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TALISON MENDES PICHELI*

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Academic year: 2021

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As alforrias de pia batismal: uma reflexão em torno do cruzamento de fontes na reconstrução das trajetórias e conquistas de mães escravas – Campinas, século XIX

TALISON MENDES PICHELI*

Introdução

A partir de meados da década de 1970, alguns historiadores, interessados em demonstrar a complexidade e a importância do estudo das alforrias para a compreensão da sociedade escravista brasileira, passam a se dedicar exclusivamente à análise desse fenômeno. Os trabalhos realizados desde então, com destaque para os mais recentes, vêm demonstrando, por meio de novas abordagens e métodos de pesquisa, a multiplicidade de fatores no processo da manumissão em diferentes localidades, períodos e até mesmo fontes. Além disso, tem-se buscado compreender também o papel desempenhado pelos diversos atores sociais envolvidos nessa prática e os significados a ela atribuídos por esses sujeitos (cf. EISENBERG, 1989; DAMASIO, 1995;

BERTIN, 2004; SILVA, 2004; ALMEIDA, 2006; SOARES, 2006; FERRAZ, 2010). Esses estudos, ao se utilizarem de documentações diversas, mostraram como eram variadas as formas de acesso à liberdade e destacaram os múltiplos meios pelos quais as pessoas escravizadas conseguiam alcançar um novo status jurídico na sociedade em que viviam. Dentre as principais fontes analisadas, além das tradicionais cartas de alforria que eram registradas em cartórios notariais, estiveram presentes também em suas análises os testamentos e inventários post-mortem, os autos de prestação de verbas testamentárias, as ações de liberdade e os assentos paroquiais da Igreja Católica.

As alforrias de pia batismal eram liberdades concedidas no momento em que crianças

escravas recém-nascidas passavam pelo ritual católico do batismo e iniciavam, perante os olhos

da Igreja, sua vida cristã. Esse tipo de manumissão que era anotada no próprio livro paroquial, é

importante ressaltar, não aconteceu com a mesma frequência que aquelas que foram registradas

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maneira se dedicam ao tema encontram em suas pesquisas (cf. GUEDES, 2008; SILVA, 2011).

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*Mestrando em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

1 Roberto Guedes, em sua pesquisa sobre Porto Feliz, por exemplo, constata apenas 29 manumissões em meio a 7.849 assentos de batismo de livres, entre 1807 e 1860 (com lacuna para os anos de 1830 e 1834), e 04 liberdades nos 3.889 registros de batismo de escravos, entre 1831 e 1887. Elizangela Silva, por sua vez, localiza 08 alforrias de pia nos 745 registros paroquiais da cidade de São Gonçalo analisados por ela, entre 1747 e 1761.

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Assim, uma das questões mais importantes a se compreender em relação às alforrias de pia é sobre quem eram os pais dos poucos cativos que alcançaram suas liberdades por meio do batismo e quais foram as relações que eles estabeleceram com o mundo senhorial ou com outros indivíduos, relações essas que devem ter lhes permitido estruturar toda uma rede de solidariedade e alianças úteis na luta diária contra o cativeiro e que podem ter sido fundamentais para a consecução da manumissão de seus filhos.

Outra característica importante das alforrias de pia encontrada por autores como Cristiano Lima da Silva (2004) e Márcio de Souza Soares (2006), e que também constatei em minha pesquisa, é o alto número de alforriandos ilegítimos do ponto de vista religioso, isto é, que não tinham o nome de seus pais arrolados em seus registros de batismo, apenas o de suas mães.

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Essa informação, com efeito, nos remete diretamente para uma reflexão em torno do papel desempenhado pelas mulheres escravas na conquista das alforrias de seus filhos. Para compreender essa questão, acredito ser fundamental reconstruir parte das trajetórias de vida dessas mães e as estratégias por elas adotadas, analisando as suas possibilidades e particularidades de ação no dia- a-dia do cativeiro, e na formação de redes de sociabilidade com indivíduos de diferentes condições jurídicas.

A grande questão que surge é como fazer esse tipo de análise partindo de uma documentação tão sucinta de informações quanto os registros de batismo, que seguiam um modelo pré-determinado pela Igreja Católica. Muitas vezes, os únicos dados presentes nessa fonte são os nomes dos envolvidos na cerimônia (batizando, pais, padrinhos e senhor ou senhora, quando se tratava de escravo), a data de sua realização, a idade da criança batizada e a assinatura do vigário responsável. Quando havia a ocorrência da alforria na pia batismal, acrescia-se algumas linhas ao assento para anotar a concessão senhorial e para que o outorgante da liberdade também assinasse o registro. Diante dessa situação, creio que a melhor solução seja trabalhar com o cruzamento dos livros paroquiais com outros tipos de documentos, através da ligação nominativa de fontes. Esse é

2 Em seu trabalho, Cristiano da Silva constata que 93,52% daqueles que foram alforriados na pia batismal, em São João d’el Rei, eram ilegítimos. Já em Campos dos Goitacazes, local estudado por Márcio Soares, 76,4% das crianças manumitidas não tinham o nome de seus pais arrolado em seus registros de batismo. Por fim, em minha pesquisa de iniciação científica, verifiquei que 68,5% das crianças libertadas durante o batismo eram ilegítimas.

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o recurso que proponho em minha pesquisa de mestrado em andamento e que também utilizei no trabalho citado anteriormente.

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Assim, meu objetivo neste artigo é propor uma reflexão em torno desse método, buscando explorar as potencialidades da documentação utilizada em minha pesquisa e demonstrando a importância do uso da ligação nominativa de fontes e da redução da escala de observação no sentido de se conhecer e compreender melhor as trajetórias e experiências cotidianas de mães escravas que conseguiram, no momento da cerimônia de batismo, libertar seus filhos do jugo do cativeiro. Para realizar tal objetivo, divido meu texto em duas partes: em um primeiro momento, me atenho mais precisamente ao método em questão e procuro apresentar a documentação da qual me utilizo, demonstrando como é feito o trabalho com ela e quais são as possibilidades de análise que ela viabiliza. Já na segunda parte do texto, busco mostrar como se dá a ligação nominativa de fontes na prática, ao reconstituir e examinar mais de perto o caso específico de uma das escravas cujos filhos foram alforriados na pia batismal.

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Reconstruindo trajetórias e conquistas: a ligação nominativa de fontes

A ligação nominativa de fontes é um método proposto pela micro-história italiana, sendo Carlo Ginzburg e Carlo Poni (1989) um dos primeiros autores a ressaltarem a importância desse tipo de trabalho. Segundo eles, para que seja possível reconstituir o vivido e questionar as estruturas menos visíveis dentro das quais esse vivido se articula, o melhor recurso a se utilizar é o da redução da escala de análise e da circunscrição do âmbito da investigação, uma vez que ele permite localizar os mesmos sujeitos em diferentes contextos e tecidos sociais e reconstituir as redes de relações em que eles estavam imersos, por meio da sobreposição de documentos no espaço e no tempo, e a partir de seus nomes – o “fio de Ariana que guia o investigador no labirinto documental” (GINZBURG e PONI, 1989: 173-174). Além disso, de acordo com Jacques Revel (1998), ao diminuir a escala de observação e seguir um indivíduo no tempo, é possível fazer aparecer “por trás de uma tendência geral e mais visível, as estratégias sociais desenvolvidas pelos

3 Me refiro ao meu trabalho de iniciação científica, sob orientação do Prof. Dr. Ricardo Figueiredo Pirola, que resultou na monografia de conclusão de curso intitulada “Como se nascesse de ventre livre”: batismo, alforrias e liberdade em Campinas (1829-1845).

4 Como minha pesquisa de mestrado se encontra ainda em seu início, apresentarei a história de uma das mães escravas que analisei em minha monografia, trabalho no qual me utilizei apenas do cruzamento dos registros de batismo com os censos populacionais da cidade de Campinas. Para mais, ver: PICHELI, Talison M. “Como se nascesse de ventre livre”: batismo, alforrias e liberdade em Campinas (1829-1845). Monografia de Graduação em História, Universidade Estadual de Campinas, 2018.

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diferentes atores em função de sua posição e de seus recursos respectivos, individuais, familiares, de grupo, etc.” (REVEL, 1998: 22). Em outras palavras, a redução de escala produz um “efeito de conhecimento” que acredito ser importante para o tipo de pesquisa que proponho neste texto na medida em que ela nos possibilita penetrar em vestígios das vidas dos cativos (nesse caso em específico, das mulheres escravizadas) e aprofundar, a partir de suas experiências cotidianas, em alguns aspectos que dizem respeito à conquista das alforrias de pia para seus filhos.

O fio condutor que nos orienta na documentação é, portanto, o nome tanto das mães escravas quanto de seus proprietários. Ele é o “centro de gravidade” da investigação, para o qual há linhas que se convergem, e que dele partem, que nos auxiliam na composição “de uma espécie de teia de malha fina” que “dão ao observador a imagem gráfica do tecido social em que o indivíduo está inserido” (GINZBURG e PONI, 1989: 175). Dessa forma, depois de conhecer o nome das mães das crianças libertadas e dos senhores que as alforriaram (localizados nos próprios assentos de batismo), é possível buscá-los em outros tipos documentais, no intuito de rastreá-los em diferentes épocas e lugares e, assim, reconstruir parte de suas redes de sociabilidade, parentesco e afinidades.

Em relação ao trato com a documentação, começo a investigação pelos livros paroquiais de batismo da freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas – a fonte principal do estudo.

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Neles, analiso assento por assento, contabilizando-os e fazendo anotações dos casos em que há indicações da ocorrência de alforrias de pia. A partir daí, retorno à documentação, com as indicações anotadas anteriormente em mãos, e faço o fichamento de todas as informações presentes nos registros de batismo com manumissões declaradas. A saber: data do evento, nome do senhor(a), nome dos padrinhos, condição social dos padrinhos, senhor(a) dos padrinhos (quando se trata de pessoas escravizadas), naturalidade, idade, cor e condição dos pais, nome, sexo, idade e cor dos alforriados. Uma vez colhidos, esses dados são lançados em um programa de computador próprio para a formação de um banco de dados (chamado Epi info) que me auxilia em sua análise e na construção de tabelas. Além de ser fundamental para a percepção das mudanças tanto do padrão das alforrias como do perfil dos libertandos ao longo do tempo, os registros de batismo possibilitam uma primeira aproximação com parte das estratégias utilizadas por aquelas mulheres escravizadas que conseguiram a liberdade de seus filhos na pia batismal, ao viabilizar a

5 Essa documentação pode ser encontrada no Projeto Family Search da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, disponível em: https://www.familysearch.org/.

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reconstituição das redes de parentesco e afinidade que elas construíram, sobretudo pelo estabelecimento de laços de compadrio. Assim, é possível conhecer quantas crianças essas mães batizaram, quantas conseguiram a liberdade e quem eram os padrinhos e madrinhas escolhidos nessas ocasiões.

A partir do nome dos senhores dos alforriandos e de suas mães, percorro outras fontes em busca desses sujeitos em momentos e contextos sociais diversos, com o intuito de aprofundar e conhecer melhor as trajetórias e as diferentes estratégias construídas principalmente pelas mulheres escravizadas dentro do sistema escravista. Nesse sentido, o primeiro documento no qual os procuro é nos censos populacionais da cidade de Campinas que foram produzidos desde fins do século XVIII até o ano de 1836.

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No trabalho com essa fonte em específico, organizo uma lista nominativa para cada recenseamento, na qual conste o nome de todos os chefes de propriedade e de seus cônjuges – essa escolha de anotar o nome de ambos se deve ao fato de que, no trabalho com os registros de batismo, notei algumas senhoras que alforriaram seus cativos na pia batismal, as quais acredito que, se fossem casadas, dificilmente apareceriam arroladas nos censos como chefes de propriedade, mas, sim, como esposa destes. Com o auxílio desse índice, é possível localizar o nome dos responsáveis por libertar seus escravos durante a cerimônia de batismo. Uma vez encontrados, faço um fichamento com todas as informações que constem em seus recenseamentos e os lanço também em uma base de dados. A importância dessa fonte reside no fato de ela trazer a lista dos habitantes da região de Campinas naquela época, indicando, de maneira bastante detalhada, quem eram essas pessoas e quais suas posses, o que inclui, é importante ressaltar, os dados das mães das crianças alforriadas. Assim, os recenseamentos nos permitem aprofundar no perfil dessas mulheres (suas idades, naturalidades e estado matrimonial), saber se elas viviam em pequenas, médias ou grandes posses e há quanto tempo residiam nos domínios de seus senhores – fatores que devem ter sido fundamentais na consecução de seus planos ao longo de suas trajetórias de vida.

Outras duas fontes importantes são os testamentos e inventários post-mortem dos senhores que concederam alforrias de pia. Nesse caso, ao invés de empreender uma análise sistemática, é

6 Os censos populacionais de Campinas foram realizados anualmente desde os últimos anos do setecentos até a década de 1820. A partir de 1822, há um intervalo maior entre eles, sendo que foram feitos apenas mais três recenseamentos:

o de 1825, 1829 e 1836. Essa documentação, com efeito, é muito importante, pois traz informações, praticamente ano a ano, do perfil dos habitantes que viviam em Campinas e de suas posses, o que inclui, é importante mencionar, as suas escravarias.

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possível procurar por seus nomes pontualmente na documentação.

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Através dos inventários, podemos examinar a estrutura socioeconômica das propriedades em que viviam as mães das crianças libertadas. Eles podem ajudar a determinar, por exemplo, o tamanho e o perfil das posses dos inventariados no fim de suas vidas, permitindo visualizar características de suas escravarias em momentos diversos e auxiliar, também, na reconstrução da trajetória dessas mulheres. Já os testamentos provavelmente são a fonte mais importante para a reconstrução de redes e estratégias sobretudo devido à sua natureza: ser um documento feito próximo do momento da morte e, portanto, carregado de muitas informações. Assim, detalhes da vida de mães cativas que outras documentações mais ásperas não permitem entrever podem ser vislumbrados nos testamentos, principalmente se elas fizessem parte de pequenas propriedades, onde o contato diário com seus proprietários era mais próximo. Ali podem constar referências sobre quem elas eram, com o que trabalhavam, do que viviam e com quem conviviam – se apenas com seus filhos ou se tinham companheiros, se eram casadas e até mesmo se mantinham relações e redes de contato diversas com outros sujeitos. Ademais, era nessa ocasião que os senhores passavam a sua consciência a limpo e, devido a isso, eles poderiam, por exemplo, reconhecer uma alforria concedida a um de seus filhos durante o batismo.

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Considerando o alto número de forros ilegítimos em Campinas, seriam seus senhores também seus pais? Eles libertavam também as mães escravizadas de seus filhos? Legavam a eles algum tipo de bem material? Enfim, os testamentos têm um grande potencial para nos ajudar a compreender essas questões e, consequentemente, as ações das mulheres que conseguiram ver seus filhos livres do cativeiro.

O cruzamento com os registros de matrimônio e com as cartas de alforria que eram registradas em cartório também pode ser frutífero para a reconstrução das trajetórias e estratégias de mães escravas. Mais uma vez, o método de ligação nominativa de fontes é fundamental para encontrá-las na documentação; é a partir de seus nomes e do nome de seus senhores (e no caso das cartas de liberdade, até do nome das crianças alforriadas na pia batismal) que podemos localizá- las em ambos os registros: paroquiais e cartoriais. Sobre o primeiro tipo de documento, ele nos

7 Essa procura é possível graças à ferramenta de busca nominal presente no website do Centro de Memória da Unicamp (CMU), arquivo no qual essa documentação está guardada.

8 De fato, alguns historiadores encontram, em suas pesquisas, casos em que os testadores reconhecem a paternidade natural de filhos que tiveram com suas escravas e que foram libertados por eles na pia batismal. Entre alguns desses trabalhos, ver: PEDRO, Alessandra. Liberdade sob condição: alforrias e política de domínio senhorial em Campinas, 1855-1871. Dissertação de Mestrado em História, Universidade Estadual de Campinas, 2009; SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro: alforrias e liberdades nos Campos dos Goitacazes, c. 1750 – c.1830. Tese de Doutorado em História, Universidade Federal Fluminense, 2006.

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possibilita aprofundar nas histórias de vida tanto daquelas mulheres arroladas nos assentos de batismo com os seus companheiros, isto é, com o pai de seus filhos, quanto das que aparecem sozinhas (casos em que o pai é incógnito). Em relação às últimas, elas se casaram em algum outro momento de suas vidas? Eram realmente solteiras quando da liberdade de seus filhos ou mantinham algum tipo de união consensual com o pai dessas crianças que depois foi sacramentada pela Igreja Católica? Já sobre as primeiras, quando se casaram? Quem eram os seus cônjuges? E as testemunhas de seu casamento? Quando sua prole foi alforriada elas já eram casadas? Se sim, há quanto tempo?

Sobre as cartas de alforria, elas nos permitem saber, por exemplo, se as manumissões concedidas na pia batismal em Campinas eram registradas em cartório pelas pessoas envolvidas naquela prática (o que inclui, é claro, as mães escravas) – um importante dado que nos possibilita descobrir se os livros paroquiais de batismo eram considerados suficientes para o reconhecimento da liberdade de seus filhos e que, consequentemente, nos ajuda na compreensão das atitudes e significados atribuídos por elas à essa prática. Além disso, para o caso de terem sido registradas, é possível conseguir informações mais completas a respeito das mães dessas crianças, dos senhores que as libertavam e das circunstâncias em que ocorreram as liberdades. Dessa forma, podem surgir na análise dessa fonte os motivos que levaram esses sujeitos a libertar os filhos de determinadas escravas de sua propriedade, o porquê do registro em cartório das alforrias ou até mesmo se outros personagens fizeram parte do processo (e de que forma atuaram). Situações que, não é difícil de imaginar, muitas vezes estiveram ligadas às ações, estratégias e lutas de mulheres escravizadas que buscavam melhores condições de vida para si e para os seus.

A escravaria Maria e as liberdades de Salvador, Anna e Antônia

No dia 12 de fevereiro de 1825, o tenente Pedro Antônio de Oliveira se deslocou até a matriz da vila de São Carlos

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para batizar Salvador, filho recém-nascido de “pai incógnito” e de uma de suas escravas, de nome Maria. Esse foi, sem dúvida, um momento de mudanças na vida do pequeno Salvador, pois, além de ter iniciado sua vida cristã aos olhos da Igreja Católica, ele também teve modificado o status jurídico com o qual havia nascido, deixando para trás a condição cativa para se tornar uma pessoa liberta. Foi nessa ocasião em que seu senhor, na presença de sua

9 Vila de São Carlos é a antiga denominação de Campinas, que só recebeu esse nome na década de 1840, quando se tornou uma cidade emancipada.

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mãe e de seus padrinhos, João Antônio de Oliveira e Anna Joaquina, declarou ao vigário responsável pela cerimônia e pelo registro do batismo que o dava “por forro e liberto, como se nascesse de ventre livre”.

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Anos depois, duas de suas irmãs, Anna e Antônia, viveram uma situação semelhante. A primeira recebeu os santos óleos do vigário Joaquim Anselmo de Oliveira na mesma matriz de São Carlos e teve sua liberdade outorgada pelo tenente Oliveira no dia 11 de março de 1836, em cerimônia que teve por testemunhas, além de Anna Joaquina de Souza, os seus padrinhos Joaquim Antônio de Oliveira e Francisca de Camargo.

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Já a segunda conquistou sua manumissão no dia 13 de setembro de 1839, quando seu senhor se deslocou até a matriz de Indaiatuba

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para batizá- la e para declarar, assim como fizera com Salvador e Anna, que a “libertava gratuitamente de sua livre vontade”. Os padrinhos escolhidos para Antônia foram Rodrigo José Felis e sua esposa Maria Rosa. O seu registro de batismo foi anotado algum tempo depois nos livros paroquiais de Campinas pelo vigário João Manoel d’Almeida Barbosa e assinado pelo tenente Oliveira, como era comum em caso de concessão de alforrias na pia batismal.

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A história da liberdade dessas três crianças certamente começou muito antes de ela acontecer no ritual católico pelo qual passaram, muito antes até mesmo de suas respectivas datas de nascimento. Com isso quero dizer que, por se referir à manumissão de indivíduos recém- nascidos que, por esse motivo, não dispunham de condições próprias para se livrar do cativeiro, as alforrias de pia batismal foram, sem dúvida, o resultado de diversas estratégias construídas por seus pais em busca de uma vida menos precária dentro da sociedade escravista. Assim, importa conhecer quais foram as experiências e ações de mulheres como Maria diante do mundo senhorial,

10 Registro de batismo de Salvador, 1825. Projeto Family Search. “Brasil, São Paulo Registros da Igreja Católica, 1640-2012. Campinas > Nossa Senhora da Conceição > Batismos 1824, Mar – 1833, Mar” > imagem 11 de 105, disponível em: https://familysearch.org/ark:/61903/3:1:939F-RZWC-7?cc=2177299&wc=M5JL- RMS%3A371872201%2C371868902%2C372558501.

11 Registro de batismo de Anna, 1836. Projeto Family Search. Brasil, São Paulo, Registros da Igreja Católica, 1640- 2012. Campinas > Nossa Senhora da Conceição > Batismos 1830, Mar-1839, Jun, imagem 135, disponível em:

https://familysearch.org/pal:/MM9.3.1/TH-1-14057-40469-90?cc=2177299.

12 O batismo de Antônia provavelmente aconteceu em Indaiatuba, e não em Campinas, porque o tenente Oliveira estava fora de sua freguesia quando chegou o momento de batizá-la. Era comum que quando isso acontecesse, a cerimônia fosse realizada na cidade em que se encontrava seu senhor e que, posteriormente, as informações sobre o seu batismo fossem lançadas nos livros da paróquia em viviam os escravos e seus proprietários.

13 Registro de batismo de Antônia, 1839. Projeto Family Search. Brasil, São Paulo, Registros da Igreja Católica, 1640-2012. Campinas > Nossa Senhora da Conceição > Batismos 1838, Jun-1850, Dez, imagem 8, disponível em:

https://familysearch.org/pal:/MM9.3.1/TH-1-14057-38992-47?cc=2177299.

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do mundo dos livres de uma maneira mais abrangente e também perante seus companheiros de escravidão, que garantiram a crianças como Salvador, Anna e Antônia as suas liberdades.

No cruzamento dos registros de batismo com os censos populacionais, encontrei a mãe dessas crianças pela primeira vez na propriedade de Pedro Antônio de Oliveira no recenseamento do ano de 1822. Nela, Maria, uma cativa ainda jovem, com 20 anos de idade e solteira, convivia em uma pequena escravaria de apenas nove pessoas, das quais duas eram crianças e sete adultos, divididos em quatro homens e três mulheres.

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A próxima lista de habitantes na qual encontrei Maria foi a de 1829. Nesse censo, a escrava é arrolada com 25 anos de idade, solteira, e ainda convivendo com outros nove cativos da propriedade do tenente Oliveira.

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Por fim, a localizei novamente no recenseamento seguinte, de 1836 – que também foi o último realizado na primeira metade do século XIX em Campinas. Nele, ela é listada, junto de mais oito escravos da posse de seu senhor, como uma cativa solteira, crioula, e com 26 anos de idade.

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Como é possível depreender da análise dos censos populacionais, Maria viveu por muitos anos em uma mesma propriedade. Desse modo, é plausível sugerir que todo o período no qual ela residiu na posse de seu senhor, desde, pelo menos, 1822, deve ter lhe garantido alguns meios pelos quais ela pudesse construir e acionar estratégias no sentido de obter melhores condições de vida no cativeiro e, no limite, conquistar a sua liberdade e a de seus familiares. Durante todo esse tempo, ela provavelmente recorreu a expedientes que lhe aproximasse tanto de seu proprietário quanto de outros indivíduos do mundo livre. Assim, na vivência do seu cotidiano, ela pode ter incorporado valores dominantes em seu próprio favor, ter dado demonstrações de afeto e gratidão (reais ou forjadas) para com o seu senhor e, consequentemente, ter aproveitado de uma maior predileção entre seus escravos. E se mesmo assim ela não logrou sucesso em conseguir a sua própria alforria (dado que não consegui constatar), Maria ao menos teve êxito em relação aos seus descendentes,

14 Censo populacional de Pedro Antônio de Oliveira, 1822. Arquivo Público do Estado de São Paulo, Maços de População, rolo de microfilme nº 35, fl. 1741.

15 Censo populacional de Pedro Antônio de Oliveira, 1829. Arquivo Público do Estado de São Paulo, Maços de População, rolo de microfilme nº 35, fl. 318.

16 Censo populacional de Pedro Antônio de Oliveira, 1836. Arquivo Público do Estado de São Paulo, Maços de população, rolo de microfilme nº 35, fl. 116. É verdade que a idade de Maria, em 1836, é muito próxima daquela que aparece no recenseamento de 1829. Contudo, as idades que eram arroladas nos censos populacionais não podem ser levadas à risca, pois pouca relevância era dada para o registro dessa informação, ainda mais quando se tratava de pessoas escravizadas. Desse modo, era bastante comum que elas fossem anotadas de maneira incorreta, seja por desconhecimento dos proprietários, por negligência ou erro de quem era responsável por produzir as listas ou até mesmo porque alguns senhores preferiam não anotar a verdadeira idade de seus cativos para evitar problemas no futuro.

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já que três deles foram libertados na pia batismal. O próprio fato de ter morado em uma pequena propriedade possivelmente a favoreceu nessa empreitada.

O tenente Pedro Antônio de Oliveira não era um grande senhor de engenho, que contava com maiores recursos financeiros e capital acumulado, e muito menos era um escravista abastado, que dispunha de um alto número de cativos em sua posse. Pelo contrário, de acordo com seus censos populacionais, ele era apenas um pequeno agricultor que possuía alguns poucos escravos e que provavelmente tinha como fonte principal de renda a atividade de sua tropa (pois é arrolado em seu recenseamento como tropeiro) e de suas modestas plantações. Diante dessa situação, é possível imaginar que entre aquele homem e seus cativos havia um contato muito mais próximo no cotidiano de sua propriedade. Ele e Maria, por exemplo, podem ter compartilhado os mesmos espaços em diversas ocasiões, desde momentos dentro de sua própria residência até no trabalho diário de sua roça – situação que provavelmente abriu o caminho para a constituição de relações ilegítimas do ponto de vista da Igreja entre eles. De fato, como destacam alguns autores que relacionam o tema da família escrava com o da extensão das posses em que viviam os cativos, era nas menores propriedades que os escravos tinham uma maior instabilidade para constituir laços familiares e, por isso, nesses domínios o índice de ilegitimidade de crianças recém-nascidas tendia a ser maior em comparação com as grandes e médias posses (cf. MOTTA, 1999; ROCHA, 2004;

SLENES, 2011). Dessa forma, Salvador, Anna e Antônia podem ter sido os frutos desse frequente contato direto, do qual a escrava buscou sobreviver e lutar por seus interesses.

Todos os três filhos de Maria que foram alforriados na pia batismal eram ilegítimos, ou seja, não tinham o nome de seus pais anotados em seus registros batismais. Diante dessa situação, é impossível não se levar em conta a possibilidade de que essas crianças fossem filhas naturais do tenente Oliveira. Possibilidade essa que se reforça ainda mais pelo fato de serem todas elas filhas de uma mesma escrava da propriedade daquele senhor, ao menos é o que a documentação e a historiografia permitem especular. Cristiano Lima da Silva (2004), em seu trabalho sobre as alforrias de pia batismal em São João d’el Rei, por exemplo, indica que a maior parte dos casos em que uma mesma mãe tem mais de um filho libertado durante o batismo viabiliza a hipótese de que havia laços de consanguinidade entre as crianças forras e seus senhores (SILVA, 2004: 82- 83).

Em outros estudos que se dedicam ao tema das manumissões, não é incomum a existência

da paternidade senhorial de escravos que são alforriados pelos seus próprios pais. De acordo com

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Alessandra Gomes (2008), os casos em que senhores libertaram seus filhos naturais sem reconhecê-los oficialmente como seus legítimos descendentes por receio da ordem social devem ter sido mais frequentes do que a documentação permite constatar (GOMES, 2008: 76). Ainda assim, ela apresenta casos como o do pequeno Francisco Theodoro que recebe, assim como sua mãe, Maria Preta, a liberdade de seu senhor, que também assumiu ser seu pai em sua carta de alforria (GOMES, 2008: 119). Para essa historiadora, aquelas escravas que acabavam tendo filhos por consequência do estabelecimento de relações com sujeitos do mundo livre, ou com forros, provavelmente tinham em seu horizonte a perspectiva de que, no futuro, os pais de suas crianças as libertassem da escravidão. Situações como essa, em suas palavras, “confirmam as estratégias femininas para a conquista não só da liberdade delas, mas a de seus filhos” (GOMES, 2008: 137- 138).

No caso da escrava Maria, dentro das possibilidades de ação que ela tinha ao seu dispor, investir no estabelecimento de relações íntimas com o tenente Oliveira deve ter sido um caminho mais seguro para conquistar maior autonomia e melhores condições sob o jugo da escravidão.

Além disso, ela pode ter trabalhado com o imaginário religioso de seu senhor que, por ser católico, poderia enxergar a concessão das alforrias de pia batismal a seus filhos como uma oportunidade de alcançar a redenção divina e evitar cair em pecado por deixá-los no cativeiro.

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A hipótese da paternidade senhorial dessas crianças, por conseguinte, talvez ajude também na compreensão do porquê de o tenente Oliveira não ter libertado os outros filhos de Maria e muito menos os filhos de outras escravas de sua posse, cujos assentos de batismo também localizei.

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No trabalho com a documentação também foi possível notar que Maria procurou se aproximar de outros sujeitos do mundo livre, sobretudo através da constituição de laços de compadrio – um tipo de ligação que extrapolava o seu significado religioso e que trazia implicações diretas para o campo do social, se configurando como mais uma oportunidade de

17 Em sua pesquisa para a região de Campos dos Goitacazes, Márcio Soares argumenta que, nos preceitos da Igreja Católica, deixar algum filho na condição de escravo era considerado uma falta grave. Dessa forma as alforrias de pia batismal se configuravam como a primeira oportunidade que sujeitos do mundo livre, que haviam mantido relações sexuais com suas escravas e que dessas relações tivessem nascido crianças ilegítimas, tinham para se redimir de seus pecados. Ele destaca, ainda, que esse deve ter um sido um elemento do imaginário senhorial que as cativas souberam trabalhar para conseguir a liberdade de seus filhos.

18 Encontrei nos registros de batismo outros filhos de uma escrava de nome Maria, que pertencia ao tenente Oliveira, e que não foram libertados na pia batismal como as três crianças dessa história. São eles: Tereza, Joanna, André, Gonsalo e Benta, batizados respectivamente em 1832, 1834, 1839, 1841 e 1844. Localizei também os assentos de outros sete cativos, filhos de outras escravas de Oliveira, que também não conseguiram alcançar a sua liberdade no batismo.

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auferir ganhos dentro do cativeiro e de lutar por sua liberdade e pela de seus parentes. De acordo com os registros de batismo tanto de Salvador quanto de Anna e Antônia, foi possível observar que todos os indivíduos escolhidos para apadrinhá-los tinham condição jurídica superior, ou seja, eram livres. Para o primeiro foram escolhidos João Antônio de Oliveira e Anna Joaquina, enquanto que para a segunda foram Joaquim Antônio de Oliveira e Francisca de Camargo e para a terceira, Rodrigo José Felis e sua esposa Maria Rosa.

A decisão de Maria em escolher indivíduos de condição jurídica superior para apadrinhar seus filhos não deve ter sido aleatória. Ao fazer isso, ela decerto teve por objetivo o estabelecimento de ligações espirituais e sociais “para cima”, com pessoas que ela considerava como potenciais aliados e protetores de sua família dentro do mundo hostil da escravidão. Os próprios padrinhos escolhidos para Salvador e Anna dão indício da estratégia utilizada por sua mãe. Como destaquei anteriormente, a última teve como padrinho Joaquim Antônio de Oliveira e o primeiro, João Antônio de Oliveira, dois sujeitos que, como é possível notar, têm o mesmo sobrenome do proprietário de Maria, o tenente Pedro Antônio de Oliveira (eles possuem até mesmo o segundo nome em comum). Essa característica abre espaço para a hipótese de que esses três homens fossem aparentados em algum grau (seriam eles irmãos?), e isso certamente deve ter influenciado a escrava em suas opções. Para ela, escolher pessoas como João e Joaquim Oliveira para apadrinhar seus filhos deve ter significado a constituição, ou o reforço, de vínculos de parentesco espiritual com dois indivíduos que provavelmente tinham um contato mais estreito com seu senhor e que poderiam, por esse motivo, atuar como mediadores junto a ele em momentos mais delicados ou em situações de interesse de seus afilhados, inclusive em suas alforrias.

Mais uma vez, ter morado por tanto tempo em uma pequena propriedade deve ter sido fundamental para a escolha das pessoas com as quais Maria estabeleceu laços de compadrio.

Mesmo que não seja possível determinar, pela documentação que pesquisei, qual era a sua função

dentro da posse do tenente Oliveira, é bastante provável que em seu cotidiano ela se ocupasse de

tarefas diversas. Isso, por sua vez, deve ter lhe proporcionado mobilidade suficiente para se

aproximar e construir vínculos com outros indivíduos como mais um expediente a ser empregado

na luta para alcançar a sua manumissão e, sobretudo, a de seus filhos. Com efeito, em propriedades

que contavam com um número reduzido de cativos, ainda que as mulheres fossem designadas com

maior frequência para a função de trabalhadoras domésticas quando comparadas aos escravos do

sexo masculino, era comum que todos desempenhassem múltiplas atividades no dia-a-dia. De

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acordo com Lizandra Ferraz (2010), isso lhes abria a oportunidade de “estabelecer laços sociais importantes com diferentes setores sociais, principalmente com a população livre, que potencializou o acesso a alforria entre eles ou pelo menos engordou as estratégias acionadas por eles para que alçassem esse fim” (FERRAZ, 2010: 143).

Infelizmente, apenas com os registros de batismo e os censos populacionais não consegui avançar nessa questão para saber se os padrinhos de Salvador, Anna e Antônia realmente foram relevantes na conquista de suas liberdades na pia batismal. Talvez ao recorrer às outras fontes documentais que mencionei na seção anterior – com as quais me proponho a trabalhar em minha pesquisa em andamento – eu alcance mais informações em relação a isso e, assim, consiga elucidar melhor essa hipótese. De todo modo, o importante é que, para a escrava Maria, construir laços sociais e estabelecer redes de solidariedade com sujeitos de melhor condição social representou, de fato, uma oportunidade de obter o auxílio de pessoas que pudessem advogar em seu favor ou em favor de seus filhos e, assim, lhes garantir condições menos excruciantes de vida, além de suas liberdades.

Considerações Finais

Ao longo deste texto, a partir das reflexões suscitadas em meu estudo sobre as alforrias de pia batismal em Campinas, no século XIX, procurei contribuir no sentido de apresentar o cruzamento de diferentes documentos históricos, através do método de ligação nominativa de fontes, como uma alternativa viável para a reconstrução das trajetórias, ações e conquistas de mães escravas que, ao lutarem por condições melhores de vida no cativeiro, acabaram por alcançar a liberdade de seus filhos. Nesse sentido, apresentei o método em questão e a maneira como trabalho com a documentação da qual me utilizo em minha pesquisa de mestrado, explorando algumas de suas potencialidades. Além disso, busquei também apresentar o método da ligação nominativa de fontes sob outra perspectiva, ao trazer algumas reflexões em torno das estratégias da escrava Maria, possibilitadas pelo cruzamento dos registros de batismo com os censos populacionais de Campinas.

O fato de eu não ter mencionado alguns dos desafios que esse método impõe não significa

que eles não existam. Com efeito, o historiador que se propõe a trabalhar com a ligação nominativa

de fontes eventualmente pode se deparar com alguns obstáculos aos quais ele precisará dispensar

a devida atenção. Um dos problemas mais comuns são as lacunas documentais, como foi o caso

quando não localizei o senhor de Maria nos recenseamentos do ano de 1825. Nem sempre é

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possível identificar os sujeitos da pesquisa na documentação trabalhada, o que, na maioria das vezes, exige um maior cuidado na interpretação e compreensão dos fragmentos aos quais o pesquisador tem acesso. Além disso, indivíduos homônimos também aparecem com frequência na documentação, o que traz mais um desafio que precisa ser encarado com cautela, sobretudo quando se está buscando reconstruir a história de pessoas escravizadas, que costumavam ter nomes comuns e não possuírem sobrenomes. Também precisei lidar com essa questão no caso da Maria, quando notei que no censo de 1829 (e apenas nele), há duas escravas arroladas com esse mesmo nome na escravaria de seu proprietário. Na impossibilidade de definir exatamente qual delas era a mãe das crianças alforriadas, e se aquela única Maria arrolada na listagem de 1836 é a mesma que aparece desde 1822 na posse do tenente Oliveira, tive de trabalhar com algumas hipóteses que a própria documentação me apresentava e precisei recorrer à historiografia e aos próprios resultados de minha pesquisa para determinar qual delas era mais plausível.

19

Ainda assim, acredito que a ligação nominativa de fontes se configura como um método bastante útil e importante, ao permitir uma investigação aprofundada das trajetórias de vida de mães escravas que buscaram, em seu dia-a-dia, alternativas para conquistar uma vida menos precária para si e para os seus familiares. Sem dúvida, esse tipo de trabalho abre o caminho para uma melhor percepção das nuances da sociedade escravista em diferentes períodos e localidades do Brasil e das relações sociais que nela eram estabelecidas. Além disso, a reconstituição e compreensão das múltiplas experiências vividas por essas mulheres, possibilitado pela escala reduzida de análise inerente a esse método, pode trazer contribuições significativas aos debates que envolvem gênero e escravidão, um tema ainda pouco trabalhado pela historiografia brasileira e que carece de mais atenção.

Fontes

Arquivo Público do Estado de São Paulo

Censos populacionais de Campinas, de 1822 a 1836. Maços de População, rolo de microfilme no.

35.

19 Nesse caso, a hipótese que concluí ser a mais plausível, e com a qual trabalhei em minha monografia, é a de que a escrava de nome Maria que está arrolada no censo de 1836 é a mesma que vivia na propriedade de Pedro Antônio de Oliveira desde, pelo menos, 1822. Isso porque, com base na historiografia e nos resultados que encontrei em minha pesquisa, aqueles cativos que viviam há mais tempo nas posses de seus senhores tinham maiores oportunidades de obter a sua liberdade e a de seus familiares, pois eles dispunham de um conjunto maior de estratégias construídas ao longo de muitos anos. Assim, dificilmente uma escrava recém introduzida em uma propriedade conseguiria ver três de seus filhos se libertarem do cativeiro.

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Projeto Family Search

Livros de registro de batismo da paróquia de Nossa Senhora da Conceição.

Disponível em: https://www.familysearch.org/search/image/index?owc=M5N1- W3V%3A371872201%2C371868902%3Fcc%3D2177299.

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