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Tecnologia e obsolescência nas práticas artísticas contemporâneas

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

Tecnologia e Obsolescência nas Práticas

Artísticas Contemporâneas

MARGARIDA DE LOPES GRILO

Tese orientada pelo Prof. Doutor Pedro Lapa, especialmente

elaborada para a obtenção do grau de Mestre em Arte,

Património e Teoria do Restauro

2018

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Agradecimentos

Expresso o maior agradecimento ao Prof. Dr. Pedro Lapa, pelo exemplo maior de integridade, excelência académica e ética profissional, tanto ao longo da orientação desta dissertação, tal como durante os vários anos em que fui sua aluna.

A Maria Pinto, Mário Rosado, e Tiago Camara Pereira desejo agradecer a disponibilidade e os debates frutíferos.

Agradeço também à minha mãe, Alice, e ao meu pai, Joaquim, pela paciência e apoio incondicionais ao longo deste processo.

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Esta dissertação em Teoria da Arte procura definir uma hipótese experimental capaz de explicitar uma abordagem à História da Arte, que se desenvolve em torno do conjunto de problemas que o acelerado desenvolvimento tecnológico e o seu subproduto, a obsolescência, impõem às práticas artísticas contemporâneas.

Assim, através das hipóteses levantadas pelo pensamento de Walter Benjamin, Rosalind Krauss, Giorgio Agamben ou Thierry de Duve, iremos proceder à construção de uma síntese teórica capaz de enquadrar as principais problemáticas levantadas por um conjunto de obras de arte, tal como aferir acerca das possibilidades que essas práticas artísticas levantam para a emancipação crítica do sujeito diante do quadro social, político e económico da sociedade contemporânea.

Em concreto, delimitamos a nossa análise a exemplos de obras de arte dos artistas Rodney Graham, Stan Douglas e Tacita Dean (a partir de 1980 a meados da primeira década de 2000) que se propõem a problematizar as categorias da técnica, tecnologia e da obsolescência, em conjunto com a mundividência que subjaz a essas manifestações, posicionando-as criticamente no contexto actual.

Concluindo, através do estudo das principais implicações metodológicas e epistemológicas associadas ao uso de técnicas e tecnologias, que por uma ordem determinada se tornam obsoletas, interessar-nos-á compreender diferentes propostas artísticas de actualização crítica, ou resgate no presente, dessas manifestações, que através de uma reflexão profunda sobre as suas condições históricas no passado e a possibilidade potencial da sua actualização no presente, são entendidas como arquivos de subjectividades e realidades sociais passadas capazes de sugerir novas possibilidades de entendimento da própria história cultural.

Palavras-chave: Teoria da Arte, Arte contemporânea, Tecnologia, Obsolescência, Walter Benjamin.

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This dissertation in the field of Art Theory seeks to define an experimental hypothesis capable of setting out an approach to the History of Art, which revolves around the set of problems that the rapid technological development and its by-product, obsolescence, are instilling in contemporary artistic practices.

Therefore, by resorting to the hypotheses raised by the thinking of Walter Benjamin, Rosalind Krauss, Giorgio Agamben or Thierry de Duve, we will undertake the construction of a theoretical synthesis which is able to accommodate the main issues posed by a series of artworks, while also assessing the possibilities that those same artistic practices offer to the critical emancipation of the subject vis-à-vis the social, political and economic framework of contemporary society.

Specifically, we circumscribe our analysis to examples of artworks executed by Rodney Graham, Stan Douglas and Tacita Dean (from 1980 to the first five years of the new millennium) which intend to question the categories of technique, technology and obsolescence, together with the world view which underlies those manifestations, by placing them critically in the current context.

In conclusion, through the study of the chief methodological and epistemological implications related to the use of techniques and technologies, which become obsolete in a certain order, our goal is the comprehension of varied artistic offers aimed at bringing into the present or critically updating those manifestations, which, through a deep reflection about their past historical conditions and their potential for modernization in current times, are seen as archives of subjectivities and former social realities able to propose new possibilities for the comprehension of cultural history itself.

Keywords: Art Theory, Contemporary Art, Obsolescence, Technology, Walter Benjamin

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Índice

Introdução ... 13

1. Enquadramento e Exemplos do Entendimento da Matéria Descartada nas Práticas Artísticas de 1912-1971... 17

1.1. Instrumentalização da matéria descartada, obsoleta ou “encontrada” no quotidiano 18 1.2. A valorização significativa da matéria descartada ou obsoleta ... 22

1.3. A contra-tendência do uso da tecnologia e técnicas obsoletas nas práticas artísticas contemporâneas... 31

2. Uma Ideia Unívoca de Progresso e a Ausência de Critérios de Aferência Qualitativa das Propostas Artísticas ... 36

2.1. A condição “post-medium” e a necessidade da reinvenção da “especificidade” do medium em Krauss ... 38

3. Tecnologia: História e Natureza – O interesse pelos processos na investigação histórica e científica ... 44

3.1. A “nova natureza” em Benjamin ... 45

4. O Obsoleto como Marca da História – Imagens Dialécticas ... 51

4.1. A redenção do obsoleto como matéria significante ... 54

4.1.1. Redenção do obsoleto por via do modo dialéctico: o exemplo da instalação Rheinmetall/Victoria 8 (2003) de Rodney Graham ... 57

5. Problematização do Tempo e do Espaço, através da Tecnologia, nas Imagens Dialécticas ... 64

5.1. Princípio de Construção como Montagem ... 66

5.1.1. Entendimento da Arte através das tecnologias e técnicas da fotografia e filme ... 69

5.2. A dimensão temporal utópica da tecnologia – estágios "demasiado cedo" e "demasiado tarde" ... 75

5.3. O potencial utópico aliado à transitoriedade temporal da Technik e a montagem alegórica: o exemplo de Overture (1986) de Stan Douglas ... 82

5.4. A história da subjectividade que se associa a determinado tipo de representações, o exemplo de Panoramic Rotunda (1985) de Stan Douglas ... 88

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6.1. A experiência como infância, para a transformação do espectador em produtor de

sentido: o exemplo da instalação Onomatopoeia (1985-86)de Stan Douglas ... 103

6.2. O coleccionador como figura contígua ao jogador: o exemplo de Section Cinema (Homage to Marcel Broodthaers) (2002) de Tacita Dean ... 106

6.3. O apelo à experiência como infância e ao jogo, a partir de uma reflexão sobre o medium nas práticas artísticas: o exemplo de Der Sandmann (1995) de Stan Douglas ... 111

7. O Interesse do Panorama Intelectual de Benjamin para as Práticas Artísticas Contemporâneas ... 123

7.1. A possibilidade da actividade crítica das práticas artísticas separadas de projectos de emancipação na teoria de Thierry de Duve ... 127

7.2. O pensamento de Benjamin no quadro de uma actividade crítica das práticas artísticas, orientada por uma máxima de emancipação ... 132

Conclusão ... 136

Bibliografia ... 142

Anexos - Imagens ... 145

Nota: A presente dissertação não está redigida ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico de 1990.

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Índice de Imagens

Imagem 1. John Heartfield, Normalisierung. 1936 ... 145

Imagem 2. Pablo Picasso, Nature Morte à la Chaise Cannée. 1912 ... 145

Imagem 3. Pablo Picasso, Violon. c.1912 ... 146

Imagem 4. Pablo Picasso. Tête de femme. 1929–1930 ... 146

Imagem 5. Marcel Duchamp, Fountain.1917 (réplica 1964) ... 147

Imagem 6. Kurt Schwitters, Merzbild Rossfett. c. 1919 ... 147

Imagem 7. Man Ray, De la hauteur d'un petit soulier faisant corps avec elle.1934 148 Imagem 8. Robert Rauschenberg, Charlene. 1954 ... 148

Imagem 9. Kazimir Malevich, Soldado da Primeira Divisão. 1914 ... 149

Imagem 10. Bruce Conner, Temptation of St. Barney Google. 1959 ... 149

Imagem 11. Marcel Broodthaers, Ma Collection. 1971 ... 150

Imagem 12. Rodney Graham, Rheinmetall/Victoria 8. 2003 ... 151

Imagem 13. Tacita Dean, The Green Ray (Filme Still). 2001 ... 151

Imagem 14. Stan Douglas, Overture. 1986 ... 152

Imagem 15. Stan Douglas, Panoramic Rotunda. 1985 ... 152

Imagem 16. Jeff Wall, Restoration. 1993 ... 153

Imagem 17. Aura Rosenberg, Kaiserpanorama (Berlin Childhood). 2000 ... 153

Imagem 18. Stan Douglas, Onomatopoeia. 1985–86 ... 154

Imagem 19. Tacita Dean, Section Cinema (Homage to Marcel Broodthaers) (Filme Still). 2002 ... 154

Imagem 20. Tacita Dean, Section Cinema (Homage to Marcel Broodthaers) (Filme Still). 2002 ... 155

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Introdução

Pretendemos nesta dissertação, através de um estudo em Teoria da Arte organizada numa abordagem à História da Arte, definir as bases teóricas para compreender por que metodologia pode a recorrência do uso da tecnologia e da categoria da obsolescência, nas práticas artísticas contemporâneas, conduzir a uma reflexão acerca daquilo que pode ser uma actividade artística que salvaguarde uma reflexão crítica e emancipatória do sujeito na contemporaneidade.

Em primeiro lugar, por um lado, iremos oferecer diversos exemplos de obras de arte ou práticas artísticas, que datam do período entre 1912 a 1971, cujas problemáticas permitam enquadrar o entendimento e desenvolvimento do uso de matéria obsoleta, ou “encontrada” no quotidiano, identificando para isto, genericamente, uma tendência do seu uso de modo instrumental e outra tendência de valorização significativa dessas matérias. Por outro lado e através da síntese anterior, iremos explicar e identificar a contra-tendência minoritária patente em algumas práticas artísticas contemporâneas, que prosseguem pelo uso de técnicas, tecnologias e sistemas de representação obsoletos, empenhados numa actividade crítica, uma vez que entendem esses sistemas como suportes mnemónicos do seu significado histórico e projectivos da sua materialidade ou forma, aptos a serem reconsiderados significativamente no presente.

Em segundo lugar, por um lado, trataremos de defender em que medida é que a obsolescência tecnológica, ou o abandono sucessivo de formas em prol de outras provocadas pelo desenvolvimento tecnológico, entendida como referente histórico, é indicador de uma determinada ordem de entendimento da ideia de progresso da história, nomeadamente, aquela associada ao capitalismo industrial da modernidade. Por outro lado, através do conceito de “post-medium condition” de Rosalind Krauss (n.1941), tentaremos justificar e compreender as consequências epistemológicas e metodológicas que determinadas práticas artísticas comportam na contemporaneidade. Esta condição torna-se relevante para o nosso estudo porque, como herdeira de uma concepção teleológica da história, evolucionista e tecnologicamente determinista, vem assumir-se posteriormente e por contraste como uma condição hegemónica que traduz uma arbitrariedade de sentidos e manifestações

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pluralistas da arte. Noutras palavras, tentaremos compreender de que forma a predominância de determinadas metodologias e concepções daquilo que constitui uma prática artística na contemporaneidade depaupera a própria ideia de algum objectivo aferível para as práticas artísticas, levando a que a capacidade artística se revele indiferenciável, valendo as obras apenas pelo seu valor enquanto mercadoria, em que, consequentemente, o obsoleto não tem valor significativo para o entendimento do presente. Ainda neste sentido, interessar-nos-á compreender e justificar em que medida é que o medium, derivado auto-diferencialmente das condições objectivas do “suporte técnico” é ainda, para alguns artistas na contemporaneidade, o elemento mais adequado para tratar das transformações na experiência da subjectividade na sociedade. Isto é, iremos explicar as principais propostas de Krauss no que toca à necessidade de alguma especificação do medium para a salvaguarda da competência artística e também para garantir o isolamento da esfera artística do processo de mercantilização da arte, que se faz pelo apelo a uma estrutura recursiva que permita a análise e interpretação dos seus códigos de significação próprios, aliados a convenções derivadas, mas distintas daquelas que se dispõem exclusivamente sobre as propriedade físicas do suporte.

Em terceiro lugar, iremos estabelecer as implicações que emergem da convergência entre a tecnologia, história e natureza, baseando-nos na filosofia e pensamento sobre a história de Walter Benjamin (1892-1940). Procuraremos aqui desenvolver a construção da defesa de uma “arqueologia” do obsoleto, de formas e técnicas ultrapassadas, nomeadamente a partir de inovações tecnológicas surgidas durante o século XX, uma vez que entendemos ser necessário compreender o conteúdo histórico que cada um destes fenómenos encerram no presente, em articulação com o passado, patente através da sua obsolescência como material significativo. Dada a popularidade, fragmentação e, por vezes, incompletude da obra de Benjamin, as propostas de leitura do seu pensamento resultam não raramente numa reconstituição possível dos textos, resultando numa grande disparidade interpretativa que oscila, por exemplo, entre uma identificação entre o seu pensamento com o Marxismo, o Judaísmo, ou mais tarde teorias linguísticas1. De modo a corresponder com a nossa proposta interpretativa, da importância do estudo das implicações da

1 Para um desenvolvimento acerca das múltiplas interpretações ao longo do tempo acerca do pensamento

benjaminiano consultar, por exemplo: Leslie, Esther and George Souvlis. "Interview with Esther Leslie: For A Marxist Poetics Of Science." Historical Materialism: Research In Critical Marxist Theory. Acedido Setembro 1, 2017, http://www.historicalmaterialism.org/interview-with-esther-leslie-for-marxist-poetics-science.

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tecnologia e do obsoleto para o panorama artístico e político da contemporaneidade, optamos por seguir principalmente as leituras de Benjamin defendidas pelas historiadoras Esther Leslie (n.1964) e Susan Buck-Morss (n.?), nas obras, respectivamente, Overpowering Conformism (2000) e Dialectics of Seeing (1991), em conjunto com a obra Walter Benjamin: Avertissement d'incendie. Une lecture des

thèses "Sur le concept d'histoire" (2007) do sociólogo e filósofo Michael Löwy

(n.1938). Se a interpretação de Leslie pode ser entendida como mais politizada, centrando-se numa defesa do materialismo através do estudo da política e da estética da tecnologia em toda a obra disponível de Benjamin, já a interpretação de Buck-Morss está maioritariamente centrada numa reconstrução filosófica do livro incompleto de Benjamin Passagen Werk (1927-1940), esclarecendo em detalhe a ideia de imagem dialéctica e da importância das “constelações críticas” que rodeiam os objectos obsoletos do passado para a interpretação histórica e política desse passado e do presente. Por seu lado, Löwy oferece-nos uma leitura detalhada de Sobre

o Conceito da História (1940), de Benjamin, cruzando perspectivas filosóficas,

teológicas e políticas, demonstrando como esse ensaio se oferece como um texto basilar para a compreensão do pensamento benjaminiano, tal como da relação entre redenção e revolução nele explicitada, que se torna fundamental para o desenvolvimento da presente dissertação.

Em quarto lugar, mediante um conjunto de exemplos de obras de arte por Rodney Graham (n.1949), Stan Douglas (n.1960) e Tacita Dean (n.1965), também iremos explicitar e analisar, por um lado, o processo retrospectivo e de redenção que Benjamin aplica no método das imagens dialécticas, como a forma de descobrir a verdade na “pilha de lixo” da história moderna2, isto é, nas ruínas da produção de mercadorias associadas ao desenvolvimento do capitalismo industrial. Ainda, por outro lado, iremos reunir um conjunto de argumentos, assentes em considerações espácio-temporais relacionadas com a tecnologia e o conteúdo utópico potencial que Benjamin lhe atribui – respectivamente, a montagem alegórica e a transitoriedade da tecnologia – plausíveis para a afirmação de uma interpretação histórica aberta e emancipatória do sujeito crítico, que se faça pelo estudo do obsoleto, particularmente, através do seu uso significativo nas práticas artísticas contemporâneas mediante a adopção de uma “forma-jogo” da técnica e tecnologia nessas práticas e de um modo

2 Cf. Susan Buck-Morss, The Dialectics of Seeing: Walter Benjamin and the arcades project (Cambridge, London:

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de relacionamento com a matéria que se associa à experiência, como infância, e ao jogo, no entendimento de Giorgio Agamben (n.1942).

Por último, através do pensamento de Thierry de Duve (n.1944), iremos apresentar uma análise da importância do panorama intelectual de Benjamin para a investigação teórica das práticas artísticas contemporâneas que façam uso de um reposicionamento significativo de formas obsoletas, nomeadamente no garante de uma actividade crítica dessas práticas orientadas segundo uma máxima de emancipação que, por analogia e reflexão, se pode repercutir no campo social e político.

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1. Enquadramento e Exemplos do Entendimento da Matéria Descartada nas Práticas Artísticas de 1912-1971

Como parte da revolta modernista contra os propósitos técnicos e formais das Belas Artes, iniciada pelo Impressionismo, diversos artistas têm concebido escultura, assemblagem, combine pantings ou, mais tarde, instalações, que primam pelo uso de materiais e objectos que escapam aos cânones hegemónicos do século XIX, designadamente matéria despoetizada resultante da produção industrial, cujos produtos, com o seu próprio ciclo de vida ou de utilização, sinalizam sempre a passagem inequívoca para o carácter de lixo pela descontinuação do seu uso, independentemente dos motivos para o seu descarte serem propositados – obsolescência programada – ou não3. Noutras palavras, o uso de materiais “encontrados” do quotidiano, descartados, ou até a própria problematização da característica da obsolescência de processos ou produtos herdeiros do desenvolvimento tecnológico não é exclusiva das práticas artísticas das últimas décadas, podendo-se assinalar a tendência para a utilização destas matérias vulgares já no início do século XX. Não obstante, compreendemos que as práticas artísticas que realizam, através de alguma metodologia, a problematização e consequente valorização significativa da matéria obsoleta são herdeiras de um conjunto de obras anteriores que escolhem instrumentalizar o uso de materiais banais, comuns e diários em sintonia com a experiência tecnológica e quotidiana das épocas a que dizem respeito, para problematizar acerca de princípios formais e técnicos da pintura, da escultura, ou até criticar os próprios alicerces conceptuais da tradição artística do Ocidente4.

3 No âmbito da nossa investigação, falar de material descartado parte de um entendimento do material resultante da

actividade económica, a partir das inovações e melhoramento das tecnologias de produção da Primeira e Segunda Revoluções Industriais. No entanto, a previsão da medida de sustentabilidade do ecossistema e dos recursos naturais do planeta, em relação ao subsistema económico humano que lhe está inerente, é calculado através de uma fórmula económica básica que consiste em definir que: “população vezes consumo de recursos per capita é o fluxo

total dos recursos do ecossistema para o subsistema económico e, depois, de volta para o ecossistema como lixo.”

Robert Goodland, “O Crescimento atingiu o seu limite,” in Economia Global Economia Local: A controvérsia, 223 (Lisboa: Instituto Piaget, 1996). Isto é, partindo da compreensão de que o ecossistema global, de onde se extraem os recursos materiais, é também o mesmo local para a acumulação de lixo resultante da actividade desse mesmo subsistema económico que, no nosso caso, se vê exacerbada pelos processos crescentes de industrialização e de mercantilização da vida quotidiana a que se começa a assistir mais declaradamente a partir do início do século XX mas que não é exclusiva deste período.

4 Cf. Hal Foster et al., Art Since 1900: Modernism, Antimodernism, Postmodernism (London: Thames & Hudson,

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Então, podemos definir duas tendências interrelacionadas para o uso destas matérias comuns resultantes da produção industrial, obsoletas ou não, que rodeiam contemporaneamente o sujeito no seu quotidiano e que se tornam fundamentais para o enquadramento analítico do obsoleto nas práticas artísticas contemporâneas que pretendemos realizar nesta investigação – uma tendência que passa pela instrumentalização e, outra, pela sua valorização.

1.1. Instrumentalização da matéria descartada, obsoleta ou

“encontrada” no quotidiano

A primeira tendência para o uso de matéria obsoleta, ou descartada, está relacionada com a exploração de preocupações formais assentes pela tradição da pintura, ou escultura, através da instrumentalização do objecto “encontrado” no quotidiano e a sua oportuna e posterior recontextualização artística, gerando um conjunto de problemas que se propõem a redefinir o espaço escultórico, o espaço pictórico, ou ainda a pretensa autonomia da arte.

Assim, podemos identificar o Cubismo Sintético como o primeiro movimento a utilizar matéria descartada como medium das obras de arte5, através da técnica de colagem, concretamente, a de papel, que consistia na colagem de diversos papéis pré-existentes no mundo, de múltiplas formas, funções e origens (papel de parede, jornais, rótulos de garrafas ou pedaços de desenhos descartados) na superfície da pintura. Na obra Violon (1912)6, de Pablo Picasso (1881-1973), fica claro de que forma o vocabulário da representação do Cubismo se transforma totalmente, passando de uma posição “icónica”, isto é, de semelhança entre o objecto e a sua representação pictórica, para uma posição “simbólica”, de atribuição de significado através de convenção7. Clarificando, a arbitrariedade do signo linguístico é convocada para o campo da representação pictórica, uma vez que os elementos colados na superfície da pintura ganham significado através de uma estrutura de referência: de relação, oposição e negação dos outros elementos. Este gesto de introdução de matéria

pretensa autonomia da arte, académica ou de vanguarda, separada da vida social e constituindo-se como uma instituição em si própria.

5 Cf. Foster et al., Art Since 1900, 112; ver Anexos: Imagem 2. Ainda que já encontremos na obra de Pablo

Picasso, Nature morte à la chaise cannée (1912), atribuída ao período do Cubismo Analítico, a primeira colagem da Arte Moderna, pela presença de desperdícios de tecido oleado mecanicamente produzido.

6 Ver Anexos: Imagem 3.

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pré-existente nas obras de arte inaugura assim uma crise de representação visual, sustentada pela ruptura para com um sistema baseado em relações de verosimilhança entre o objecto e a sua representação, que se propaga para outros campos como a literatura ou até a política económica, pela crescente abstractização do valor da moeda8.

Num período mais tardio do desenvolvimento destas questões, destacamos, a título de exemplo, a obra Tête de femme (1929-30)9, em que Picasso utiliza molas de colchões e coadores de cozinha para formar uma figura feminina que se apresenta através da concepção de escultura como construção10, isto é, de escultura que também utiliza diversos materiais pré-existentes, em que o significado dos diferentes elementos se realiza através de um sistema de referência entre os elementos desta mesma obra. Noutras palavras, através da exploração formal na escultura do Cubismo Sintético, de objectos “encontrados” no quotidiano – que se desenvolve a partir da ideia da colagem em papel de Picasso, como a combinação de diferentes materiais existentes11 de ímpeto “simbólico” – estabelece-se consequentemente a possibilidade para uma redefinição do espaço escultórico, uma vez que, se os elementos que constituem a escultura não valem por si e existem na obra enquanto participantes num sistema de referência (não autónomos), podem constituir-se de qualquer matéria ou até da sua ausência substancial (espaço)12.

Assim, em Tête de femme, através da utilização e incorporação oportuna de detritos metálicos, que noutro contexto seriam ignorados, fica reforçado o ataque epistemológico do Cubismo Sintético, iniciado em 1912-13, aos sistemas de referência, apelando a uma capacidade mais complexa de interpretação da obra que põe em evidência o hiato que separa o referente do significado13. Para além disto, também se inaugura a possibilidade da exploração formal e técnica dos objectos oportunamente “encontrados” no quotidiano e recontextualizados artisticamente como, por exemplo, nos readymades dadaístas de Marcel Duchamp (1887-1968).

Duchamp, através da criação do conceito de obras readymade, utiliza a recontextualização artística de objectos manufacturados, “apropriados” do quotidiano,

8 Cf. Ibid., 113.

9 Ver Anexos, Imagem 4.

10 Cf. Ibid., 127. A dicotomia que se estabelece oscila entre a noção de “composição” ocidental tradicional, que

apela à contemplação e reflexão acerca da obra de arte, e “construção” que apela, pelo contrário, ao compromisso activo com a materialidade não subjectiva da obra de arte.

11 Cf. Ibid., 365. 12 Cf. Ibid., 38. 13 Cf. Ibid., 34.

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como modo de crítica aos mediums tradicionais da arte, dos critérios de gosto vigentes (estética da burguesia de defesa da autonomia da arte, pelo carácter não-utilitário) ou até da questão da habilidade artística como critério de avaliação qualitativa das obras de arte14. Concretizando, Duchamp, através da descontextualização e posterior contextualização de objectos vulgares, não raramente produzidos em massa, como o urinol na obra Fountain15 (1917), estabelece, por um lado, uma ruptura definitiva com

o sistema de representação pós-Renascentista ocidental16 e, por outro lado, atribui pela primeira vez um carácter autónomo (não referencial) aos objectos que constituem a obra de arte, separando-os de qualquer subjectividade, apelando antes a uma “indiferença visual” ou “anestesia completa”17, respondendo, deste modo radical, à crise de representação assinalada anteriormente pelo Cubismo e demonstrando que toda arte moderna estaria submetida à mesma economia que as mercadorias (exposição e venda)18.

Então, ainda que raramente os readymades explorem declaradamente a característica da obsolescência dos dispositivos que utilizam, traduzem-se numa instrumentalização da matéria resultante da produção industrial pelo destacamento do objecto do seu ciclo de vida próprio no mercado de troca capitalista, possibilitando a autonomização destas matérias manufacturadas de um sistema de referência ou tradição pictórica específica, viabilizando a sua análise em sentido próprio19 e, portanto, permitindo a futura problematização das suas características e condições histórico-sociais próprias, incluindo a de obsolescência.

Por contraste à problemática dos readymades duchampianos, Kurt Schwitters (1887-1948), em 1919, desenvolve o projecto “Merz”, que consistia na afirmação de uma nova forma de fazer pintura, através de obras cujo medium consistia na colagem e assemblagem de sucata e material descartado encontrado nas ruas. Assim, ainda que exclusivamente interessado em que o seu trabalho se situasse na tradição da pintura, Schwitters utiliza o material obsoleto como uma forma de transformação da

14 Cf. Ibid., 128.

15 Ver Anexos, Imagem 5.

16 Cf. Ibid., 37. O sistema de representação pós-Renascentista ocidental definia como essencial que a arte se

constituísse em separação com o mundo, num espaço ilusionista.

17 Cf. Ibid., 268. 18 Cf. Ibid., .268.

19 Cf. Ibid., 268. Permitindo, por exemplo, a problematização do objecto no Surrealismo, que Benjamin assinala

como o primeiro movimento a perceber as energias revolucionárias do obsoleto, como talismãs do pensamento dialéctico e do despertar histórico. Assim, o objecto surrealista pode ser compreendido como estando dependente da conexão entre a subjectividade e a história social, isto é, entre o indivíduo e a história de uso e fabricação de determinado objecto em particular – tendo em consideração também a sua função utilitária primordial, a sua história.

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experiência pictórica, respondendo às preocupações dos principais movimentos da época – Expressionismo, Cubismo, Futurismo ou Dadaísmo – com uma posição de contemplação melancólica e, por este motivo, não se identificando em definitivo com nenhum deles20.Por exemplo, em Merzbild Rossfett (c. 1919)21, a assemblagem de detritos encontrado nas ruas, pedaços de metal e madeira, resulta da compreensão da pintura como a combinação de materiais existentes, onde a experiência contemplativa da obra possibilita a identificação pelo observador da sua própria prática contemporânea, possibilitando uma “pintura para a experiência contemporânea”22. Então, a matéria descartada nesta obra não é pensada como tendo algum tipo de legitimidade singular ou autónoma, como nos readymades dadaístas, pelo contrário, é utilizada como continuação do entendimento da pintura como um espaço de contemplação, onde os materiais constituem no seu conjunto dados visuais que devem ser compreendidos como um todo.

Resumindo, através dos exemplos anteriores, pretendemos demonstrar que, ainda que encontremos artistas que escolham usar matéria descartada da produção industrial desde o início do século XX, “encontrada” e contextualizada oportunamente em contexto artístico, a problemática central das suas práticas artísticas não se centrava na revalorização destas matérias, concentrando-se antes noutro tipo de preocupações. No entanto, não é desprezível o contributo dado pela matéria manufacturada descartada no sentido da possível valorização posterior do obsoleto (sejam materiais industriais ou produtos comerciais) uma vez que, pela sua instrumentalização, se operaram transformações acerca do entendimento do que se pode constituir como medium da arte (no entendimento escultórico ou pictórico), ou ainda acerca daquilo que pode ser legitimado como obra de arte. Noutras palavras, a valorização e problematização significativa da matéria obsoleta não pode ser compreendida sem antes se compreender o tipo de problemáticas que levaram à sua consideração e que tentámos sistematizar resumidamente neste ponto.

20 Cf. Ibid., 220.

21 Ver Anexos, Imagem 6.

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1.2. A valorização significativa da matéria descartada ou obsoleta

A segunda tendência que podemos assinalar para o uso de matéria descartada da produção industrial está associada a uma problematização das economias contrastantes que os objectos têm inerentes. Isto é, trata-se de uma tendência de utilização de materiais obsoletos com o intuito principal de valorização desta matéria, enaltecendo-a enquanto vestígio objectivo de uma forma social ou modo económico localizado num determinado período, uma vez considerada como capaz de conter algum tipo de conteúdo significativo próprio, que se faz pela justaposição entre as diferentes economias a que está submetido ao longo do tempo (que oscila entre o estatuto de produto mercantil ao de detrito ultrapassado)23.

O primeiro exemplo deste tipo de valorização da característica de obsolescência dos objectos pode ser encontrado na escultura associada ao Surrealismo, que desenvolve a ideia de escultura, como colagem ou assemblagem, pela exploração das ressonâncias psicológicas associadas aos objectos, que inclui uma preocupação em conectar a subjectividade com a história social dos objectos que escolhe utilizar24. Remetendo-nos para uma atitude filosófica materialista, que associamos particularmente a Benjamin, uma vez que este encontra na matéria obsoleta, o “lixo” da história, um testemunho concreto do tipo de acções e condições desenvolvidas pela sociedade, tratando-se, portanto, de matéria essencial para desenvolver a sua crítica radical da história através de um olhar retrospectivo25.

O movimento Surrealista e as obras que o compõem formam um agrupamento heterogéneo, englobando uma grande disparidade estilística, que oscila entre a fotografia de Man Ray (1890-1976) e os desenhos automáticos de André Masson (1896-1987). Isto é, entre, por um lado, a preocupação com o índex, como capaz de produzir uma prova irrefutável daquilo que se esconde por de trás da realidade, pelo registo de uma perturbação na sua superfície26 e, por outro lado, obras que testemunham uma preocupação psicanalítica com o inconsciente, como o fetichismo ou a ansiedade da castração. Como forma proposta para a análise destas obras tão dissemelhantes, o autor do Manifesto do Surrealismo (1924), André Breton (1896-1966) sugere que as obras surrealistas podem ser teorizadas através de um processo de

23 Cf. Ibid., 268. 24 Cf. Ibid., 364.

25 Cf. Buck-Morss, The Dialectics of Seeing, 93. 26 Cf. Foster et al., Art Since 1900, 197.

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decomposição da sua estrutura, recorrendo, quer a um conjunto de princípios formais que retira aparentemente da análise semiótica, quer ao entendimento do modo pela qual estas categorias semióticas recodificam problemas psico-analíticos ou sócio-históricos27. Nesta conjectura, compreendemos que a realidade dos objectos surrealistas, segundo a análise de Breton, tem o potencial de os constituir como signos, cujos significados estão dependentes de um sistema de referência que, não se constituindo exclusivamente por aquele desenvolvido na obra de arte, se estabelecem em relação ao próprio mundo, funcionando como duplos em relação aos objectos dinâmicos.

Concretizando, como exemplo do uso de matéria obsoleta que é entendida como tendo uma função simbólica, pelo estranhamento do seu significado original provocado por repressão, podemos assinalar uma pequena colher com cabo em forma de sapato que Breton encontrou no mercado de velharias do Marché aux Puces, em Paris, e fotografada depois por Man Ray em 193428. No seu romance L’Amour fou (1937), Breton indica que esta colher lhe lembra outro objecto, um cinzeiro em formato de um sapato de cristal que encomendou para exorcizar uma frase que recorrentemente lhe passava no pensamento: “Cinderella astray”. Breton percebe que esta frase representa o seu desejo inconsciente por amor, tornado consciente pelo encontro com esta colher, que associa o formato de colher, o emblema clássico surrealista para a mulher, ao sapato, um fetiche sexual clássico. Portanto, esta colher, por um lado, torna-se um signo para um desejo ou vontade reprimida do sujeito mas, pelo seu carácter de obsoleto e modo de fabricação rústico, também pode, por outro lado, informar acerca do seu estatuto enquanto vestígio de uma formação social ou modelo económico anterior29. Como defenderia o historiador de arte Hal Foster (n.1955), enquanto objecto obsoleto, a imagem familiar desta colher explora outra dimensão do estranhamento trazida, neste caso, por repressão histórica.30 A actividade surrealista associada a objectos ou imagens obsoletas podem, neste caso, “ [. . .] desafiar o objeto capitalista com imagens reprimidas no seu passado ou fora do seu alcance, como quando se lembra num objeto antigo ou exótico, de um modo

27 Cf. Ibid., 198.

28 Ver Anexos, Imagem 7. 29 Cf. Ibid., 268.

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produtivo diferente, formação social e estrutura de sentimento, por assim dizer, em protesto.”31

Então, o objecto surrealista alia as reverberações psicológicas e históricas daquilo que se torna posposto, elaborando estratégias inovadoras para a imagem e a imaginação da experiência32 num mundo alicerçado na experiência objectiva das mudanças tecnológicas da época. É também através desta constatação que Benjamin, no ensaio de 1929, “Der Sürrealismus”, celebra o Surrealismo como o primeiro movimento a reconhecer o potencial da matéria obsoleta, ou das ruínas da produção industrial, para, através do pensamento dialéctico, realizar uma redenção dos objectos capaz de provocar uma reinterpretação histórica e política do passado33.

Em suma, o Surrealismo estende a sua estética de fetichismo e de fantasia para o campo da produção de objectos, distanciando-se da concepção duchampiana de

readymade como “indiferença visual”, por lhe adicionar uma carga de estranhamento

e desejo, como uma força física capaz de desafiar a natureza ou o destino de um objecto ou um fenómeno34. Então, o uso de objectos obsoletos no Surrealismo passa pela sua valorização, uma vez considerado que este objecto revela um sintoma das diferentes economias contraditórias do objecto, potenciando uma “iluminação profana” das energias revolucionárias na acepção benjaminiana do termo, ou revelando nos objectos um fetiche sexual em que diferentes desejos conflituantes actuam, no entendimento freudiano35.

Já em 1961, no ensaio “Junk Culture as Tradition” (1961), o crítico e curador de arte britânico Lawrence Alloway (1926-90) descreve a categoria de “junk art”, analisando o potencial artístico de obras de arte feitas da assemblagem de sucata, maquinaria quebrada, pedaços de pano, madeira, papel usado e outros materiais "encontrados", em artistas como Robert Rauschenberg (1925-2008), Jim Dine (n.1935), ou John Latham (1921-2006). Na interpretação da professora Stephen Moonie (n.?), especializada no pensamento deste crítico, Alloway teoriza que estes artistas, através da utilização de “junk”, isto é, de objectos recolhidos e utilizados em contexto artístico e que se tornam disponíveis pela obsolescência, como material descartável das cidades, realizam um processo de revalorização materialista destes

31 Ibid., 127.

32 Cf. Esther Leslie, Walter Benjamin: Overpowering Conformism (London: Pluto Press, 2000), 13. 33 Cf. Foster et al., Art Since 1900, 268.

34 Cf. Ibid., 268-269. 35 Cf. Ibid., 269.

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objectos pela sua reutilização36. Neste sentido, Alloway defende que o estilo comunicativo do objecto de assemblagem se pode definir como de proximidade e participação, substituindo o estilo de distância e contemplação que encontramos, por exemplo, nos “Merz” de Schwitters37.

Por exemplo, no combine painting Charlene (1954)38, Robert Rauschenberg faz uso de diferentes materiais que se assumem também através da colagem de objectos descartados na superfície da obra, reminiscências da colagem do Cubismo Sintético mas, neste caso, onde os objectos valem por si, não se organizando de forma referencial. Os objetos revelam, por isto, um carácter anónimo que se consegue pela transferência de objectos do mundo anexados à pintura e não representados (tal como a lanterna, a camisola, o guarda-chuva ou o padrão no canto inferior direito), reminiscências, por sua vez, dos readymade de Duchamp, ou ainda das pinturas tardias do cubofuturismo, ou da fase zaum (“para além da razão”), de Kazimir Malevich (1879-1935), onde o artista pretende “des-automatizar” a visão, por exemplo em Soldado da Primeira Divisão (1914)39, através do recurso a colagens e justaposições absurdas de objectos readymade, para confrontar o observador com o facto de que os signos pictóricos não são transparentes às suas relações de referência, tendo pelo contrário e principalmente, uma existência própria ou autónoma, isto é, valendo pictoricamente sobretudo como significação tautológica daquilo que os objectos efectivamente são (um termómetro, um selo postal, etc.)40.

No entanto, uma outra leitura pode ser considerada se os objectos utilizados por Rauschenberg forem entendidos como capazes de preservar o seu estatuto e função originais no contexto da obra onde se encontram, funcionando como “palimpsestos” da experiência contemporânea e, por isto, perdendo o carácter anónimo que à partida poderiam sugerir. Passando a explicar, como Alloway defende, estes objectos não estão inertes, têm uma história (ou contexto) própria, nomeadamente aquela que oscila entre o seu ciclo de produção, utilização, posterior obsolescência e reutilização como material artístico41. Assim, em Charlene, a colagem de objectos “encontrados” no quotidiano na superfície da pintura, permite

36 Cf. Stephen Moonie, “Mapping the Field: Lawrence Alloway’s Art Criticism-as-Information,” Tate Papers,

no.16, 2011, http://www.tate.org.uk/research/publications/tate-papers/16/mapping-the-field-lawrence-alloway-art-criticism-as-information.

37 Cf. Ibid.

38 Ver Anexos, Imagem 8. 39 Ver Anexos, Imagem 9.

40 Cf. Foster et al., Art Since 1900, 130-131. 41 Cf. Stephen Moonie, “Mapping the Field.”

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estabelecer com o observador uma afinidade com a experiência do mundo partilhado, como “pedaços de vida, pedaços do ambiente”42, perdendo o seu carácter anónimo pela alteração do seu contexto. Noutras palavras, o objecto descartado e exposto no contexto da obra de arte pode ser compreendido pelo observador como imerso na história do seu próprio uso, através do reconhecimento de determinadas familiaridades que ressaltam da experiência quotidiana do mundo e das suas condições económicas, sociais ou históricas. A influência do materialismo histórico em Rauschenberg é assim evidenciado se se considerar a matéria como capaz de informar acerca das diferentes economias a que estão inerentes os objectos, constituindo com as obras de arte, os objectos e o ambiente tecnológico, uma rede inter-relacional capaz de revalorizar o material obsoleto ou descartado. Neste caso, esta revalorização é proporcionada pela possibilidade de transformação epistemológica do observador, através da análise concreta dos objectos e da sua história, pelo reconhecimento destes elementos como fazendo parte de uma realidade partilhada, de uso e de presença quotidianos, assumindo-se, deste modo, também como uma forma de arte democrática.

No período compreendido entre o final da década de cinquenta à década de sessenta, na prática artística de Bruce Conner (1933-2008) encontramos o uso de matéria descartada que implica já uma reflexão declarada acerca da característica de obsolescência do desperdício da produção industrial, não só como modo de resistência à condição hegemónica da mercantilização da vida e da arte mas também como modo de glorificar a figura do ragpiker (B. Conner definir-se-ia como tal43) e, por conseguinte, as “párias” da sociedade. Isto é, B. Conner identificava-se com a figura do ragpiker tal como é entendida por Benjamin no seu ensaio sobre Charles Baudelaire (1821-1967), Um Lírico no Auge do Capitalismo44, que atribui a Baudelaire uma posição central na atribuição de um discurso aos novos objectos “mudos” provenientes da industrialização urbana, através do uso do método alegórico na sua poesia45. Benjamin define Baudelaire como uma figura capaz de mimetizar diferentes fisionomias, assemelhando-se à capacidade das mercadorias de acolherem

42 Lawrence Alloway, “Junk Culture,” Architectural Design, vol.31, no.3, (1961): 79 apud Stephen Moonie,

“Mapping the Field.”

43Cf. Foster et al., Art Since 1900, 455. Em 1959, B. Conner e o poeta Michael McClure (n.1932) fundam a Rat

Bastard Protective Association, destinada a acolher a figura do ragpicker, como aquele que colecta o lixo

proveniente do desperdício da sociedade como modo de vida. Actividade normalmente desenvolvida pelas classes mais desprivilegiadas e excluídas da sociedade.

44 Cf. Ibid., 455.

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diferentes significados. Assim, Baudelaire quando assume a forma da identidade do

ragpicker, revela-se uma figura que inventaria os momentos da sua vida através da

recolha de objectos pessoais descartados no passado, tentando lembrar o seu significado através do estabelecimento das suas correspondências próprias46. Assinalando a transmutação do objecto mercantil (obsoleto) num item de uma colecção e, por isso, capaz de comportar novas possibilidades significativas.

Por exemplo, na obra The Temptation of St. Barney Google (1959)47 encontramos uma assemblagem em que proliferam objectos que poderiam ser encontrados numa loja de bricabraque (vários materiais de pouco valor comercial, embalados em nylons, montados sobre madeira), detritos de uma sociedade de consumo, mas exclusivamente pertencentes ao período antes do advento da Guerra Fria, de Hiroxima ou do Holocausto. Assim, a escolha pela recolha e exposição deste tipo de matéria, que não se resume ao desperdício contemporâneo do grande desenvolvimento industrial dos pós-guerras ou ao excesso de imagens vazias produzidas pelos meios de comunicação de massa, pode traduzir-se como uma atribuição de valor significativo à própria característica da obsolescência destas matérias concretas, através da reciclagem de lixo antiquado. Isto é, os detritos escolhidos por B. Conner têm em conta o seu significado próprio, pela valorização da sua história própria – as diferentes condições no seu momento de produção, utilização, descarte e reciclagem.

Então, podemos afirmar que para a análise desta obra é fundamental compreender a sua dimensão temporal. Passando a explicar, por um lado, pela impressão de velamento conseguida pela progressiva acumulação de pó nas camadas de nylon, que ao longo do tempo alteram a própria forma e leitura da obra, é sugerido um aspecto à obra de arte como algo “ultrapassado”, sem valor comercial, entendendo-se a tentativa do artista de se posicionar externamente face à tendência dominante da mercantilização da arte48. Por outro lado, pelo uso de lixo ou desperdícios antiquados da sociedade, somos confrontados com a dimensão objectiva dos resultados provocados pelo entendimento do período pós-guerras de que a

46 Cf. Ibid., 188-89.

47 Ver Anexos, Imagem 10.

48 Mais tarde, B. Conner entendeu que a reciclagem de lixo antiquado não era suficiente para fugir à condição de

mercantilização da arte e terá optado por realizar filmes através de montagem de cenas “encontradas”, p.ex. A

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mudança seria sinónimo de progresso49. Pelo uso desta matéria, B. Conner realiza um salto “diegético” na narrativa que sustentaria esta visão histórica do passado, pela sua interpretação no presente de forma disruptiva, através da exposição do seu próprio fracasso, como uma “acumulação patética de escória”50 realizada pelos excluídos desta sociedade (ragpikers), que são assim valorizados como agentes numa estratégia de resistência às condições socioeconómicas da contemporaneidade.

Por último, cabe referir a primeira secção, nomeada Section XIXème siècle, do

Musée d’Art Moderne (1968), inaugurado em Bruxelas, por Marcel Broodthaers como

seu director que, pela via da apropriação artística dos mecanismos associados à instituição museológica dialecticamente, por um lado, se insere numa crítica mais ampla aos códigos institucionais de legitimação e produção de discursos (teóricos, históricos ou pedagógicos) sobre as obras de arte e as formas da sua recepção e, por outro lado, ainda que não abdicando de uma atitude crítica ao autoritarismo do museu do século XIX, Broodthaers faz uma apologia nostálgica a um espaço histórico associado à subjectividade burguesa, isto é, ao museu desse período enquanto um espaço institucional relativamente livre das constrições do mercado, realizando, deste modo, uma critica à própria mercantilização do objecto artístico.

Nesta secção em particular, confrontamo-nos com a afirmação de uma analogia entre a própria instituição museológica e o seu entendimento como uma “estrutura alegórica”, no sentido benjaminiano do termo. Passando a explicar, nesta primeira secção Broodthaers reuniu e exibiu objectos vulgares tradicionalmente usados em exposições, museus ou galerias de arte, como por exemplo, caixotes para o transporte de peças, objectos que comporiam a sinalética informativa das exposições e do espaço museológico, ou até de materiais usados para a instalação das obras, como lâmpadas ou escadotes. Deste modo, Broodthaers reúne objectos cuja significação evoca a instituição museológica como a sua origem – que no Musée d’Art Moderne, por via da sua exibição e recontextualização no local tradicional atribuído para a mostra de obras de arte, esvazia essa origem do seu sentido original e significado histórico, isto é, expõe o museu e os seus poderes de dominação e de ordenamento institucional, como dependente de sistemas interpretativos auxiliares externos que lhe dão sentido fora do

49 Entendemos, neste caso, que os meados do século XIX caracterizaram-se pela experiência da maior abundância

material e comercial da história. Nas palavras de Buck-Morss, esta terá sido uma época caracterizada pelo “ [. . .] esplendor da recém construída fantasmagoria urbana com a sua promessa de mudança-como-progresso [. . .].” Buck-Morss, The Dialectics of Seeing, 178.

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seu "próprio" enquadramento, tal como um emblema alegórico. Assim, na Section

XIXème siècle o signo da obra de arte, enquanto uma forma de plenitude ou relação

directa com um significado substancial é contraposto, com a constituição de uma “estrutura alegórica”, em que o signo das obras expostas é entendido como alegoria, de modo a relevar o carácter “inorgânico”, ou não constrito sobre si mesmo, do modo que Benjamin a entendia – a alegoria como dependente de factores auxiliares e forças dominantes institucionais externas para que seja possível revelar o seu significado.

Sintetizando, por um lado, Broodthaers usa a capacidade da alegoria para se inscrever mimeticamente dentro de tudo o que é "externo" à obra de arte tradicional, de modo a viabilizar a sua estratégia de desenvolvimento de uma "ficção" de um museu como um projeto de negatividade crítica e oposição.51 Por outro lado, a utilização e colecção de materiais banais, desenha uma crítica aos significados e presumíveis origens desses objectos, constituindo-se como uma demonstração da possibilidade de equivalência qualitativa de qualquer objecto, pela via da sua “promoção” a objecto de arte com estatuto de mercadoria. Noutras palavras, somos confrontados com um princípio de equivalência, que equaliza quaisquer objectos a partir da medida do seu valor comercial, o que pode constituir um questionamento acerca da pretensa autonomia, garantida pela Arte Conceptual, aos constrangimentos institucionalizados do modernismo e da mercantilização da arte, por via do abandono da ideia de alguma especificidade do medium artístico52.

Para além disto, em Ma Collection (1971)53, o gesto de Broodthaers de reunir e catalogar objectos variados (com o uso da numeração em “Fig.”), esvaziando-os do seu uso tradicional por meio de uma recontextualização artística – agora associada uma esfera particular invocada pelo pronome pessoal no título da obra, por oposição a uma esfera pública que associamos ao contexto de coleccionismo do Musée d’Art

Moderne – inscreve-se na concepção da actividade e relacionamento entre os objectos

associada ao “verdadeiro” coleccionador, proveniente do século XIX, entendido por Benjamin como alguém que “ [. . .] liberta as coisas da escravidão da utilidade [. . .].”54 Que “ [. . .] dissocia o objecto das suas funções originais para que entre na

51 Cf. Ibid., 593-596.

52 Cf. Rosalind Krauss, “A voyage on the North Sea”: Art in the Age of the post-Medium Condition (New York:

Thames & Hudson, 2000), 40-41. Para um desenvolvimento mais detalhado sobre o princípio de equivalência dos objectos de arte assente no seu mero valor de troca no mercado capitalista ver o capítulo 2.

53 Ver Anexos, Imagem 11.

54 Walter Benjamin, Howard Eiland and Kevin McLaughlin, The Arcades Project (Cambridge (Mass.): Harvard

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relação mais próxima possível com os seus equivalentes”.55 Então, poderia presumir-se que a figura deste coleccionador, tal como o presumir-seu modo de actividade, teria sido ultrapassada pelos novos modos e formas de coleccionismo e exposição museológicas do século XX e, por isto, aparentemente não teriam significado algum para as práticas contemporâneas. No entanto, nesta obra, Broodthaers faz uso da ideia do coleccionador do século XIX que, em substituição de uma acumulação de objectos como modo de os exibir ou como um padrão de consumo mercantil, dissocia os objectos da sua utilidade e origem para os ordenar de forma a estabelecer relações de “proximidade” com os seus equivalentes, através da categoria de completude56. Nas palavras de Benjamin, esta categoria de completude: “É uma tentativa grandiosa de ultrapassar o carácter totalmente irracional da mera presença do objecto em mãos através da sua integração num novo sistema histórico expressamente concebido: a colecção [. . .] que se transforma numa enciclopédia de todo o saber da época, da paisagem, da indústria e do proprietário do qual surge.”57

Neste sentido, Broodthaers realiza outra operação assente num princípio de equivalência de objectos, mas que neste caso se concretiza pela manifestação de “proximidade” entre os objectos, conseguida pelas relações possíveis de estabelecer entre estes e a recordação particular do indivíduo que as colecciona e ordena, engendrando “uma forma de memória prática”58 através desse coleccionismo. Isto é, nesta obra, Broodthaers faz uso do poder do obsoleto atribuído por Benjamin como o local privilegiado para a redenção do seu potencial não esgotado, utilizando em concreto a figura obsoleta do coleccionador do século XIX e restaurando o seu potencial como o “verdadeiro” coleccionador, actualizando o seu modus operandi para o contexto contemporâneo pela colecção de documentos e materiais provenientes de exposições prévias em que teria participado, aqui rememoradas e ordenadas a partir dessa anamnese.

Portanto, a estrutura de referência desta obra de Broodthaers, tal como outras, está associada a um declarado interesse por formas ultrapassadas do século XIX, ou tornadas obsoletas pelo desenvolvimento tecnológico, de modo a localizar um gérmen de redenção possível associado ao momento e condições primordiais de determinadas formas ou tecnologias, aptas a serem libertadas no momento da sua obsolescência

55 Ibid., 204.

56 Cf. Krauss, “A voyage on the North Sea”, 38. 57 Benjamin et al., The Arcades Project, 205. 58 Ibid., 205.

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mercantil. Noutras palavras, Brooadthaers, tal como Benjamin prescreve no seu projecto filosófico, debruça-se sobre o passado a partir das perspectivas das oportunidades perdidas, potencialmente possíveis no tempo do “agora”59, onde a alegoria, associada à melancolia e à decadência, possibilita a abertura das “estruturas alegóricas” para a inscrição mnemónica dos reflexos da história obscurecidos ou obsoletos, viabilizando o potencial da sua reinscrição na esfera das práticas artísticas contemporâneas.60

Concluindo, a partir das problemáticas trazidas pelo objecto surrealista, derivadas do readymade duchampiano, a matéria obsoleta eleva-se à condição de matéria significante em algumas práticas artísticas, constituindo-se como uma matéria fundamental para a compreensão da experiência contemporânea na sua dimensão histórico-económica em relação ao desenvolvimento tecnológico, como no exemplo do seu uso por Broodthaers. Será através da compreensão da possível valorização significativa de matéria obsoleta, aliando critérios que se retiram da análise clássica marxista do fetichismo mercantil provocado pelo desenvolvimento assimétrico entre as relações sociais e os modos de produção61, que Benjamin irá desenvolver uma proposta literário-filosófica ancorada numa dialéctica da visualidade, no seu projecto (incompleto) Passagen-Werk (1927-1940)62.

1.3. A contra-tendência do uso da tecnologia e técnicas obsoletas nas práticas artísticas contemporâneas

Segundo Hal Foster, no panorama actual assistimos a um crescente privilégio, por parte das instituições que medeiam as práticas artísticas, a obras de arte que pautam pelo uso de novas tecnologias – mais marcadamente nas práticas da performance, vídeo e instalação. Segundo o mesmo autor, esta situação justifica-se porque estas práticas artísticas esteticizam a experiência familiar associada ao capitalismo tardio, em que a cultura dos media em geral, pela força dos efeitos especiais, produz experiências intensas e avassaladoras.63

59 Cf. Leslie, Walter Benjamin: Overpowering Conformism, 209. 60 Cf. Foster et al., Art Since 1900, 596.

61 Cf. Ibid., 268.

62 Cf. Buck-Morss, The Dialectics of Seeing, 6. 63 Cf. Foster et al., Art Since 1900, 778.

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Assim, a partir de meados da década de 90 do século XX, muitas das práticas artísticas contemporâneas, com o auxílio da grande disponibilidade de câmaras digitais e software de edição de imagens, têm tomado uma trajectória que assenta na rearticulação da arte contemporânea em termos cinemáticos. Noutras palavras, desde o seu surgimento que as práticas artísticas de vídeo têm uma propensão para um deslumbramento tecnológico, ou um tipo de misticismo tecnológico, que já teríamos podido reconhecer no cinema – particularmente no de Hollywood – que continua a prosperar através de insistência em formas de mediação cada vez mais elaboradas tecnologicamente por forma a produzir experiências intensas de imediatismo – a projecção como um modo de causar uma identificação psicológica entre a audiência a modelos visuais ou ideias do ego.64

Um exemplo paradigmático desta situação são, por exemplo, as populares instalações de vídeo de Bill Viola, em que o artista procura representar e produzir experiências corporais a partir dos desenvolvimentos das tecnologias de projecção, que transcendem as limitações das dimensões do ecrã, proporcionando aos espectadores experiências imersivas aterradoras em ambientes obscurecidos, pontuados por projecções luminosas de grandes dimensões.65 Neste sentido, B. Viola parece empenhado na desrealização do medium, de modo a provocar a abertura de um espaço psicológico de imediatismo espiritual ou experiência sublime, em que é favorecido o efeito de uma experiência imersiva à luz dos mecanismos desenvolvidos pelo cinema narrativo de Hollywood. Noutras palavras, podemos sugerir que B. Viola reinveste a representação tecnológica com imagens de significado mitológico a partir do propósito da produção de um efeito de transcendência espiritual e, por isto, relegando para segundo plano alguma dimensão mnemónica dos próprios suportes técnicos que utiliza, abdicando, portanto, da capacidade de relembrar ou de reflectir historicamente.

No entanto, também a partir do final da década de 1980 até ao presente podemos por contraste observar a recorrência em algumas práticas artísticas (ainda que minoritária) de um favorecimento de dispositivos tecnológicos obsoletos ou sistemas obsoletos de representação que se baseiam, de alguma maneira, numa “arqueologia” do obsoleto – na contemporaneidade com maior incidência àqueles

64 Cf. Ibid., 699. 65 Cf. Ibid., 699.

(33)

associados aos primórdios do filme – que são articulados como uma contra-tendência ao deslumbramento, ou mitificação tecnológica dos “novos mediums”.

Assim, por um lado, a origem desta contra-tendência está associada a uma exploração das características materiais do medium, como por exemplo, a materialidade do celulóide, o dispositivo técnico da câmara e do projector, ou espaço de projecção, que resultam em reflexões críticas acerca daquilo que é possível ser representado, neste caso, através do filme. Por outro lado, esta contra-tendência também está associada à tentativa de resgate de técnicas e formatos tecnológicos de representação obsoletos, como modo de reactivamento da dimensão mnemónica da arte, a que o obsoleto mais resistentemente manifesta, por via da sua própria condição. Noutras palavras, pela constatação no presente do aparecimento em contínuo de ordens tecnológicas cada vez mais complexas e aparentemente mais avançadas que relegam tecnologias anteriores à obsolescência, rumo à hegemonia do formato digital, assistimos à formação de uma tendência oposta nas práticas artísticas contemporâneas que passa pela problematização da complexidade intrínseca associada à materialidade dos dispositivos e técnicas obsoletos, como modo, por um lado, de entendimento e rearticulação do medium das obras de arte que esses dispositivos e técnicas, presumivelmente ultrapassados, podem comportar e, por outro lado, complementarmente, entendendo essas técnicas ou dispositivos ultrapassados como arquivos de subjectividades e socialidades do passado, capazes de recuperar uma reflexão e crítica históricas por via dessa capacidade mnemónica66. Ainda por outro lado, também podemos sugerir que alguns artistas, herdeiros das investigações modernistas acerca do medium, têm considerado este último como o aspecto artístico mais adequado para lidar com as transformações da experiência e da subjectividade na sociedade contemporânea, onde a experiência é frequentemente conduzida através de dispositivos de imagem, e estamos diante de uma subjetividade que aprendeu não só a sobreviver, mas também a prosperar, através de mudanças tecnológicas abruptas.67

Por último e através, por exemplo, do resgate da película de 16mm no momento da entrada da tecnologia digital nas práticas artísticas podemos compreender, por um lado, de que modo é que a compreensão da tecnologia como teleologicamente associada a uma ideia de “progresso” é reequacionada, ou até mesmo abandonada, por

66 Cf. Ibid., 777. 67 Cf. Ibid., 701-02.

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alguns artistas e, por outro lado, também nos permite reavaliar o valor significativo da matéria obsoleta para o panorama contemporâneo dos mediums artísticos. Será este o cerne da constatação primordial de Rosalind Krauss quando afirma a necessidade de “reinvenção do medium”68 nas práticas artísticas contemporâneas, ressalvando que o retorno a um medium “obsoleto” não significa a ressurreição de uma tradição moribunda, mas pelo contrário e contra-intuitivamente, pode significar a criação de uma nova tradição, através da sua “invenção”. Neste sentido, Krauss afirma que o estágio obsoleto de um suporte tecnológico, em determinadas condições, transforma-se num pré-requisito para o surgimento do novo69.

Concluindo, será esta possibilidade inventiva do surgimento do novo, ancorada, em parte, no passado de determinados sistemas e tecnologias de representação, que nos propomos analisar nesta dissertação, partindo do pensamento de Krauss, que nos fala de uma capacidade imaginativa que se encontra latente e intrinsecamente associada ao suporte técnico de uma prática artística, que se mostra apta a ser recuperada no momento em que a “armadura” da tecnologia cede com a força da sua própria obsolescência.70 Neste sentido, iremos problematizar alguns exemplos de obras dos artistas Stan Douglas, Tacita Dean, e Rodney Graham, que têm mostrado um interesse particular nos primórdios do filme e de outros formatos tecnológicos de representação obsoletos, através da sua manipulação, reconceptualização e resgate artístico. Isto é, estamos interessados em analisar exemplos de obras de arte capazes de se constituir como um arquivo da experiência histórica, comportando-se como um repositório de sensações do passado, fantasias privadas ou esperanças colectivas71 e, assim, com um potencial ainda não esgotado, capaz de rearticular criticamente as condições do presente.

Em suma, servindo-nos das palavras do historiador de arte Benjamin Buchloh (n.1941), estamos convictos que “[. . .] o esforço para reter, ou de reconstruir a

capacidade da memória, de pensar historicamente, é um dos últimos actos capazes de contrariar a implementação quase totalitária das regras universais do consumo [. . .]”72

e, por isto, urge repensar o potencial significativo de que os modos de representação obsoletos podem conter para a promoção e recuperação crítica no presente de

68 Para um maior desenvolvimento acerca desta questão consultar o ponto 2.1 desta dissertação.

69 Cf. Yael Kaduri, The Oxford Handbook of Sound and Image in Western Art (New York: Oxford University

Press, 2016), 407.

70 Cf. Rosalind Krauss, “Reinventing the Medium,” Critical Inquiry 25 (1999): 304. 71 Cf. Foster et al., Art Since 1900, 701.

(35)

experiências sociais e estéticas do passado e, deste modo, contrariar alguma mitificação tecnológica que tem vindo a ser privilegiada institucionalmente nas práticas artísticas contemporâneas.

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