêmico e complexo

Reforma da educação (forma do conhecimento)

Linear baseado na causa e efeito

Linear e não linear baseado em circuitos recursivos em espiral Reforma da educação

(organização do conhecimento)

Disciplinar, dualística Transdisciplinar, pluralista

Reforma do pensamento (modo de pensar) Unidimensional, simplificador e disjuntivo Multidimensional, complexificador e conjuntivo Reforma moral (orientação) Egocentrismo, princípio da exclusão, Eu

Altruísmo, princípio da inclusão, Nós (na relação do eu com o outro) Reforma moral

(responsabilidade)

Ética local da individualidade, menos responsável e

solidária

Ética complexa de responsabilidade (autonomia) e

solidariedade (religações)

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Considerações Finais

Este ensaio teórico buscou religar o que estava separado através da demonstração das inter-relações existentes entre as policrises, algumas já existentes, oriundas das decisões com foco econômico-financeiro e tecnocientífico e que agora encontram-se agravadas e amplificadas pelo COVID-19. Dessa forma, a pandemia atua tanto como um gerador, bem como um potencializador dessas crises nos vários âmbitos da vida e, devido a sua abrangência, ela se caracteriza como uma importante evidência empírica que convida a todos à reflexão, especialmente os educadores, aos quais a complexidade moriniana pode ser um possível caminho para ser usado na busca de soluções.

Nas dimensões econômica, ambiental, política e social percebe-se uma exacerbação das crises recorrentes, tais como: a degradação e destruição ambiental, a acumulação desenfreada de capital, o aumento da desigualdade social, as fraturas políticas, a animosidade ideológica, a deterioração da qualidade e das condições mínimas de vida, entre outras. Por sua vez, nas dimensões educacional, filosófica e da moral, as crises existentes são acompanhadas por novas, como o “novo normal” da educação, a crise do pensamento fragmentado e reducionista que gera inconsciência e irresponsabilidade, bem como o extremo egoísmo que afeta sobremaneira a moral. Enfim, tudo está inter-relacionado e os impactos da pandemia produzem reverberações, ecos, propagações que retroalimentam essas inter-relações.

Por isso, é necessário que os educadores deixem de pautarem suas ações pelas fragmentações de modo a reforçá-las, e evitem se fecharem em suas especialidades ínfimas que bloqueiam o diálogo transdisciplinar e a capacidade de refletir sobre tudo. Para isso, devem tornar-se educadores complexo-humanizadores, capazes de refletir sobre a complexidade do mundo e da vida sem nunca deixar que o aspecto humanizador seja diluído por essa crescente capacidade de lidar com a complexidade.

Referências

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AMARO, R.R. Desenvolvimento – um conceito ultrapassado ou em renovação? – Da teoria à prática e da prática à teoria. Cadernos de Estudos Africanos, 4, jan./jul., 35–70, 2003. Lisboa: Centro de Estudos Africanos do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.

BRESSER-PEREIRA, L.C. Globalização e competição: por que alguns países emergentes têm sucesso e outros não. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

Imagem

Tabela 1: Agenda complexa para educadores ambientais para ‘novo normal’ pós-COVID-19  PENSAMENTO  PENSAMENTO  TRADICIONAL  PENSAMENTO  COMPLEXO  Prioridade das  esferas da vida

Referências

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