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<i>Linda, uma história horrível</i>: a literatura encontra o vírus da AIDS

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Academic year: 2020

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LINDA, UMA HISTÓRIA HORRÍVEL: A L I T E R A T U R A E N C O N T R A O V Í R U S D A A I D S

Fernando Oliveira M E N D E S *

O dorso é avermelhado e em tudo há um sabor Estranhamente horrível, notam-se, a rigor, Particularidades que demandam lupa... (Rimbaud, 1995, p. 25)

Nos ú l t i m o s anos a A I D S vem fazendo-se cada vez mais presente na literatura nacional e internacional:

O tema tem sido usado como metáfora de um mundo que se esgota e, no entanto, resiste ao extermínio. De Susan Sontag a Caio Fernando Abreu, os escritores estão desmistificando a doença que um dia j á foi chamada de "câncer gay" e hoje em dia é uma epidemia universal. Tanta tragédia não poderia mesmo passar ao largo da Literatura. Afinal, antes mesmo da escrita o homem j á pensava o mundo em relatos orais, versificados ou não (Ribeiro Neto, 1996, p. 8).

N a literatura brasileira a A I D S vem manifestando-se em autores como Silviano Santiago (Uma história de família, 1992), Bernardo Carvalho (Aberraçdo, 1993), A l b e r t o Guzik (Risco de vida, 1995), Jean-Claude Bernardet (A doença, uma experiência, 1996) e principalmente Caio Fernando Abreu. Como aponta Guzik:

* Aluno do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, Araraquara - SP.

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Muitos artistas estão reagindo à doença, é uma tematização como a que Dumas fez da tuberculose em " A dama das camélias" (...). Não sei se há uma tendência, o que acontece é que as pessoas estão reagindo à doença e expressando suas visões. A arte é uma das melhores terapêuticas. (Guzik, 1996, p. 4)

Considerado pelo critico Marcelo Secron Bessa como o escritor brasileiro que por mais vezes figurativizou1 a A I D S , Caio Fernando A b r e u

incluiu-a em diversos textos seus que v ã o de Pela Noite, uma das três novelas do l i v r o Triângulo das águas (1983), a certos contos de Os dragões não conhecem o paraíso (1988) e Ovelhas negras (1995), a l é m de diversas c r ô n i c a s j o r n a l í s t i c a s e do romance Onde andará Dulce Veiga? (1990), onde ocorre "uma história de amor entre dois contaminados" (Abreu, 1995a, p. 5). Na p e ç a teatral Zona contaminada (1982), que " n ã o por acaso" f o i escrita no "ano zero da proliferação da A I D S no Brasil" (Castello, 1994, p. 3), uma personagem chama a a t e n ç ã o para o fato de outra ter "a Peste" embora a d o e n ç a esteja "em seus estágios iniciais" (Abreu, 1997, p . 66). Outro texto escrito para o teatro, O homem e a mancha (1994), é uma "livre releitura do D o m Quixote, de Miguel de Cervantes" (Abreu, 1997, p. 95), no qual a mancha funciona como "uma m e t á f o r a para as marcas deixadas pela A i d s " (Ferreira, 1996, p. 4 ) . N o filme Romance (1988), que tem Abreu como u m dos roteiristas, uma personagem morre "misteriosamente, possivelmente de A I D S " (Ewald Filho, 1988, p.13).

A l é m de tornar a A I D S manifesta em v á r i o s textos seus, Abreu é o tradutor brasileiro do conto Assim vivemos agora, uma das ficções mundiais pioneiras na abordagem da doença, publicada pela norte-americana Susan Sontag, em 1986.

Provavelmente devido a este exercício de " b i ó g r a f o das e m o ç õ e s c o n t e m p o r â n e a s " (Abreu, 1995b), A b r e u reivindica para si o título de criador da "primeira ficção brasileira sobre A I D S " (Abreu, 1995a, p. 5) com o conto Linda, uma história horrível, do l i v r o Os dragões não conhecem o paraíso. E m vista deste seu posicionamento, o l i v r o s e r á privilegiado neste estudo da ( d e s ) c o n s t r u ç ã o da A I D S operada pela literatura.

Linda, uma história horrível n ã o f o i o texto introdutor da A I D S na ficção brasileira, pois Bessa mostra o engano de Abreu ao afirmar que:

Secron utiliza o termo "tematizou", que, por dele discordarmos, estamos substituindo por "figurativizou".

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-No Brasil (...) a AIDS surgiu na literatura (...) na novela "Pela noite", de Caio Fernando Abreu. A doença como tema, porém - ou, pelo menos, a tentativa de inscrevê-la como tal - , apareceu em 1 9 8 7 , no romance Alegres e irresponsáveis abacaxis americanos, de Herbert Daniel. Este romance, no entanto, não foi a primeira tentativa de analisar a epidemia de HIV/AIDS. E m 1 9 8 3 -ano do primeiro caso de AIDS diagnosticado no Brasil - , o escritor j á publicara um pequeno ensaio sobre a epidemia, no anexo intitulado " A sindrome do preconceito", do livro Jacarés e lobisomens ( 1 9 8 3 ) , coescrito com Leila Miccolis. Sua incursão na ficção e AIDS, se dá porém com Alegres e irresponsáveis abacaxis americanos. (Bessa, 1 9 9 7 , p.

78-7 9 ) .

A fala de Bessa torna necessário esclarecer a diferença existente entre figurativizar e incluir a sigla A I D S num texto literário. N a novela Pela noite, Abreu utiliza a sigla duas vezes, p o r é m nenhuma das personagens manifesta a d o e n ç a ; j á em Linda, uma história horrível a sigla n ã o é escrita, entretanto a personagem principal está contaminada pela A I D S . Por esta r a z ã o , Abreu pode ser considerado apenas o primeiro autor nacional a utilizar a sigla e n ã o o precursor da figurativização da d o e n ç a , pois seu conto Linda, uma história horrível foi antecipado pelo l i v r o de Daniel, Alegres e irresponsáveis abacaxis americanos.

Apesar da sigla A I D S n ã o ser sequer mencionada em Linda, uma história horrível, o narrador vai nos dando informações sobre a debilitada s a ú d e do protagonista, e e n t ã o somos convidados (convocados?), enquanto leitores, a interagir com a c o n s t r u ç ã o do sentido do texto. A volta inesperada à cidade natal desse solteiro beirando os quarenta anos, a p ó s longo p e r í o d o de a u s ê n c i a , sua magreza e perda de cabelos notados pela m ã e no instante do reencontro e, principalmente, as manchas p ú r p u r a em sua pele, nos d ã o a certeza de ser esta personagem u m portador do mortal v í r u s .

A o p ç ã o de A b r e u pela quase total e l i m i n a ç ã o da sigla A I D S em seus textos é compartilhada por outros autores brasileiros:

Se nos textos de [Herbert] Daniel, a sigla é escrita e reescrita inúmeras vezes, quase todos outros escritores vão pelo caminho oposto, utilizando-se da elipse da sigla. Muitas vezes, mesmo com a elipse, a doença é facilmente identificável; outras, nem tanto. Logo, o que se vêem são

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textos onde ela é sutilmente sugerida (Uma história de família, 1992, Silviano Santiago), onde é facilmente

subtendida (os contos " A valorização" e "Atores" do livro Aberração, de 1993, de Bernardo Carvalho), ou mesmo metamorfoseada em outra doença (Vinho da noite, 1994, de Calque Ferreira). Nos textos de Caio Fernando Abreu que abordam a AIDS, a não-nomeação é uma ordem. Em todos eles, a AIDS é subtendida em maior ou menor grau, mas quase nunca a sigla é escrita. As exceções são as duas rápidas vezes em "Pela noite", uma em "Dama da noite" (conto de Os dragões não conhecem o paraíso), e uma em Onde andará Dulce Veiga?, o que praticamente não conta. (Bessa, 1997, p. 81)

Jean-Claude Bemardet, p o r é m , vem engrossar o coro comandado por Herbert Daniel quando o narrador de seu l i v r o A doença, uma experiência declara: " D i g o A I D S , e n ã o digo doença, digo Sou Aidético, e n ã o digo Estou doente ou sou portador do H I V . J á que estamos com A I D S , pelo menos que se viva a d o e n ç a com intensidade" (Bernardet, 1996, p. 35). Sinal de que nas narrativas brasileiras mais recentes sobre A I D S a d o e n ç a e s t á passando a ser vista de outra forma; que foi percebido que "pronunciar o nome da d o e n ç a é sinal de s a ú d e , sinal de que a gente aceitou ser do jeito que é, mortal, vulnerável, n ã o u m privilegiado, sinal que estamos dispostos (...) a lutar por nossas vidas" (Sontag, 1995, p. 31).

N o conto de Abreu travamos contato com o motivo das partidas e retornos empreendidos pelas personagens, algo bastante freqüente em sua p r o d u ç ã o literária, n ã o se restringindo a Linda, uma história horrível.

O cosmos ficcional criado por Caio Fernando Abreu se particulariza por conter personagens para as quais o futuro não significa nada. Quando elas partem, estão fugindo; quando retornam, estão se preparando para reencontrar a morte: a de um ente querido, como em Visita, a própria, como em Linda, uma história horrível. É flagrante a ausência de um projeto existencial, circunstância coerente com o fato de os heróis constituírem seres sem identidade. (Zilberman, 1992, p. 141)

Entre padecer e morrer s ó numa outra cidade e entrar em contato com a amarga m ã e , esse inominado prefere a segunda o p ç ã o . Mesmo encontrando uma acolhida fria em seu retorno a Passo da Guanxuma, a

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d i s j u n ç ã o deste amor "que antigamente n ã o compreendia", mas "agora tantos anos depois, aprendera a traduzir como saudade, seja-benvindo, que-b o m - v e r - v o c ê ou qualquer coisa assim" (Aque-breu, 1988, p.14), parece-lhe a pior escolha.

A o estreitar os laços familiares, depara-se com a d e c a d ê n c i a física e material:

O motivo pelo qual a AIDS não é nomeada, sempre apresentada aos poucos e por pistas, deve-se a um objetivo mais amplo do conto: discutir a solidão, a finitude da vida e a devastação provocada pelo tempo, não só através do protagonista que está com AIDS, mas também através da mãe dele e da cadela Linda. (Bessa, 1997, p. 102)

O animal j á soma quinze anos de vida, sarnenjo, apresenta manchas rosadas sob os pêlos, semelhantes à s deixadas no peito do homem pelo Sarcoma de Kaposi e "da cor antiga do tapete na escada" (Abreu, 1988, p. 22). O ponto de intersecção entre todos e s t á no t é r m i n o de suas existências, pois a m ã e t a m b é m possui manchas escuras, de ceratose, nas m ã o s , que se diferem da cor das do filho e da cadela, anunciando sua velhice e c o n s e q ü e n t e m e n t e a proximidade da morte, como nos outros dois. A estas t r ê s personagens associa-se a casa^ "onde tudo envelhece rapidamente como a imagem dos velhos morangos na toalha desbotada (...), remetendo a u m mundo vencido, gasto" (Sefrrin, 1988, p. 3), t a m b é m representado pelos azulejos da cozinha manchados de gordura, por onde, vez ou outra, cruza uma barata.

O sofisticado cotidiano do filho na outra cidade, onde eram comuns as visitas a bons restaurantes e o uso de a v i õ e s em viagens, e s t á em antítese com a simplicidade da vida da m ã e , em Passo da Guanxuma, que recende a "cigarro, cebola, cachorro, sabonete, c a n s a ç o , velhice" (Abreu, 1988, p. 21). Esta o p o s i ç ã o pode ser percebida no trecho da c a n ç ã o Só as mães são felizes, escolhido por A b r e u para antecipar a a ç ã o de Linda, uma história horrível.

A o utilizar parte da letra da c a n ç ã o , de autoria de Cazuza, e Frejat (1996), Abreu reforça a o b s e r v a ç ã o de diversos críticos acerca da i m p o r t â n c i a da m ú s i c a , enquanto letra de c a n ç ã o , na e s t r u t u r a ç ã o de seu texto. Ele mesmo declarou adorar " M o z a r t , m ú s i c a " , burilar "a sonoridade de" seus textos (Abreu, 1995b), assumindo sofrer maior influência de grandes

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nomes da m ú s i c a popular brasileira, tais como Cazuza e Rita Lee, do que do escritor Graciliano Ramos.

N a c a n ç ã o as m ã e s s ã o colocadas acima do bem e do mal por nunca terem ouvido "falar em m a l d i ç ã o " nem chorado sozinhas " n u m banheiro p ú b l i c o " (Cazuza & Frejat, 1996), distantes da d i s c r i m i n a ç ã o imposta aos seus filhos transgressores das normas de boa conduta de uma sociedade que, a exemplo do Narciso da conhecida c a n ç ã o de Caetano, "acha feio o que n ã o é espelho" (Veloso, 1988, p. 97).

Nada é mais adequado à personagem protagonista do conto, soropositiva, abandonada pelo p r o v á v e l namorado e pelos amigos, do que regressar para a casa da m ã e , que ignora a d i m e n s ã o dos problemas do filho, pois segue protegida pelo cerco de s e g u r a n ç a familiar. A s informações sobre a existência de "umas d o e n ç a s novas", (...) "umas pestes" (Abreu, 1988, p. 18) chegam pela televisão, mas s ã o encaradas como distantes de sua s i m p l ó r i a realidade. Ela n ã o é relegada a permanecer à margem - como é o caso de seu filho, por n ã o deixar descendentes, relacionar-se amorosamente com pessoas do mesmo sexo e alojar o v í r u s do mal deste f i m de século.

A parceria estabelecida entre literatura e A I D S aparentemente p e r d u r a r á por longo tempo, pois as d o e n ç a s oportunistas, associadas ao outrora chamado c â n c e r gay, continuam a ser mais velozes que as pesquisas para a descoberta de uma vacina contra tal v í r u s . Resta à "literatura" tentar "construir uma nova perspectiva de onde" se possa encarar a A I D S de forma mais corajosa, transformando a "linguagem" em " a n t i v í r u s " (Graieb, 1996, P- 8).

R e f e r ê n c i a s b i b l i o g r á f i c a s

ABREU, Caio Fernando. Não quero me encaixar em prateleiras. O Estado de S. Paulo (São Paulo), 9 dez. 1995a. Caderno 2, p. 5. Entrevista concedida a José Castello.

. Linda, uma história horrível. In: . Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 13-22.

. Quero brincar livre nos campos do senhor. 1995b. Entrevista inédita concedida a Marcelo Secron Bessa.

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BERNARDET, Jean-Claude. A doença, uma experiència. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

BESSA, Marcelo Secron. Histórias positivas: a literatura (des)construindo a Aids. Rio de Janeiro: Record, 1997.

CASTELLO, José. A condenação que virou alegria de viver. O Estado de S. Paulo (São Paulo), 11 dez. 1994. Caderno 2, p. 3.

CAZUZA, FREJAT. Só as mães são felizes. In: Barão Vermelho: álbum. São Paulo: W E A , 1996.

E W A L D FILHO, Rubens. Romance. Nova (São Paulo), v. 16, n. 5, maio 1988. p. 13.

FERREIRA, Mauro. Marginais que vivem com ironia nas entrelinhas. O Globo (Rio de Janeiro), 11 ago. 1996. Segundo Caderno, p. 4.

GRAIEB, Carlos. Autor usa linguagem áspera como antivírus. O Estado de S. Paulo (São Paulo), 11 maio 1996. Cultura, p. 8. ' GUZIK, Alberto. In: PIRES, Paulo Roberto. A literatura encontra o vírus da AIDS.

O Globo (Rio de Janeiro), 11 jan. 1996. Segundo Caderno, p. 4.

RIBEIRO NETO, Amador. Aids & Literatura. Suplemento Literário de Minas Gerais (Belo Horizonte), n. 20, dez. 1996. p. 8.

R I M B A U D , Jean-Arthur. Vénus Anadiômene. In: CAMPOS, Augusto de. Rimbaud livre. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 25.

SEFFRIN, André do Carmo. Caio: entre dragões e velhos morangos. Jornal de Letras (Rio de Janeiro), v. 38, n. 437, jun. 1988. Caderno 2, p. 3.

SONTAG, Susan. Assim vivemos agora. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p . 3 1 .

VELOSO, Caetano. Sampa. In: FRANCHETTI, Paulo, PÉCORA, Alcyr. Caetano Veloso. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 97. (Literatura Comentada).

Z I L B E R M A N , Regina. A literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992. p. 139-141.

Referências

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