• Nenhum resultado encontrado

O mal estar da civilização neocolonial 1

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "O mal estar da civilização neocolonial 1"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

O mal estar da civilização neocolonial

1

Maria Stella D’Agostini (IPol/UnB)

Resumo: Diversas formas de violência são destinadas a uma série de populações não brancas.

Apresentado como hierarquização racial, isto é, opressão que atua em diversas esferas da noção de pessoa: o racismo e suas consequências. Por meio de uma análise dialética das implicações da teoria política e social de Frantz Fanon, em diálogo com Marx, Hegel, Freud e pensadores decoloniais, o objetivo desta análise é compreender as complexas dinâmicas presentes nas relações que alicerçam a perpetuação da democracia liberal junto ao capitalismo. É na fundamentação dialética de Fanon que as relações raciais e sociais das sociedades contemporâneas, justificam práticas estatais como invisibilidade social/política e cerceamento policial de populações não-brancas. Uma estrutura que existe para legitimar a exploração que intui ordenar os sistemas socioeconômicos e políticos. Narrado pelos dominados, trata-se de um mal estar da civilização analisado sob o ponto de vista da dialética da dominação.

Palavras-chave: violência, decolonialidade, neocolonialismo, Frantz Fanon.

Introdução

Músicas, risos e bebidas. De repente, sirenes. Silêncios, gritos raivosos. Tiros. Gritos de horror. Silêncios e mais tiros. Pneus derrapando. Choros e soluços. Eis uma rotina musical brasileira que paira na realidade, já quase clichê das periferias urbanas. É a reprodução de um processo de opressão calcado em uma realidade descrita, inúmeras vezes, por inúmeros pensadores, pesquisadores, artistas cênicos, musicistas, poetas e tantas outras formas de arte e intelectualidade, em todas as cores.

Trata-se de um retrato da violência urbana, que pode ser explicada a partir de uma lógica relacional, uma apropriação da lógica argumentativa que outrora exprimia a conotação das relações entre brancos e não brancos em territórios invadidos: a dialética da dominação fanoniana. Parte do mainstream dos estudos sobre as relações raciais na contemporaneidade, a absorção das noções teórico-metodológicas em Fanon deixa à desejar quando partimos deste recorte prático, como um retrato de um tempo encaixado em uma realidade do futuro correlato.

Sem perder de vista esta relevância do emprego atual das teses de Frantz Fanon, este artigo pretende apresentar uma leitura da sua dialética própria, apropriando do autor seu método analítico e sua propositura teórica de patologia social: o mal estar da civilização. Falamos,

1 Trabalho submetido e aprovado para participação do GT39 - Silenciamentos, dominação e sofrimento social:

contribuições das teorias políticas contemporâneas a debates emergentes nas ciências sociais do 44º Encontro Anual da ANPOCS.

(2)

portanto, de um debate aprofundado sobre as relações sociais, localizado em tempo e espaço, capaz de explicar as razões mais profundas de um dos antagonismos primeiros e necessários para a formação e desenvolvimento da sociedade moderna como capitalista, organizada em Estados Nacionais expansionistas centrados no domínio dos homens brancos proprietários.

Chamada de dialética da dominação, a proposta é debater a forma como Fanon construiu sua interpretação da patologia social, inicialmente apresentada por Freud para os europeus como um mal estar da civilização que partiria das relações internas entre a racionalidade/civilidade humana e seus instintos mais primitivos, como uma sujeição das paixões humanas aos interesses e objetivos sociais. No centro deste debate está o ponto de partida analítico diferenciado entre os autores: a sociedade branca judaico-cristã em Freud, e as sociedades mistas e diversificadas, entre brancos e não brancos, na qual há claras diferenças pautadas em relações de poder que remetem ao processo histórico das invasões dos continentes pelos europeus ao longo dos séculos XIV e XV. Esta diferença de escopo, associada ao método analítico, também divergente, vai apresentar dois diferentes pontos de vista do que seria o mal estar da civilização.

Para tanto, pensando em método, tem-se em Marx – para além das atribuições dadas à teoria do filósofo alemão por seus principais intérpretes – a sustentação metodológica, mesmo que crítica, da análise feita por Fanon. Entendendo, ainda, que o método materialista histórico e dialético tem como um dos interlocutores o fundador da fenomenologia, Hegel, a interlocução necessita de uma retomada deste autor, principalmente, pensando na formação da lógica dialética retomada por ele, desenvolvida por Marx e recolocada no centro do debate por Fanon.

Esta empreitada teórica pretende debater a relação entre a persistência da violência estatal para com populações não brancas, utilizando a teoria de mal estar da civilização de Fanon, em associação com a interpretação dele e de outros pensadores periféricos sobre as formas de relação entre o Estado e as sociedades civis (as brancas e não brancas). O centro do debate é o princípio que legitima a dominação, por isso o artigo divide-se a partir dos elementos relacionais: cristianismo e dominação; as formas dialéticas de Hegel, Marx e Fanon; o mal estar da civilização de Fanon; e onde estão os diálogos entre o Estado e a sociedade não-branca nas democracias liberais.

(citação)

A escolha da dialética como método lógico analítico advém do prisma relacional que se pretende partir para a análise. É o método escolhido pelos autores centrais de referência, ao mesmo tempo que está presente nos demais interlocutores periféricos abordados neste artigo:

Aníbal Ponce e Amílcar Cabral.

(3)

A dominação e o Cristianismo: amores brutos

Seja a partir do processo histórico de Fanon, Cabral ou Ponce, a história é contada como um processo de modificação das relações humanas a partir de suas relações para com a natureza, isto é, materialismo histórico. Esta perspectiva, quando falamos em pensadores periféricos, coaduna com a análise dos fundamentos da dominação social. A perpetuação das formas de dominação presentes no pensamento judaico cristão, seja como filosofia ou estratificação social, estabelece uma relação entre dominado e dominador descrito em Hegel como a relação entre mestre e escravo. Em Marx, nesta relação de dominação aparece inicialmente na divisão social do trabalho em trabalho intelectual e braçal, no qual há uma valorização maior de um em detrimento do outro. Essa divisão se apresenta também em Hegel na colocação do caráter abstrato da sociedade como aquele que se comporta como sujeito das relações sociais por meio da materialização de si nas tensões presentes sempre família e sociedade.

Trata-se inicialmente de uma abordagem com viés filosófico muito próximo da ideia de submissão descrito pelos filósofos medievais (como Santo Agostinho) nos quais a sujeição seria condição sine qua non de acesso ao Reino dos céus no pós vida, isto é, a condição material desprendida da condição humana da vida que de fato e de direito poderia ser vivida pelos homens2, a vida eterna no céu. Uma legitimidade de dominação garantida pela abstração da crença em um mundo além da vida material.

Esta dominação se fez presente para além do mundo medieval. O desenvolvimento do capitalismo e dos Estados Modernos trouxe consigo a perspectiva de uma nova forma de estruturação de dominação, ora explicada por uma legitimidade de poder baseado em direitos divinos, naturais e até conquistados, e ora em questões quase tão abstratas quanto a promessa de uma outra vida. O fato é que com o desenvolvimento de um poder político centralizado em Estado absoluto a dominação política ganha uma roupagem nova, uma estrutura abstrata cuja ação concreta é a garantia de sua perpetuação em nome de uma suposta paz e de preceitos descritos como direitos naturais. A obrigatoriedade daqueles que estivessem em território e tempo de construção dessa forma social era, portanto, submeter-se às novas formas de poder em nome de uma integridade física, cuja possibilidade de ruptura estava diretamente relacionada a uma cessão de sua soberania apresentada, em teoria, como voluntária.

2 O uso do termo homem objetiva apresentar o recorte de gênero primário para a condição de humanidade/racionalidade na história ocidental. A condição da divisão social do trabalho e da educação, por gênero – apresentada por Ponce (PONCE, 2015) – precede as demais divisões. Pensando nisso, a escolha do gênero do artigo e o termo tendem a apresentar a dominação persistente e detenção do poder/centralidade do discurso.

(4)

Esta mudança da perspectiva de uma servidão para a submissão voluntária a um aparato administrativo de gerenciamento das relações sociais, juntamente com a troca do trabalho livre – ligado a terra e a partilha de produção – para a venda da força de trabalho, sujeitam o homem a imposição do jusnaturalismo e ao regime de produção capitalista na Europa Ocidental.

Quando a expansão para os demais territórios – nos quais as formas de organização social, política e econômica da Europa Ocidental foram impostas, tem-se um duplo conflito: a questão das estruturas sociais locais ‘neutralizadas’ pela ação do homem branco europeu, e a formação de uma sociedade aos moldes daquela desenvolvida nas suas terras de origem em território alheio. O sentido de alheio, neste sistema, passa pela normatização de um discurso, que mais uma vez, corrobora para a sistematização de uma dominação atrelada ao sentido religioso, como primeira forma de justificativa: a capacidade humana dos não brancos: a inexistência de alma.

Enquanto as mulheres eram descritas como incapazes de racionalidades, razão pela qual a sujeição era sua única posição social3, os não brancos passam a ser diferenciados dos brancos a partir da determinação de uma diferença justificada na aparência fenotípica, mas que de fato, justificava-se pelo alinhamento moral e cultural presente no pilar religioso da sociedade europeia ocidental. A diferenciação, justificara, por sua vez, a subjugação forçada, retirando a capacidade de humanidade daqueles que não possuíam os mesmos princípios morais de sujeição, isto é, a mesma fé. Este artifício social foi essencial para justificar a legitimidade dos processos de dominação, saques e escravização e dizimação de populações não brancas. É olhando para estas razões que Fanon, assim como os demais autores periféricos abordados neste artigo vão teorizar as relações sociais e políticas entre brancos e não brancos, conscientes de que a dominação fora justificada por meio de um sistema de modelamento da fé cristã a serviço da dominação em tempos de desencantamento do mundo.

A dominação é legitimada pela dubiedade sobre o grau de humanidade (capacidade de linguagem, razão e de moral/civilidade) dos não brancos. Esta prerrogativa serviria de suporte para a crescente ciência física procurar e desenvolver atributos não religiosos para a diferenciação de capacidades que mantivessem os não brancos em situação de domínio dos brancos. Para isso, os séculos XVIII e XIX descobriram o poder argumentativo da antropologia física: uma diferenciação com base em observações abstratas fundamentadas em teses que relacionavam gênero, racionalidade, tamanho do cérebro e outras características que pudessem manter a capacidade humana dos não brancos aquém das dos brancos.

3 Idem nota nº1.

(5)

A humanização surge como necessidade deste sistema, mas não como compensação. E é olhando para a permanência desta diferenciação que Fanon apresenta o racismo como a patologia social da sociedade moderna, o mal estar da civilização.

Fanon, Freud, Marx e Hegel

Entendido o princípio histórico da dominação, ressaltamos que ela está inserida em um processo relacional, ou seja, explicado pelos autores referenciados como a partir da dialética.

Como dito anteriormente, a dialética desenvolvida pelos três pensadores referenciados se faz de forma diferenciada em cada um. Para tanto é importante retomar a construção do processo dialética de Hegel, Marx e Fanon, para que, enfim, seja possível compreender onde está o mal estar da civilização fanoniano em relação a lógica causal do mal estar da civilização freudiano.

Apesar da análise dialética remeter aos filósofos gregos, em especial Aristóteles, para fins de objetividade e diálogo direto partiremos a análise dialética de Hegel considerando que Aristóteles fora retomado por ele, inicialmente, e posteriormente – com mais afinidade – por Marx. Os três povoam a lógica desenvolvida por Fanon, mas em uma espécie de conciliação teórico-metodológica capaz de trazer ao conflito relacional uma análise que inclua as populações não brancas na dualidade entre oprimido e opressor.

Pensando do ponto de vista político, Hegel traz para a fenomenologia a lógica dialética calcada no quadrilátero capaz de apresentar duplamente o elemento Estado – seja como predicado e como sujeito. Ele parte da inversão da ação para o agente, quando em sua abordagem o abstrato origina o material, presentes no tensionamento entre a unidade da sociedade – a família – para a sociedade civil como corpo. Esta relação de tensionamento que traduz a abstração do Estado para a concretização dele (Estado) é, segundo ele, o motor das relações humanas, o seu princípio dialético. Do ponto de vista social e econômico, a tradução da relação dialética se dá pela apresentação a relação entre mestre e escravo. Quando apresenta o reconhecimento da liberdade e da escravidão pelas partes como condição à servidão eterna ou rutura dela, isto é, libertação, Hegel traz a mesma relação entre abstrato e concreto que descreve na sociedade para a relação de sujeição, dominação entre os homens. Isso porque em seu pensamento o reconhecimento de uma liberdade advém da presunção dela, isto é, enquanto a liberdade está apenas no plano abstrato, não permeou o tensionamento da relação entre mestre e escravo, a concretização não é possível. Novamente, vemos a apresentação do que Marx chamará de inversão do sentido: o predicado que precede o sujeito, o abstrato que precede o material. Esta crítica se dá, também na forma lógica de que Hegel utiliza da polarização – positivação da negação – para sustentar a dinâmica da dialética das relações.

(6)

Esta abstração que incomoda Marx, em especial em seu debate com Hegel (MARX, 2013) e com os hegelianos (MARX e ENGELS, 2007), o faz redesenhar a relação dialética política, social e econômica, a partir da unificação do abstrato e do material em uma triangulação relacional. Do ponto de vista da forma lógica, ele se utiliza da dupla negação para geração do movimento lógico. Isto é, sob a perspectiva social e econômica a sujeição entre os homens é baseada na relação de subordinação do homem enquanto força de trabalho potencial e cinética em relação à reprodutividade da riqueza humana denominada capital, a famosa

‘oposição’ entre capital e trabalho, o sujeito é a riqueza humana, cristalizada nesta relação cuja capacidade de modificação está no reconhecimento do homem de sua potência per si e para si.

A abstração (predicado) está no mesmo campo que a materialidade (ação), o trabalho abstraído do homem é também a sua materialidade, isto é o que fricciona com o capital na geração de riqueza humana e é capaz de alterar a forma de organização social (motor da história).

Pensando na questão política Marx, retira a abstração do Estado e o coloca em face da sociedade, a sua separação e a sua junção – discutidas por ele (MARX, 2010) – é a provocação da dinâmica dialética no âmbito político, ou seja, o Estado está em oposição à sociedade enquanto forma de Estado burguesa, na relação de tensionamento persistente no sistema político criado pela Europa Ocidental moderna, no momento em que há a sua unificação com a sociedade civil, formando a sociedade em si e para si, temos o Estado como sua forma mais completa e inclusiva, isto é, a forma do Estado cujo poder governamental é a efetividade democrática na forma não burguesa.

Ambos os pensadores estão inseridos no sistema político e social que se desenvolveu em Estado Moderno e capitalismo expansionista. Estão partindo da relação de Estado organizador e externo para a noção de um Estado cuja soberania é difusa e intrínseca aos seus cidadãos. O Estado que com seu desenvolvimento e enriquecimento atrelado ao avanço geográfico e tecnológico do capitalismo foi capaz de tornar-se um Estado de bem-estar social, cuja riqueza e princípios fundamentais – debatidos ao longo de mais de três séculos de formação – puderam ser lapidados em nome da paz e prosperidade interior. De fato, ambos não chegaram a presenciar a solidificação destas formas políticas e econômicas consolidadas no século XX, em especial em meados do século após a Segunda Guerra Mundial (europeia). Todavia o Estado – mesmo que em formação – presenciado nos territórios europeus ocidentais não se aproxima do Estado presente nos territórios invadidos.

Fanon (FANON, 2008), Cabral (CABRAL, 1980) e Ponce (PONCE, 1970), partem do olhar sobre os territórios invadidos para estabelecer suas análises dialéticas. Especificamente Fanon, que analisa de forma mais pormenorizada as relações políticas, econômicas e sociais,

(7)

com base nas formas de relação presenciadas por ele nos três continentes que viveu (América, Europa Ocidental e África) absorve nas teorias e filosóficas ocidentais os elementos de diálogo necessários para desenvolver sua própria noção dialética da dinâmica humana, que move a história material. Para isso, ele parte da ideia de que há uma primeira diferenciação entre os homens, baseada na origem geográfica e caracterizada pela aparência física – fenotípica – denominada ‘raça’. Conceito formado para justificar uma diferenciação e legitimar a opressão para com os não-europeus, a ideia de raça – diferenciação entre brancos e não brancos – é o vínculo entre as partes de negação envolvidas na relação dialética fanoniana. Do ponto de vista social, o oprimido assume o título de colonizado e o opressor de colono, em uma relação que pode ser observada do ponto de vista de indivíduos e/ou de instituições.

Significa dizer que a contradição na relação entre colonizado e colono se realiza na sociedade seja pela opressão direta entre os homens e mulheres, seja em âmbito institucional entre Estado e sociedade civil, seja, ainda, em âmbito supraestatal entre Metrópole (ex) e colônia (ex). As relações políticas, econômicas e sociais perpassam obrigatoriamente por esta oposição fundamental criada por e para o sistema capitalista associado ao Estado Moderno.

Para ele, portanto, não há separação entre os dois sistemas – político e econômico –, uma nova sociedade só é possível (o movimento da dialética de Fanon) no momento em que a alienação de ambos (brancos e não brancos) inseridos nestas condições de sociedade for rompida pela superação da patológica social fundante: a hierarquia entre seres humanos.

Não se fala só sobre a questão racial – apesar de ela ser central nesta relação se subjugação georeferenciada, Fanon fala de hierarquia entre humanos pois, já em sua última obra reflete sobre o peso das relações de gênero na perpetuação da alienação para todos os aspectos da vida. A rutura dessa hierarquia só pode acontecer, segundo ele, pela superação do mal estar da civilização provocado pelos homens brancos invasores, os colonos (FANON, 1972).

É neste ponto de reflexão que a ruptura com a causalidade freudiana aparece com veemência. Se em Freud o mal estar está na supressão individual da natureza animal do homem, em Fanon o mal estar está na forma como o homem conduz a sua construção social provocada e provocadora de uma realidade de comportamento estratificado economicamente e politicamente. A noção de dignidade, como diz ele, não chega às mulheres e homens não brancos. O Estado que dialoga com brancos é o Estado que não enxerga integridade nos não brancos. Esta é a maior das alienações sociais, para ele, a alienação de uma ideia de unidade de sociedade em que as partes estão aparentemente integradas, mas de fato seccionadas conforme

(8)

o interesse do desenvolvimento e avanço de um sistema econômico predatório que tem como suporte um sistema político e social codependente (FANON, 1979).

Pensando do ponto de vista da contemporaneidade, a complexidade deste mal estar civilizatório, da alienação social e suas consequências se expressam nos contextos e conceitos descritos por pensadores contemporâneos como necropolítica, gentrificação social e branqueamento social.

O diálogo entre o Estado e a sociedade civil não-branca.

Encontrada na descrição da violência policial de Dorlin (DORLIN, 2020), ou na invisibilização das causas das mulheres negras em França de Vergès (VERGÈS, 2020), ou ainda a descrição da docilização compulsória dos corpos negros por Mbembe (MBEMBE, 2018), a realização da diferenciação da forma de relação entre o Estado e a sociedade civil não branca acontece não é uma mera coincidência geograficamente pulverizada. O conceito de segurança empregado pelo Estado para justificar sua seletividade e permeabilidade (OFFE, 1984), vai ao encontro da prática de controle perpetuada desde tempos coloniais, como apresenta Fanon

A violência do regime e a contra-violência do colonizado equilibram-se e correspondem-se numa extraordinária homogeneidade recíproca. Esse reino da violência será tanto mais terrível quanto mais importante for o povoamento metropolitano. (FANON, 1979, p. 69)

A pacificação por uma soberania sujeitada à centralidade Estatal, em uma forma de sociedade organizada em sistema democráticos fechados – próximos do que outrora se definiria como oligarquia – que, ao mesmo tempo sustentam uma moralidade social embranquecida de uma sociedade fragmentada pela alienação do racismo e do machismo (incluso no debate de Fanon, Ponce Cabral, Dorlin e Vergès, principalmente) em que há uma vinculação entre capacidades humanas, meritocracias construídas, gênero e fenótipo na colocação da sujeita social, política e econômica. Isso significa dizer que o Estado e seu parceiro íntimo, o Mercado, são construções sociais que se sustentam da alienação provocada pela patologia social descrita por Fanon; e que, por sua vez, dependem dela para a perpetuação da sua forma de desenvolvimento social, político e econômico.

Por esta razão que, conforme descrevem os autores decoloniais contemporâneos supracitados, o papel associado entre informação, visibilidade e seletividade do Estado é central para a manutenção dessa forma de organização estruturante, seja pela docilização dos corpos, seja pela dominação violenta deles. Pensando do ponto de vista das formas de violência dentro da noção de direito do Estado liberal associadas, ainda a seletividade de diálogo desta forma

(9)

política para com a sociedade, é possível identificar a permeabilidade das demandas, sejam pela cor da sociedade demandante, seja pela identificação georeferenciada dela.

A reprodutividade da alienação social, o mal estar da civilização de Fanon, é, portanto, atrelado e indivisível em relação as formas de violência empregadas aos corpos individuais e sociais não brancos. Fala-se aqui desde o sujeito não branco que transita pelo centro urbano e tem seu direito de seguir interrompido pelas forças policiais até os grupos étnico culturais que tem suas cosmologias, símbolos e regras sociais caçados, proibidos e até destruídos em nome da liberdade civil pasteurizada branca. O que outrora povoava o senso comum das últimas décadas do século XX – a condenação da exposição da homoafetividade, por exemplo – hoje destina-se associada as demais práticas de opressão social para as comunidades não brancas. A religiosidade, as formas sociais, os comportamentos étnico-culturais e a existência em si de não brancos auto reconhecidos sustenta e legitima a polarização social que se utiliza das formas de violência como expressão e interrelação desde, pelo menos, o século XIV.

As consequências para a normatização da conduta e reprodução da patologia social se aproximam – como bem descreve Dorlin – das punições medievais e do tempo em que os não brancos eram considerados não humanos. O avançar dos séculos, portanto, não permitiu que houvesse uma coesão social entre as diversas formas de sociedade inseridas no sistema capitalista e nos Estados Modernos capaz de promover uma unificação do tecido social que nos levasse a considerar a existência de uma sociedade civil que se relaciona com um Estado. O plural faz-se necessário e essencial, colocando cada sociedade civil em sua forma de relação efetivamente concretizada com o aparato administrativo-burocrático, securitário e pacificador do Estado. Isso vale, para suas expectativas de representatividades dentro dos sistemas políticos democráticos liberais.

Seguindo a lógica dialética de Fanon, a relação entre colono e colonizado permanece mesmo após a superação da colonização política dos territórios não pertencentes à Europa Ocidental. Por esta razão que, seguindo ainda a interpretação do pensador martinicano sobre o desenvolvimento das sociedades nos territórios invadidos, a terminologia neocolonial cabe tanto para as relações entre territórios (Estados), quanto para as relações entre o Estado e as sociedades civis, e por fim entre os brancos e não brancos.

Se partimos, então desta análise dialética, a falseabilidade da sociedade de paz escancarada pela falácia de uma unidade social se desmancham no ar como poeira de um futuro irrealizado. Entender a patologia social – hierarquização humana – como a legitimação política das violências contra os não brancos e não homens (podemos colocar assim), que sustenta a permanência da fricção não realizada entre colono e colonizado, somos capazes de reconhecer

(10)

que a modernidade nunca construiu uma sociedade pacífica. Se nunca houvera paz e a resistência normatizada pela harmonização entre brancos e não brancos em uma luta pluralizada pela superação desta hierarquia prega a pacificação das demandas, em que momento, efetivamente, a reflexão sobre o constante estado de guerra, como relembra Mbembe, pesa sobre as relações entre Estado e sociedade civil não branca e não masculina?

Esta reflexão, ou melhor, provocação pretende trazer a tona a questão da relevância do papel da violência na resistência e combate ao Estado já definido como belicoso para com aqueles que não fizeram parte da primeira noção de ser humano dotado de razão. Se por um lado a aparente postura extremistas destes autores – incluída desta autora – sistematiza um tom aparentemente radical sobre as possibilidades de estruturação das relações humanas em uma perspectiva de superação dos sistemas legitimados de opressão e violência social. Por outro, há a falta de perspectiva de formas mais amenas, pensando que há uma estrutura dialética de dominação que permeia o conjunto de instituições sacralizadas como participativas, pacíficas e eternas como o Estado democrático de direito, o capitalismo e a diversidade social.

Se há uma função social da teoria política e social, de responsabilidade do pensador para com a sociedade em que se insere – como descreve Fanon ao tratar a intelectualidade, ou Ponce sobre as reformas educacionais pré-revolucionárias – a pesquisa teórica sobre estes pensadores possui o compromisso semelhante ao de seus interlocutores. O materialismo está, portanto, no reconhecimento da violência como direito natural – descrito nos autores periféricos não brancos – que não precisa ser legitimado para ser usado na fricção entre colono e colonizado, mas sim difundido para sua efetividade motriz na ânsia da ruptura desta forma de dialética da dominação.

Bibliografia

AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

BALANDIER, G. Antropologia Política. Barcelona: Edicions 62, 1969.

BLACKEY, R. Fanon and Cabral: A contrast in Theories of Revolution for Africa. The Journal of Modern African Studie, 2, September 1974. 191-209.

CABRAL, A. Unity and struggle. New York: Monthly Review Press, 1975.

CABRAL, A. A Arma da Teoria. Rio de Janeiro: Editora Codecri, 1980.

D'ENTREVES, A. P. La dottrina dello Stato: elementi di analisi e di interpretazione. Torino:

Giappichelli, 2009.

(11)

D'ENTREVES, A. P. Obbedienza e resistenza. Roma: Edizioni di Comunità, 2018.

DIOP, B. Les Fondements Theóriques du socialisme Africain Chez L.S. Senghor. Ethiopiques, 2º semestre 2012.

DORLIN, E. Autodefesa - Uma filosifa da violência. São Paulo: Crocodilo / Ubu Editora, 2020.

DULUCQ, S.; ZYTNICKI, C. Penser le passé colonial français. Entre perspectives historiographiques et résurgence des mémoires. Vingtième Siècle. Revue d’histoire, Paris, abr-jun 2005. 59-69.

FANON, F. Sociologie d'une révolution. Paris: Fronçois Maspero, 1972.

FANON, F. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

FANON, F. Em Defesa da Revolução Africana. Lisboa: Lins de Sá, 1980.

FANON, F. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EdUFBA, 2008.

FREUD, S. O mal-estar da civilização. São Paulo: Penguin e Companhia das Letras , 2011.

HOBSBAWN, E. J. Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo. 2ª. ed. Rio de Janeiro:

Forense-Universitária, 1979.

LÖWY, M. Rédemption et Utopie. Paris: Presse Universitaires de France, 1988.

LÖWY, M. Método Dialético e Teoria Política. São Paulo: Paz e Terra, 1989.

MACEDO, JOSÉ RIVAIR. O pensamento africano no século XX. São Paulo: Expressão Popular, 2016.

MARX, K. Manuscritos Filosóficos-Econômicos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.

MARX, K. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.

MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.

MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.

OFFE, C. Dominação de classe e sistema político: sobre a seletividade das instituições políticas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. 140-177 p.

ONWUANIBE, R. C. A Critique of Revolutionary Humanism: Frantz Fanon. Saint Louis:

Warren H. Green, Inc., 1983.

PASOLINI, R. Entre antifascismo y comunismo: Aníbal Ponce como ícono de una generacíon intelectual. Iberoamericana America Latina-Espana-Portugal, Berlim, 13, 2013. 83-97.

PONCE, A. Humanism y revolucion. México DF: Siglo Veintiuno, 1970.

PONCE, A. Educação e luta de classes. São Paulo: Cortez, 2015.

SAID, E. Freud e os não europeus. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.

(12)

VERGÈS, F. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

VILLEN, P. Amílcar Cabral e a Crítica ao Colonialismo. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

YACONO, X. Marxisme et Algérie. Textes de Marx [et] Engels présentés par René Gallissot avec la collab. de Gilbert Badia. Revue française d'histoire d'outre-mer, tomo 63, nº 237 4e trimestre 1977. 547.

ŽIŽEK, S. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

ŽIŽEK, S. Violência. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

Referências

Documentos relacionados

Portanto, mesmo percebendo a presença da música em diferentes situações no ambiente de educação infantil, percebe-se que as atividades relacionadas ao fazer musical ainda são

b) Execução dos serviços em período a ser combinado com equipe técnica. c) Orientação para alocação do equipamento no local de instalação. d) Serviço de ligação das

Esta pesquisa discorre de uma situação pontual recorrente de um processo produtivo, onde se verifica as técnicas padronizadas e estudo dos indicadores em uma observação sistêmica

Por meio de uma pesquisa qualitativa com levantamento de dados foi possível verificar que os pesquisadores abordam diversas frentes diferentes em seus trabalhos, que passam

Estudos sobre privação de sono sugerem que neurônios da área pré-óptica lateral e do núcleo pré-óptico lateral se- jam também responsáveis pelos mecanismos que regulam o

Como parte de uma composição musi- cal integral, o recorte pode ser feito de modo a ser reconheci- do como parte da composição (por exemplo, quando a trilha apresenta um intérprete

O trabalho está organizado da seguinte forma: primeiramente, apresento os fenômenos estudados na literatura e sua relação com a animacidade do objeto direto; em seguida,

Aluguer de Equipamentos Plotters com assistência técnica e prestação de serviços de impressão, com manutenção e consumíveis para a C... Entidade Objeto Data Valor