umanidades
Revista Portuguesa de
H
Estudos
Linguísticos
VOL. 16-1 ANO 2012
Universidade CatóliCa PortUgUesa Faculdade de Filosofia de Braga
DIRECTOR MigUel gonÇalves
SECRETÁRIOS José CÂndido de oliveira Martins; ana PaUla Pinto
CONSELHO DE REDACÇÃO alFredo dinis; aMadeU torres (†); ana PaUla Pinto; antónio Melo; aUgUsto soares da silva;
JoÃo aMadeU silva; José CÂndido de oliveira Martins; José gaMa; lUÍs da silva Pereira; ManUel losa; Maria José Ferreira loPes; MÁrio garCia e MigUel gonCalves
COMISSÃO CIENTÍFICA António mArtins de ArAújo, Universidade Federal do rio de Janeiro; clArindA Azevedo
mAiA, Universidade de CoiMBra; dieter messner, Universidade de salzBUrg; dirk geerAerts,
Universidade de leUven; enrique bernárdez, Universidade CoMPlUtense de Madrid;
evAnildo bechArA, Universidade do estado do rio de Janeiro; horácio rolim de freitAs,
Universidade estadUal do rio de Janeiro; isAbel hub fAriA, Universidade de lisBoa; joão
mAlAcA cAsteleiro, Universidade de lisBoa; jorge morAis bArbosA, Universidade de
CoiMBra; josé luis cifuentes honrubiA, Universidade de aliCante; leodegário A. Azevedo
filho (†), aCadeMia Brasileira de Filologia; mário vilelA, Universidade do Porto; milton m. Azevedo, Universidade da CaliFórnia, Berkeley; nicole delbecque, Universidade de leUven; oswAld ducrot, ehess - Paris; per AAge brAndt, Universidade de aarhUs; rAmón AlmelA pérez,
Universidade de MUrCia; ronAld w. lAngAcker, Universidade de CaliFórnia, san diego; toru
mAruyAmA, Universidade de nanzan, naggva
PROPRIEDADE aletheia − associação Científica e Cultural
DISTRIBUIÇÃO FaCUldade de FilosoFia de Braga
E VENDAS Universidade CatóliCa PortUgUesa PraÇa da FaCUldade, 1 4710‑297 Braga TEL. 253 200 080 • FAX 253 208 081 e‑Mail: aletheiafacfil@braga.ucp.pt httP: //www.rphumanidades.com httP: //www.publicacoesfacfil.pt
ASSINATURA assinatUra Por FasCÍCUlo: PortUgal: € 12,5 eUroPa: € 15 oUtros Paises: € 17,5
assinatUra Por volUMe (FasC. 1 + FasC. 2): PortUgal: € 22 eUroPa: € 26 oUtros PaÍses: € 30 ISSN 0874‑0321 DEPÓSITO LEGAL 119141/97 TIRAGEM 500 EXEMPLARES
CAPA roMÃo FigUeiredo
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO graFiCaMares, lda.
r. ParqUe indUstrial Monte raBadas, 10 4720-608 Prozelo - aMares
PATROCÍNIOS FUndaÇÃo Para a CiÊnCia e a teCnologia aPoio do PrograMa oPeraCional CiÊnCia
teCnologia, inovaÇÃo do qUadro CoMUnitÁrio de aPoio iii
O CONTEÚDO DOS ARTIGOS É DA RESPONSABILIDADE DOS AUTORES
umanidades
Revista Portuguesa deH
em Portugal
GONÇALO FERNANDES
UTAD / CEL gf@utad.pt
abstract
The prevailing manuscripts in the funds of the monasteries of Santa Cruz de Coimbra (Order of Regular Canons of St. Augustine) and Alcobaça (Cistercian Order) show that in Middle Ages in Portugal were studied the modern grammatici juniori, such as Alexander of Villedieu (c. 1170 - c. 1250), Eberhardus Bethuniensis (? - c. 1212), Hugutio Pisanus (1130 / 1140-1210), Papias Vocabulista of Lombardy (d. 1050) and Isidore of Seville (c. 560-636), and the previous grammatici antiqui, mainly Elius Donatus (d. mid 4th century) and Priscianus Caesariensis (d. 500).
However, there are two unpublished medieval Portuguese manuscripts, both considered anonymous until now: the Reglas pera enformarmos os menỹos en latin [Rules for us
to inform the boys in Latin], a fourteenth century handwritten copy from, probably, the monastery of Alcobaça, which we can find in Bodleian Library of Oxford University (Digby 26: ff. 76r-82v); and the Hic incipiunt notabilia que fecit cunctis [Here begin the Noteworthy things he made for everyone], a 1427 handwritten copy by the Spaniard Cistercian friar Juan Rodríguez de Caracena from the monastery of Alcobaça, which is preserved in the Biblioteca Nacional de Portugal, in Lisbon (Cod. Alc. 79: ff. 5r-93v). Thus, in this paper we intend to demonstrate that these manuscripts are both pioneering texts in Linguistic Historiography and in Latin teaching in the Late Middle Ages in Portugal by ‘Portuguese’ scholars.
keywords : Late Middle Ages, Linguistic Historiography, Monastery of Alcobaça, Nota-
bilia, Reglas pera enformarmos os menỹos en latin,
1. Introdução
A investigação linguística sobre a Idade Média (476-1453) em Portugal é
ainda bastante reduzida, em virtude, sobretudo, da dificuldade de acesso às
fontes manuscritas, mas também porque continua a ser um campo de estudos
bastante negligenciado (Bursill-Hall 1977: 3), especialmente pela linguística
sincrónica, que prepondera no panorama científico em Portugal. Contudo, no
território que viria a constituir Portugal,
1houve uma considerável atividade
pedagógica a partir das igrejas paroquiais, das sés catedrais, das colegiadas
e dos mosteiros das ordens religiosas (Carvalho 1986: 16),
2sendo que as
mais importantes foram os Cónegos Regrantes de Santo Agostinho (Sacer
et Apostolicus Ordo Canonicorum Regularium Sancti Augustini), que
fundaram o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra nos anos de 1131-1132, e os
Monges de Cister (Ordo Cisterciensis), que fundaram o Mosteiro de Santa
Maria de Alcobaça ou Real Abadia de Santa Maria de Alcobaça em 1153.
Quer nas escolas catedrais quer nos mosteiros, além da formação
estri-tamente religiosa, estudavam-se as sete artes liberais, divididas em trivium
(gramática, retórica e dialética/lógica) e quadrivium (aritmética, música,
geometria e astronomia). Contudo, não há prova evidente de que todas as
artes liberais tenham sido estudadas concomitantemente em Portugal, sendo
a gramática a única disciplina universalmente ensinada (Saraiva 1950: 90).
O termo gramática significava, contudo, (ensino do) Latim “and many people
expressed the view that grammatical regulation of a vernacular dialect was a
difficult if not impossible venture” (Percival 1975: 247-248).
Černý (1998: 76-77)
apresenta duas razões fundamentais para o aumento da importância do Latim
durante a Idade Média: era a língua litúrgica da Igreja ocidental e em que estava
escrita a Patrística. Por seu turno, Bursill-Hall (1972: 16) aponta uma 3.ª razão:
era a língua franca de comunicação internacional.
Na Idade Média em Portugal estudaram-se quer os grammatici juniori,
como Isidoro de Sevilha (c. 560-636), Papias Vocabulista da Lombardia
(fl. 1050), Petrus Helias (c. 1100 - post 1166), Alexandre de Villedieu (c. 1170 -
c. 1250), Evrard de Béthune (? - c. 1212), Uguccione da Pisa (1130 / 1140-1210),
Robert kilwardby (1215-1279) e Giovanni Balbi de Génova (fl. 1286-1298),
quer os gramáticos latinos tardios ou grammatici antiqui, como Élio Donato
(fl. séc. IV) e Prisciano da Cesareia (fl. séc. V) (Torres 1998: 45-48, 105-107).
Há, contudo, dois manuscritos de autores “portugueses”, um em Oxford e outro
na Biblioteca Nacional de Portugal, que merecem ser conhecidos, não só pelos
conceitos linguísticos veiculados mas também pelos princípios pedagógico-
1 O Tratado de Zamora, entre Portugal e Castela, que reconhece Portugal como
Estado independente, foi assinado em 5 de outubro de 1143, por D. Afonso I de Portugal (1109-1185), mais conhecido por D. Afonso Henriques, e D. Afonso VII (1105-1157), Rei de Leão e Castela.
2 O P.e Avelino de Jesus da Costa aponta o ano de 1072 para a fundação da Escola
-didáticos aí patentes. Trata-se das Reglas pera enformarmos os men
ỹos en
latin e dos Notabilia gramaticais alcobacenses.
2. Reglas pera enformarmos os men
ỹos en latin
As Reglas pera enformarmos os men
ỹos en latin são um texto
anónimo com 7 fólios colocados entre o 76 recto e o 82 verso do manuscrito
Digby 26, oferecido à Bodleian Library em Oxford, em 1634, por Sir Kenelm
Digby (1603-1665), juntamente com toda a sua coleção de 236 manuscritos.
Trata-se de um membranáceo in-8
o, com 142 fólios, mede 12,3 × 17,3 cm e a
mancha gráfica tem 10,0 × 13,5 cm. O manuscrito Digby 26 tem marcas de
9 mãos diferentes, 4 portuguesas e 5 inglesas. As quatro mãos portuguesas
são anónimas e incapazes de nos dar qualquer informação adicional (Thomson
1979: 268). Particularmente importante para a datação do manuscrito são
os paratextos e notas manuscritas das mãos inglesas, todas do século XV,
de Wymunde Stonewell (fls. 3r, 5r-v, 6v, 62v, 63r-v, 64v), Thomas Wodehowse
(fls. 3r, 4v, 137r-v, 138r-v, 139r-v, 140r-v), Richard Conesborugh (fls. 3r, 64v,
138r), Davyd Breknoke (fls. 6v, 137v) e Thomas Jolyffe (fls. 4r, 84v, 85r, 137r,
138r-v, 139v, 140r-v) (Thomson 1979: 268-269).
Contudo, há uma referência muito importante a Thomas Chapleyn, que era
um monge cisterciense da Abadia de Rewley, em Oxford, tomou todas as ordens
sagradas em 20 de novembro de 1417 (Emden 1957: I, 388) e a quem Thomas
Jolyffe comprou o manuscrito: “Iste liber constat M[agister] T[homas] Iolyff
quem M[agister] T[homas] emit ab exsequtoribus M[agister] Chapleyn cuius
anime propicietur Deus. Amen.” (Digby 26: 4 r). Há ainda uma menção aos reis
Richard II de Inglaterra (1367-1400)
3e Duarte I de Portugal (1391-1438),
4filho
do rei D. João I (1358-1433) e da rainha D. Philippa of Lancaster (1359-1415),
irmã do rei Henry IV (1367–1413), que depôs Richard II em 1399. Estas alusões
aventam os limites temporais compreendidos entre 1377 (coroação do rei
Richard II) e 1438 (morte do rei D. Duarte).
Com efeito, estamos convencidos de que o manuscrito Digby 26 foi escrito
no último quartel do século XIV no Mosteiro de Alcobaça, do qual foi levada uma
cópia para Inglaterra ainda nos finais do século XIV ou, mais provavelmente, na
primeira metade do século XV, tendo possivelmente como primeiro possuidor
3 “Ricardus Dei gracia rex Anglie et Francie dominus Hibernie” (Digby 26: 6r). 4 “Edwardus Dei gracia rex Portugalie et dominus Algarbie salut” (Digby 26: 6r).
em Inglaterra o monge cisterciense Thomas Chapleyn, que, depois passou para
as mãos dos professores de gramática, em meados do século XV, pela mão de
Thomas Jolyffe. Depois disso, o manuscrito foi possuído pelo matemático e
bibliófilo Thomas Allen (1542-1632), que o vendeu, em 1632, a Sir Kenelm Digby
(Fernandes 2010, 2012 e 2012).
As Reglas pera enformarmos os men
ỹos en latin são um texto precursor
na linguisticografia latino-portuguesa, podendo ser caraterizado como um
manual para o ensino elementar do Latim, escrito em português, com as
regras extraídas maioritariamente do Doctrinale de Alexandre de Villa-Dei.
Não demonstram qualquer influência especulativa dos gramáticos modistas,
com mais interesse na correta construção da frase e um cariz fortemente
didático, para os estudantes dos rudimentos gramaticais, simulando o ato
pedagógico e a práxis letiva, com a colocação das reglas em verso, para facilitar
a sua memorização.
Em síntese, apresenta-nos as seguintes reglas:
[Regla dos cas
os] (76r)Como se rege o nominativo do verbo (76r) Regla dos nomes (76r)
Como se semela o ageytiuo e o sustãtiuo (76r)
Como se o relatiuo e o antecedens deue asemelhar (76r) Regla do verbo com o nominativo (76r)
Como se entende entõ per esta regla ena pessoa do uerbo (76v) Qual é o uerbo persoal e qual é enpesoal (76v)
[Verbo acusativo] (76v) Regla de opus est (76v) [Participio passado] (76v) [Regla do conparativo] (76v) Regla do superlatiuo (76v)
De regimine ex ui excellencie <do> genitivo (77r) Como se rege o genitiuo ex ui possessionis (77v) Como se rege o genitiuo ex ui exellencie (77v) Como todo sobrenome domẽ é genitiuo (77v) Regla de interest et refert (77v)
Como se rege o datiuo (78r)
Todos estes uerbos se querem cõ datiuo (78r) Como se rege o acusatiuo do uerbo (78r)
Como se construe o gerũdiuo (78r)
Das proposições (78v)
Regla que rege a proposiçõ (78v) Das proposições (78v)
Dos participios e dos gerundiuos cũ acusatiuo e cũ ablatiuo (78v) Da deferẽça antre os supĩos e os gerundiuos (79r)
Como se rege o uocativo (79r) Do ablatiuo (79r)
Responde d’egeo eges (79v) [Dos ablatiuos absolutos] (79v) Dos uerbos uocativos (79v)
Comho sabhas pregũtar e responder destes iiii.ro verbos (80r) Dos iiii nomees apellatiuus (80v)
Apellatiuos (80v)
Do nomen primitiuo e deriuatiuo (80v) Como se declina o nomen (80v)
Como sabhas respõder e preguntar da conparaçon (81r) Regla pera saber declinar (81r)
Como sabhas declinar os patronimicos e os gregos (81v) [Coniugaciones uerborum] (82r)
3. Hic incipiunt notabilia que fecit cunctis
Os Hic incipiunt notabilia que fecit cunctis, provavelmente o
manus-crito gramatical mais importante de toda a Idade Média em Portugal, são uma
cópia manuscrita de 1427, oriunda do mosteiro de Alcobaça e conservada na
Biblioteca Nacional de Portugal (cód. Alc. 79), em Lisboa. Ainda não existe
uma análise paleográfico-linguística completa dos seus 89 fólios (ff. 5r-93v),
trabalho que está a ser levado a cabo por uma equipa de investigadores do
Centro de Estudos em Letras, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro,
em Vila Real. Os fólios do códice Alc. 79 são em papel e medem 212 × 150 mm,
a mancha gráfica varia, em altura, entre 155 e 160 mm e, em largura, entre
95 e 100 mm sensivelmente, e a encadernação tem 233 × 155 mm. Trata-se
aparentemente de uma cópia, pois parecem existir marcas de, pelo menos, dois
copistas diferentes.
Até agora pensávamos tratar-se de um documento anónimo, mas a análise
do cólofon clarificou a sua autoria, isto é, do monge cisterciense espanhol
alcobacense Juan Rodríguez de Caracena, filho de Mendo Rodríguez, e natural
da vila de Caracena, que pertencia à Diocese de Sigüenza do Reino de Castela
5(Rodríguez de Caracena 1427: 93v):
finito libro redantur grates Christo amem. finitus fuit / iste liber in sexta feria in primo die mensis setẽ - / bris ano milleº [millesimo] iiiiº [quatrocen-tesimo] xxº [vigesimo] viiº [septimo] anativitate Christii quis / futatus fuerit in pattibulo Sancte Barbare suspendatur 6 / Et Jsta notabilia sunt Johannis
Roderici de caracena / filius Melendi rrodrici diocis ciguncie hoc est Jn rre- / gno castelle proprie aragonjam
Johannes / Rroderici 7
Thomas Amos (1988: 116), contudo, referiu que o autor teria sido Melchior
Mederis e Rodríguez de Caracena apenas o seu proprietário. Contudo, a análise
de Amos está claramente errada, uma vez que a sua conclusão parte de um
equívoco na transcrição paleográfica, ao ler “melcor mederis” no fólio 90r,
quando, na realidade, o autor estava a descrever o verbo depoente “medeor,
mederis” (Rodríguez de Caracena 1427: 90r).
Os Notabilia foram redigidos em Latim para ensinar Latim aos estudantes
do mosteiro de Alcobaça e o seu autor teve a preocupação de ir explicitando
em “romancio” os vários exemplos. Um outro aspeto importante é o facto de o
autor se dirigir ao estudante maioritariamente na segunda pessoa do singular,
com o verbo notare e debere, na forma do presente ou futuro do indicativo e
5 Para Juan Rodríguez de Caracena, a Diocese de Sigüenza deveria pertencer ao
Reino de Aragão e não ao reino de Castela, a quem foi atribuída, em 1127, depois das guerras internas entre as coroas de Castela (D. Afonso VII de Castela [1105-1157)]) e de Aragão (D. Afonso I de Aragão [c. 1073-1134]). Atualmente a cidade de Sigüenza pertence à província de Guadalajara, da comunidade autónoma de Castilla-La Mancha.
6 Gostaríamos de prestar uma sentida homenagem e agradecer publicamente,
ainda que postumamente, ao Mestre Prof. Doutor Amadeu Torres (1924-2012), pela sua prestimosa ajuda na análise paleográfico-linguística e na interpretação da oração “quis futatus fuerit in pattibulo Sancte Barbare suspendatur”. Sem a sua sabedoria, altruísmo e amizade, possivelmente ainda hoje pensaríamos tratar-se do local onde os
Notabilia teriam sido escrito…
7 Tradução nossa: “terminado o livro sejam dadas graças a Cristo. Amem. Este
livro foi terminado na sexta-feira no primeiro dia do mês de setembro no ano 1427 desde o nascimento de Cristo. Quem se apoderar [dele] seja enforcado no patíbulo de Santa Bárbara. E estes Notabilia são de Juan Rodríguez de Caracena filho de Mendo Rodríguez da diocese de Sigüenza em que está neste reino de Castelo propriamente de Aragão. Juan Rodríguez”.
oração completiva substantiva (debes notare quod, notabis quod / quomodo),
imperativo (nota quod) e mesmo com o gerundivo (est notandum quod),
indicando a obrigatoriedade de ser tido em conta ou anotado pelo estudante e,
tal como nas Reglas, uma intenção didática e um tom de oralidade.
Embora ainda estejamos numa fase incipiente do seu estudo, parece que
o autor dos Notabilia sofreu influência dos De re grammatica Notabilia
do italiano Giovanni da Soncino (? - c. 1363), o introdutor do modismo na
Universidade de Bolonha, de dois gramáticos/filósofos especulativos de Paris,
Robert de Kilwardby (1215-1279) e Petrus Helias (c. 1100 - post 1166), e da
Grammatica Proverbiandi espanhola (Calvo Fernández 1995 e 2000).
Os Notabilia estão divididos em 31 capítulos, que analisam questões de
morfologia, como os nomes verbais terminados em –or e –bilis, a formação
dos verbos, os pretéritos, gerúndios e particípios, de sintaxe, como o ablativo
absoluto, o nominativo, figuras como a prolepse e a sinédoque, e temas de
natureza especulativa, que hoje classificaríamos como semânticos, como
a conceção das pessoas e do género, por exemplo. Em síntese, Rodríguez de
Caracena apresenta os seguintes capítulos:
De nominibus uerbalibus masculinis in or (5v) De nominibus uerbalibus terminatis in bilis (7r) Sequitur de gerundijs et primo de primo (10v) Sequitur de participijs (13r)
De participio preteriti temporis (14r) De participio uerbi impersonalis (15r)
De participio futuri temporis actiue uocis (16r) De isto romancio de comer et de beuer (16v) De isto romancio por amar (18r)
De participio pro ut ponitur absolute (19r) Sequitur de comparacone (20v)
Sequitur de superlatiuo (25r) De defectu superlatiui (27r) De formacione uerborum (29r) De uerbis neutris passiuis (33r) De uerbis neutris passiuis [sic] (34v) Sequitur de uerbis communibus (36r) Sequitur de uerbis defectiuis (37r) Sequitur de regimine (38v)
Sequitur de substantiuis et uocatiuis (44r) De uerbis uocatiuis <Sequitum> (46r)
De absolucione nominatiui (48v)
Sequitur de figuris primo de figura aposicionis (50v) De figuracio en oracionis (53v) De concepcione personarum (56r) De concepcione generum (59r) De prolensis figura (64r) De sinodochica figura (69r) De relacione explicita (77r) De materia participiorum (83v) Nota de medeor mederis notabile (90r)
3. Conclusão
Os manuscritos descritos sucintamente neste artigo, as Reglas pera
enformarmos os menỹos en latin e os Hic incipiunt notabilia que fecit
cunctis, são dois dos mais importantes documentos medievais portugueses
para a análise linguística da época e o ensino-aprendizagem do latim. Ambos
são de origem portuguesa, ainda que o primeiro ainda permaneça anónimo,
mas há uma forte probabilidade de ter sido escrito no mosteiro cisterciense de
Alcobaça, como o segundo.
As Reglas foram escritas no século XIV, em português, com a
apresen-tação das regras e dos exemplos em Latim. O seu maior mérito é o facto de, pela
primeira vez na história portuguesa, as Reglas utilizarem toda a metalinguagem
latina em português. Isto é, de facto, notável, uma vez que a primeira gramática
latina escrita em português só seria publicada mais de 200 anos mais tarde,
particularmente em 1610, a Arte de Grammatica pera em breve saber Latim,
da autoria de Pedro Sánchez (? - 1635), primo do gramático espanhol Francisco
Sánchez de las Brozas (1523-1600). Contudo, as Reglas não demonstram
qualquer influência especulativa e o seu objetivo é a correta construção da
frase. Fundamentam-se nas regras do Doctrinale de Alexandre de Villedieu
(c. 1170 - c. 1250) e têm um cariz didático, com a colocação das reglas em verso,
para facilitar a sua memorização, e dirigindo-se ao aluno maioritariamente na
segunda pessoa, simulando, assim, o ato pedagógico.
O manuscrito Hic incipiunt notabilia que fecit cunctis foi escrito em 1427
por um monge espanhol cisterciense do mosteiro de Alcobaça, Juan Rodríguez
de Caracena. Devido à sua complexidade e extensão (89 fólios), trata-se,
efeti-vamente, da mais importante obra linguística medieval portuguesa. As suas
fontes principais já detetadas são dois gramáticos / filósofos especulativos de
Paris, Robert de Kilwardby (1215-1279) e Petrus Helias (c. 1100 - post 1166),
do frade dominicano Giovanni
Balbi da Genova (fl. 1286) e de Alexandre de
Villedieu (c. 1170 - c. 1250). Contudo, parece haver uma similaridade muito
acentuada com os De re grammatica Notabilia do italiano Giovanni da
Soncino (? – c. 1363), o introdutor do modismo na Universidade de Bolonha,
e com a Grammatica Proverbiandi espanhola. Rodríguez de Caracena teve
também uma forte preocupação didática, com a apresentação dos exemplos em
“romancio” e o tratamento do estudante maioritariamente na segunda pessoa
do singular, simulando também a práxis letiva.
Referências
Anónimo [século XIV]
Reglas pera enformarmos os menỹos en latin. Manuscrito, Bodleian Library,
Oxford, Cód. Digby 26: ff. 76r-82v. Almeida, Fortunato de
1967 História da Igreja em Portugal, nova edição preparada e dirigida por Damião Peres, vol. I. Porto: Portucalense Editora.
Amos, Thomas L.
1988 The Fundo Alcobaça of the Biblioteca Nacional, Lisbon, Vol. I: Manuscripts
1-150. Collegeville, Minnesota: Hill Monastic Manuscrit Library.
Assunção, Carlos & Santos, Helena
2009 Da Idade Média a Fernando de Oliveira, o primeiro gramático da lusofonia.
Fernão de Oliveira – um gramático na História. Campinas: Pontes Edi-
tores, 11-33. Barreto, Manuel Saraiva
1985 Os “Notabilia” gramaticais alcobacenses. Evphrosyne, Nova Série, 13: 79-94. 1988 Antecedentes medievais da gramática renascentista. O Humanismo Por-
tuguês 1500-1600. Primeiro Simpósio Nacional. Publicações do II Cen- tenário. Lisboa: Academia das Ciência, 163-175.
Bursill-Hall, Geoffrey Leslie
1972 Grammatica Speculativa of Thomas of Erfurt. London: Longman.
1977 Teaching Grammars of the Middle Ages: notes on the manuscript tradition.
Historiographia Linguistica IV(1): 1-29.
Bursill-Hall, Geoffrey Leslie, Ebbesen, Sten & Koerner, Konrad (Eds.)
1990 De Ortu Grammaticae: Studies in medieval grammar and linguistic
theory in memory of Jan Pimborg. Amsterdam: John Benjamins [Studies in
Calvo Fernández, Vicente
1995 Grammatica Proverbiandi: La enseñanza escolar del Latín en la Baja
Edad Media española: estudio y edición del texto contenido en el ms. 8950 de la Biblioteca Nacional de Madrid. Madrid: Universidad Complutense de
Madrid.
2000 Grammatica Proverbiandi: Estudio de la Gramática Latina en la Baja
Edad Media Española. Munster: Nodus Publikationen.
Carvalho, Rómulo de
1986 História do Ensino em Portugal desde a fundação da nacionalidade
até ao fim do regime de Salazar-Caetano. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian. Černý, Jiří
1998 Historia de la Lingüística. Cáceres: Servicio de Publicaciones de la Uni- versidad de Extremadura.
Cidade, Hernâni & Selvagem, Carlos
1967 Cultura Portuguesa, I. Lisboa: Editorial Notícias. Costa, Avelino de Jesus da
21997 O Bispo D. Pedro e a organização da Arquidiocese de Braga, I. Braga:
Edição da Irmandade de S. Bento da Porta Aberta. Digby 26
[século XIV] Manuscrito, Bodleian Library, Oxford. Cód. Digby 26. Emden, A.[lfred] B.[rotherston]
1957-1959 A Biographical Register of the University of Oxford to A. D. 1500. 3 vols. Oxford.
Esparza Torres, Miguel Ángel & Calvo Fernández, Vicente
1994 La Grammatica Proverbiandi y la nova Ratio Nebrissensis. Historiographia
Linguistica XXI(1/2): 39-64.
2001 La ‘Grammatica proverbiandi’ y la ‘Nova ratio Nebrissensis’. In: E[rnst] F[rideryk] K[onrad] Koerner & Hans-Joseph Niederehe (Eds.), Universal
index of biographical names in the language sciences. Amsterdam: John
Benjamins, 35-56. Fernandes, Gonçalo
2010 Reglas para enformarmos os menỹos en Latin (Ms. séc. XIV). In: Carlos,
Assunção, Gonçalo Fernandes & Marlene Loureiro (Eds.), Ideias Linguísticas
na Península Ibérica (séc. XIV a séc. XIX). Projeção da Linguística Ibérica na América Latina e Ásia, 2 vols. Münster: Nodus Publikationen, 223-236.
2012 Textos gramaticais latino-portugueses na Idade Média. In: E. Battaner, V. Calvo & P. Peña (Eds.), Historiografía lingüística: líneas actuales de
investigación. Münster: Nodus Publikationen, 324–337.
2013 Vernacular and Language Teaching in the Portuguese Middle Ages: the ms. Digby 26 and the Reglas para enformarmos os menỹos en latim. In: Beiträge zur Geschichte der Sprachwissenschaft, 23.1. Herausgegeben von Gerda
Haßler (Potsdam) Angelika Rüter (Münster). Münster: Nodus Publikationen. Franco, José Eduardo, Mourão, José Augusto & Gomes, Ana Cristina da Costa (Dir.)
2010 Dicionário Histórico das Ordens e Instituições afins em Portugal. Lisboa: Gradiva.
Hunt, Richard William
1976 Treasures from the Bodleian Library. London: Gordon Fraser.
1980 The History of Grammar in the Middle Ages: Collected Papers, edited, with an introduction, a select bibliography, and indices by G.[eoffrey] L.[eslie] Bursill-Hall. Amsterdam: John Benjamins [Studies in the History of the Language Sciences, 5].
Hunt, Richard William & Watson, A. G.
1999 Bodleian Library Quarto Catalogues IX Digby Manuscripts. Oxford: Bodleian Library.
Keil, Heinrich.
2007 [1857-1870] Grammatici Latini. Hildesheim / Zurich / New York: Georg Olms
Verlag. Koerner, E[rnst] F[rideryk] K[onrad]
2008 Universal index of biographical names in the language sciences. Amsterdam: John Benjamins.
Koerner, E[rnst] F[rideryk] K[onrad] & Niederehe, Hans-Joseph (Eds)
2001 History of Linguistics in Spain II. Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins [Studies in the History of the Language Sciences, 100].
Koerner, E[rnst] F[rideryk] K[onrad], Niederehe, Hans-Joseph & Robins, R. H. (Eds.)
1980 Studies in Medieval Linguistic Thought Dedicated to Geoffrey Leslie
Bursill-Hall on the occassion of his 60th birthday on 15 May 1980.
Amsterdam: John Benjamins [Studies in the History of the Language Sciences, 26].
Knowles, David
Macray, Gulielmus D.
1999 [1883] Catalogi Codicum Manuscriptorum Bibliothecae Boodleianae Pars
Nona, Codices a viro clarissimo Kenelm Digby, Eq. Aur., anno 1634 donatos. In: Richard William Hunt & A. G. Watson (Eds.), Bodleian Library Quarto Catalogues IX Digby Manuscripts. Oxford: Bodleian
Library.
Mare, A. C. de la & Benfield, B. C. Barker (Eds.)
1980 Manuscripts at Oxford: an exibition in memory of Richard William Hunt
(1908-1979). Oxford.
Marques, Maria Alegria
2008 Estudos sobre a Ordem de Cister em Portugal. Lisboa: Edições Colibri Col. Estudos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 24). Mattoso, José
1985a Portugal medieval – Novas interpretações. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
1985b Identificação de um país – Ensaio sobre as origens de Portugal:
1096-1325, I e II. Lisboa: Editorial Estampa.
1997 Religião e cultura na Idade Média portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacio-nal-Casa da Moeda.
Murphy, James J.
1980 The Teaching of Latin as a second language in the 12th century.
Historio-graphia Linguistica VII(1/2): 159-175.
Nascimento, Aires Augusto
1977 Para a pronúncia do latim – Um texto gramatical dos códices Alcobacenses.
Classica 2: 51-56.
1986 A “ars accentualis” de Martinho de Alcobaça (Lisboa, B.N., Alc. 149). Especulação e uso do Doctrinale. Evphrosyne. Nova Série, 14: 113-125. 1989 Pueris laica lingua reserabit: As 'Reglas pera enformarmos os menynos
en latin'. Ms Oxford, BL, Digby 26 (séc. XIV). Evphrosyne, Nova Série,17: 209-232.
Percival, William Keith
1975 The grammatical tradition and the rise of vernacular. Current Trends in
Linguistics, vol. 13, Historiography of Linguistics. Paris: Mouton, The
Hague, 231-275.
1976 Deep and Surface Structure Concepts in Renaissance and Mediaeval Syntatic Theory. History of Linguistic Thought and Contemporany Linguistics. Berlim / New York: Walter de Gruyter, 238-253.
Reichling, Dietrich (Theodoricus)
1893 Das Doctrinale des Alexander de Villa-Dei. Berlin: A. Hofmann & Comp.. Ridruejo, Emilio
1977 Notas romances en gramáticas latino-españolas. Revista de Filología
Española 59: 51-80.
Rodríguezde Caracena, Juan
1427 Hic incipiunt notabilia que fecit cunctis. Manuscrito, Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, Cód. Alc. 79: ff. 5r-93v.
Russell, Peter E
1960 Medieval Portuguese Students at Oxford University”. In: Portugiesische
Forschungen der Görresgesellschaft. Aufsätze zur Portugiesischen Kulturgeschichte, vol. 1. Münster Westfalen: Aschendorffsche
Verlagsbuch-handlung, 183-191. Saraiva, António José
1950 História da Cultura em Portugal, I. Lisboa. Soncino, Giovanni da
1443 De re grammatica Notabilia. Ms. Canonici Misc. 36. Oxford: Bodleian Library: ff. 1r-63v.
Sousa, Bernardo Vasconcelos e (Dir.)
22006 Ordens Religiosas em Portugal: Das Origens a Trento. Guia Histórico.
Lisboa: Livros Horizonte. Thomson, David
1979 A Descriptive Catalogue of Middle English Grammatical Texts. New York & London: Garland Publishing.
1980 Manuscripts at Oxford: an exibition in memory of Richard William Hunt
(1908-1979). Oxford: A. C. de la Mare & B. C. Barker Benfield.
Thurot, François Charles Eugène
1868 Notices et extraits de divers manuscrits latins pour servir à l’histoire des
doctrines grammaticales au Moyen Âge. Paris: Imprimerie Impériale.
Torres, Amadeu
1998 Gramática e Linguística: Ensaios e Outros Estudos. Braga: Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Filosofia × Instituto de Letras e Ciências Humanas, Centro de Estudos Linguísticos.
Verdelho, Telmo
1995 As origens da gramaticografia e da lexicografia latino-portuguesas. Aveiro: Instituto Nacional de Investigação Científica.