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“Yo no sabía si amaba más al puente o al río”: torções ontoepistemológicas em José María Arguedas / “I Didn’t Know If I Loved More the Bridge or the River”: Ontoepistemological Twists on José María Arguedas

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Academic year: 2020

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eISSN: 2358-9787

DOI: 10.17851/2358-9787.25.1.45-65

“Yo no sabía si amaba más al puente o al río”:

torções ontoepistemológicas em José María Arguedas

“I Didn’t Know If I Loved More the Bridge or the River”:

Ontoepistemological Twists on José María Arguedas

Chryslen Mayra Barbosa Gonçalves

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, São Paulo / Brasil chryslenmayra@hotmail.com

https://orcid.org/0000-0002-6800-5073

Resumo: A proposta aqui apresentada é proveniente de algumas tensões possibilitadas pela leitura de José María Arguedas, aos 50 anos de sua morte, a partir dos debates de autores da “virada ontológica” e do “giro epistemológico” na produção do conhecimento antropológico. Neste sentido, retomo o livro Los Ríos Profundos (1958) de Arguedas e coloco em diálogo com preocupações acerca dos Earth Beings. Tomo, também, a metáfora do Pachachaca de Rômulo Monte Alto (2011) e as inquietações epistemológicas, portanto políticas, da teoria crítica anticolonial latino-americana, em especial a categoria ch’ixi de Silvia Rivera Cusicanqui. Meu objetivo, deste modo, é evidenciar as ressonâncias entre as preocupações ontoepistemológicas (DE LA CADENA, 2015) da antropologia com a produção de uma narrativa literária arguediana. Palavras-chave: antropologia; ontoepistemologias; literatura; José María Arguedas. Abstract: The proposal presented here stems from some tensions made possible by the reading of José María Arguedas at the 50 years of his death, from the debates of authors of the “ontological turn” and the “epistemological turn” in the production of anthropological knowledge. In this sense, I return to the book Los Ríos Profundos (1958) by Arguedas and put in dialogue with concerns about Earth Beings. I also take the metaphor of Rômulo Monte Alto’s Pachachaca (2011) and the epistemological, therefore political, concerns of Latin American anticolonial critical theory, in particular Silvia Rivera Cusicanqui’s ch’ixi category. My goal, therefore, is to highlight the resonances

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between anthropology’s on-epistemological concerns (DE LA CADENA, 2015) with the production of an arguedian literary narrative.

Keywords: anthropology; ontoepistemologies; literature; Jose Maria Arguedas.

Apresentação

Soy la herida que no cicatriza, la pequeña piedra solar: si me rozas, el mundo se incendia.

Octavio Paz

Aos 50 anos da morte de José María Arguedas (1911-1969), a questão da relação entre seus escritos literários e antropológicos aparece com força no debate das duas áreas. No Brasil, o debate dos trabalhos de Arguedas aconteceu especialmente na área dos estudos literários. Uma expressão atual foi o III Colóquio Brasileiro de Estudos Andinos que aconteceu na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2019. Este artigo é fruto de diálogos neste espaço, bem como das problemáticas apresentadas na disciplina de Debates Contemporâneos em Antropologia Social na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

O problema que tentarei evidenciar nestas poucas páginas é a proposta de um exercício de leitura antropológica do livro Los Ríos

Profundos (1958), de José María Arguedas, à luz dos questionamentos

levantados tanto por autores da chamada “virada ontológica”, quanto por autores mais afins ao “giro epistemológico”. Compreendo, assim, os trabalhos literários e antropológicos de José María Arguedas como uma intersecção importante entre as duas áreas, porque o autor sustenta elementos antropológicos em seus textos literários, bem como elementos literários em seus trabalhos antropológicos.

Para tal, amparada pela perspectiva de Eduardo Restrepo (2016) de que a produção de um sujeito perpassa suas experiências subjetivas e a própria corporalidade, apresento um pouco da trajetória de Arguedas e alguns debates acerca da sua produção narrativa.

José María Arguedas, nascido em Andahuaylas, Peru (1911), filho do advogado Víctor Manuel Arguedas Arellano e Victoria Altamiro Navarro, foi um antropólogo, contista e romancista peruano, muitas

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vezes lido como indigenista, mas que revolucionou as narrativas acerca das populações indígenas no Peru. Arguedas ficou órfão de mãe aos três anos de idade e foi levado para viver com a madrasta em uma fazenda na comunidade de Puquio.1 Renegado por esta e com a ausência do pai que

viajava em busca de trabalhos, foi enviado para viver entre os indígenas (quéchuas) serventes da fazenda, comendo de suas comidas, vestindo suas roupas e, sobretudo, falando sua língua:

Mas algo de triste e poderoso ao mesmo tempo deve ter o consolo que aqueles que sofrem dão aos que sofrem mais, e duas coisas permaneceram em minha natureza muito solidamente desde que aprendi a falar: a ternura e o amor sem limites dos índios, o amor que eles têm entre si e têm à natureza, às montanhas, aos rios, aos pássaros.2 (ARGUEDAS, 1992 [1965], p. 7, tradução minha).

Foi alfabetizado em quéchua, participou de cabildos nos ayllus3

de Puquio, compreendendo esta forma de organização comunitária e construindo figuras que seriam determinantes, mais tarde, na construção de sua literatura. As canções, os mitos quéchuas, os cenários andinos

mancharam4 as produções literárias e antropológicas de Arguedas

até o dia de seu suicídio. Já adulto, seus estudos em Antropologia o aproximaram dos escritos de José Carlos Mariátegui e de um socialismo latino-americano, chegando a afirmar que o socialismo não matou nele o “mágico”, elemento que o vinculava aos quéchuas.

1 Sobre esta comunidade, Arguedas publicou em 1941 o romance Yawar Fiesta (do

quéchua, “festa de sangue”). Este romance insere Arguedas no movimento indigenista peruano, pela preocupação em representar os cenários indígenas daquela época, no entanto foge dos pressupostos paternalistas e assimilacionistas da literatura indigenista peruana.

2 “Pero algo de triste y de poderoso al mismo tiempo debe tener el consuelo que los que

sufren dan a los que sufren más, y quedaron en mi naturaleza dos cosas muy sólidamente desde que aprendí a hablar: la ternura y el amor sin límites de los indios, el amor que se tienen entre ellos mismos y le tienen a la naturaleza, a las montañas, a los ríos, a las aves.”

3 Comunidades indígenas andinas, especialmente das etnias Quéchua e Aymara. O ayllu

é uma forma de organização territorial, social e política comunitarista.

4 Esta categoria será apresentada mais adiante com o trabalho de Silvia Rivera

Cusicanqui. Antecipo aqui, que as manchas são constitutivas de um conflito que não se soluciona entre características distintivas, longe de qualquer leitura harmônica de uma escrita “mestiça”.

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Um tema que cruzou boa parte da produção literária e antropológica de José María Arguedas foi o da tradução, uma vez que seus primeiros trabalhos, Agua (1935) e Yawar Fiesta (1941), carregavam problemas, segundo Arguedas, na tradução do quéchua para o castelhano na forma, nas palavras e nos sentidos que apresentava. A tradução vinha acompanhada pelo “problema da universalidade”, que perpassa os trabalhos de Arguedas, e gera críticas, como a do escritor Julio Cortázar (1967), que o caracterizou como provinciano. Nas palavras de Arguedas, a universalidade sai dos parâmetros aos quais Cortázar a inseria e transforma-se em um exercício de: “Realizar-se, traduzir-se, transformar em torrente diáfana e legítima a língua que parece alheia; comunicar à língua quase estrangeira a matéria do nosso espírito. Essa é a dura, a difícil questão”5 (ARGUEDAS, 2009 [1950], p. 157, tradução

minha). Arguedas chamava a atenção para a urgência de repensar o que naquele momento era considerado universal e provincial, sustentando a necessidade política de um diálogo, que não necessariamente tome como base os termos da escrita dominante. Como aponta Macedonio Broncano Villafán (2011), Arguedas “cria um código estritamente literário para expressar em espanhol o que o homem andino diz em quéchua”6 (VILLAFÁN, 2011, p. 72, tradução minha). Em um texto de

1950, Arguedas explica:

Em que idioma os índios devem ser levados a falar na literatura? Para os bilíngues, para aqueles que aprenderam a falar quéchua, é subitamente impossível fazê-los falar espanhol; Por outro lado, quem não os conhece desde a infância, através de uma experiência profunda, talvez possa concebê-los se expressando em espanhol. Resolvi o problema criando um espanhol especial para eles, que depois foi usado com horrível exagero em trabalhos alheios. Mas os índios não falam naquele castelhano nem com os de língua espanhola, muito menos entre eles! É uma ficção. Os índios falam quéchua. Toda a serra do sul e do centro, com exceção de algumas cidades, são totalmente falantes de quéchua. Quem vai de outras regiões para residir nas aldeias e comunidades do sul precisa

5 “Realizarse, traducirse, convertir en torrente diáfano y legítimo el idioma que parece

ajeno; comunicar a la lengua casi extranjera la materia de nuestro espíritu. Esa es la dura, la difícil cuestión.”

6 “crea un código estrictamente literario para expresar en español lo que el hombre

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aprender quéchua; é uma necessidade inevitável. Portanto, é falso e horrendo apresentar os índios falando o espanhol dos servos quéchuas acostumados a capital. Eu, agora, depois de dezoito anos de esforços, estou tentando uma tradução em espanhol dos diálogos dos índios. A primeira solução foi criar uma linguagem para eles com base nas palavras castelhanas incorporadas ao quéchua e ao elementar castelhano que alguns índios conhecem em “suas próprias aldeias”. O romance realista aparentemente não tinha outro caminho.7 (ARGUEDAS, 2009 [1950], p. 159,

tradução minha).

Para o autor, o que “solucionou o problema” da linguagem – ou chegou mais perto disso – foi a novela publicada em 1958 com o título:

Los Ríos Profundos.

Em 1965, uma mesa redonda foi organizada entre literatos e cientistas sociais para discutir o livro Todas las Sangres (1964), de José María Arguedas. O Instituto de Estudios Peruanos, recém-formado IEP, tinha como integrantes os sociólogos Aníbal Quijano e Henri Favre. Atribuindo a Arguedas o selo de uma “literatura nacional”, a crítica voltava-se ao caráter testemunhal da tarefa literária de Arguedas, bem como a uma suposta falta de metodologia e teoria no fazer antropológico, ao executá-lo a partir de uma perspectiva, segundo eles, também testemunhal. Para Fermín Pino Días (2004), dos presentes na mesa

7 “¿En qué idioma se debía hacer hablar a los indios en la literatura? para el bilingüe,

para quien aprendió a hablar en quechua, resulta imposible, de pronto, hacerlos hablar en castellano; en cambio quien no los conoce a través de la niñez, de la experiencia profunda, puede quizá concebirlos expresándose en castellano. Yo resolví el problema creándoles un lenguaje castellano especial, que después ha sido empleado con horrible exageración en trabajos ajenos. ¡Pero los indios no hablan en ese castellano ni con los de lengua española, ni mucho menos entre ellos! Es una ficción. Los indios hablan en quechua. Toda la sierra del sur y del centro, con excepción de algunas ciudades, es de habla quechua total. Los que van de otras regiones a residir en las aldeas y pueblos del sur tienen que aprender el quechua; es una necesidad ineludible. Es, pues, falso y horrendo, presentar a los indios hablando en el castellano de los sirvientes quechuas aclimatados en la capital. Yo, ahora, tras dieciocho años de esfuerzos, estoy intentando una traducción castellana de los diálogos de los indios. La primera solución fue la de crearles un lenguaje sobre el fundamento de las palabras castellanas incorporadas al quechua y el elemental castellano que alcanzan a saber algunos indios en ‘sus propias aldeas’. La novela realista al parecer, no tenía otro camino.”

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sobre Arguedas, apenas Alberto Escobar analisou a obra Todas las

Sangres tomando como base a trajetória e os interesses do autor, de uma

transformação dos referentes de sua escrita em direção aos interesses indígenas e não somente uma análise das convicções próprias frente aos problemas da heterogeneidade nacional. O grande problema encontrado no trabalho de Arguedas pelos expertos presentes na mesa era a inter-relação entre Antropologia e Literatura.

No dia 02 de dezembro de 1969, José María Arguedas se suicidou na cidade de Lima, nas dependências da Universidad Agraria de la Molina. Alguns autores associam sua morte à mesa do IEP (PINO DÍAS, 2004); outros, como o próprio Vargas Llosa, à posição do autor entre dois mundos, irreconciliáveis. Utilizo aqui a memória da morte de Arguedas não como fim, mas como fio condutor para pensar as feridas ainda presentes, que jorram sangue, essa “herida que no cicatriza” (“ferida que não cicatriza”), como disse Octavio Paz.

Los Ríos Profundos (Uku Mayu)

Los Ríos Profundos (do quéchua Uku Mayu) é uma das obras

literárias de José María Arguedas, tendo sido publicada pela primeira vez no ano de 1958,8 e conta a história de um menino de quatorze anos,

Ernesto, que percorre um caminho junto ao pai até a comunidade de Abancay,9 onde fica em um internato, enquanto o pai viaja em busca de

trabalhos para mantê-los.

Vou começar por onde eu quero chegar, com alguns fragmentos do livro de Arguedas que me chamaram a atenção e excertos que lançam mão de uma proximidade existente entre os seres “humanos” e “não humanos”. Em um primeiro momento, ao passarem pela cidade de Cuzco, Ernesto se encanta pelos muros incaicos:

Eram maiores e mais estranhas do que ele imaginara as pedras do muro inca; fervendo sobre o segundo piso encrustado que pelo lado da rua estreita era cego. Lembrei-me, então, das canções quéchuas que repetem uma frase patética constante: “yawar

8 Trata-se de uma narrativa em primeira pessoa, por isso as perspectivas do narrador

estão vinculadas às do personagem Ernesto.

9 Cidade localizada na serra peruana, centro sul do país, a mais de 2000 metro acima

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mayu”, rio de sangue; “Yawar unu”, água ensanguentada; “puk’tik ‘yawar k’ocha”, lago de sangue fervente; “Yawar wek’e”, lágrimas de sangue. Não se pode dizer “yawar rumi”, pedra de sangue, ou “puk’tik ‘yawar rumi”, pedra de sangue fervente? O muro está estático, mas fervia em todas as suas linhas e a superfície estava mudando, como a dos rios no verão, que têm um pico como esse, em direção ao centro do fluxo, que é a área mais temível, a mais poderosa. Os índios chamam esses rios turvos de “yawar mayu” porque mostram um brilho em movimento com o sol, semelhante ao do sangue. Eles também chamam de “yawar mayu” o tempo violento das danças guerreiras, o momento em que os dançarinos lutam.

– Puk’tik’yawar rumi – exclamei em frente ao muro, em voz alta.10

(ARGUEDAS, 1958, p. 6, grifo meu, tradução minha).

Quando constata a voz dos muros em Cuzco, Ernesto se direciona ao pai e diz: “Papai – disse – cada pedra fala. Esperemos um momento”11

(ARGUEDAS, 1958, p. 7, tradução minha). Diante das negativas do pai frente ao que ele chama de uma “confusão” na cabeça de Ernesto, o menino complementa: “‒ Cada pedra é diferente. Não estão cortadas. Estão em movimento”12 (ARGUEDAS, 1958, p. 7, tradução minha).

Em narrativas de Ernesto sobre o lugar que se torna sua nova casa, na comunidade de Abancay, ele relata:

10 “Eran más grandes y extrañas de cuanto había imaginado las piedras del muro incaico;

bullían bajo el segundo piso encalado que por el lado de la calle angosta era ciego. Me acordé, entonces, de las canciones quechuas que repiten una frase patética constante: ‘yawar mayu’, río de sangre; ‘yawar unu’, agua sangrienta; ‘puk’tik’ yawar k’ocha’, lago de sangre que hierve; ‘yawar wek’e’, lágrimas de sangre. ¿Acaso no podría decirse ‘yawar rumi’, piedra de sangre, o ‘puk’tik’ yawar rumi’, piedra de sangre hirviente? Está estático el muro, pero hervía por todas sus líneas y la superficie era cambiante, como la de los ríos en el verano, que tienen una cima así, hacia el centro del caudal, que es la zona temible, la más poderosa. Los indios llaman ‘yawar mayu’ a esos ríos turbios, porque muestran con el sol un brillo en movimiento, semejante al de la sangre. También llaman ‘yawar mayu’ al tiempo violento de las danzas guerreras, al momento en que los bailarines luchan.

‒ Puk’tik’yawar rumi – exclamé frente al muro, en voz alta.”

11 “Papá – le dije – cada piedra habla, Esperemos un instante.” 12 “Cada piedra es diferente. No están cortadas. Se están moviendo.”

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Eu não sabia se amava mais a ponte ou o rio. Mas ambos limparam minha alma, inundaram-na com fortaleza e sonhos heróicos. Todas as imagens tristes, as dúvidas e as más lembranças foram apagadas da minha mente.

E assim, renovado, retornei ao meu ser, voltei à comunidade; Subi a ladeira assustadora com passos firmes. Eu estava conversando mentalmente com meus velhos amigos distantes: Don Maywa, Don Demetrio Pumaylly, Don Pedro Kokchi... que me criaram, que fizeram meu coração ser parecido com o deles.13 (ARGUEDAS,

1958, p. 50, tradução minha).

Refiro-me ao fim do capítulo “Puente sobre el mundo”, no qual o narrador apresenta sua afinidade com o rio, tanto a partir de uma relação direta com suas águas e correntezas, quanto a partir de diálogos que estabelecia com este, compartilhando uma vontade de movimentar-se: “Como você, rio Pachachaca! Lindo cavalo de crina brilhante, imparável e permanente, marchando no caminho mais profundo da terra!”14

(ARGUEDAS, 1958, p. 51, tradução minha). Em uma passagem, Ernesto debate com o amigo Peluca sobre a possibilidade da vida das águas:

– El agua es muerta, “Peluca”? Crees? – Otra cosa es.

– Si no es muerta sería mejor que llevaran mi cuerpo al Pachachaca. Quizá el río me criaría en algún bosque, o debajo del agua, en los remansos. No crees? – le pregunté.

– Si fueras mujer, quizás. “Disvarías”.

– Pero no soy como tú. Quizás me llevaría lejos, adentro de la montaña; quizá me convertiría en un pato negro o en un pez que come arena.

(ARGUEDAS,1958, p. 163).

13 “Yo no sabía si amaba más al puente o al río. Pero ambos despejaban mi alma, la

inundaban de fortaleza y de heroicos sueños. Se borraban de mi mente todas las imágenes plañideras, las dudas y los malos recuerdos.

Y así, renovado, vuelto a mi ser, regresaba al pueblo; subía la temible cuesta con pasos firmes. Iba conversando mentalmente con mis viejos amigos lejanos: don Maywa, don Demetrio Pumaylly, don Pedro Kokchi... que me criaron, que hicieron mi corazón semejante al suyo.”

14 “Como tú, río Pachachaca! ¡Hermoso caballo de crin brillante, indetenible y

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O narrador evidencia muitas vezes sua distinção com relação aos outros internos. Em conversas com o Sargento ele explica essa diferença com um “Fui criado pelos índios; outros, mais homens que estes, que os ‘colonos’”15 (ARGUEDAS, 1958, p. 183, tradução minha). Como último

exemplo da relação entre o narrador e o rio, enquanto dois sujeitos, Ernesto narra sua saída de Abancay considerando que o rio arraste a peste, assustada pelas orações dos índios:

Pela ponte suspensa de Auquibamba passaria o rio, pela tarde. Se os colonos, com suas imprecações e suas canções, tivessem aniquilado a febre, talvez, do alto da ponte, eles a veriam passar, arrastada pela corrente, varrida, ou flutuando nos canteiros de flores de pisonay que esses rios profundos sempre carregam. O rio a levaria para a Grande Floresta, país dos mortos. Como al Lleras!16 (ARGUEDAS, 1958, p. 187, tradução minha).

Nesses e em demais momentos do livro é possível perceber uma familiaridade entre o narrador e os seres do mundo. Estes seres são chamados Earth Beings ou “seres terra” por Marisol de la Cadena (2015), no trabalho que a autora realizou entre algumas comunidades quéchuas no Peru nos anos 2000. A preocupação da autora está direcionada necessariamente a um fazer antropológico mais colaborativo e lança mão das ontologias andinas, como a produção de uma “etnografia colaborativa”. No entanto, relaciono o trabalho desta antropóloga com o livro de Arguedas pensando a literatura não como “verdade feita de mentiras” proposta por Vargas Llosa, mas como um exercício que apaga as distinções entre o que é “real” e o que é “ficção” a partir do momento que toma a vida como elemento central. Nas palavras de Arguedas, a literatura representaria um trabalho “Absolutamente verdadeiro e absolutamente imaginado. Carne e osso e pura ilusão”17 (ARGUEDAS,

1968 apud DE LA CADENA, 2009, p. 273, tradução minha).

15 “Me criaron los indios; otros, más hombres que estos, que los ‘colonos’.”

16 “Por el puente colgante de Auquibamba pasaría el río, en la tarde. Si los colonos,

con sus imprecaciones y sus cantos, habían aniquilado a la fiebre, quizá, desde lo alto del puente, la vería pasar, arrastrada por la corriente, a retama, o flotando sobre los mantos de flores de pisonay que estos ríos profundos cargan siempre. El río la llevaría a la Gran Selva, país de los muertos. Como al Lleras!”

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Marisol de la Cadena, em Earth Beings: Ecologies of Practice

across Andean Worlds (2015), analisa aspectos dos mundos andinos

que criam tensões ontoepistemológicas – conhecimento e modos de vida – com relação aos arquétipos modernos. Para o mundo andino, as palavras e as coisas emergem simultaneamente. Assim, palavras são coisas e não metáforas ou representações, a narrativa é, deste modo, a própria vida e o narrar é o viver. Isso ressoa no texto de José María Arguedas constantemente: o narrador percebe o mundo ao seu redor como sujeito, percebendo-se a si mesmo, associando seus anseios por movimentar-se aos movimentos do rio, movimentando-se, correndo nos pátios do internato. Esses “other-than-human beings”, para Marisol de la Cadena (2015), como o rio para Arguedas, foram delegados ao status de crença por intelectuais e literatos que compuseram a mesa de 1965, sendo assim uma contestação da própria eficácia ou existência destes seres, prevalecendo, na concepção destes autores, o mundo moderno e sua perspectiva de natureza e de humanidade como opostos.

Macedonio Villafán (2011) percebe a relação que o trabalho de Arguedas estabelece entre a natureza e a vida na sua obra como elemento de uma modernidade quéchua. Assim: “Em Los Ríos Profundos a natureza cobra vida; os objetos adquirem dimensão mágica na visão do narrador e dos personagens”18 (VILLAFÁN, 2011, p. 67, tradução

minha). Esta “dimensão mágica” analisada pelo autor pode ser a mesma que o próprio Arguedas aciona quando fala sobre o socialismo, que não matou o “mágico”. Villafán chama a atenção para um fragmento do conto

Warma Kuyay (1933) no qual a “dimensão mágica” aparece: “A natureza

tem vida. A montanha é um ser vivente. ‘– Se você caísse de peito, tayta Chawala, todos nós morreríamos’ (Conto Warma Kuyay, 1986: 2008)”19

(VILLAFÁN, 2011, p. 68, tradução minha).20 O mágico aliado à vida na

perspectiva de Villafán é o que apaga algumas dicotomias coloniais – do

18 “En Los Ríos Profundos la naturaleza cobra vida; los objetos adquieren dimensión

mágica en la visión del narrador y los personajes.”

19 “La naturaleza tiene vida. La montaña es un ser viviente. ‘– Si te cayeras de pecho,

tayta Chawala, nos moriríamos todos’ (Cuento Warma Kuyay, 1986: 2008).”

20 Macedonio Villafán sinaliza que não só animais, pedras, espaços, mas também os

“objetos” transformados pela “mão humana” têm presença e comunicam sua existência. É o caso do brinquedo Zumbayllu, que canta e fala com “voz doce” aos ouvidos do menino Ernesto.

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real e do imaginado, do verdadeiro e do falso –, criando um fio contínuo entre estas dimensões mágicas e a própria experiência de Arguedas.

No comentário de Vargas Llosa aos trabalhos de José María Arguedas (1977), o autor direciona à escrita arguediana a característica de desfiguração da realidade: “uma bonita mentira”21 (VARGAS

LLOSA, 1958, p. 192, tradução minha). A isso, adere a relação entre o humano e a natureza: “Não existem, pois, fronteiras entre o humano e a natureza”22 (VARGAS LLOSA, 1958, p. 204, tradução minha). A

humanização do mundo animal, o que Vargas Llosa chama de natureza animada, compreende a associação de emoções humanas aos animais, a nomeação de montanhas, dentre outras características apegadas a este mundo, estranho para o comentador. Será que se trata de uma desfiguração ou Vargas Llosa estava diante de uma mudança de referente, como sustentou Alberto Escobar em 1964 na mesa do IEP? Talvez este não fosse um recurso da literatura, de animar a natureza, mas um elemento da ontoepistemologia na qual Arguedas foi criado e que atendia ao projeto de universalidade do autor. Consiste em fazer com que este mundo negado seja visto em seus próprios termos, ou seja, um projeto de descrição que descreva a vida das comunidades: “descrevê-las de tal maneira que sua palpitação nunca seria esquecida, que atingiria a consciência do leitor como um rio”23 (ARGUEDAS, 2009 [1950], p. 156, tradução minha). O

reconhecimento da animação dos “não humanos” por Vargas Llosa como um ponto importante na obra de Arguedas não pressupõe a construção de um conhecimento que legitima essa humanização, como conhecimentos, práticas e modos de vida que provocam uma transformação na própria ontologia ocidental.

Eduardo Kohn (2013) traz ao debate antropológico o “além-do-humano”, identificando que conhecer e pensar podem ser características não somente humanas, mas também de seres “não humanos”. O autor apresenta a necessidade de um questionamento acerca do que sabemos sobre ser humano, com a possibilidade de alargamento deste conceito ou de reposição de suas “características próprias”, como o pensar, o sentir e, especialmente, a utilização de signos para a representação do mundo.

21 “una hermosa mentira.”

22 “No existen pues, fronteras entre lo humano y la naturaleza.”

23 “describirlas de tal modo que su palpitación no fuera olvidada jamás, que golpeara

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Este debate traz pressupostos como o de “animação” na direção de uma preocupação ontológica.

Guillermo Salas Carreño (2009) desenvolveu um trabalho com os quéchuas da região de Cuzco para compreender a posição dos espaços na cosmovisão andina. O autor toma as teorias do parentesco na Antropologia para analisar a relação entre os espaços e os quéchuas, mostrando as deficiências destas teorias e de suas reformulações mais atuais, na análise do parentesco nos Andes. O parentesco deixa de ser analisado somente pelas relações “fundamentalmente biológicas” para dar lugar às relações “construídas socialmente”. Acontece que, para Salas Carreño, estas relações “sociais” tendem a manter a dicotomia “natureza-cultura” e os agentes destas duas dimensões ocidentais de mundo, em suas palavras: “No entanto, as críticas iniciais à supervalorização dos laços biológicos pecaram na direção oposta, supervalorizando o simbólico (Schneider 1972 e 1984; Strathern 1992; Yaganisako 1979). Esta posição, em vez de resolver o problema, contribuiu para reforçar a dicotomia biologia / cultura”24 (SALAS CARREÑO, 2009, p. 137, tradução minha).

Deste modo, Salas Carreño insere no debate elementos dos próprios trabalhos de campo. O autor considera o parentesco nos Andes estruturado pelas relações de comensalidade: o “dar de comer” a uma pessoa constrói vínculos afetivos, mas a relação contínua do alimentar alguém é o que define a relação de parentesco. Assim, o alimentar os espaços, montanhas, lugares sagrados, é, para o autor, a constituição de relações de parentesco entre os quéchuas e os “lugares parientes”. Do mesmo modo, a negligência em alimentar os espaços “transforma os humanos em comida desses lugares. Os lugares famintos, se não forem satisfeitas as suas necessidades, comem humanos25” (SALAS

CARREÑO, 2009, p. 140, tradução minha). Estas mesmas relações que os “humanos” constroem entre si por meio da comida estão presentes nas suas relações com os espaços, nas formas pelas quais os lugares se alimentam.

24 “Sin embargo, las críticas iniciales a la sobrevaloración de los vínculos biológicos

pecaron en el sentido opuesto, sobrevalorando lo simbólico (Schneider 1972 y 1984, Strathern 1992, Yaganisako 1979). Esta posición en lugar de resolver el problema, contribuyó a reforzar la dicotomía biología/cultura.”

25 “transforma a los humanos en comida de esos lugares. Los lugares hambrientos, de

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Muitas comunidades andinas, quéchuas e aymaras, desenvolvem um vínculo com espaços sagrados (w’akas; apus) para bendições, para a produtividade do solo, sendo caracterizados também como agentes na própria comunidade ayllu. Se os lugares possibilitam a produtividade do solo, por meio da qual os indígenas produzem os alimentos, a relação de comensalidade se torna equiparada entre ambos agentes.

IMAGEM 1 – Wajt’a: Alimentando a Pachamama (Comunidade indígena de Parcopata, Bolívia, 2018)

Fonte: Arquivo pessoal do autor.

Uma suposição possível para a relação entre Arguedas e os quéchuas de Puquio, aos quais sempre fez referência, é a de que durante a infância o autor participou de uma rede de comensalidade com os indígenas que o criaram, constituindo um parentesco tanto com os humanos quanto com os lugares parientes daquela comunidade, o que repercute nos trabalhos literários e antropológicos do autor. Salas Carreño (2019) denomina esta vinculação como acostumbramiento, uma construção de novas relações de parentesco que excedem a família “biológica”.

Para Tim Ingold (2002), existe um vínculo entre a terra e os “humanos”, uma vez que ela detém as condições de desenvolvimento e crescimento dos “seres humanos” através da relação de growth (que pode ser traduzido como cultivo, desenvolvimento ou crescimento), assim:

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Com base em estudos etnográficos de como as pessoas que realmente cultivam o solo ou mantêm o gado entendem a natureza de suas atividades, mostro que o trabalho que as pessoas fazem não produz plantas e animais, mas estabelece as condições para seu crescimento e desenvolvimento. As distinções entre coleta e cultivo, e entre caça e criação de animais, dependem, assim, do escopo do envolvimento humano no estabelecimento dessas condições.

Além disso, o cultivo de plantas e a criação de animais não são tão diferentes, em princípio, de criar filhos. Ao contrário da sabedoria convencional de que não apenas animais e plantas, mas também crianças são ‘feitas’, através da domesticação e socialização, concluo que crianças, animais, plantas e até – de certa forma – artefatos também são ‘crescidos’.26 (INGOLD, 2002, p. 11, grifo

meu, tradução minha).

Deste modo, o growth, que resulta nas relações de comensalidade, pode criar um vínculo de parentesco entre a “terra” e os “seus filhos”, que a consideram “pai ou mãe”. Entre os quéchuas e aymaras existem qualificações para os “espaços” que os tornam parentes, como: tatay/

tayta (pai), awicha (avó) e achachila (avô). Como sustentou Villafán

(2011), no conto Warma Kuyay, José María Arguedas traz um diálogo do menino Ernesto com a montanha da comunidade categorizando-a como

tayta Chawala. Assim, para Salas Carreño (2009) a relação de parentesco

entre os “seres humanos” e os “espaços” não se trata de uma metáfora do conhecimento quéchua, mas sim de uma relação de caráter ontológico entre entes vivos. Em vista disso: “No entanto, quando pensamos o parentesco privilegiando noções em que o alimento é considerado a substância que relaciona as pessoas, concluímos que o parentesco entre

26 “Drawing on ethnographic studies of how people who actually live by tilling the

soil or keeping livestock understand the nature of their activity, I show that the work people do does not make plants and animals, but rather establishes the conditions for their growth and development. The distinctions between gathering and cultivation, and between hunting and animal husbandry, thus hinge on the scope of human involvement in establishing these conditions.

Moreover, growing plants and raising animals are not so different, in principle, from bringing up children. Contrary to the conventional wisdom that not only animals and plants but also children are ‘made’, through domestication and socialization, I conclude that children, animals, plants and even – in a sense – artefacts as well, are ‘grown’.”

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lugares e humanos assume um sentido mais concreto e real”27 (SALAS

CARREÑO, 2009, p. 145, tradução minha).

Em outro trabalho, Tim Ingold (2015) propõe uma “visão pessoal do que é a antropologia”, embasada em duas áreas, a arte e a arquitetura. A preocupação inicial do autor é repensar a antropologia como uma área descritiva, rearticulando a antropologia com o mundo vivo, uma antropologia com os pés no chão, que relaciona tanto humanos quanto “não humanos” nas linhas entrelaçadas de construção contígua do mundo. A teoria que produzimos, assim, deve estar relacionada com o mundo vivido, rompendo com uma perspectiva descartiana de que o pensar e o agir estão desvinculados. Deste modo, o movimento, a ação, o conhecimento e a descrição estão intrinsecamente conectados à construção do próprio mundo e à construção do ser, são facetas da vida. A vida, então, é percebida por Ingold como movimento, um percurso que não deve ser lido como uma conexão entre pontos finais e iniciais, mas como um “movimento de abertura”. Esta mesma vida como movimento, para o autor, é determinante para o fazer – o outro e a si mesmo – da antropologia.

Se tomamos o rio Pachachaca como a centralidade da obra de Arguedas, podemos perceber que o que interessa ao autor é o movimento do rio, que aparece mais que a própria existência da ponte colonial. Pensar em relação, em movimento, pode estar relacionado à figura paradoxal de Ernesto, criado por índios, mas que é levado ao mundo branco, ainda que cotidianamente simula fugas deste segundo mundo. A antropologia, associada à vida, neste sentido, é, para Ingold, a primazia do movimento. A leitura de Arguedas a partir de Ingold (e vice-versa) se direciona não para um horizonte de mestiçagem harmônica (melting pot), como algumas leituras propõem – de que o autor representa uma ponte entre o mundo branco e índio –, mas para um conflito constitutivo, que não procura solucionar harmonicamente, em uma única direção, o “problema entre índios e brancos”.

Arguedas, assim, aparece como um ch’ixi de Silvia Rivera Cusicanqui (2010). A concepção de um sujeito ch’ixi comunga características da epistemologia ocidental e de outras tantas epistemologias, como a aymara e a quéchua, sem necessariamente anexar o sujeito em um

27 “Sin embargo, cuando pensamos el parentesco privilegiando nociones en las cuales la

comida es considerada como la sustancia que relaciona a las personas, entonces tenemos que el parentesco entre los lugares y los humanos, cobra un sentido más concreto y ‘real’.”

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processo de devir. O ch’ixi são opostos que convivem sem se mesclar, em uma condição de portadores de contradições que não buscam uma síntese, sendo, portanto, uma dialética sem síntese. O ch’ixi seria este antagonismo complementário, presente e compreensível a partir da epistemologia aymara que, segundo Rivera Cusicanqui, apresenta uma ampla capacidade de manejo das contradições, nesse processo de dialética sem síntese, a partir de categorias de leitura da história como o Pachakuti, que representa destruição e renovação articuladas.

Para Rômulo Monte Alto (2011), o rio Pachachaca é a metáfora de um “abismo cultural” entre a serra (tradição andina) e a costa (modernidade urbana), tradição que não consegue realizar esta travessia pela falta de “posse da língua e da validade do discurso” – um discurso arquitetado pelos mecanismos da hegemonia ocidental – e que cria uma massa de excluídos nos centros urbanos. É importante situar que Monte Alto se debruça especificamente sobre a última obra de José María Arguedas El zorro de arriba y el zorro de abajo (1971),28 no entanto o

que me interessa é a metáfora de um elemento presente na obra Los Ríos

Profundos que o autor toma emprestado.

É necessário, de entrada, superar as divisões entre “tradição” e “modernidade” e pensar a partir dos interstícios desta relação, que não passa de simulacros construídos para a classificação de sujeitos. Se modificamos a lógica de tradição fixa e da modernidade como avanço, para uma perspectiva que abre a modernidade a partir de suas fendas históricas, possibilitamos uma transformação na própria epistemologia ocidental.29 Michel-Rolph Trouillot (1995), antropólogo haitiano, analisa

28 Publicada postumamente.

29 Em diálogos com a antropóloga Julia Silva (doutoranda do PPGAS-UNICAMP) sobre

o trabalho que desenvolve em Angola, ela me informou que há uma grande dificuldade em categorizar o próprio campo considerando que as categorias “ocidentais” não dão conta das relações que ela presenciou. As lógicas de tradição e modernidade são limitadas para explicar Angola, pois, uma vez que o tradicional é o próprio movimento de incorporação de elementos externos, a tradição implica na transformação. O trabalho de Artionka Capiberibe (2017) analisa os fenômenos de crises, possessões e o cristianismo dos indígenas do baixo rio Oiapoque. A autora chega à conclusão que as polaridades entre mudança e continuidade não são suficientes para explicar as relações destas comunidades. Para Capiberibe, quando a “tradição” se apresenta como transformação nas contínuas relações que essas populações estabelecem com o cristianismo, as polaridades se extinguem, visto que na própria mudança há continuidade e na continuidade existem

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que até a atualidade era impensável pelas elites intelectuais no Haiti que negros lutassem pela independência de um país, dado que estes mesmos negros “pré-racionais” excederiam as categorias conceituais e políticas que estavam historicamente definidas nas academias. A modernidade deve ser pensada como uma dessas categorias, que possui limitações para explicar os movimentos dos indígenas na história do Peru, por isso deve ser aberta. A modernidade versus tradição é a grande armadilha dos discursos ocidentais até os dias atuais. O rio Pachachaca é lido, nesta dupla torção, como movimento, como vida e não metáfora, como sujeito impensável que produz fendas, não abismos.

A modernidade, na leitura que Macedonio Villafán Broncano faz dos trabalhos de Arguedas, é o próprio movimento, mas considerando movimentos diversos em espaços diferentes, movimentos que respeitam as conjunturas e tempos específicos. O autor tampouco pensa a modernidade como único caminho possível: “A modernidade é o mundo da mudança, mas cada país oferece seus modos particulares de modernidade”30

(VILLAFÁN, 2011, p. 65, tradução minha). Para Villafán, a atualidade do trabalho de José María Arguedas é a relação que ele tece na escrita entre os mundos que habita, é o que define o seu movimento, portanto sua modernidade.

Por fim, mas não menos importante, o exercício de Arguedas, de construção de uma literatura aliada não só à estrutura linguística do quéchua, mas aos seus pressupostos ontoepistemológicos, afasta-o dos interesses assimilacionistas dos indigenistas da época, que pregavam uma leitura de mestiçagem harmônica do Peru (melting pot), leitura que não dava conta dos conflitos constitutivos daquelas sociedades. Nas palavras de Arguedas, explicando os problemas da produção de novelas no país associada à expressão literária:

E por que chamar indigenista a literatura que nos mostra a face alterada e nebulosa de nosso povo e nossa própria face, assim atormentada? É claro que não se trata apenas do índio. Mas os classificadores da literatura e da arte freqüentemente caem em conclusões imperfeitas e desorientadoras. No entanto, devemos mudanças. Estes são exemplos de que, em diversos espaços, a diferença binária entre tradição fixa e modernidade móvel não dá conta de explicar relações.

30 “La modernidad es el mundo de lo cambiante, pero cada país ofrece sus modos

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agradecê-los por terem nos forçado a escrever esse tipo de auto-análise, ou confissão, que o fazemos em nome daqueles que sofrerão e sofrem do mesmo drama de expressão literária nessas regiões.31 (ARGUEDAS, 2009 [1950], p. 160, tradução minha).

Palavras finais: As fendas de Arguedas

Arguedas conferia à Antropologia um caráter urgencial de “colocar-se ao serviço das mudanças que afetam os indivíduos e comunidades como um todo”32 (MONTE ALTO, 2007, p. 75, tradução

minha). Para Monte Alto, o fato de Arguedas ser informante – como sujeito enunciador – e informado – por ter sido formado em meio aos que faz referência –, influi tanto em sua obra antropológica quanto na literária, que chegam a se mesclar, considerando que sua última obra – prenúncio de seu suicídio – El zorro de arriba y el zorro de abajo – foi primeiramente um projeto antropológico. O que a narrativa arguediana, tecendo estas duas áreas, implica na atualidade é na constituição de um incômodo necessário entre o pensar, o viver e o narrar os mundos a partir de seus próprios termos, “o escritor peruano trança os fios dos discursos literários e antropológicos ao redor do seu corpo”33 (MONTE ALTO,

2007, p. 83, tradução minha).

A atualidade do movimento construído por Arguedas em seu trabalho Los Ríos Profundos está em seu diálogo vigente com a literatura antropológica (DE LA CADENA, 2015; INGOLD, 2002; KOHN, 2013; SALAS CARREÑO, 2019) nas preocupações acerca dos sujeitos com quem elabora suas pesquisas. A figura do menino Ernesto em seus diálogos com os espaços, nas perguntas que faz ao pai e na associação

31 “¿Y por qué llamar indigenista a la literatura que nos muestra el alterado y brumoso

rostro de nuestro pueblo y nuestro propio rostro, así atormentado? Bien se ve que no se trata sólo del indio. Pero los clasificadores de la literatura y del arte caen frecuentemente en imperfectas y desorientadoras conclusiones. No obstante les debemos agradecer por habernos obligado a escribir esta especie de autoanálisis, o confesión, que lo hacemos en nombre de quienes han de padecer y padecen el mismo drama de la expresión literaria en estas regiones.”

32 “ponerse a servicio de los cambios que afectan a los individuos y comunidades como

un todo.”

33 “el escritor peruano trenza los hilos de los discursos literarios y antropológicos en

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com os indígenas que o criaram (“que hicieron mi corazón semejante al suyo”) não é apenas uma relação com a biografia do próprio autor, mas um vínculo ontoepistemológico entre José María Arguedas e as lógicas andinas de humanidade, de parentesco e de comunidade.

A antropologia como meta-antropologia, assim como a literatura como metaliteratura, para Nodari (2015), desnudam os encontros possíveis que colocam em jogo sujeito e objeto, real e imaginário, humano e não humano, pressupostos em constante redefinição. Tomamos, assim, a relação como existente à medida que entendemos o movimento como referente.

O desafio da antropologia, assim, é abrir-se para a vida, o movimento dos sujeitos com quem estrutura o seu trabalho, e não sujeitos

sobre quem, ou de quem faz trabalho. Esse trabalho em conjunto, com

etnografias colaborativas, com a expansão dos seus autores e intelectuais, legitimando as epistemologias e ontologias nos seus textos, pode aparecer como um caminho frutífero de transformação da antropologia como área de conhecimento, mas também da transformação dos conhecimentos como possíveis, como pensáveis. E nessa empreitada, na utopia como horizonte, temos muito a ganhar em um diálogo com a literatura, Arguedas é a grande expressão disto.

Para Marisol de la Cadena, Arguedas é uma “impensável revolução epistemológica”, em suas palavras:

A pessoa pública de Arguedas – como indicado pelo seu trabalho e seus testemunhos de vida – propôs uma alternativa política de conhecimento, que via a necessidade da razão ocidental e sua incapacidade de traduzir, capturar ou substituir os modos de ser andinos.34 (DE LA CADENA, 2009, p. 270, tradução minha).

Dedico as reflexões deste artigo a Roger Adan Chambi Mayta, quem me apresentou nas madrugadas de trabalho nos andes bolivianos as histórias de José María Arguedas, e por narrar, enquanto subíamos a rodovia de La Paz – El Alto, o conto

El sueño del pongo.

34 “La persona pública de Arguedas – como lo indican su trabajo y sus testimonios de

vida – propuso una alternativa política de conocimiento, una que vio la necesidad de razón occidental y su incapacidad de traducir, capturar o reemplazar las maneras andinas de ser.”

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Recebido em: 30 de setembro de 2019. Aprovado em: 03 de fevereiro de 2020.

Referências

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