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João Paulo da Cruz Mendes

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Academic year: 2021

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Conheci João Paulo Cruz Mendes em Setembro de 2001, quando ele defendeu em Letras uma tese de Mestrado sobre o cinema de Tarkovski (O cinema de Tarkovski. Apresentação da realidade e infinito ético), tese essa orientada pela minha colega da Universidade Nova, Professora Ma-ria Filomena Molder.

Após a conclusão das provas com brilhantismo, ele ingressou, um ano mais tarde, no curso de Doutoramento em Filosofia da nossa Univer-sidade, tendo frequentado com pleno êxito o seminário que leccionei sobre o mito e a arte contemporânea em 2002. Neste contexto, convidou--me a mim e ao Professor João Mário Grilo da Universidade Nova para orientarmos uma tese no âmbito da filosofia do cinema. As questões de estética e filosofia da arte ficariam a meu cargo e as de cinema sob a ori-entação do meu colega. A tese tinha inicialmente como título, Filosofia por Sons e Imagens – Buñuel como Autor Cinematográfico. Este projecto foi apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian da qual o João Paulo foi bolseiro durante vários anos. A investigação realizada e as proporções do estudo efectuado sobre Buñuel atingiram tais dimensões que acordámos que a tese de doutoramento seria centrada numa propedêutica à estética do cinema. E assim a tese apresentou como título final: O Cinema: uma estética crua1.

O interesse cada vez maior pelos problemas específicos da cultura ibérica, derivados do estudo de Buñuel, levarão à inclusão do Professor Luis Garagalza da Universidade do País Basco, uma das personalidades mais influentes da filosofia de língua castelhana, na própria orientação da dissertação. Por sua vez, no ano de 2007, o João Paulo candidata-se a uma bolsa de Pós-Doutoramento na FCT, sob minha orientação, com o título de Estética e Cinema. Buñuel como autor cinematográfico, o que lhe permitiria, assim, concluir o seu projecto inicial. Durante este proces-so, é constituído o júri das provas de Doutoramento, tendo sido oficial-mente aprovado no final de Outubro. Serão seus membros: Adriana Ve-ríssimo Serrão, Carlos Couto Sequeira Costa, Maria Filomena Molder, Isabel Matos Dias, João Mário Grilo, Luis Garagalza e eu próprio. Nunca

1 Universidade de Lisboa, Julho de 2007.

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se chegou a realizar a primeira reunião de júri (onde é feita a aceitação ou não da tese e a marcação das provas) devido ao falecimento inesperado do João Paulo. Eu sabia que ele sofria de uma doença crónica infantil, mas para mim foi um choque muito grande saber pelos serviços adminis-trativos do seu falecimento com apenas 39 anos.

Habitualmente, quando relembramos os mortos temos uma tendência humana apenas para sublinhar as qualidades da pessoa que nos deixou. Mas, deixando de lado, essa ritualização simbólica da morte, gostaria de sublinhar honestamente que do João Paulo Cruz Mendes, apenas conheci qualidades, enormes qualidades, como ser humano e como investigador. Tudo aquilo que é o timbre de um excelente académico, ele tinha-o num grau muito elevado: inteligência, auto-exigência, conhecimento aprofun-dado, capacidade de escrita invulgar, criatividade, espírito crítico, e uma enorme humildade (o que já não costuma ser um traço tão comum neste nosso mundo universitário). Não tenho a menor dúvida que à medida que a obra de João Paulo Cruz Mendes se tornar conhecida ele vai tornar-se num dos principais pontos de referência do pensamento filosófico portu-guês no âmbito da estética e da filosofia do cinema, em particular na re-flexão em torno do cinema como forma de expressão pessoal.

Por aquilo que conheci dele, julgo que a melhor homenagem que lhe poderei fazer é apresentar sinteticamente as principais teses filosóficas que este discípulo da escola crítica de Frankfurt defendeu – pois os mes-tres de João Paulo foram essencialmente Walter Benjamin e Siegfried Kracauer, dois nomes cruciais da escola da teoria crítica, em particular no domínio da estética e da teoria da cultura.

Deste modo, de uma forma sinóptica, irei apresentar as teses de João Paulo Mendes sobre Buñuel, sobre as raízes culturais do cinema e sobre Simmel (do qual ele publicou um estudo na revista Philosophica2).

1. Se Benjamin e Kracauer são os seus pontos de referência filosófi-cos, Tarkovski e Buñuel ocupam o seu interesse no âmbito da produção cinematográfica, em particular Buñel a quem se dedicou a sua investiga-ção no período que decorre entre 2002 e 2007, e que desejava continuar. Porquê Buñuel? Não só por estarmos perante o típico cineasta de autor, mas também pela estranheza do seu imaginário. Essa estranheza é a ex-pressão de um universo cinematográfico desolado e profundamente irra-cional, derivado da síntese inusitada que Buñuel faz do Cristianismo com o Surrealismo, ao mesmo tempo que se revê na conhecida tríade de pen-sadores como Marx, Freud e Nietzsche. Por sua vez, João Paulo Mendes procurou sondar os traços fundamentais da cultura mexicana onde este

2 “Indivíduo e Realidade: de Simmel a Kracauer”, Philosophica (Filosofia da Cultura), n.º 27 (Abril 2006), 135-155.

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realizador de naturalidade espanhola se estabeleceu, se naturalizou (1946--1965) e faleceu (1983). “O cinema é uma arte privilegiada para a apreen-são da sua realidade temporal. É uma arte do tempo, fixa(ndo) as formas culturais que lhe são coetâneas. Para além disso, pode ser também uma apreensão reflexiva, crítica, sobre essa mesma contemporaneidade. [...] A visão religiosa é um olhar da vida sobre a morte, e esta é uma questão que se eterniza na vivência cultural humana. Deste ponto de vista, o olhar de Buñuel é ainda um olhar que nos intercepta, que nos faz pensar. Neste sentido, esta minha actual investigação sobre o cinema é também uma reflexão sobre o nosso tempo.”3

Mas o projecto é igualmente uma análise da cultura mexicana na época de Buñuel: “importa-nos proceder a uma reflexão geral sobre as características do cinema mexicano, o qual é marcado por uma produção por géneros. (Deste modo, iremos) estabelecer a relação entre a explora-ção destes géneros e o substrato cultural mexicano, por exemplo, a rela-ção entre o melodrama que se baseia primordialmente num problema de identidade (a da inocência maculada que luta pela reposição da verdade) e a crise cultural de um povo colonizado [...] Finalmente, na sua última fase [a chamada 2.ª fase francesa – 1963-77], podemos verificar o regresso da sua total liberdade criativa, em particular, nos filmes produzidos por Ser-ge Silberman [produtor francês dos filmes de Buñuel]. Note-se, aliás, um acréscimo de tom irónico, motivado, porventura, por um olhar distan-ciado sobre a realidade ao qual a idade não será alheia.”4

2. Estão presentes neste Colóquio vários membros do júri da sua dis-sertação de doutoramento e julgo que será unânime a apreciação de que estamos perante uma tese excelente no domínio da estética filosófica do cinema. A ideia inicialmente defendida é, à primeira vista, paradoxal, mas bem pertinente. É a própria indústria cinematográfica, motivada ape-nas por exigências de mercado, que cria o seu anticorpo, o cinema de autor, possibilitando, desta forma enviesada, a própria arte, a arte do ci-nema. Mas, a meu ver, a questão decisiva da dissertação prende-se com as raízes culturais da produção cinematográfica. Como sublinha João Paulo Mendes, assume aqui um papel decisivo a questão do melodrama, na medida em que este se apresenta como a imagem invertida da criação artística: “o melodrama é [...] uma das formas mais representativas daqui-lo a que Sainte-Beuve designou por ‘literatura industrial”, que emerge juntamente com a ascensão da burguesia e do capitalismo, e se resolve, através de uma aparente defesa de valores no plano moral e político” de índole comercial, com a sua “moralidade imediata e de imanência – de

3 Projecto de pós-doutoramento apresentado à FCT em 2007. 4 Ibidem.

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castigo dos maus e de recompensa dos bons”5. Nesta análise do

melodra-ma, João Paulo vai encontrar nas obras de Peter Brook e de George Stei-ner, os seus dois grandes interlocutores, embora distanciando-se das teses por eles defendidas. “Procuro avaliar a relação do melodrama com o Ro-mantismo sob o impulso crítico de George Steiner, em The Death of Tra-gedy”6. Por sua vez, “faço uma crítica a Peter Brooks, e ao seu livro The Melodramatic Imagination, no qual este autor exagera a sua influência do melodrama sobre Balzac.”7 Mas contra Steiner, “procuro separar a

identi-ficação do melodrama com o Romantismo”8. Com efeito, mostra-nos na

sua tese como o Romantismo ao representar “uma ruptura com o mundo antigo no sentido em que este [mundo antigo], embora se multiplicasse em teses sobre a estrutura essencial do Ser, pressupunha, na variedade das respostas, a unidade da pergunta.”9 Segundo o mundo antigo “há, de

fac-to, uma ordem universal, a qual, simplesmente, compete ao homem des-velá-la. Ora, por sua vez, o Romantismo não apenas questiona a resposta a uma tal investigação, ele questiona a própria pergunta, a própria inves-tigação. Por outras palavras, [o Romantismo] põe em causa o reconheci-mento de uma estrutura do mundo, e por sua vez, eleva o plano da subjec-tividade a uma dimensão até então desconhecida. Não se trata de descobrir a ordem do mundo, trata-se sim de inventá-la.”10 O

Romantis-mo distancia-se do melodrama porque recusa a antinomia maniqueísta que marca o melodrama; mas, ao mesmo tempo, distancia-se da cultura clássica porque assume a radicalidade de uma imanência do mundo à qual o romântico resiste e afirma a identidade subjectiva do seu próprio ser. Numa segunda parte da tese, João Paulo Mendes retorna a Balzac e ao seu naturalismo, bem revelada nos seus “estudos analíticos”, expressão do próprio Balzac para caracterizar a Comédia Humana. Centra-se, em seguida, na importância de Zola, visto que este compreendeu que “o ro-mance era a forma de literatura especificamente moderna.”11 O

Natura-lismo aprofunda assim o movimento romântico, centrado no acidental, no efémero, na contingência, conferindo-lhe no entanto uma vertente materi-al de que o ser humano faz parte. E assim nasce o cinema com a inquiri-ção da natureza e do mundo físico e material. Siegfried Kracauer, referido na epígrafe da tese, diz-nos, com efeito, “então uma brisa moveu as

5 O Cinema: uma estética crua. 2007:2. 6 Ibidem.

7 Ibidem.

8 O Cinema: uma estética crua. 2007:3. 9 Ibidem.

10 Ibidem.

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bras e as fachadas dos edifícios começaram a vacilar. A imagem de um mundo superior tremelicando numa poça suja – essa imagem nunca me deixou.”12 Numa palavra, a mesma redenção da matéria tão cara a

Tarko-vski, mas também ao pensamento judaico.

3. O artigo de João Paulo Mendes, com o título “Indivíduo e Reali-dade: de Simmel a Kracauer”, analisa a influência de Simmel sobre Kra-cauer oferece-se em dois planos. Para já, ela [influência] “é histórica. Kracauer foi aluno de Simmel em Berlim, em 1907 (onde frequentou o seu seminário “O Problema do Estilo na Arte”. Kracauer dedicou um ensaio a Simmel, precisamente intitulado: “George Simmel: um contri-buto para a interpretação da vida espiritual do nosso tempo” (1920-21)13.

O artigo de João Paulo Mendes procura sondar o que designa como “sub-til divergência” entre os dois autores. “Uma das características de grande valor que se pode reconhecer a Simmel é o facto de se situar sempre pró-ximo da vida, nunca alienado dela, qualquer que seja a manifestação vital dos fenómenos que procura investigar e retratar. Por outro lado, indepen-dentemente da diversidade que a vida lhe pode oferecer, [...] a sensação de unidade que perpassa toda a sua obra”14 não é de natureza conceptual.

“Simmel não projecta a unidade senão, antes do mais, ao nível da sensa-ção, da experiência, não de nenhuma verdade conceptual que se opõe ao mundo e que o determina a priori”15. Esse princípio é articulado numa

rede de relações de tal modo que cada expressão da vida não pode ser abstraída sem que a unidade seja lesada. Mas Kracauer vai descortinar em Simmel dois métodos: o primeiro é designado por congruência essencial e o segundo, por analogia. O primeiro mostra que fenómenos diversos podem ter a mesma fonte. O segundo procura antes descortinar similitu-des entre os fenómenos. “No primeiro caso, Simmel procede a uma cone-xão entre fenómenos que resulta numa dissolução do preconceito segundo o qual há acontecimentos ou seres que podem ser explicados ou observa-dos em si mesmos e por si próprios, como que extraíobserva-dos da totalidade da vida espiritual... No segundo caso, Simmel procede a uma atenção atura-da aos mais diferenciados fenómenos e às suas qualiatura-dades, para além dos aspectos mais evidentes, de modo a que possa estabelecer semelhanças entre eles.”16 A este duplo método, Kracauer sugere uma terceira

alterna-tiva, a da metáfora. Esta não é apenas a relação entre fenómenos mas a

12 O Cinema: uma estética crua. 2007:VII.

13 “Indivíduo e Realidade: de Simmel a Kracauer”, Philosophica 27, 135. 14 Ibidem, 137.

15 Ibidem. 16 Ibidem, 138.

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representação através de uma imagem particular, singular, das coisas, elas mesmas particulares e singulares, obtendo-se assim um mundo plural. “A analogia aproxima dois fenómenos que, de alguma forma, manifestam o mesmo comportamento. Pelo contrário, a metáfora através de uma ima-gem, tenta dar-nos uma expressão sensível ao sentido que um certo fe-nómeno tem para nós.”17 Pouco importa, diríamos, se esta crítica de

Kra-cauer é ou não justa em relação a Simmel. O que está aqui em causa é a captação da singularidade da realidade realizada pelo cinema, possibili-tando essa redenção da realidade proporcionada pela câmara, câmara de cinema que, em termos metafóricos, podemos dizer que João Paulo Men-des dedicou a sua vida intelectual e filosófica.

Infelizmente, para grande tristeza de todos nós, João Paulo Cruz Mendes partiu cedo de mais. O que ele certamente gostaria é que conti-nuássemos a trabalhar da forma como ele o fez, a saber, de uma forma rigorosa e apaixonada.

Carlos João Correia, Universidade de Lisboa

Referências

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