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O coleccionador como figura contígua ao jogador: o exemplo de Section Cinema

6. O Jogo e a “Forma-Jogo” da Technik, a partir da Experiência como Infância

6.2. O coleccionador como figura contígua ao jogador: o exemplo de Section Cinema

A propósito da problemática do jogo como um modo particular de relacionamento com o mundo e os objectos que, através da distorção, fragmentação e miniaturização do passado pela transformação destes em brinquedo, promove um resgate particular da essência histórica contida nos objectos, destacamos o filme de treze minutos em formato de 16mm, Section Cinema (Homage to Marcel

Broodthaers) (2002)301 de Tacita Dean.

Genericamente, este filme, cinematografado na cave em Burgplatz (Düsseldorf) usada por Broodthaers como estúdio e como parte da sétima instalação

Secion Cinéma (1971-1972) do museu ficcional Musée d’art Moderne, Département des Aigles (1968-1972), recupera a inspiração associada aos primórdios do filme,

construindo-se pela acumulação de vistas demoradas e sucessivas de um ambiente desorganizado e improfícuo (diversidade de velhos objectos, antigo mobiliário, inscrições parietais, etc.), impossibilitando o desenvolvimento de narrativas ou de ficções sobre as imagens. Algo que poderíamos associar a uma dimensão alegórica que Owens encontra nas estratégias de acumulação nas práticas artísticas no período pós-guerra, definida por um princípio de amontoamento de fragmentos sem um sentido ou objectivo definido e, portanto, sem a possibilidade de construção narrativa, uma vez que a alegoria desta forma “ [. . .] acrescenta uma leitura paradigmática vertical de correspondências sobre uma cadeia de eventos horizontal ou sintagmática.”302

Dito isto, primeiramente, consideramos fundamental para o entendimento desta obra a constatação de que o filme mostra, não só vistas de um lugar lotado de uma grande disparidade de objectos e inscrições, mas simultânea e principalmente está empenhado em registar imagens ou rastos deixados por Broodthaers aquando da sua intervenção em Séction Cinema303, estabelecendo com esta última uma correlação

301 Ver Anexos, Imagens 19 e 20.

302 Owens, "The Allegorical Impulse,” 1028.

303 Esta instalação consistiu na exposição e organização sistemática, num único local, de um conjunto heterogéneo

e paródico de objectos banais e da projecção de seis filmes de Broodthaers, ambos acompanhados por uma numeração indicativa por inscrições pintadas sobre os objectos e sobre o próprio ecrã de projecção (“Fig.”), gerando um sistema ilógico de classificação dos objectos e figuras projectadas de modo a impossibilitar alguma coerência para a distinção hierárquica entre eles. Isto é, o projecto de Broodthaers em Séction Cinema, não se

significativa. Neste sentido, podemos sugerir que a filmagem de T. Dean, neste filme, funciona como um repositório do descartado, ou do obsoleto, que resulta também de uma acumulação de traços de uma actividade prévia que, ainda que sem os objectos originais, tenta reanimar a sua presença a partir da perspectiva do olhar do presente.304

Para além disto, T. Dean identifica todas as inscrições a estêncil nas paredes deixadas por Broodthaers, incluindo a conhecida inscrição “Fig.” que este atribuiu a diversos objetos comuns e imagens, de modo a estabelecer um princípio de equivalência entre eles, convocando uma aproximação à problemática levantada por Broodthaers, nomeadamente acerca da ideia do coleccionador do século XIX, entendido por Benjamin como o “verdadeiro” coleccionador.

Passando a explicar, por um lado, servindo-nos do pensamento de Krauss, poderíamos explicar a atribuição numerada por figuras aos diversos objectos e formas projectadas em Séction Cinema, como a indicação da redução de todos os objectos a um sistema de pura equivalência, pelo princípio de mercantilização ou de valor de troca, de onde não há forma de escapar, nem através das pretensões da Arte Conceptual de garantia da autonomia das práticas artísticas do mercado305. Mas, por outro lado, e recuperando o mesmo princípio de equivalência (“Fig.”) que encontramos na obra Ma Collection (1971)306, Krauss também nos mostra que, através desta inventariação exaustiva baseada na atribuição de paridade entre diferentes objectos, Broodthaers recupera a ideia do antigo coleccionador do século XIX que acumula objectos, não com o intuito de os exibir ou como o resultado de um impulso consumista mercantil, mas para os ordenar de forma a estabelecer relações de “proximidade” entre eles, através das correspondências possíveis de estabelecer entre os objectos e a recordação, ou memoração, particular do indivíduo que as colecciona e ordena. 307 Então, T. Dean, através da ingressão no passado artístico de Broodthaers, recupera, por um lado, a ideia de coleccionismo como uma “forma de memória prática”308 que opera pela “manifestação de ‘proximidade’”309 entre os objectos e o

desenvolve simplesmente pela apresentação de um conjunto de filmes pré-existentes, pelo contrário está empenhado em indagar acerca de um princípio generativo, ou de um discurso sobre o método para o conhecimento, que desenvolve mais detalhadamente noutra instalação do seu museu ficcional, Musée d’art

Moderne,Département des Aigles, Section des figures (1972). Cf. Jean-Christophe Royoux, Marina Warner and

Germaine Greer. Tacita Dean (London: Phaidon, 2013), 71.

304 Cf. Ibid., 71.

305 Cf. Krauss, “A voyage on the North Sea”, 15.

306 Ver página 26 desta dissertação para uma análise mais detalhada desta obra. 307 Cf. Krauss, “A voyage on the North Sea”, 15,38.

308 Benjamin et al., The Arcades Project, 883. 309 Ibid., 883.

sujeito, em que cada novo objecto coleccionado vem modificar o significado do conjunto a que se acrescenta, mas onde todos os objectos, independentemente da sua origem e utilidade, têm valor significativo. Ainda, por outro lado, T. Dean também retira de Broodthaers um interesse na reanimação de tecnologias e técnicas obsoletas, em que o filme é um instrumento que converte um objecto desactivado e obsoleto do passado numa representação operante no presente.310

Consequentemente e em segundo lugar, em Section Cinema (Homage to

Marcel Broodthaers), T. Dean parte do registo das condições do presente de um local

cuja significância pareceria pertencer ao passado, fazendo uma concatenação de diferentes períodos temporais, por forma a falar-nos do presente através de um desvio alongado sobre o passado.311 Em concreto, a artista faz uso do obsoleto, redimindo-o significativamente pela activação do seu potencial no presente, através da redescoberta e revitalização de convenções, neste caso, assentes no contributo de Broodthaers para as práticas artísticas. Noutras palavras, a problematização da memória como repositório toma também a forma de uma homenagem que está empenhada em possibilitar a construção de uma tradição que, em vez de se afirmar como uma continuidade histórica via um ímpeto nostálgico, pelo contrário, insiste no (re)conhecimento da presença da herança de um espaço cultural ou memorial formado pela actividade artística de Broodthaers, como constituinte de uma parte do todo que nos é dado no presente.312 Deste modo, T. Dean lembra o contributo de Broodthaers, não como um facto histórico localizado e petrificado num passado que terá sido ultrapassado, mas antes como um presente perdurável pelo reconhecimento de um espaço cultural e artístico activo, com implicações potenciais para o entendimento e rearticulação do tempo do “agora”.

Logo, por um lado, o tipo de tradição que T. Dean tenta possibilitar, através da homenagem a Broodthaers, relaciona-se com a possibilidade de construção de um discurso sobre os fenómenos do passado informado pela experiência particular do observador no presente (a história particular de T. Dean, que justifica a escolha de interesse em Broodthaers), capaz de ser transmitida ao colectivo (observadores activos da obra) como um saber, mas não como assentimento num conhecimento categórico e petrificado. Pelo contrário, T. Dean insiste, de algum modo, na dinâmica

310 Cf. Royoux et al., Tacita Dean, 62. 311 Cf. Ibid., 78.

dialéctica que convoca uma memória do passado a partir de uma posição no presente, “ [. . .] escolhendo elementos alegóricos que terão o privilégio de engendrar as coordenadas do mundo que habitamos [. . .] articulando, representando e desenhando, o mais amplamente possível, um mapa para o desdobramento do nosso ‘hoje’ [. . .] estabelecendo pontos cardinais que alcançam diferentes profundidades da história.”313 Por outro lado, e consequentemente, T. Dean escolhe recuperar a memória da Séction

Cinema de Broodthaers, porque também essa obra funciona como um modelo para a

refutação do entendimento de um continuum temporal pelo gesto associado ao coleccionismo ou de acumulação como integrante de uma dimensão alegórica, que está no cerne da actividade artística de T. Dean neste filme.314

Tal como Benjamin entende o coleccionismo, T. Dean produz um filme a partir de uma posição de conhecimento de eventos passados, em que o olhar retrospectivo e o estatuto da memória actuam como uma estratégia para destruir a continuidade histórica, pela reconstrução de histórias, ou memórias colectivas, sugerindo uma relação criativa entre gerações e o seus desejos e investimentos artísticos e conceptuais. 315

Em terceiro lugar, à semelhança de outras obras de T. Dean316, Section

Cinema (Homage to Marcel Broodthaers) pode inserir-se na estratégia da artista em

problematizar a qualidade da memória como um repositório, em que o filme, neste caso, funciona como um arquivo de imagens amontoadas de fragmentos descartados e obsoletos, que podem despontar de uma só vez esse condensado do passado, mediante uma atitude de curiosidade e de oportunidade no presente317. Neste sentido, por um lado, a oportunidade estará associada a uma ordenação e acesso de um conjunto determinado de condições materiais e históricas que, por via da sua condição, será sempre imprevisível e, portanto, dependente da perspicácia do agente histórico para a compreender e accionar o seu potencial significativo. Por outro lado, o tipo de curiosidade que poderíamos atribuir ao tipo de manipulação que T. Dean faz do obsoleto é aquela que se associaria à do coleccionador, isto é, alguém empenhado em resgatar fragmentos do passado em declínio, ordenando-o em seguida mediante as

313 Ibid., 95. 314 Cf. Ibid., 79.

315 Cf. Esther Leslie, “Telescoping the Microscopic Object: Walter Benjamin, the Collector,” in De-, Dis-, Ex-, no.

3 (Março 1999): 79.

316 Atentar, por exemplo, ao filme Girl Stowaway (1994) ou ao livro de artista Floh (2001). 317 Cf. Royoux et al., Tacita Dean, 71.

condições próprias do presente, jogando, pois, com a alternação entre o entendimento temporal sincrónico (estrutural) e a diacrónico (particular) associado aos objectos.

Por último, nesta obra fica claro de que modo o coleccionador surge como a figura contígua à do jogador, uma vez que T. Dean joga com vistas da cave usada por Broodthaers, transformando os objectos e as inscrições que lá encontra naquilo que definiríamos como um brinquedo, na perspectiva de Agamben. Isto é, através do filme, T. Dean brinca com a “fragmentaridade” que está contida sob a forma temporal nos objectos, ou nos conjuntos estruturais dos quais fazem parte318, que escolhe acumular, rompendo com a conexão entre passado e presente – que se presumiria, se admitíssemos a pertença indubitável desses fragmentos a um conjunto estrutural ou sincrónico, como, por exemplo, o contributo exclusivamente localizado no passado de Broodthaers, ou a obsolescência irredimível dos objectos capturados pela câmara de filmar, num continuum historicista respectivamente, das práticas artísticas e de um progressivo desenvolvimento técnico e tecnológico. Pela sugestão da reanimação desses antigos fragmentos no presente, rumo à constituição de uma tradição que prossegue em articulação com a experiência particular (memória da artista – sentido diacrónico) dirigida ao colectivo (observadores activos, pela lembrança, articulação e reactivação de um momento passado através do filme), T. Dean faz uso do filme para transformar os antigos significados e significantes sincrónicos em diacrónicos, e vice- versa. Noutras palavras, T. Dean, pela transformação em brinquedo que opera nos objectos e fragmentos que escolhe filmar, consegue conservar a temporalidade contida nestes, do modo particular que nos falava Agamben, tornando tangível o resíduo temporal entre o “uma vez” e “agora não mais”.319

Se admitirmos que este filme resulta, por um lado, pela “aproximação” de ímpeto coleccionista entre os objectos e a feitura do momento presente e, por outro lado, da oposição entre o entendimento das tendências diacrónicas e sincrónicas que as sociedades humanas produzem incessantemente (oposição entre jogo e ritual), que se articula mediante o resgate e interesse em técnicas e formas obsoletas, rumo à constituição activa de uma experiência capaz de originar uma nova tradição a ser compartilhada, poderíamos em última análise afirmar que, em Section Cinema

(Homage to Marcel Broodthaers), T. Dean brinca, afinal, com a própria história.

318 Cf. Agamben, Infância e História, 87. 319 Cf. Ibid., 87.

6.3. O apelo à experiência como infância e ao jogo, a partir de uma