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G r a d u a n d o, F e i r a d e S a n t a n a , v . 2 , n . 3 , p . 1 2 7 - 1 3 2 , j u l . / d e z . 2 0 1 1M U R I L O R U B I Ã O : U M A R E S E N H A C R Í T I C A
D O C O N TO
O P I R O T É C N I C O Z A C A R I A S
P o r F l á v i a R o d r i g u e s d o s S a n t o s L i c e n c i a t u r a e m L e t r a s V e r n á c u l a s f l a v i n h a r o d r i g u e s . f s a @ g m a i l . c o m P o r G r a c i e l y C â n d i d o M a c ê d o L i c e n c i a t u r a e m L e t r a s V e r n á c u l a s g r a c i e l y _ g a l @ y a h o o . c o m . b rSCHWARTZ, Jorge (org.). Murilo Rubião. Seleção de textos, no-tas, estudo biográfico, histórico e crítico e exercícios de Jorge Schwartz. São Paulo: Abril Educação, 1982. (Coleção Literatura Comentada).
A P R ES E N T A Ç Ã O
Trata-se de uma resenha crítica do conto intitulado O pi-rotécnico Zacarias , de Murilo Rubião, publicado em 1974, atra-vés do qual o autor ganhou súbita fama. A partir do exposto, buscamos apresentar o universo fantástico presente na obra, a fim de mostrar os elementos sobrenaturais que designam pa-ra esta capa-racterística. Além disso, fizemos uma breve compa-ração com o romance A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, de Jorge Amado, chamando à atenção para alguns pontos comuns entre ambas as obras, como o discurso narra-tivo, a ironia e a morte.
M U RI L O R U B IÃ O E O U N IV E RS O F A N TÁ S TI C O
Poucos foram os autores brasileiros que apresentaram destaque na literatura fantástica. Murilo Eugênio Rubião (1916 -1991), por sua vez, é o primeiro contista do gênero fantástico
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na literatura brasileira. Nessa modalidade literária, também co-nhecida como realismo fantástico, a constante ocorrência de fatos inexplicáveis e/ou surreais são características que pro-duzem certa sensação de estranhamento nas pessoas.
Ressaltar o universo fantástico presente na obra de Muri-lo Rubião é de fundamental importância para a literatura brasi-lei ra. Tal destaque é pertinente não apenas pelo seu caráter críti co diante das transformações que se sucediam, como o progresso na época, mas também por este autor ser o res-ponsável pela consistência desse gênero no Brasil. Nesse sen-tido, estudiosos de grandes destaques na literatura brasileira, como Bastos (2008), revelam que analisar a obra do autor além do “fantástico” é descobrir uma inquietação com o desígnio de modernização nacional.
O C O N TO O PI RO T É C NI CO Z A C A RI A S E A SU A R E L A Ç Ã O C O M A M O R TE
Situações absurdas presentes no conto O pirotécnico Za-carias, por exemplo, como a morte do “pirotécnico Zacarias”, revelam no desenrolar do enredo, que a personagem principal é o próprio narrador: “uns acham que estou vivo ― a morte tinha apenas uma semelhança comigo. Outros, mais supersticio-sos, acreditam que [...] o indivíduo a quem andam chamando Zacarias não passa de uma alma penada.” (RUBIÃO, 1982, p. 13). A narrativa de O pirotécnico Zacarias segue um fio dis-cursivo que destaca reflexões de situações de morte e vida, bem como de assombramento de pessoas que encontram Za-carias na rua. Com isso, ele enfatiza a sua morte tentando ex-plicar o ocorrido:
A ún i ca p e sso a que pod er i a d ar in fo rm açõe s c ert as sob re o assun to sou eu . [ ...] Em ve rd ade mo r r i , o qu e v em de en con tro à v er são do s que cr êem n a m inh a mo r te . Po r ou tro l ado , t amb ém n ão e stou mo r to , po i s faç o tu do o qu e an te s n ão faz i a e , d evo d iz er , com m ai s ag r ado do que an t i g amen t e . (R UB IÃO, 1 982 , p . 1 4 ).
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A partir dessa passagem, é impossível não notar uma a-proximação com o romance A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, de Jorge Amado (1912-2001). Assim como Murilo Rubião, esse autor, especificamente nessa obra, também carre-ga consigo uma crítica amarcarre-ga do comportamento do homem por meio de uma dimensão alegórica com a morte.
Tanto o romance de Jorge Amado quanto o conto de Mu-rilo Rubião abordam uma narrativa instigante e envolvente, mis-turando sonho e realidade; racionalidade e loucura. As perso-nagens principais de ambas as obras vivem uma dualidade en-tre a vida e a morte, deixando-nos de frente com uma situa-ção extraordinária e sobrenatural, mas muito bem explicada pe-los narradores.
É sabido ratificar, no entanto, que há uma forte presença de ironia, humor e malícia nas obras abordadas. Apresentadas de maneira divertida, as narrativas fogem da realidade, entran-do no munentran-do entran-do fantástico a partir entran-do momento em que os defuntos decidem falar. Nesse sentido, pode -se destacar tal ironia em um dos trechos de O pirotécnico Zacarias : “Jorginho empalideceu, soltou um grito surdo, tombando desmaiado, en-quanto os seus amigos, alguns admirados por verem um cadá-ver falar, se dispunham a ouvir -me”. (RUBIÃO, 1982, p. 17).
A morte, por sua vez, no imaginário social, ainda que seja uma certeza inexorável, é bastante negativa, possivelmente por representar a extinção e o caos da espécie humana. Mas em O pirotécnico Zacarias é tida como positiva, fato que pode ser constatado quando a personagem principal, também narrador da história, profere:
Só um p en samen to m e opr i me : que aco n te c imen tos o d e st i no re serv ar á a um mo r to se o s v ivo s re sp i ram um a v i d a agon i z an te? E a m in ha angú st i a c re sc e ao se nt i r , n a su a p l en i tud e , que a m i nh a c ap ac i d ade d e am ar , d i sce rn i r as co i sas, é bem supe r io r à do s ser e s qu e po r m im p assam assu st ado s. (R UB I ÃO, 1 98 2 , p . 1 9) .
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A concepção da morte como algo favorável também está presente no romance A morte e a morte de Quincas Berro Dá-gua. No entanto, ao invés de ser vista pelo defunto Quincas Berro Dágua, se faz presente entre seus familiares, que enca-ram esse ocorrido como uma justificativa à sociedade do com-portamento negativo de Quincas durante a sua vida:
Qu ando u m hom em m or r e , e l e se r e i n t eg r a em su a r e sp e i t ab i l i d ad e a m ai s au t ên t i c a, m e sm o t en do c om e t i do l o uc ur as e m su a v i d a. A mo r t e ap ag a, c om su a m ão d e au sên c i a , as m an ch as do p assado e a m emó r i a do mo r t o fu l g e com o d i am an t e . Essa a t e se d a fam í l i a , ap l aud i d a po r v i z i nho s e am i go s. (AM AD O, 2 00 4 , p . 1 2 ) .
É válido ressaltar, todavia, a impossibilidade de analisar as duas obras em questão sem enfatizar a plurissignificação da morte, tendo em vista o fato de esta mudar de concepção de acordo com a cultura; sendo, sobretudo , uma questão social. No que diz respeito à literatura, por exemplo, é notório perceber o seu poder de desconstruir o sentido da morte, mudando da acepção natural para o sobrenatural e/ou fantástico. Além disso, atribui juízos de valores positivos ou negativos de uma dada sociedade ao defunto, e este , torna-se escravo dessa faculdade:
[ . ..] o me u co rpo po de r i a , ao r o l ar p e l o b ar r aco ab ai xo , f i c a r e s c o n d i d o e n t r e a v e g e t a ç ã o , t e r r a e p e d r e g u l h o s . Se t a l ac o n t e c e s se , j am a i s se r i a d e scob e r to no se u i mp ro v i sado t úmu l o e o m eu nom e n ão o cu p ar i a as m anc he t e s do s j o rn ai s . (R UB IÃO , 1 98 2 , p . 1 7 ) .
Em A morte e a morte de Quincas Berro Dágua , o juízo de valor, atribuído à personagem principal, é negativo, talvez pelo fato de Quincas ter sido uma vergonha para a família:
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Er a o c ad áv e r d e Qu i n c as B e r ro D águ a, c ac h ac e ir o , d eb oc h ado e j og ad or , se m fam í l i a , se m l ar , se m fl o r e s e se m r ez as. N ão e r a Jo aqu i m So ar e s d a C unh a, c o r re t o fu nc i on ár i o d a M e sa d e R end as Est adu al , ap o sen t ad o apó s v i n t e e c i n co ano s d e bon s e l ea i s se r v i ç o s , e sp o so mod e l ar , a q u em t odo s t i r av am o c h ap éu e ap e r t av am a m ão . Com o p od e um ho me m , ao s c i n qü en t a an o s, ab an don ar a fam í l i a , a c asa , o s h áb i t o s d e t od a um a v i d a , o s c o nh ec i d o s an t i go s, par a v ag ab und e ar pe l as r u as, b e be r no s bo t e qu i n s b ar ato s, fr e qü en t ar o m er e t r í c i o , v i v er su j o e b arb ad o , mor ar e m i n fame po c i l g a, d o rm i r em um c at r e m i se r áve l ? ( AM AD O, 2 0 04 , p . 1 5 ) .
No conto, portanto, vale chamar à atenção, também, de que o personagem Zacarias, mesmo após sua morte, procura restaurar contato com os seus amigos daquela noite. Tal interesse baseava-se no fato desses companheiros serem as únicas testemunhas de sua morte. No entanto, ele não os encontra. Apesar disso, ele continua a sua trajetória tentando provar que, mesmo morto, consegue ter sentimentos e fazer as mesmas coisas que fazia quando estava vivo.
C O N S I D E RA Ç Õ E S F I N A IS
Em relação às obras em questão, pode-se inferir que os elementos alegóricos revelam, por meio do fantástico, a visão da condição humana, trazendo à tona, inclusive, frustrações e angústias. O fantástico rubiano e amadiano, contudo, rompem não só com os princípios de causalidade, mas também de tem-po, de espaço e do ser. Assim sendo, é inegável que o leitor não se depare diante de um fato impossível de ser explicado pelas leis naturais. Dessa forma, o fantástico tende a produzir efeitos diversos sobre o leitor, tais como incerteza e/ou curio-sidade.
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RE F E R Ê N C I A S
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. 90. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
BASTOS, Hermenegildo José. Notas para uma poética/política do espectro (O fantástico em Murilo Rubião). Revista da Anpoll, São Paulo, 2000. Disponível em: <http://www.anpoll.org.br/ r evista/index.php/revista/article/download/578/589>. Acesso em: 30 mar. 2012.