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O sujeito e o sexual: no contado já está o contador

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Academic year: 2021

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O sujeito e o sexual: no contado já está o contador

Nilda Martins Sirelli Psicanalista, doutoranda em Memória Social pela UNIRIO, professora do curso de graduação em Psicologia da Universidade Estácio de Sá – Macaé e Faculdade Salesiana – Macaé. (22) 8857-4031 / nildasirelli@yahoo.com.br

Lacan (1964/1998) nos ensina que “antes de qualquer formação do sujeito, de um sujeito que pensa, que se situa aí – isso conta, é contado, e no contado já está o contador. Só depois é que o sujeito tem que se reconhecer ali, reconhecer-se ali como contador” (p. 26).

O sujeito é efeito do significante, ele não é senhor, não é mestre dos significantes que lhe sobre determinam e marcam. É efeito de sua memória, do modo como é contado pelo Outro, e nos dois sentidos possíveis ao termo: contar história e contagem monetária, referindo-se a um valor, a uma economia. Refere-se tanto aos trilhamentos que vem conferir alguma significação ao sujeito, como a de uma pulsão que é histórica, e lhe traz uma memória que se refere a um modo próprio de obter satisfação, e que alude ao próprio encadeamento e economia inconscientes, que vem constituir o modo de cada sujeito se posicionar diante do sexo. Uma vez tendo sido contado, só lhe resta tomar lugar nesse dito e se contar a partir dele, marcado por um desconhecimento e uma duplicidade própria ao significante, de forma que o sexual se constitui pelo laço de assujeitamento e de subversão ao campo do Outro.

O inconsciente se funda em um desconhecimento radical, pois é efeito do modo como o sujeito é contado em uma cultura, em um determinado clã familiar e época histórica, tendo que tomar do Outro peça a peça aquilo que é ser homem ou ser mulher.

O que o sujeito realiza com os significantes dos quais é efeito e que lhe marcam como memória? Lacan destaca que o sujeito constrói um sistema fechado, do qual obtém satisfação, satisfação paradoxal pela qual se posiciona diante do(s) parceiro sexual, que, como vemos na clínica, é fonte de muito sofrimento, o que justifica uma intervenção. Assim, ao se contar, o sujeito nos fala de um lugar do qual obtém satisfação, único lugar do qual lhe é possível dizer e se colocar. Por essa via retomaremos um caso clínico que nos parece endossar a discussão.

Eduardo, nome pelo qual chamaremos o paciente, chega ao consultório e diz que está lá por estar se sentindo completamente “desamparado” com o término do seu namoro, e acrescenta: “vou te contar minha história, vou te dizer quem eu sou”, e começa a descrever a série de homens com quem tinha se relacionado, começando por um envolvimento sexual com um padre aos 14 anos de idade. A partir desse relacionamento, vai

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dizendo de uma série até chegar ao relacionamento atual, o qual dizia que “fazia tudo” por aquele homem, mas que ele o havia deixado, e desde então se sentia extremamente desamparado, diz também que já tinha procurado atendimento com psicólogas em outros momentos e pelo mesmo motivo, pois toda vez que um relacionamento terminava ficava

“desamparado”, sem saber o que fazer da vida.

É curioso quando Eduardo me diz “vou te dizer quem eu sou”, e começa a se contar pelos homens com quem se relacionava, como se o que ele é, fosse respondido por essa via, não havendo outra, sem ela ele cai no “desamparo” de não mais poder se definir.

Desamparo de não ter um Outro que responda pelo que ele é, e procura ajuda de uma

“psicóloga”, pra “sair desse desamparo”.

Ao falar dos seus envolvimentos amorosos com homens, fala também de uma mulher, que, segundo ele, era forte, decidida, e tinha o ajudado em muitos dos seus relacionamentos, desde o primeiro, o acobertava, aconselhava e o ajudava a tomar muitas decisões na vida. Salta a atenção o modo como ele fala dessa mulher como uma figura quase de idolatria, uma pessoa a qual ele devota grande admiração, e que ganhava ampla importância nas escolhas que ele fizera na vida.

Nas sessões que se seguem chega contando com algum regozijo que está “saindo com um velho”, o “velho” foi conhecido pela internet, e lhe dava dinheiro, roupas, pagava academia, dentre outros luxos, ao que ele dizia que agora ia ser sarado, forte, e que não ia mais se deixar dominar por um amor, dizia sentir nojo do velho, mas se sentir vitorioso por conseguir estar com ele sem amor. Com o “velho”, ainda que com certo mal estar, ele dizia ter algum controle. Fala que com o dinheiro do velho pode comprar muito mais coisas do que com as comissões que ganhava em uma loja de roupas a qual trabalhava, e que ele sempre gastou seu dinheiro com os homens que amava.

Algumas sessões se seguem, e Eduardo começa a não pagar a faltar diversas sessões, a cada sessão me liga demarcando que não poderá ir, mas que irá na próxima semana, e que se lembra que está “devendo”. Posteriormente, não comparece, não me liga durante umas duas semanas e nem atende ao telefone. Um dia, estou andando pela rua, quando alguém se aproxima, é Eduardo, que vem falar comigo e pergunta se poderia ir no meu consultório no dia que se segue, e marcamos a próxima sessão.

Esta seria sua última sessão, e nela muitas coisas puderam ser ditas, talvez por Eduardo estar muito certo, sem titubear em nenhum momento, que não mais voltaria. Ele diz que no tempo que não foi à análise, já estava com um novo namorado, e que, então, não mais precisava ir. Eduardo sempre repetia, de diversos modos, que os seus relacionamentos eram uma “confusão”, tanto com os homens quanto com a suposta mulher, que sempre lhe acompanhava. Nesse dia, quando pergunto, mais uma vez, sobre o que seria essa confusão, pela primeira vez ele fala a respeito, e me diz que a mulher, de quem

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ele fala com tanta esmero, lhe roubou, fez empréstimos no seu nome e sumiu. Ele fala com certa raiva e diz “ela arruinou minha vida”, e ao mesmo tempo tenta anular isso, dizendo como ela era uma mulher “excepcional, forte”.

E na sequência diz: “minha família é uma confusão”. E me diz que os pais são divorciados há muitos anos, desde quando ele era bem pequeno, mas que moram na mesma casa. Diz “meu pai é um frouxo, minha mãe faz o que quer com ele, ela é forte, livre, uma mulher e tanto”. Conta que a mãe “leva vários homens em casa”, que “ela consegue tudo com eles”, e que o pai fica impotente nisso e parece ainda gostar dela. Fala também que sempre foi confidente da mãe, que ela lhe conta suas aventuras amorosas e sexuais, e de como ele a admirava quando ela lhe contava essas histórias, e, ao mesmo tempo, como se incomodava pelo pai. E diz que sempre quis se entregar a um homem, ter um relacionamento sério, casar, “ter um homem só”, e acrescenta “acho que o que eu sempre quis é consertar essa história”.

Eduardo falava com extrema satisfação de estar à mercê dos homens com quem se relacionava, de sua mãe/mulher potente, e de ser tão querido por ser escolhido, entre os três irmãos, como seu “confidente” e “fiel escudeiro”, e da possibilidade de “consertar” essa

“confusão”, sendo um “homem de um homem só”. Ele se posicionava como um objeto subjugado dos homens que ele amava, e da mulher eleita como parte desse enredo. Assim, ainda que com sofrimento, parecia que sua fala não lhe fazia questão, pois o que ele queria era fechar o circuito, encontrar outro homem e poder ter mais uma chance de “consertar” as coisas. A qualquer possibilidade de abertura o que comparecia era a ausência. Ao final dessa sessão, ele me diz que não vai mais voltar, pois já tinha um novo homem, não precisava mais estar ali, que se precisasse me procuraria novamente.

Eduardo não se conta de um jeito qualquer, ele é herói, não é mais um, é o escolhido para ser “fiel escudeiro” de uma mãe/mulher, e para consertar com sua própria vida, a impotência do pai, sempre atualizada nele, e toda a “bagunça” que se colocava naquela família. Ele constitui um mito na tentativa de significar sua origem, sua constelação familiar (Lacan,1952/2008) e esbarra inexoralvelmente no sexual, o que cada sujeito terá que criar ao seu modo e com seus recursos.

Ser efeito do significante traz esta consequência radical, não há como “consertar”. A marca está sulcada na carne, e, o que se pode, é fazer com elas, a partir delas, resignificá - las de algum modo, mas nunca será outra marca, não será apagada ainda que o sujeito faça dessa missão a sua vida. A vida foi o que foi, e é daí que se parte sem se assenhorar dela, mas acolhendo seus efeitos, não para se pacificar neles, mas se posicionar neles responsabilizando-se por suas consequências.

O modo como o sujeito se conta e se constitui por uma memória tanto significante, quanto de cifra, traz o modo como ele é tomado pelo Outro, mas em uma dimensão

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absolutamente particular, em que ele fez o melhor possível com suas marcas, e o analista não tem algo melhor para lhe oferecer, tem o desejo de saber o que se passa, que aparece como uma convocação ao trabalho, a elaboração. Elaboração que implica, por vezes, fazer o luto daquilo que é impossível reaver e consertar, constituindo um passado, que possibilite seguir com novos custos.

Eduardo rememora sua história em ato, memória inconsciente, que aparece não como um reservatório do passado, imutável e inerte, mas uma memória viva, operante e passível de constante transformação e ressignificação. É por essas marcas advindas da relação com o Outro que ele pode de colocar diante de um parceiro sexual, se posicionando de modo a atualizar uma posição inaugural, pela qual tomou, ao seu modo, mais do que o que é ser pai ou mãe, mas pontos de ancoramento pelos quais o que é ser homem e mulher a partir de um jogo amoroso em que ele se inclui como peça chave.

O sexual se coloca a cada possibilidade de laço com o Outro, que mesmo não se tratando de um outro sexo, é sempre uma alteridade radical, é sempre de um Outro que se trata, de forma que atualiza a dimensão de desamparo. Não há salvamento possível, diante da alteridade só cabe uma posição ética, não há reivindicação que traga asseguramento.

O Outro é furado, por mais que tende dar garantias e fixar para cada sujeito o que é um homem ou uma mulher, há sempre um intervalo entre o que ele diz – pelo discurso de um período histórico, por exemplo –, e o que cada sujeito pode fazer com isso a partir de suas contingências. Ou seja, a sexualidade é fratura qualquer que seja o momento histórico.

Impossível de ser definida por vários, ainda que em um mesmo ato, traz sempre e cada vez uma posição única e absolutamente particular.

Nesse sentido, ao analista cabe se deixar interrogar por um sujeito a cada vez, pois a psicanálise não produz um conhecimento sobre a sexualidade, ela aponta justamente sua relação a uma demanda impossível de completude, de saciação, de concertar o que ficou desatado, para que nada falte. Contudo, a sexualidade é falta, e é só nessa dimensão, de se haver com a “confusão” sem tapá-la, é que poderemos avançar na clínica e em algum saber, também fraturado sobre ela.

Ao convocar a fala pela associação livre, como proposta por Freud (1912/2010) o analista conclama aquele que é o trabalhador, ou seja, o inconsciente (Lacan, 1967- 1968/s.ed.), aquele que teceu fio a fio com as tramas advindas do Outro uma posição sexual. E é só via inconsciente que pode ser constituído algum saber, sempre aberto e passível de ressignificação. Quando o inconsciente se dispõe ao trabalho, eis a possibilidade de análise.

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Referências Bibliográficas

FREUD, Sigmund. (1912/2010). Recomendações ao médico que pratica a psicanálise.

Obras Completas: Companhia das Letras. v. 10.

LACAN, Jaques. (1952/2008). O mito individual do neurótico. Rio de Janeiro: J. Zahar.

_____________. (1964/1998). O Seminário, livro11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar.

_____________. (1967-1968). O Seminário, livro15. O ato analítico. s/ed.

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