SOMBRAS DA IMPUTABILIDADE: AS FRONTEIRAS, O
VENTO E A PROCURA DO SENTIDO
Daniela de Freitas Marques'
SUMÁRIO: 1. O “Pássaro Pintado" 2. A peleja entre a
Medicina e o Direito: as fronteiras do “normal” e do
“patológico" 3. A emoção e a paixão: o que o vento leva
4. A embriaguez: a “procura tem sempre mais sentido
que a renúncia” 5. Conclusão 6. Referências Bibliográficas
PALAVRAS-CHAVE: imputabilidade; escola antropológica; medicalização
da pena de morte; determinismo neurogenético; emoção; paixão;
embriaguez.
RESUMO
Aborda a imputabilidade como uma espécie de rótulo atribuído
aqueles que, à semelhança do “pássaro pintado”, responderão pela prática
da conduta criminosa. Nesse particular, as fronteiras entre o saber jurídico
e o saber médico não estão restritas ao século XIX. Ao contrário, na
primazia da biologia, no “determinismo neurogenético” e na pena de morte
“medicalizada”, a velha cantilena revestida de nova roupagem sempre
traz a possibilidade de repetição. Igualmente, a literatura e o sistema
jurídico-penal permitem a convergência das diatribes em relação à
criminalidade passional e à embriaguez voluntária e culposa.
ABSTRACT
It approaches the imputability as specie of label attributed to those
that, like the “painted bird will respond for the practice one its criminal
behavior. In this particular case, the borders between legal knowing and
medicine knowing are not restricted to century XIX. Equally, literature
* Professora Adjunta de Direito Processual Penal da Faculdade Direito da UFMG. Mestra em Direito Penal/UFMG.
Doutora em Direito Penal/UFMG. Juíza-Auditora da Polícia Militar de Minas Gerais.
Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais
and the legal-criminal system allow the convergence of diatribes related
to passion crime and the voluntary and guilty drunkenness.
1
.”Um dia, (Lekh) caçou um corvo grande; pintou as suas asas com tinta
vermelha, o peito com verde e a cauda com azul. Quando um bando de
corvos apareceu sobre nossa cabana, Lekh soltou o pássaro pintado.
Logo que este se juntou ao bando, a batalha começou. Foi atacado por
todos os lados. Penas negras, vermelhas, verdes e azuis começaram a
cair aos nossos pés. Os pássaros voavam enfurecidos nos céus, e
repentinamente o corvo pintado caiu ao solo arado. Ainda estava vivo,
abria o bico e fazia uma tentativa inútil para mover as asas. Seus olhos
tinham sido arrancados, e o sangue quente corria por suas penas pintadas.
Fez ainda uma tentativa para levantar vôo da terra pegajosa, mas já não
tinha forças para isso
.”1
À semelhança do
pássaro pintado,
destruído pela sua
não
conformidade
,2
a paleta de cores atribuída à pessoa humana, tornando-a
delinqüente, louca
ou
menor,
sintetiza-se no conceito de imputabilidade.
A imputabilidade é a
capacidade em
Direito Penal ou, ao menos,
“a capacidade de culpa, constituindo, a rigor,
pressuposto e
não elemento
1 0 te x to é de Jerzy Kosinski n o livro O Pássaro Pintado. C f. S Z A SZ , T h om as. A fabricação da loucura. R io d e Janeiro: Zahar Editores, 1976. p. 330.
2 “A s m aio rias u su alm en te c lassificam as p e sso a s o u g rup o s c o m o ‘d iv erg e n tes’ a fim d e co lo cá-lo s à parte, co m o seres inferiores, e para justificar seu con trole social, su a o pressão, p erseguição ou a té d estru ição com pleta.
É bom lem brar qu e os p apéis sã o artefatos sociais. A divergência n o papel, por isso, s ó tem sen tido n o co n te x to d e leis e costum es sociais específicos. O delinqüen te é divergente porque d esobedece à lei; o hom ossexual porque quase todos são h eterossexuais; o ateu p orque a m aioria acred ita, o u diz acreditar, em D eu s. E m bora o afastam e n to com relação a um a norm a estatística de c om portam en to seja um critério im portante d e divergência social, n ão é o único. U m a pessoa pode ser co n sid erad a d ivergente apen as porqu e su a co n d u ta difere de um a n orm a socialm en te aceita, m as tam bém porque difere de um ideal m oralm en te aceito. A ssim , em b ora um c a sa m e n to feliz seja p rovavelm en te e x c e ç ã o e n ão regra, a pessoa solteira o u infeliz n o casam en to é m uitas vezes con sid erad a psicologicam ente anorm al e socialm ente divergente. H á tem pos atrás, qu an d o a m astu rb ação era indiscutivelm ente tã o freqüente q u a n to hoje, o s psiquiatras con sideravam essa p rática com o um sin tom a e c a u sa d e in san id ad e.
Portanto, a divergência social é um term o que abrange um a vasta categoria. Q u e tipos de divergência social são consideradas co m o d o en ças m en tais? A resposta é q u e sã o aqueles que provocam um a c o n d u ta p essoal que n ão e stá de a co rd o com regras de saú de m ental psiquiatricam en te definidas e im postas. S e a recu sa de n arcóticos é u m a regra de saú de m ental, a in gestão de n arcóticos será um sinal de d o en ça m en tal; se a co n d u ta ca lm a é um a regra de saú de m en tal, a d epressão e a e x c ita ç ã o serão sin ais de d o en ça m en tal, e assim por dian te.
Por m ais evidente que isso possa parecer, e m grande parte n ão são av aliad as su a s con seqüên cias para n ossa com preensão da doen ça m ental e d a Psiquiatria Institucional. O fato é que, ca d a vez que o s psiquiatras criam um a n ova regra de saúde m ental, criam um a n ova classe de indivíduos m entalm ente d oen tes - assim , cad a vez qu e os legisladores prom ulgam um a n o v a lei restritiva, criam um a n ova ca te g o ria de d e lin q ü e n tes." C f. S Z A S Z , T h o m a s. A fabricação da loucura. R io de Janeiro: Zahar Editores, 1976.p. 26/7.
Daniela de Freitas Marques
da culpabilidade
”.3
Giuseppe Maggiore4ilustra que ninguém poderá ser
culpável, se não for imputável, ou seja, se não possuir um mínimo de
condições psíquicas e físicas em virtude das quais lhe possa ser atribuída
a prática da conduta criminosa. De forma mais sucinta, Roberto Lyra,
diz que “imputável é o homem normalmente desenvolvido e mentalmente
são
.”5
A responsabilidade penal, por sua vez, deriva da imputabilidade.
Dito de outra forma, o fundamento da imputabilidade é o
critério
biopsicológico normativo
, enquanto a responsabilidade é a síntese das
valorações provenientes da imputabilidade
.6
A imputabilidade
7
é o limite entre a visão jurídica e a visão médica
acerca da conduta humana e do contexto social em que ela se manifesta,
refletindo sistemas de valores diametralmente opostos mas, ao mesmo
tempo, singularmente semelhantes.
3 F R A G O S O , H e le n o C lá u d io . Lições de Direito Penal. A n ova P arte G eral. 12.ed . R io de Jan eiro: Forense, 1990. p. 197. “A im p u tab ilid ad e é a c o n d iç ã o p e sso a l de m atu rid a d e e s a n id a d e m en tal q u e con fere a o a g e n te a c a p a c id a d e de e n te n d e r o c a rá te r ilíc ito d o fa to o u d e se d e te rm in a r se g u n d o e sse e n te n d im e n to ."
4 M A G G IO R E , G iu sep pe. Derecho Penal. B o go tá: Tèm is, 1951. p.479.
5 L Y R A , R o b e rto . A expressão m ais simples do Direito. R io d e Ja n e iro : F o ren se, 19— . passim .
O C ó d igo P en al brasileiro n ão co n ce itu a a im putabilidade penal, a o contrário, ela é apresen tad a e m term os negativos, co n fo rm e o d isp o sto n o a rtig o 26, m verbis: “E isen to de pen a o agen te qu e, por d o e n ça m en tal o u d ese n v o lv im e n to m en tal in c o m p le to o u re ta rd a d o , e ra, a o te m p o d a a ç ã o o u o m issã o , in teira m e n te in cap a z d e e n te n d e r o c a rá te r ilíc ito d o fa to o u d e d e te r m in a r- se d e a c o rd o co m e sse e n te n d im e n to .” P or su a vez, o a rtig o 27 d isp õ e q u e “O s m en o res de 18 (dezoito) a n o s s ã o p e n a lm en te in im p u táveis, fica n d o su jeito s às n orm as e sta b e le c id a s n a le g islaçã o e sp e c ia l.”
O C ó d ig o P en al esp an h o l, d e 1995, em re la ç ã o à id ad e penal d isp õe em seu a rtigo 19: “Los menores de dieciocho anos no serán responsables criminalmente com arreglo a este Código.
C u a n d o um m en or d e d ic h a e d a d c o m e ta un h e ch o d elictiv o p o d rá se r resp o n sa b le com a rre g lo a lo d isp u e sto en la ley q u e regu le la re sp o n sa b ilid a d p e n a l d ei m en or."
O a rtig o 2 0 d o C ó d ig o P en al e sp a n h o l p a d e c e de algu m as falh as té cn ica s, c o m o é o c a so d a p rev isã o d e ise n ç ã o de resp on sabilid ade crim inal para aq u e le qu e atue em legítim a d efesa, em e sta d o de n ecessid ad e, por m ed o in su perável, n o cu m p rim e n to d e um d e v e r o u n o e x e rcíc io legítim o d e um d ireito, o fício o u cargo. A ssim , d isp õ e o artigo 2 0 , in verbis: “ Están exentos de responsabdidad criminal:
1. El q u e al tie m p o d e c o m e te r la in fracció n p e n al, a c a u sa de c u alq u ie r a n o m alia o a ltera ció n p síq u ica, n o p u eda c o m p re n d e r la ilic itu d d e i h e c h o o a c tu a r co n fo rm e a e sa co m p re n sió n .
El trasto rn o m en tal tran sito rio n o exim irá de pen a cu a n d o hu biese sid o p ro v o cad o por el s u je to co n el p ro p ó sito d e c o m e te r el d e lito o h u b ie ra p re v isto o d eb id o p ro v er su com isión .
2. El qu e al tiem po d e c o m ete r la in fracción pen al se h alle en e sta d o de in toxicación plena por el co n su m o de bebid as a lc o h ó lic a s, d ro g a s tó x ic a s, e stu p e fa c ie n te s, su sta n c ia s p sic o tró p ic a s u o tr a s q u e p ro d u ze an e fe c to s a n á lo g o s, sie m p re q u e n o h ay a s id o b u s c a d o c o n el p r o p ó sito d e c o m e te r ia o n o se h u b ie se p re v isto o d e b id o p r e v e r su c o m isió n , o se h a lle b a jo la in flu e n c ia d e un sín d ro m e d e a b stin ê n c ia , a c a u s a d e su d e p e n d e n c ia d e ta le s su s ta n c ia s , q u e le im p id a c o m p re n d e r la ilicitu d d ei h e ch o o a c tu a r co n fo rm e a e sa c o m p re n sió n .
3 .El q u e, por sufrir a ltera cio n e s en la p ercep ción d esde el n acim ien to o d esd e la infancia, ten ga altera d a gravem en te la c o n cie n c ia d e la re a lid a d . ( .. .) ”
6 C f. L E IR IA , A n tô n io F ab rício . Fundam entos d a Responsabilidade Penal. R io d e Ja n e iro : F oren se, 1980. p. 170. 7 0 e n fo q u e d a im p u tab ilid ad e e m re la ç ã o à id ad e, e sta b e le c id o d e form a ab so lu ta n o C ó d ig o P en al b rasile iro , n ã o
é o o b je tiv o d o p rese n te a rtig o . O s m en o res d e 18 (dezoito) an o s s ã o p e n alm en te in im p u táveis, e sta n d o su je ito s às
Revista da Faculdade de Direito da U niversidade Federal de M inas G erais
A visão jurídica e a visão médica são semelhantes no que diz
respeito à indesejabilidade atribuída aos “delinqüentes”, aos “loucos” ou
aos “loucos delinqüentes”, à não compreensão da conduta por eles
praticada ou da conduta de vida por eles experimentada e, finalmente, à
especial repugnância despertada por certos atos ou condutas por eles
praticados.
Por certo, a indesejabilidade faz-se presente, v.g, nas situações
como aquelas relativas à origem, à religião, às doenças, ou seja, a
diferença é o sinete da perseguição religiosa, jurídica ou médica.
Neste particular, a perseguição aos judeus é um dos pecados
capitais da dita cristandade. Em 1215, em Roma, “Por ordem do Concílio
de Latrão, os judeus não podiam ter emprego público nem criados cristãos.
Não podiam cobrar taxas altas de juros para empréstimo de dinheiro, e
os cruzados foram liberados de todos os pagamentos. Foram indicados
severos castigos para os convertidos que fossem negligentes em sua
nova fé (...) Foi decretado que todos os judeus deviam ter uma roupa
especial ou uma faixa especial para distingui-los de outros homens.”8
Alguns séculos mais tarde, em 1543, “Martinho Lutero publica seu panfleto
anti-sem ita, Dos ju d e u s e Suas M entiras. A cusa os ju d e us de
envenenarem fontes e assassinarem crianças cristãs, e pede que os
príncipes destruam as sinagogas judaicas e confisquem as propriedades
dos judeus. Num de seus últimos sermões, denuncia os médicos judeus
por ‘conhecimento da arte de envenenar’ seus pacientes e conclui com a
advertência: ‘Finalmente, como concidadão, digo que, se os judeus se
recusarem à conversão, não devemos suportá-los ou admiti-los por mais
normas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90). N a verdade, assiste razão a Heleno Cláudio Fragoso, ao dizer que os menores de 18 anos não estão sujeitos ao Direito Penal e, portanto, não são autores de crimes.
No entanto, a fronteira entre o discurso jurídico e o discurso médico é igualmente fraca. “Observamos uma fronteira tênue entre a fala de advogados e psiquiatras, como observa Foucault, na medida em que nos meandros das práticas discursivas destes grupos ‘formou-se a noção de indivíduo perigoso, permitindo estabelecer uma rede de causalidade na escala de uma biografia inteira e, por conseguinte, estabelecendo um veredicto de punição e correção’. (...) Pelo uso de adjetivos imputados aos menores como, por exemplo, ‘pequenos delinqüentes, desajustados, pequenos monstros , observamos como o discurso constrói a imagem do infrator como elem ento de alta periculosidade. O restante da sociedade aparece im potente diante de tal situ ação. Temos a verticalização da prática discursiva exigindo uma postura dos órgãos competentes, isto é, de se criar estabelecimentos de reeducação para interná-los.” Cf. RODRIGUES, Gutemberg Alexandrino. Os Filhos do Mundo. A face oculta da menoridade (1964-1979). São Paulo: IBCCRIM, 2001. p. 149/150.
8 SZASZ, Thomas. A fabricação da loucura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.p. 332.
D aniela de Freitas M arques
tem po.’”9 Em 1650, em W ürttemberg, o clero, em sinal de protesto pela
concessão de alguns privilégios a médicos judeus, diz “seria melhor morrer
com Cristo do que ser curado por um judeu auxiliado pelo Demônio.”10 O
transcurso dos séculos não afasta a indesejabilidade dos judeus, em
1841, ilustra “Dom Guéranger: ‘O espetáculo de todo um povo colocado
sob maldição por ter crucificado o Filho de Deus dá o que pensar aos
cristãos (...) Este imenso castigo por um crime infinito deve continuar
até o fim do mundo.’”11
Em 1925, Adolf Hitler publica Mein Kampf, na qual associa aos
judeus aspectos físicos repulsivos, acrescentando que “tudo isso
dificilmente seria atraente, mas se tornava positivamente repulsivo quando
se descobria, além de sua sujeira física, as manchas morais desse ‘povo
eleito’ (...) “12 Em 1933, Louis Thomas McFadden afirmava não existir
perseguição real aos judeus na Alemanha, ao contrário, a perseguição
seria unicamente aos “judeus comunistas”.'3 Na própria Alemanha, Victor
Klemperer, registrava em seus diários, no dia 31 de março de 1933, sexta-
feira à noite: “Cada dia mais desolado. Amanhã começa o boicote.
Cartazes amarelos, homens da guarda. Coação para pagar dois meses
de salário aos funcionários cristãos, demitir os judeus. Nenhuma resposta
à carta consternadora dos judeus, dirigida ao presidente do Reich e ao
governo. Assassina-se friamente ou ‘lentamente’. Não se fará ‘mal algum’
- apenas deixa-se morrer de fome. Se não maltrato meus gatos, apenas
deixo de dar-lhes de comer, estarei então maltratando os animais?
Ninguém tem coragem de tom ar a dianteira. O grêmio estudantil de
Dresden fez hoje uma declaração: Unidos por trás... e relacionar-se com
judeus é contra a honra dos estudantes alemães. Fica proibida a entrada
de judeus na Casa dos Estudantes. Quanto dinheiro judeu foi para essa
casa, há tão poucos anos!
Em Munique, professores universitários judeus já foram impedidos
de pôr o pé na universidade.
9 SZASZ, Thomas. A fabricação da loucura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.p. 334/5. 10 SZASZ, Thomas. A fabricação da bucura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.p. 338. 11 SZASZ, Thomas. A fabricação da loucura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976-p. 345. 12 SZASZ, Thom as. A fabricação da loucura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.p. 355. 13 SZASZ, Thom as. A fabricação da loucura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.p. 356.
R evista da Facu ldade de D ireito da U niversidade Federal de M inas G erais
A proclamação e apelo do comitê para o boicote determina: ‘religião
é indiferente’, só a raça importa. No caso dos donos de lojas, se o homem
é judeu e a mulher cristã, ou vice-versa, a loja é considerada judia.”14
Nos anos subseqüentes, na Alemanha, são elaboradas várias leis
legitimadoras do ódio e da perseguição impostos aos judeus, como as
Leis de Nurem berg.
Anos mais tarde, em 1961, George Lincoln Rockwell, comandante
do Partido Nazista Americano, disse:” ‘A resposta espantosa ao enigma
judaico é que os judeus são loucos. Como raça, os judeus são paranóides.
Esse povo doente precisa ser detido antes de carregar o mundo com
ele.’ Em 1965, Rockwell desenvolveu sua tese da seguinte maneira: ‘
[Os judeus] constituem um povo único, que se distingue do resto da
Família Branca de Pessoas. As massas judaicas sofrem de sintomas de
paranóia: delírios de grandeza, delírios de perseguição. Os judeus
acreditam que são o ‘povo escolhido’ de Deus, e eternamente se queixam
de ‘perseguição’
Como se vê, a gradativa perseguição aos “não escolhidos” inicia-
se por um discurso religioso ou pseudo-religioso, no qual há a associação
das pessoas a cultos demoníacos ou mesmo à figura do próprio demônio.
Posteriormente, a identificação associa-se aos estigmas morais ou aos
estigm as físicos, tornando os “não escolhidos” repulsivos moral e
fisicam ente.16 Por fim, mas não por último, a repulsa moral e física pode
encontrara justificativa no discurso pseudo-científico da “loucura".
14 K L E M P E R E R , Victor. O s D iários de Victor Klemperer. T estem unho clan d estin o de um ju deu na A lem an h a N azista. Trad. Irene A ron . S ã o Paulo: C o m p an h ia de Letras, 1999. p. 18/9.
15 SZ A S Z , T h o m as. A fabricação da loucura. R io d e Jan eiro: Z ah ar Editores, 1976.p. 361.
16 O estereótipo das m anchas m orais ou da fealdade física faz-se presente, por exem plo, n a relação colonizador/colonizado, com o bem se vê n a lição de Zaffaroni:
"A feiúra e a m aldade sem pre an dam ju n ta s. O s valores negativos ou d esvalores e stético e ético tendem a coincidir. N a F ran ç a, a o rd e n a ç ã o d e L o ren a (art. 13 d o T ít u lo 10°) d isp u n h a q u e o s Ju izes d ev eriam d ar p referên cia, na to rtu ra, às p e sso a s ‘ro b u sta s e d e c o n d iç ã o v il’. N a s raras o c a siõ e s em q ue o m au se a sso c ia a o b elo , a c a b a -se d escob rin d o que, na realid ad e, se trata d e um a beleza falsa ou ap aren te , algo d iab ólica, assim co m o a de D orian , cuja m aldade se escond ia n o retrato, seu verdadeiro rosto, n o só tão (na c a sa d o son h o de Ju n g, cm sua autobiografia, o só tão ex u ltava o inconsciente coletivo).
Isto n os perm ite explicar algum as d as “in ten çõ es gen iais" artísticas, que im pressionavam os p ositivistas: os artistas alim entavam os valores estéticos e seu s o p ostos (os d esv alo res). O estereótipo crim inal se alim enta de preconceitos e v a lo re s d e to d a ordem , m a s e sp e c ia lm e n te d e v a lo re s e sté tic o s v in c u la d o s a c la sse e e tn ia , o u se ja , v alo res etnocentristas.
B asta percorrer o ‘A tlas’ de Lom broso para se p erceber a enorm e feiúra d as fisionom ias d as p essoas. S u a s descrições físicas são de ‘gente feia’: hom ens com prognatism o acentuado, orelhudos, olhos p equenos e fundos, excessivam ente
D an iela de Freitas M arques
Também a não compreensão da conduta praticada ou da conduta
de vida experim entada
constitui outro pretexto para a perseguição, como
é o caso de certas práticas sexuais17 e da orientação sexual. O
homossexualismo visto ora como crime, ora como forma de perversão é
exemplo dos mais notórios.18 Em 1895, Oscar Wilde, acusado da prática
de crimes de natureza sexual, foi condenado a 2 (dois) anos de prisão
com trabalhos forçados. No De Profundis, a longa carta endereçada a
Lord Alfred Douglas, em profunda e decantada melancolia, Oscar Wilde
tece considerações a respeito da vida na prisão: “A vida na prisão, com
suas privações e limitações contínuas nos torna rebeldes. Pois o mais
terrível não é que ela consiga partir nossos corações - os corações foram
feitos para serem partidos - mas que os transforme em pedra. Às vezes
sentimos que só com muito descaramento e insolência conseguiremos
suportar mais um dia. E todo aquele que vive em estado de rebelião não
pode receber a graça - para usar um termo que tanto agrada à Igreja, e
com razão, atrevo-me a dizê-lo - pois na arte, tanto quanto na vida, o
espírito de revolta fecha os canais da alma e impede a entrada dos ares
celestiais.”19 Por outro lado, em 1952, nos Estados Unidos, o Congresso
“prom ulga a Lei M cCarran que, entre outras coisas, diz que ‘os
estrangeiros que tenham: a) personalidade psicopática não devem ser
adm itidos nos Estados U nidos’. A partir de então, os im igrantes
homossexuais são imediatamente classificados como 'personalidades
p róxim os ou d ista n te s d o nariz, assim e trias fac iais grosseiras, m icrocefalia, te sta estreita, m ulheres e stráb ic as, b arb ad as etc.
C r e io q u e n in g u ém d u v id a d e q u e to d a s e ssa s p e sso a s eram ‘n atu ralm e n te su sp e ita s’ p ara a p o lícia da ép o ca lom brosiana e, por isso m esm o, n ã o p arece possível que pudessem andar à von tade pelas ruas de qu alq u er cidade europ éia, p articu larm en te à n oite.
M as, por que são ‘feias’ ? D e on de saem os valores estéticos d o estereótipo crim inal lom brosiano?
N ã o é preciso m uita perspicácia p ara se dar con ta de que tan to o valor com o o desvalor e stético s sã o um produto de etnocentrism o: o indo é o europeu; o feio é o colonizado. índios e negros são ‘feios’. S c exercem atração erótica, esta é d iabólica, m aligna: a M alin ch e ‘sedu z’ C ortés, a ponto de ele en ven en ar sua m ulher espanhola, q u an d o e sta tem a infeliz idéia de vir ao M éx ic o (tam bém n a ‘visão d os ven cidos’ essa relaç ão é m aligna, porque a M alin ch e - que n ã o é ‘fo rç ad a’, m as sim se e n trega ao co n q u istad o r - é um a traidora de sua n a ç ã o ).’’ C f. Z A F F A R O N I, E u gên io Raúl. “Tènda dos Milagres'' ou A Denúncia do “Apartheid" Crimhwlógico. In: T U B E N C H L A K , Jam es e B U S T A M A N T E , R icard o S ilv a. L iv ro de E stu d o s Ju ríd ico s. R io d e Jan eiro: In stituto de E stu d os Ju ríd icos, 1991. p .4 5 0 /1 .
17 A m asturbação é o ex em p lo clássic o d a clínica psiquiátrica.
18 L eonídio Ribeiro, em 1957, escrevia a respeito d o h om ossexualism o: “A s p ráticas de hom ossexualism o n ão p odiam continuar a ser con sideradas, a o acaso, com o pecado, vício ou crime, desde q ue se dem onstrou tratar-se, em grande n úm ero de ca so s, d e in d iv íd u o s d o e n te s o u anorm ais, que n ão deviam ser ca stig ad o s, porque ca recia m , an te s de tudo, d e tratam en tt>e assistên c ia m édico-social.
A m edicina havia libertado os loucos d as prisões. U m a vez m ais, iria salvar d a h um ilh ação êsses p obres indivíduos, m uitos d êles v ítim as d e ta ra s e an o m a lias p elas qu ais n ão d eviam nem p od iam ser p unidos, p ela so c ied ad e. C f. R IB E IR O , Leon ídio. Criminologia. R io d e Jan eiro : Livraria Freitas B astos, 1957. p.65.
19 W IL D E , O scar. A alm a do Homem sob o socialismo & Escritos do Cárcere. P orto A legre: L 0!P M , 1996. p. 115.
R e v ista d a F a c u ld a d e d e D ire ito d a U n iv e rsid a d e F ed e ral d e M in a s G e rais
psico p ática s’, e, se entraram no país depois da prom ulgação da lei, são
deportados.”20
Por fim , a
especial repugnância despertada por certos atos ou
condutas praticados,
21 com o são os casos dos crim es reveladores de
um a especial insen sib ilid a d e ou im piedade em relação às vítim as, os
quais atendem mais profundam ente à explicação do “louco delinqüente” .
N este particular, não se ria incorreto dize r que “os alie n ista s foram
cham ados pelos trib u n a is para desvendar o ‘e n ig m a ’ que certos crim es
lhes apresentavam . Para C astel, essa prim eira ‘sa íd a ’ dos alienistas
resultou ‘...na sua im posição com o peça indispensável ao funcionam ento
do aparelho ju d iciá rio .’ (C ASTEL, 1978:169).”22
Ora, em um a sociedade laicizada, racionalizada e desencantada,
a velha argum entação em torno da existência do mal é substituída pela
argum entação científica. A ciência prefere à religião.23 Isto porque, “os
crim es que clam am pelas considerações m édicas parecem possuir uma
outra estru tu ra , pois dizem respeito, p rim o rd ia lm e n te , à subversão
escandalosa de valores tão básicos que se pretende estejam enraizados
na própria ‘natureza hum ana’ - am or filial, am or m aterno ou piedade frente
à dor e ao sofrim ento hum ano. Desta m aneira, não é surpreendente que
tais subversões, tão radicais e escandalosas, coloquem em questão a
própria “hum anidade” de parricidas, infanticidas, assassinos cruéis, sendo
m ais bem interpretadas no contexto das selvagerias da natureza, mais
afeitas, portanto, à abordagem das ciências biológicas ou naturais.”24
A penas para exem plificar, cite-se o caso brasileiro de
Febrônio
índio do Brasil,
prim eiro interno no Manicôm io Judiciário do Rio de Janeiro.
“ E ste jovem m ulato foi preso em 1927, acusado de ter m atado jovens
20 S Z A SZ , T h om as. A fabricação da loucura. R io de Jan eiro: Z ahar Editores, 1976.p. 360.2 1 Sérgio C arrara destaca, ao final d o sécu lo X IX , o crescente interesse pelos crim es, devido ao aum en to significativo d o n ú m ero de crim es n as g ra n d e s m e tró p o les. N a In glaterra v itoria n a , a p e n a s para citar um ex em plo, Jack , o estripador, zom bava da polícia b ritânica. Cf. C A R R A R A , Sérgio. Crime e Loucura - o aparecim ento d o m anicôm io ju diciário na passagem d o século. R io de Jan eiro : EdU ER J, 1998. p.62.
22 Apud C A R R A R A , Sérgio. Crime e Loucura - o aparecim ento d o m anicôm io ju diciário na passagem do sécu lo. Rio de Jan eiro: EdU ERJ, 1998. p.62.
23 “Se outrora eram os xam ãs e curandeiros os responsáveis pelo exterm ínio de todos os sofrimentos, hoje sã o os biólogos m oleculares e os geneticistas; e a im ortalid ade n ão é m ais assu n to para sacerdotes, e sim para p esq u isadores." Cf. EN Z EN SBER G ER , H. M. G olpistas no laboratório. A ressureição triunfal da crença no progresso nas ciências. Folha de S ã o Paulo. D om ingo, 9 de setem bro de 2001. Mais! p .24.
24 C A R R A R A , Sérgio. Crime e L oucura - o a p arecim en to d o m anicôm io ju d iciário n a passagem d o sécu lo. R io de Jan eiro: EdU ERJ, 1998. p.71.
Daniela de Freitas Marques
rapazes nos arrabaldes do Rio de Janeiro, após atraí-los com pequenos
presentes e m irabolantes profecias, publicadas num livro cham ado
As
Revelações do Príncipe do Fogo,
tatuar os seus corpos com hieróglifos
m ís tic o s e s e d u z i-lo s s e x u a lm e n te . O s a d v o g a d o s de F e b rô n io
a rgum entaram , com o apoio de diversos laudos psiquiátricos, que ele
era um “louco m oral” e, portanto, não responsável por seus atos. Com o
resultado, Febrônio foi internado no recém-construído Manicômio Judiciário
sob um a ‘m edida de segurança’ que, apesar de m uitos apelos, nunca foi
revogada.”25
A ssim , a im putabilidade, ao m enos desde o final do século XIX,
delim ita as fronteiras entre a reflexão jurídica e a reflexão m édica. A quele
que tem
capacidade de culpa,
ao com eter o crim e, está circunscrito ao
cam po jurídico de atuação; aquele que é
louco, doente mental
está
circunscrito ao cam po m édico de atuação e, o m enos feliz dos destinos,
à sem elhança do suplício deT ântalo,26 incumbe ao
louco criminoso
sujeito
a conciliação entre o cam po jurídico e o cam po m édico de atuação. As
e s fe ra s ju ríd ic a e m é d ic a de re fle x ã o e a tu a ç ã o , in ic ia lm e n te ,
com plem entares, vão, no final do século XIX, se esfacelando,27 com o o
com prova o exem plo trazido à colação,
“Em 1902, uma estranha peça médico-policial,
UEnquête
(A
investigação), atraiu ao teatro Antoine os parisienses ávidos de
sensações fortes, antes de alcançar o mesmo sucesso em
25 A c ita ç ã o é da a p re se n tação de Peter Fry ao livro de Sérgio C arrara. C f. C A R R A R A , Sérgio. Crime e L oucura - oaparecim en to do m anicôm io judiciário n a passagem d o século. R io de Jan eiro: EdU ER J, 1998. p. 16.
26 “T â n ta lo , de pé d en tro de um a lagoa, com o q ueixo ao nível de água, sentia, n o en tan to, uma sede devo radora, e n ã o en con trava m eios de saciá-la, pois, q uando abaixava a cabeça, a água fugia, deixan do o terreno sob os seus pés in teiram en te seco. Frondosas árvores carregadas de frutos, peras, rom ãs, m açãs e apetitosos figos ab aixavam seus galhos, mas, quando ele tentava agarrá-los, o vento em purrava os galhos para fora de seu alcan ce.” C f. B U L F IN C H , T h o m as. O Livro de O uro da Mitologia. H istórias de D eu ses e Heróis. 1 l.ed . R io de Jan eiro: Ediouro, 2000. p .3 2 1. 27 “A ên fase da reflexão sobre o crim e n o período considerado recai n o reconhecim ento de que crimes, revoluções ou
rebeliões seriam conseqüência ou m anifestação de uma desigualdade natural existente entre os homens. A o consagrar porém a igualdade jurídica e a liberdade individual, a ordem liberal se mostrava incapaz deadm inistrar tais diferenças co n cre tas. C u m pria en tã o reform ar códigos e leis para assen tar as b ases jurídico-políticas de um a am pla reform a in stitu cion al que fornecesse a o E stad o e às su as organizações os in strum entos necessários para um a in terven ção social m ais in cisiva e eficaz. Para que tal in tervenção fosse possível e conseguisse atingir o s indivíduos aos q uais se d e stin a v a, a idéia de lib erdade in dividual deveria ser tam bém repen sada e seus reflexos legais reform ulados. N o en tan to, essa q u estão política ligava-se ainda a uma com plicada e am pla q uestão filosófica, uma vez que o respeito à soberania individual e a proteção às liberdades eram ao mesm o tem po reconhecim ento do livre-arbítrio hum ano, atributo que to m a v a os hom ens universalm ente iguais e responsáveis por suas ações. A ssim , através d as discussões em torn o d o crim e, tratava-se n ã o som ente de atacar a ordem política e ju n d ica liberal m as tam bém de consolidar um n ova concepção do hom em e de sua relação com a sociedade, am plam ente ancorada em form ulações positivistas e cien tificistas.” C f. C A R R A R A , Sérgio. Crime e Loucura - o aparecim ento d o m anicôm io ju diciário na passagem d o sécu lo. R io de Jan eiro: EdU ER J, 1998. p.65/66.
R evista d a F acu ld ad e de D ireito d a U n iversidade Federal de M in as G erais
toda a Europa. Um crime, um magistrado incapaz e um médico
s u p e rlú c id o eram o ce n tro do suspense. Mas o m ais
extraordinário é que sob o pseudônimo de Georges Henriot,
seu autor, escondia-se um dos maiores médicos da época, o
professor titular Georges Henri Roger, futuro decano da
Faculdade de Medicina.
De repente tudo se esclarece. A investigação é rigorosa, não
m ais segundo os m étodos tradicionais de investigação
p o lic ia l, m as se g u in d o o fio de A ria d n e das te o ria s
lom brosianas. O presidente do tribunal de com ércio foi
assassinado. Ele não foi despojado nem de suas jóias nem
de seu dinheiro. Com uma intem pestiva presteza, o juiz de
instrução conclui tratar-se de um crim e passional e inculpa
o suposto am ante da m ulher do presidente. Felizm ente, a
m edicina está alerta. Ela nos ensina que as coisas não são
tão sim ples quanto supõem os magistrados. Encarnada pelo
m édico - legista Beaulieu, ela se esforça em desenredar o
m istério, invertendo a ordem das coisas.
Beaulieu investiga m inuciosam ente a personalidade do juiz
de instrução. Trata-se de um neurastênico irritável, impulsivo,
que sofre de abatim ento e prostração. Seu esp írito é
atravessado por longas seqüências de devaneios e sua
m em ória dá sinais de fraqueza. Em duas palavras, trata-se
de um epiléptico, ou melhor, de um crim inoso nato. Para
coroar tudo, fora visto em com panhia da vítim a alguns
m om entos antes do assassinato. Não havia mais dúvida, o
assassino era ele! E fora num m om ento de am nésia que
com etera o crime!
Eis um gênero de peripécia que um ju iz de instrução
dificilm ente poderia suportar. Quando o infeliz fica sabendo
que só lhe resta inculpar a si mesmo, prefere entregar-se à
justiça de Deus e cai de repente, fulm inado por uma crise
cardíaca.”28
28 D ARM O N , Pierre. M édicos e assassinos'na Belle Époque. A medicalizaçâo do crime. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 115.
D an iela de F reitas M arq u es
2. A peleja entre médicos e juristas no sistema penal tem início na primeira
metade do século XIX.
Na França, são conhecidos os casos Léger, Papavoine e Cornier.
“Léger, jovem m isantropo de 29 anos, decidira um dia deixar a sua casa
para viver como erem ita num bosque. Uma manhã, estupra uma menina
de dez anos, mutila seus órgãos genitais, arranca seu coração e o devora.
Papavoine, ex-funcionário da Marinha, encontra uma m ulher e seus dois
filhos no Bois de Boulogne. Fingindo querer abraçá-los, enfia uma faca
em seus peitos. H enriette Cornier, dom éstica de 27 anos, enche de
carícias a filhinha de uma vizinha e a leva até sua casa com a autorização
da mãe. Lá, ela a deita na cama, serra seu pescoço e joga a cabeça pela
janela.”29
Georget, discípulo de Esquirol, criou a expressão “m onom ania
instintiva” , na qual apenas a vontade é lesada enquanto a inteligência
perm anece incólum e. “As pessoas tinham dificuldade em adm itir uma
tese segundo a qual a própria atrocidade de um crime pleiteava em favor
de seu autor. C ontra essa doutrina tão injuriosa para a moral com o
alarmante para a sociedade, formou-se uma coalizão heteróclita. A opinião
pública, a im prensa, os m agistrados e os médicos form aram linhas de
combate. De início, o próprio Esquirol foi contra seu discípulo. Mas, depois,
a lio u -se às suas idéias, jogando na balança todo o peso de sua
autoridade.”30
O apogeu da influência médica no sistem a jurídico-penal dá-se,
justamente, por meio da Escola Antropológica Italiana, na qual se destaca
o pensam ento de C esare Lom broso
,31
de G arofalo32e de Enrico F erri.33
29 D A R M O N , Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époíjue. A medicalização do crime. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 124.
30 D A R M O N , Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque. A medicalização do crime. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 124.
31 C esare “L O M B R O SO , buscando a explicação científica do crime, havia asseverado que o delito é um fenômeno de atavismo orgânico e psíquico. A esta conclusão chegou após um estudo antropológico e análise confrontativa entre o hom em selvagem e o hom em delin qü en te, en contrando em um e em outro idênticos caracteres som áticos e psíquicos. O crim inoso típico seria uma cópia, uma reprodução nas sociedades m odernas, do hom em primitivo, aparecido, pelo fenôm eno do atavism o, n o seio social civilizado, com m uitos dos seus caracteres som áticos e os m esm os in stin tos bárbaros, a m esm a ferocidade, a m esm a falta de sensib ilidade m oral. A in d a m ais. Pensa L O M B R O S O que ‘o atavism o do crim inoso, quando lhe falta absolutam ente todo traço de pudor e de piedade, pode ir além do selvagem, remontando até aos próprios brutos.’ (...) O próprio LO M BR O SO modificou posteriormente esta sua doutrina assaz exclusivista, fundindo e combinando, para a explicação da criminalidade, o atavism o com a epilepsia, admitindo ainda, em muitos casos, a parada do desenvolvimento e a degeneração. Afirma a identidade da loucura moral com a delinqüência inata, e conclui que o crime resulta sempre de uma natureza epiléptica ou
Revista da Faculdade de D ireito da Universidade Federal de M inas Gerais
Por influência da Escola Antropológica, a tênue fronteira entre o crime e
a loucura é praticamente rompida.
O delinqüente é visto como um anormal, acorrentado ao seu destino
hereditário, psíquico ou social, semelhante às víboras, aos cães raivosos
ou aos animais peçonhentos. E, em razão dessa semelhança, deveria
ser eliminado.
Desta forma, a pena de morte é cientificamente justificada por
critérios de eficiência e de necessidade. “Enquanto a justificação da pena
de morte repousava sobre o dogma da exemplaridade, a sociedade podia
mostrar-se malthusiana com a cabeça dos outros. Uma única execução
bastava para assustar os criminosos em potencial tranqüilizando a boa
gente. Quando se trata, visando a eficácia, de exterminar a espécie dos
criminosos natos, a Justiça transforma-se numa hidra.”34
epileptóide; e a constituição epileptóide form a o fundo com um de todas as form as de delinqüência". C f. M O N IZ S O D R É , A ntônio. As Três Escolas Penais. C lássica, A ntropológica e C rítica (Estudo C om parativo). R io de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1977. p. 109/110.
32 G A R O F A L O “se propuso construir ‘la noción sociológica dei delito natural’, idea muy diversa, com o observó, de la definición jurídica dei delito. Preguntándose, ante todo, si existe un cierto núm ero de hechos que la conciencia popular haya considerado en todo tiempo y en todo lugar com o delitos y considerado cómo, por ejemplo, el homicidio por m aldad brutal esc ap a a esta n orm a, se debe con cluir q u e el análisis de las accion es h um anas n o dem uestra nada. A bandonado este cam ino y teniendo en cuenta que en el delito existe siempre una lesión de los sentim ientos que constituyen el sen tid o m oral, se aplica al análisis de esto s sentim ientos. Y la nueva investigación le perm ite e stab lecer que, por encim a de las flu ctuacio n es de los sen tim ien tos p articu lares, ex iste con p erm an en cia una especie de patrim onio orgânico e instintivo, creado en la raza por una evolución hereditaria, patrim onio que n o es outra cosa que el sentido ético fundam ental dei hom bre civilizado, cuya existencia está integrada por los instintos altruístas de la benevolencia y de la ju sticia, a los que corresponden los sentim ientos de piedad y de probidad. El delito natural será, pues, la lesión dei sentido moral en su esencia, ‘de aquella parte que consiste en los sentim ientos altru ístas de p ied ad y probidad , de m od o que la ofen sa h iera n o ya la p arte superior y m ás elev a d a de dich os sentimientos, sino la más común, la que es considerada com o patrimonio moral indispensable de cualquier individuo en la com unidad social.’ Y los elem entos de inm oralidad que el delito natural contiene serán, en consecuencia, la crueldad y la im probidad.” C O S T A , Fausto. El delito y la pena en la Historia de la Filosofia. M éxico: Union Tipografia Editorial Hispano-Am ericana, 1953. p. 207/8.
33 Enrico FER RI entendia que o Direito Penal deveria ser transform ado em um ram o da Sociologia e, neste particular, deveria estar fundam entado em três disciplinas prelim inares: a psicologia, a antropologia e a estatística, com o bem lem bra Fausto C osta.
A ssim , para Ferri n ão haveria a liberdade moral ou o livre arbítrio e, em conseqüência, a responsabilidade crim inal seria a decorrência lógica da vida em sociedade. D ito de outra forma, o hom em é responsável som ente por viver em so cied ad e. “ Ferri adm ite que la in ten sid ad y la índole de la resp on sab ilid ad pueden variar en función de las ‘diversas circunstancias dei agente, dei ac to realizado y de la sociedad que reaccion a.’ Y así construye una nueva teoria de las ‘form as’ y de los ‘grad os’ de la sanción. C uatro son las form as de aplicaria, según los casos y teniendo presente la clasificación de los delincuentes: medios preventivos, equivalentes en el cam po m édico-biológico a las m edidas higiénicas; m edios reparadores y m edios represivos, corresp on dientes a las disciplinas terapêuticas, y m edios elim inatorios, que se equiparan a las operaciones quirúrgicas.”
34 D A RM O N , Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque. A m edicalização do crime. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 185.
Daniela de Freitas M arques
Não é equivocado afirmar que as seguintes conseqüências decorrem
da medicalização35 da pena de morte: a “cientificidade” do extermínio
dos indesejáveis, a intervenção médica nos corpos dos indesejáveis e o
destino dado aos seus corpos.
A “cientificidade”do extermínio dos indesejáveis, a fria racionalidade
da morte imposta fez-se presente não somente nas práticas penais, mas,
sobretudo, na política autoritária dos governos do século XX e do início
do século XXI.
Por sua vez, a intervenção médica nos corpos dos prisioneiros e
dos sentenciados e o destino dado aos seus corpos após a morte é
relevante não só pelo momento histórico em que ocorreram mas,
sobretudo, pela probabilidade de repetição. O “Prof. Benedikt é obrigado
a confessar a angústia que o oprime a cada vez que visita um condenado
à morte depois que um deles tentou estrangulá-lo. Ora, para explicar seu
gesto, o miserável havia simplesmente confessado a sua angústia, pois
não sabia o que aconteceria com ele por ocasião da ressurreição se seu
corpo estivesse enterrado na Hungria e sua cabeça exposta em Viena.”36
Longe de ser pitoresca, a narrativa do Professor Benedikt é trágica,
não pela sua angústia em relação a possibilidade de uma nova agressão,
mas em razão do infeliz que o agrediu. A angústia de não se saber
respeitado nem em vida, nem em morte acompanha todas aquelas
pessoas que apresentam uma especial vulnerabilidade.
A vulnerabilidade do não respeito a dignidade da pessoa humana
torna-se cada vez mais presente na atualidade, em razão da vivência do
primado do saber biológico.37
Ao menos na vivência da cultura cristã, o peso das culpas e a
carga da miséria humanas, eram debitadas à vontade divina, a qual guiava
os passos, orientava as escolhas, determinava os destinos.
35 A expressão é de Pierre Darm on. C f. D A R M O N , Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque. A m edicalização do crime. Rio de Jan eiro: Paz e Terra, 1991. p. 185.
36 D A R M O N , Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque. A medicalização do crime. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 164/5.
37 “D urante quase todo o sec. X X a física foi considerada a m ais poderosa das ciências. N o final deste m esm o século a biologia assum e esse caráter." Cf. V IC T O R IN O , V alério Igor P A rev o lu ção da biotecn olog ia - q u estõ e s de sociabilidade. 7empo Social; R. Sociol. U SR 12, nov. 2000. p. 129.
Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de M inas Gerais
Posteriormente, a laicização e o desencanto dos seres humanos
fez com que eles se tornassem, como preço da liberdade, responsáveis
por si mesmos. As dimensões das escolhas morais torna a todos artífices
de seus próprios destinos, responsáveis por sua trajetória pessoal.
Em certa medida, de forma até mesmo distorcida, o primado do
sa b e r b iológico pode funcio n a r como c rité rio apaziguador das
consciências:38 nem a vontade divina manifestando-se diretamente ou
por meio de seus representantes, nem a responsabilidade indesejável de
uma infinitude de escolhas, ao contrário, a ciência, em especial a biologia,
será incum bida de d irim ir todas as angústias e as dúvidas do
comportamento humano.
A advertência tem maior ressonância na discussão em torno do
genoma humano e do papel da genética na determinação da conduta
hum ana, “o que tem sido cham ado por Rose de ‘determ inism o
neurogenético’. O determinismo neurogenético proclama ser capaz de
explicar tudo pela genética, da violência urbana à orientação sexual. Por
exemplo, em 1994 a revista Time (15/8/1994) publicou uma reportagem
de capa intitulada 'Infidelity - It may be in our genes’. Independente da
argumentação falha do artigo, que não vamos nos dar ao trabalho de
discutir, a tentativa de responsabilizar o genoma pelo comportamento
formalmente ‘reprovável’ de algumas pessoas é bastante sintomática de
uma propensão da nossa sociedade a assumir paradigmas deterministas
para abdicar de responsabilidade social. Não surpreendentemente, no
ano passado a revista brasileira VIP-Exame (julho de 1997) publicou uma
reportagem de capa no mesmo teor: ‘Porque você trai - Não se sinta um
canalha. Aciência diz que a culpa é do DNA.’ Aquestão de livre arbítrio
versus determinismo é tão velha quanto a humanidade. Com as reformas
Luterana e Calvinista firmou-se a teoria determinista da predestinação,
que estabeleceu os alicerces culturais de países protestantes como os
Estados Unidos e grande parte da Europa e que, conseqüentemente,
têm influência em todo o pensamento ocidental. Este determinismo tem
contrapartidas igualmente fortes no hinduísmo (conceito do Karma) e no
38 “Se outrora eram os xamãs e curandeiros os responsáveis pelo extermínio de todos os sofrimentos, hoje são os biólogos moleculares e os geneticistas; e a imortalidade não é mais assunto para sacerdotes, e sim para pesquisadores.” Cf. ENZENSBERGER, H. M. Golpistas no laboratório. A ressureição triunfal da crença no progresso nas ciências. Folha de São Paulo. Domingo, 9 de setembro de 2001. Mais! p.24
Daniela de Freitas M arques
islamismo [a própria palavra islame vem do árabe ‘resignação’ (à vontade
de Deus)]. Embora de certo modo assustador, pela impossibilidade de
escape, este determinismo é por outro lado conveniente, pois o peso da
responsabilidade criada pelo livre arbítrio talvez seja mais apavorante
ainda. De qualquer maneira, com a diminuição da importância social da
religião nas últimas décadas, quem vai determinar nosso destino? Nada
mais tentador que resignar-nos aos desígnios do nosso genoma. Assim,
tenta-se explicar que uma pessoa é homossexual porque tem genes de
homossexualidade; embriaga-se porque tem genes do alcoolismo; comete
crimes porque tem genes ‘criminosos’, etc.”39
Ora, tal “determinismo neurogenético” estabelece novas fronteiras
entre o normal e o patológico e, por conseguinte, estabelece novas
fronteiras para o discurso jurídico-penal.
3. O Código Penal brasileiro dispõe no artigo 28, I que a emoção ou a
paixão não excluem a imputabilidade penal.40 A expressa alusão à emoção
e à paixão pode ser considerada uma reação ao Código Penal brasileiro
de 1890, o qual no artigo 27 prescrevia que não poderiam ser considerados
delinqüentes aqueles que se encontravam “em estado de completa
privação dos sentidos e da inteligência no ato de cometer o crime". A
disposição do Código Penal de 1890 deu ensejo a inúmeras e injustificáveis
absolvições pelo Tribunal do Júri e, portanto, historicamente justifica-se
a disposição a respeito da não exclusão da imputabilidade penal em
razão da emoção ou da paixão daquele que comete o crime.
Aliás, Nelson Hungria bem lembrava que “não há negar que haja
no fundo de cada um de nós um pequeno diabo, um malévolo djin, um
criminoso in potentia (que nada tem a ver com o desacreditado ‘criminoso
nato’ da doutrina lombrosiana), e o mais rigorosamente típico homo medius
não está isento, tais sejam os motivos e as circunstâncias, de vir a
cometer um crime. O crime não é privilégio dos anormais. Isso de vincular
39 PENA, Sérgio Danilo J. AZEVEDO, Eliane S. O Projeto Genoma Humano e a M edicina Preditiva: Avanços Técnicos e Dilemas Éticos. Iniciação à Bioética, Brasília, p. 139/156, 1998. p. 148/9.
40 “Embora e emoção não exclua a imputabilidade, pode funcionar como causa de redução de pena, no homicídio e nas lesões corporais. Efetivamente, se esses dois crimes tiverem sido cometidos sob o domínio da violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz fica autorizado a diminuir a pena de um sexto a um terço. Também pode ser uma circunstância atenuante, se o crime foi cometido sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima.” Cf. VARGAS, José Cirilo. Instituições de Direito Penal. Belo Horizonte: Del Rey , 1997. p.367.
Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais
o crime, de modo genérico, à anormalidade psíquica é ritornelo monótono
de uma pseudo-ciência criminológica, orientada por um vaidoso e
excessivo psiquiatrismo, que ainda não conseguiu, que eu saiba, avançar
além de ‘palpites’, de conjecturas, de ‘saques a descoberto’, e do qual
alguém já disse, com tôda razão, que é um quadro pintado pela fantasia
com as tintas do arco-íris
.”41
Aníbal Bruno bem lembra a distinção entre
emoção
e
paixão
:42
“A
emoção e a paixão são fôrças que condicionam o comportamento
individual-social do homem - a emoção, que é um movimento súbito da
alma, de carga efetiva, e a paixão, que é a sua forma contínua e duradoura.
Da sua intensidade depende a influência que possam ter sôbre a
normalidade do entendimento e o processo da volição. Mas a verdade é
que umas se limitam a atribuir ao comportamento do homem um matiz
sentimental, mais ou menos exaltado, mas sempre capaz de permitir
uma justa apreciação dos fatos e o livre jôgo dos motivos na ação, e
outras afetam profundamente todo o processo do psiquismo, escurecendo
o entendimento e impedindo a livre determinação da vontade
.”43
No estudo da emoção e da paixão, os chamados
crimes passionais
têm posição de relevo.
41 H U N G R IA , N e lso n . E m o ç ã o e crim e. Revista Forense, R io de Ja n e iro , v. 5 7 1 , p 5 /6 , ja n e iro de 1951.
4 2 “ Es difícil in d ic a r co m cla rid a d y e x a c titu d la d ife re n cia e n tre e m o c ió n y p asió n . N o e x iste d ife re n cia en c u a n to a su n a tu r a le z a , p o rq u e la e m o c ió n e s la fu e n te d e q u e n a c e la p a s ió n ; ta m p o c o h a y d ife re n c ia d e g rad o , p o rq u e si h a y e m o c io n e s tr a n q u ila s y p a s io n e s v io le n ta s , ta m b ié n o c u r re lo c o n tr a r io . Q u e d a u n a te rc e ra d ife re n c ia : la d u ración . Por lo gen eral, se d ice q u e la p a sió n e s un e sta d o d u rad e ro ; la em o ció n , la form a agu d a; Ia pasió n , crón ica. V iolên cia y d u ración son los c a ra ctere s qu e, de ordin ário, se asign an á la p asió n ; p ero to d av ia se p u ed e precisar m ejor su n a tu r a le z a e s e n c ia l. L a pasió n es, en el orden afectivo, lo que la id ea fija en el orden intelectual. E s ta d e fin ic ió n ‘e q u iv a le n te a fe c tiv o d e la id e a fija ’, req u ie re u n a e x p lic a c ió n .
El e sta d o a fe c tiv o n o rm al es la su c e sió n d e p la c e re s, p e n a s y d e se o s q u e en su form a m o d e rad a , form an la m arch a p ro sa ic a d e la vid a ord in a ria .
En u n m o m e n to d ad o , a lg u n a s c ir c u n sta n c ia s d e te rm in a n u n a sa c u d id a : e s la e m o ció n . U n a te n d e n c ia a n iq u ila to d a s la s d e m á s, c o n fis c a m o m e n tá n e a m e n te en su p r o v e c h o la a c tiv id a d e n t e r a , c o m o un e q u iv a le n te d e Ia a te n c ió n e n el c a m p o in te le c tu a l.
D e o rd in á rio , e sta red u c c ió n d e lo s m o v im ie n to s en u n a d ire c c ió n ú n ic a , n o e s d u r a d e ra ; p e ro c u a n d o e n vez de desaparecer, la e m oción se fija ó se repite c o n tin u a m en te , siem pre la m ism a, sa lv o la s ligeras m odificacion es dei p aso d ei e sta d o a g u d o al c ró n ico , e n to n c e s te n e m o s la p asió n , q u e e s la e m o c ió n p e rm a n e n te .
L a p asió n se o rigin a d e d o s m o d o s d istin to s: fu lm in a n te m en te ó p o r c rista liz a c ió n ; p o r un a c to b ru sco ó m ed ia n te a c c io n e s le n ta s. E ste d o b le o rig e n d e n o t a u n p re d o m ín io , b ie n d e la v id a a fe c tiv a , b ien d e la v id a in te le c tu a l. C u a n d o la pasión n ace fu lm in an te m en te, d eriv a de un»m odo d ire c to de la m ism a e m o ció n ; en o u tro c a so , el papel de in iciad o res c o rresp o n d e á los e sta d o s in te le c tu a le s.” C f. M E L L U S I, V in cen zo. Del a m o r a l delito. D e lin c u e n te s por e ro to m an ia p sico -se x u al. M ad rid : C e n tro E d ito rial de G ó n g o ra . p .2 0 /1 .
43 B R U N O , A n íb al. Direito Penal. P arte G e ra l. T om o 2C. 3.ed . R io d e Ja n e ir o : F o ren se, 1967. p. 159/160.
4 4 H á alg u m as d é c a d a s, o s crim e s p a ssio n a is o u e m o c io n a is n ã o s ã o m ais a trib u íd o s a o a m o r o u a se n tim e n to s m ais e le v a d o s, m as o registro h istó ric o é im p re scin d ív el p o rq u e a r e p e tiç ã o é a c o n se q ü ê n c ia d o e sq u e c im e n to .
Daniela de Freitas Marques
Impropriamente conhecidos como
“crimes de amor",u
como
destacava com repúdio e com veemência Léon Rabinowicz,45os crimes
passionais são antes crimes motivados pela sensualidade, pelo egoísmo,
“ 2 d e a b ril d e 1 9 3 3 . O jú ri foi s o le n e m e n te in sta la d o , n o F o ru m d a C a p it a l d a R e p ú b lic a , so b a p r e sid ê n c ia d o m ag n ân im o juiz M A G A R I N O S T O R R E S , te n d o a o se u la d o o a rd o ro so p ro m o to r R O B E R T O L IR A . S e n ta -se n o b a n co d os réus, cabisb aixo e a cabru n h ado, o Am or, cujo advogado ou tro n ão é se n ã o o C ícero brasileiro, o dem ostên ico E V A R I S T O D E M O R A I S . O e sc r iv ã o é o s im p á tic o Á u r e o C o r d e ir o . L ite r a lm e n te r e p le to e s t á o T rib u n a l de c u r io s o s e a fic io n a d o s d a in stitu iç ã o in g lê sa . O C o n se lh o d e S e n te n ç a foi b em e sc o lh id o e p re sto u ju ra m e n to de c o n sc iê n c ia . O juiz, q u e é o m esm o q u e p ro n u n c ia rá o réu, e n tre consideranda d e a lto c u n h o ju ríd ico , filo só fic o e é tic o , q u a lific a e in te r r o g a o a c u s a d o . E ste , m e n o r d e 2 0 a n o s, tu d o r e sp o n d e e m o c io n a d o e n a rr a o s e u crime. M a ta ra a m ulh er qu e c a u sa v a ciú m e à su a q uerida, porque seu pai a e sp a n ca ra, apertan d o-lh e o p escoço, d esv a ira d o de có le ra. A vítim a era um a pobre v iú va de um am igo e vizinha, à q u al seu p rogen itor p rotegia e am p arav a, m as qu e su a m ãe su p u n h a u m a rival, q u e lh e tran sfo rm a v a o la r e a v id a n um in fe rn o in su p o rtá v el. F in d o o in terro gató rio , q u e e m o c io n o u a g ran d e a ss is tê n c ia , o ju iz-p re sid e n te , g ló ria d a m ag istr a tu r a p á tria , d eu a p a la v r a a o p ro m o to r R O B E R T O L IR A . O r e p re se n ta n te d o M in isté rio P ú b lico, ta le n to d e e sc o l, c u ltu ra o c ê a n ic a , le u um trem e n d o lib elo , n o q u a l se a rtic u la v a u m a sé rie de circ u n stâ n c ia s a gra v an te s, e n tre as q u a is a t r a iç ã o e a su p e rio rid ad e em fô r ç a s. In ic ia n d o a a c u s a ç ã o , n ã o n e g o u o s p re c e d e n te s ilib a d o s n em a c o m o ç ã o d o réu , m as, a firm a n d o su a im p u ta b ilid a d e , a d v e rtiu o s ju r a d o s c o n tra o s e n tim e n ta lism o p re ju d ic ia l à o rd e m e à civ iliz açã o , p o rq u e ju lg a r sò m e n te c o m o sen tim en to n ã o é ju lgar: é igualar-se ao criminoso; in v o can d o T O C Q U E V IL L E , d isse o c o n ce itu a d o m em b ro d o M in isté rio P ú b lico q u e o o b je tiv o su p rem o d a Ju s tiç a é su b stitu ir a id é ia d a v io lê n cia p e la d o d ire ito , co m p etin d o ao s juizes d isp en sar a v in gan ça particular. A o raçã o m agistral d e R O B E R T O L IR A foi tô d a ela estribada e m a u to re s d e ren o m e, d e m o n stra n d o um a cu ltu ra p ro fu n d a n o c o m b a te à te se p a ssio n a lista . T rou xe a o d e b a te o q u e h á d e m elh o r em filo so fia, p sic a n á lise , d ireito , m ed icin a e lite ratu ra, n o p ro p ó sito d e e sc la rece r a c o n sc iê n c ia d o s ju ra d o s e pro v ar a r esp o n sa b ilid a d e p en al d os p assion ais, c o n tra rian d o as liçõ e s d e IM P A L L O M E N I, F E R R I E M E L L U S I, corifeu s d o p assio n a lism o sem p u n ição, e p assan d o em revista o s en sin am en to s d a E sco la C lá ssica , sôbre o liv re -a rb ítrio , p ara rep elir o e x a g ê r o r o m â n tic o e sen tim e n tal a q u e se a p e g a ria a d efesa , e x c la m an d o :
‘N ^o h á p a ix ã o q u e n ã o se cu re c o m o te m p o e co m o e sp a ço - g ara n tiu B U N G E , qu e lid a m u ito co m o s p assio n a is. N ã o há h om em , so b retu d o o jo v em , q u e n ã o S3ja capaz de a m ar um a seg u n d a vez. Querelles d ’amants, renouvellement d 'am ou r. O p o e ta c o n ta , e m lin d o so n e to , a d ificu ld a d e d e c e rta m o ça em dizer q u a l o seu p rim e iro amor, p o rq u e c o m e ç o u lo g o p o r t r ê s ... e isso h á 4 0 a n o s !’
A r r e b a ta d o d e e lo q ü ê n cia , o fe ste ja d o au to r de ‘O A m o r e a R e sp o n sab ilid ad e C rim in a l’ e de ‘P o lícia e Ju s tiç a p ara o A m o r ’ c o n c la m a o s ju r a d o s p ara n ã o ve re m e n tre o s p a ssio n a is h e ró is n em b a n d id o s m as a p e n a s c rim in o so s, fa z e n d o a in d iv id u a liz a ç ã o d o A m o r c o m A L F R E D O G I A N IT R A P A N I: ‘O am o r é a e la b o ra ç ã o p sic o ló g ic a d o in stin to s e x u a l a c o n c e n tr a ç ã o d o d e s e jo n u m a d e te rm in a d a p e ss o a ’. E d e p o is, d istin g u in d o n o am o r u m a p arte c o n sid e rá v e l, q u e p e rte n c e à u tiliz a ç ã o d o s n o b res e b e lo s s e n tim e n to s q u e e le v a m a h u m a n id a d e , d e c la ro u -se abertam en te c on trário a o d estin o d ad o a o am or - o b an co d os réus: ‘Para m im, o am or jam ais d esceu a êsse p eloun n h o. Q u a n d o , e m n o m e d êle , a lg u é m se d e sm a n d a a té o crim e, o am o r foi p rete rid o p e lo ó d io. Ê ste, sim , e stá à v o n tad e n o b a n c o d o s réu s. A re sp o n sa b ilid a d e p e n a l d ecorre d o e sta d o d o a g e n te n o m o m e n to e x a to d o c rim e . Q u a n d o crisp a a m ão p ara o im p êto d o a rrem êsso, o u o su ce sso d a pon taria, im pele-o, n ão o am or, m as o ód io, e a êsse as leis n ã o d ã o g u a rid a . M E L U S S I diz q u e o am o r e stá b em p e rto d o ó d io e o ó d io b em p e rto d o am or. É a a m b iv alê n cia e x e m p lific a d a p e lo P rof. B L E U L E R : ‘a m o a r o sa p ela su a b eleza; o d e io a ro sa p elos seu s e sp in h o s’ .
A p o ia d o em L E O N R A B IN O W IC Z , professor de D ireito d a U niversidade de G enebra e autor d o ‘L e Crim e P assionel’, e em o u tro s afam ad o s tratad istas, o em in en te R O B E R T O L IR A perora em lin guagem escorreita e lím pida, repetin do o c o n se lh o de A F R Â N I O P E IX O T O :
‘U rge p ren d er e c o n d e n a r ê sse am or. O v e rd a d e iro amor, h o n esto , d o m é stico , sem fartu ra d e d in h e iro e d e tem po , n em pródigo, n em o cio so , o sa n to am o r de c a d a dia, n ã o pode ser crim in oso. C e le ra d o é o am or vadio, d os p ara sita s s o c ia is , q u e , n ã o te n d o o q u e fa ze r o u pen sar, a p e n a s c u id a m d e a b a s te c e r d e e sp a sm o s a s u a m e d u la lo m b a r; c e le r a d o é o d e s s a s m á q u in a s d e prazer, m a n e q u in s d e e sto fo s e d e jó ia s , q u e n ã o tr a b a lh a m , n em a m a m , m as v e n d e m o c o r p o e a a lm a , p o r ta fu la ria s e v a id a d e s. A o s crim es d êsse A m o r d o b r a d a s p e n a s, p ara q u e se e d u q u e n a reg ra d e b em v iver.’
A im p re ssã o d e ix a d a n o e sp írito d o jú ri e ra sen sível.
Q u a n d o o n otável ad vogad o de d efesa principiou sua oração, im ensa era a curiosidade geral. T òm a-se difícil reproduzir d e m em ória as p alav ra s e ru d itas e co m o v en te s d o tribun o ímpar. C o m e ço u d izen d o que a p e ro ra ção d o ilu stre ó rgão d o M in isté rio P ú b lico n ã o se a p lic a v a a o c a so em ju lg a m e n to , porqu e o a m o r filial n ã o se c o n fu n d e c o m o am or