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Reflexões sobre a realidade sócio-econômica da população indígena Xakriabá à luz do conceito de etnodesenvolvimento

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Reflexões sobre a realidade sócio-econômica da população indígena

Xakriabá à luz do conceito de etnodesenvolvimento

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Beatriz Judice MagalhãesSibelle Cornélio Diniz

Palavras-chave: etnodesenvolvimento; populações tradicionais; Xakriabás; pobreza.

Resumo

Os Xakriabá constituem a maior população indígena de Minas Gerais, compreendendo quase 7000 pessoas que habitam uma Reserva localizada no município de São João das Missões, no norte do estado. Nos últimos anos, o Território Xakriabá vem passando por mudanças expressivas: além da crescente intervenção de órgãos governamentais e não-governamentais, vivenciou-se um grande crescimento da população, acompanhado de forte degradação ambiental. Essas modificações, somadas a outras relativas aos padrões de consumo, levaram ao enfrentamento, por parte dos Xakriabá, de restrições na esfera da reprodução: problemas ligados à necessidade de aumento da produção e de criação de oportunidades de trabalho. Diante da insuficiência da economia interna em suprir as necessidades monetárias da população, a solução é encontrada fora da Reserva, através do trabalho temporário em outros estados e da compra de produtos externos. Tais movimentos reiteram o caráter de fragilidade dessa economia. O etnodesenvolvimento, tentativa de fazer florescer a esfera da produção sem que o mercado ocupe a centralidade dos valores e da organização de comunidades nas quais a esfera da cultura historicamente prevalece, constitui referencial para se pensar as novas formas de organização social que vêm se configurando no Território. O presente trabalho busca discutir a realidade sócio-econômica da população Xakriabá com base em dados da pesquisa “Conhecendo a Economia Xakriabá”, realizada em 2004 pelo CEDEPLAR e FaE (UFMG) em conjunto com as Associações Xakriabá e à luz do conceito de etnodesenvolvimento.

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Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, realizado em Caxambu- MG – Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.

Bacharel em Ciências Econômicas pela UFMG, assistente de pesquisa do CEDEPLAR/UFMG.

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Reflexões sobre a realidade sócio-econômica da população indígena

Xakriabá à luz do conceito de etnodesenvolvimento

*

Beatriz Judice MagalhãesSibelle Cornélio Diniz

1 Introdução

O Território Indígena Xakriabá - T.I.X. - constitui a maior reserva indígena do Estado de Minas Gerais. Localizado no município de São João das Missões, norte do Estado, o Território reúne cerca de 7000 indivíduos em 53075 hectares, divididos em duas áreas contíguas. A população ali residente pode ser identificada como pertencente ao grupo das chamadas populações tradicionais do Brasil e possui várias características que justificam o interesse pelo seu estudo e a relevância deste: desde a identidade étnica e o predomínio da “moral” e da família como centro da organização e dos valores sociais a um atual quadro de intervenção estatal e não-estatal e de organização social e política em busca de um desenvolvimento econômico revelado como necessário.

Desde a demarcação e homologação da Reserva Indígena, nas décadas de 1970 a 1990, mudanças expressivas ocorreram nesse espaço: além da crescente intervenção de órgãos governamentais e não-governamentais na Reserva, vivenciou-se um grande crescimento da população (e conseqüente aumento da proporção de jovens), acompanhado de forte degradação ambiental. Todas essas mudanças, somadas a modificações nos padrões de consumo resultantes, sobretudo, da introdução de meios de comunicação e de transporte na área, levaram ao enfrentamento por parte dos Xakriabá de restrições na esfera da reprodução: problemas ligados à necessidade de aumento da produção e de criação de oportunidades de trabalho.

O atual quadro do Território (produção insuficiente para o consumo e conseqüente demanda - não totalmente atendida - de renda monetária) deixa latente a possibilidade de se promover avanços sócio-econômicos que melhorem as condições de vida da população. Nesse âmbito, pode ser sugerida, por um lado, a necessidade de um fortalecimento das atividades econômicas locais, na forma de melhora das condições de produção e do sistema de trocas interno à Reserva. Por outro lado, dadas as restrições encontradas no desenvolvimento da economia interna (dificuldade de comercialização e diversificação da produção, por exemplo), pode-se aventar que seja necessária uma melhor articulação com o entorno.

Dadas as características peculiares a essa população - a identidade étnica, a terra coletiva e predomínio da “moral” e da “tradição” como centro de referência dos valores sociais, o avanço econômico aventado como necessário à manutenção da vida na Reserva Indígena tem como premissa desejável que as características que marcam a identidade da população não sejam radicalmente transformadas e homogeneizadas pela modernização sócio-espacial imposta pelo entorno onde o Território se insere. O etnodesenvolvimento, tentativa de fazer florescer a esfera da produção sem que o mercado ocupe a centralidade dos valores e da organização de comunidades nas quais a esfera da cultura historicamente prevalece, pode constituir um referencial para se pensar as novas formas de organização social que vêm se configurando no Território.

O presente trabalho visa discutir a realidade sócio-econômica da população indígena Xakriabá à luz do conceito de etnodesenvolvimento.

Bacharel em Ciências Econômicas pela UFMG, assistente de pesquisa do CEDEPLAR/UFMG.

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2 Contexto histórico da constituição da população Xakriabá

A primeira forma de povoamento do território de Minas Gerais ocorreu através das populações indígenas, que, de acordo com a historiografia, ocuparam os sertões do leste e a porção noroeste do estado. Embora a ocupação da região oriental seja comumente associada à presença indígena e existam documentos e outras fontes historiográficas que facilitem a pesquisa nesse local, o mesmo não é válido para o noroeste. Dessa maneira, as tentativas de se “escrever a história” das populações indígenas do noroeste mineiro são particularmente passíveis de falhas (SANTOS, 1997, p. 17). Isso, todavia, não quer dizer que elas devam ser consideradas a priori ilegítimas, mas sim lidas com o devido cuidado. Ao analisar, em sua dissertação de mestrado, as condições que fizeram emergir a população Xakriabá1, a antropóloga Ana Flávia Santos enfatiza o seu caráter historicamente produzido:

Muito embora não se guardem registros ou descrições das especificidades dos grupos contatados pelas primeiras empresas colonizadoras, pode-se dizer que qualquer unidade social percebida deverá ser antes pensada como historicamente produzida e elaborada a partir desta inserção que referida a unidades ou homogeneidades culturais pré-existentes (SANTOS, 1997, p. 34-35).

Embora as primeiras expedições portuguesas à região tenham ocorrido em meados do século XVI, apenas no final do Dezessete foi observada uma presença mais efetiva por parte dos colonizadores. Em 1692, teria sido enviada para o local uma expedição comandada por Matias Cardoso, sendo escravizados os índios encontrados, entre eles os caiapós, alguns dos quais foram, posteriormente, denominados chacriabás ou xicriabás (BAETA, 2000, p. 5; SANTOS, 1997, p. 18).

A posição estratégica da região, situada entre as minas ascendentes e o antigo centro econômico e localidade mais povoada da colônia brasileira, as capitanias nordestinas, posição esta que propiciaria a existência de um importante caminho de circulação e comércio, deve ser entendida como o fator primordial de motivação à sua colonização. De fato, o controle de tal via era estritamente desejado por autoridades e colonos, e é neste plano que se deve analisar a fundação da Missão do Senhor São João do Riacho do Itacaramby, possivelmente realizada entre os anos de 1712 e 1713 (SANTOS, 1997, p. 21-23). No contexto já mencionado de exigüidade de fontes históricas para a região e a população em questão, a autora também ressalta a ausência de informações que permitam desvendar a composição étnica da população pioneira da missão de São João (idem, p. 30).

A criação de uma missão religiosa na área, no entanto, não foi seguida de seu controle duradouro por parte da Igreja, salvo durante um curto período após sua fundação. Além disso, a escassez da presença do poder público na região sertaneja são-franciscana era característica marcante em meados do século XVIII. Em 1728, os índios recebem uma doação de terras por parte de Matias Cardoso, fato este que, de acordo com Santos (1997), deve ser compreendido segundo a necessidade da autoridade local de, juntamente com a eclesiástica, referendar-se junto à população indígena. Em 1856, portanto, em seguida à promulgação da Lei de Terras de 1850, a população registra o termo de doação simultaneamente em Ouro Preto e Januária2 (idem, p. 29).

1

Importa mencionar que, no primeiro capítulo de sua dissertação, da qual foi retirada a maior parte das informações que aqui constam, a autora afirma que, diferentemente de tentar “estabelecer as bases de uma ‘história Xakriabá’, pretende “tentar apresentar, da melhor maneira possível, uma leitura específica das informações históricas disponíveis (...)” (SANTOS, 1997, p. 16).

2

A Lei de Terras de 1850 estabelecia que o acesso à terra se faria através da compra, constituindo, assim, o marco da mercantilização das terras no Brasil, processo este que contribuiu significativamente para estabelecer a forte concentração fundiária que caracteriza o país ainda na atualidade.

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Em meados do Dezoito, diante da tentativa da Coroa Portuguesa de estender o sistema fiscal da capitação à região sertaneja, emerge uma rebelião que teria constituído “o marco final do domínio econômico do sertão do São Francisco nas trocas com a região mineradora” (MATA MACHADO, 1991, apud SANTOS, 1997). Ao fim do papel primaz da região no intercâmbio com as minas se seguiria um longo período de isolamento do sertão são-franciscano, perdurando até meados do século XX.

Durante o Dezenove, a marginalidade econômica da região teria possibilitado a consolidação de um padrão de ocupação da terra baseado no sistema de posse comum (ALMEIDA apud SANTOS, 1997, p. 35). Na percepção de Santos (1997), o marco inicial da história do grupo coincidiria com a doação da terra. Além disso, o documento de doação teria exercido papel fundamental na construção, por parte da população, do significado de unicidade e indivisibilidade da terra. O entendimento dessa questão é fundamental para a análise da história da relação entre a população Xakriabá e seu território, principalmente durante o transcurso dos séculos Dezenove e Vinte. Conquanto o direito da população descendente dos índios aldeados na Missão houvesse sido formalizado através da já citada carta de doação, principalmente a partir da segunda metade do século XIX houve diversas tentativas de ocupação das terras por parte de forasteiros. Diante de sucessivas ameaças de invasão, os habitantes empreenderam diversas viagens ao Rio de Janeiro e a Brasília, enquanto capitais do país, com o intuito de obter o respaldo de um poder central e oficial ao seu direito. Assim, é ainda no Dezenove que os habitantes procuraram Dom Pedro II, viagem esta que parece haver transferido para o monarca e sua filha, a Princesa Isabel, a personificação da doação da área (SANTOS, p. 38).

A autora descreve que, por volta de 1928, após um episódio de conflito entre os herdeiros dos habitantes da Missão e ocupantes intrusos de suas terras, vários representantes dos primeiros teriam realizado viagem à capital brasileira para tentar preservar o direito ao território. Novas incursões, entre os anos de 1930 e 1950, resultariam na “primeira intervenção de um órgão federal na área”, o SPI (Serviço de Proteção ao Índio), manifestada no envio de um funcionário à região, em 19503. No entanto, mesmo essa intervenção parece ter sido insuficiente, já que “em nenhum momento, por sinal, menciona-se a possibilidade da formalização da presença do SPI na região, através, por exemplo, da criação de um posto indígena” (SANTOS, opus. cit., p. 64).

Diferentemente de uma atuação expressiva do poder público em prol dos direitos dos sucessores dos índios da Missão, o que houve, na década de 1960, foi a intervenção do governo estadual objetivando criar um pólo de fornecimento agropecuário para o nascente mercado consumidor da região polarizada por Brasília. Criada formalmente com tal intuito, a Ruralminas (Fundação Rural Mineira Colonização de Desenvolvimento Agrário) passou então a intervir na região: valendo-se da possibilidade de considerar as terras em questão como devolutas, através da argumentação de que não haveria índios remanescentes no local, a Fundação começou, em 1968, a cobrar dos moradores uma taxa referente à ocupação das terras, e, posteriormente, à medição das mesmas. Nesse contexto, as terras se valorizaram e passaram a ser objeto de interesse de fazendeiros (idem, p. 73). Além da expressiva venda de lotes, ocorreu um forte processo de grilagem (idem, p. 75).

Diante de tais problemas e dando continuidade à série das já citadas excursões promovidas em busca de uma autoridade referendadora central, um grupo de moradores empreendeu uma viagem à Brasília com o intuito de obter o reconhecimento do direito à terra. A viagem

3

Ao que tudo indica, não há certeza sobre o fato de a atuação do funcionário do SPI Lyrio do Valle na região estar fielmente documentada. Para maiores informações, ver Santos (1997), capítulo 2, item 2.3. A autora também observa que “a primeira intervenção do órgão tutor - então SPI - foi incorporada à estrutura ordenadora das providências que se seguem à ‘procura dos direitos’: daí a figura de Lyrio do Valle ter permanecido relativamente ‘despersonalizada’” (SANTOS, p. 195).

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acabou resultando na intervenção da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), e, nos anos seguintes, a atuação desse órgão governamental concomitantemente à da Ruralminas desencadeou uma espécie de emaranhado jurídico-institucional, levando a conflitos na área. Não obstante, em 1973 criou-se um Posto Indígena, o que, de certa forma, corroborou no plano prático o status indígena da terra (idem, p. 187-188).

No entanto, o processo de grilagem continuava em curso, e a atuação da FUNAI na área também apresentou aspectos problemáticos, já que a política do órgão indigenista pautou-se, muitas vezes, por favorecimentos de porções de terra para a Ruralminas em detrimento dos caboclos (idem, p.189). Ainda que excluindo porções importantes consideradas legitimamente pertencentes aos Xakriabá, ocorreu o processo de demarcação da área indígena pela FUNAI, em 1979, fato cuja importância não pode ser menosprezada (idem, p.209). Na década de 1980 houve um agravamento das tensões entre os caboclos, os posseiros e os fazendeiros, processo que culminou em conflitos armados. Em 1985, os caboclos iniciaram a tentativa de retomada das terras através de mutirões (idem, p. 219). Diante da intervenção da FUNAI e do CIMI4 para promover a desocupação da área em prol dos índios, ocorreu um acirramento da violência dos fazendeiros que culminou com o assassinato dos índios Rosalino Gomes de Oliveira, então vice-cacique, Manuel Fiúza da Silva e José Pereira Santana, crime que teve repercussão nacional. Entre os fatos que resultaram da ampla mobilização então ocorrida em prol dos direitos dos Xakriabá encontra-se o reconhecimento definitivo do seu caráter indígena, assim como a homologação da demarcação da Área Indígena Xakriabá em 1987 e, finalmente, o seu registro no ano seguinte (idem, p.237-239). Também de acordo com Santos (1997), cabe ressaltar que “a consolidação do reconhecimento formal da Terra Indígena consubstancia e legitima em última instância a imagem do índio como sujeito de direito, elaborada a partir do processo de luta” (idem, p.239).

3 População e economia Xakriabá na atualidade

Após uma longa história de exclusão, e, mais recentemente, de diversos conflitos no que se refere à questão fundiária, a população Xakriabá veio, nas últimas décadas, se reorganizando e conseguindo conquistas importantes. A constituição da Reserva Indígena ocorreu em duas etapas: a primeira, mencionada anteriormente, e a segunda, referente à porção da Rancharia, demarcada em 1999 e homologada em 2001. A área total da Reserva, entretanto, corresponde a cerca de apenas 1/3 da área original.

A municipalização de São João das Missões, até então distrito de Itacarambi, ocorreu em 1997. Grande parte do território do município encontra-se dentro das terras indígenas. O município apresenta condições sócio-econômicas precárias. De acordo com o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), a cidade apresentava, em 2000, a segunda menor renda per capita municipal de Minas Gerais, R$ 55,63. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) era de 0,595, 14o mais baixo do estado. A pobreza expressa pelos indicadores relativos ao município de São João das Missões é em grande parte concentrada na área da reserva.

A ação predatória de posseiros e grileiros sobre o Território Indígena Xakriabá no período de disputa pela terra pressionou de forma drástica o ecossistema da área. Além disso, a redução do Território a aproximadamente um terço da área originalmente ocupada levou a uma grande pressão demográfica do povo Xakriabá sobre o meio biótico, extremamente frágil. A

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Cabe ressaltar a importância da atuação do CIMI, órgão criado em 1972 e que, desde então, procura fomentar o associativismo indígena. (BARROSO-HOFFMANN e SOUZA LIMA, 2002)

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Reserva Indígena está localizada numa área de transição entre as vegetações do cerrado e da caatinga, região de aridez característica. A área possui grandes parcelas de terra, as chapadas, não propícias ao cultivo, e outras áreas impróprias aos usos tradicionais pela alteração no regime de chuvas e pela escassez de água. As áreas férteis e próprias aos cultivos tradicionais foram em muito reduzidas.

A população indígena Xakriabá cresceu muito a partir da demarcação do Território. A figura 1 mostra a pirâmide etária da população no ano de 2004, construída a partir de dados da pesquisa “Conhecendo a Economia Xakriabá”. A pesquisa foi realizada pela UFMG (FAE - Faculdade de Educação - e CEDEPLAR/FACE - Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas), em conjunto com as Associações Indígenas Xakriabá, nos anos de 2004 e 2005, sendo financiada pelo CERIS (Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais). Foram aplicados questionários com perguntas a respeito da sócio-economia dos Xakriabá a 850 domicílios, abrangendo um total de 4388 indivíduos (aproximadamente 68% da população).5

Figura 1

Pirâmide etária da população residente no T.I.X.

Fonte: Pesquisa “Conhecendo a Economia Xakriabá”, 2004

A larga base da pirâmide etária construída evidencia a grande proporção de jovens na população, o que sugere que o crescimento populacional observado após a demarcação do T.I.X. se deu pelo aumento da natalidade e não por migração de retorno, como se poderia supor.

Além do aumento do número de jovens na população Xakriabá, a criação de escolas indígenas dentro da Reserva, na década de 1990, foi responsável por grandes mudanças na comunidade. As escolas demandaram a formação de um grupo de cerca de 100 jovens professores, além de um conjunto de apoiadores - merendeiras, secretárias, faxineiras -, todos assalariados. A escola indígena, ao se tornar parte da vida cotidiana das aldeias, criou não somente novas possibilidades de inserção profissional, mas ampliou os horizontes e

5

A respeito da pesquisa “Conhecendo a Economia Xakriabá”, ver Gomes e Monte-Mór (2006) e Conhecendo a Economia Xakriabá (2004). 10% 5% 0% 5% 10% 0 a 4 10 a 14 20 a 24 30 a 34 40 a 44 50 a 54 60 a 64 70 a 74 80 ou mais Idade (anos) % da população entrevistada Mulheres Homens

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expectativas das crianças e jovens estudantes. Atualmente, existem 34 escolas indígenas dentro do T.I.X., atendendo a um total de 2.345 alunos6.

Mais educados, com maiores perspectivas e necessidades de consumo, os jovens se deparam com a possibilidade de continuarem a tradição de suas famílias, trabalhando nas roças e em outras atividades agrícolas, com baixa monetarização, consumo restrito e diversas dificuldades de realização – faltam instrumentos, sementes, transporte, água para irrigação, etc. – ou buscarem novas possibilidades de atividade produtiva (CLEMENTINO e MONTE-MÓR, 2006, p.8).

O modo de uso do território Xakriabá se estabeleceu nos moldes da economia regional, sertaneja e cabocla. Suas atividades produtivas constituem-se basicamente de plantação de roças e da criação de animais. A unidade básica de trabalho sempre foi a família, em sua forma nuclear ou estendida, existindo também formas de trabalho coletivo envolvendo outros membros da comunidade.

Das atividades econômicas rurais provinha praticamente tudo de que os Xakriabá precisavam, alguns poucos produtos sendo adquiridos no comércio regional. No entanto, a redução das áreas férteis e o forte crescimento populacional vivenciado nas últimas décadas fizeram com que a produção deixasse de ser suficiente para abastecer a população. Soma-se a essas causas o sistema de tutela da FUNAI, marcado pelo assistencialismo e gerador, em última instância, de uma precarização da organização social-produtiva na Área.

A introdução de meios de comunicação como a televisão7 e o rádio e de meios de transporte como motocicletas8, conseqüência, entre outros fatores, das relações de assalariamento dos nativos que passam a acontecer fora da Reserva (e também dentro dela, com os novos grupos assalariados que surgem nas escolas indígenas, os agentes de saúde e saneamento e os envolvidos com a administração municipal), contribuiu ainda para a diversificação das demandas da população.

Todos esses fatores levaram a que a economia “natural”, de subsistência, deixasse de ser suficiente para prover à população os bens necessários à manutenção da vida na região. A relação com os mercados externos passa a ser necessária para o abastecimento das demandas por bens e serviços da população da Área.

A entrada de dinheiro no território dos Xakriabá passa a ocorrer primordialmente por meio de serviços prestados às cidades vizinhas como o emprego doméstico das mulheres e o trabalho assalariado dos homens fora da Reserva. A principal alternativa de incremento de renda tem sido, historicamente, o emprego de força de trabalho nas lavouras de cana de São Paulo e do Mato Grosso do Sul como assalariados temporários. Os trabalhadores passam até nove meses por ano nessas atividades, desde a juventude até a idade aproximada de 40 anos. As conseqüências imediatas desse êxodo temporário são a precarização das condições de saúde desses trabalhadores e sua não-inserção na organização local9.

6

Censo Escolar 2005, Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais.

7

De acordo com dados da pesquisa “Conhecendo a Economia Xakriabá”, em 2004, 268 domicílios (31,5% dos entrevistados) possuíam televisão em casa. Note-se que apenas em 2000 a energia elétrica chegou a um grande número de domicílios na Reserva e que o número de casas com televisores cresceu bastante desde então.

8

88 dos domicílios entrevistados (10,4%) declararam possuir motocicleta, e 17 (2,0%), carro ou camionete.

9

Um dado ilustrativo do afastamento dos homens da organização social do Território Indígena corresponde à escolaridade dos homens e mulheres da Área, por idade. De acordo com a pesquisa “Conhecendo a Economia Xakriabá”, é possível constatar que, de modo geral, os homens da Reserva passam menos tempo de suas vidas na escola que as mulheres. Enquanto 17,8% da população feminina entrevistada declarou ter concluído a 5ª série, 11,7% dos homens o fizeram. No que diz respeito à conclusão do Ensino Fundamental (1ª a 8ª série), o número é 6,1% das mulheres entrevistadas, contra 3,3% dos homens. Tais valores revelam o maior afastamento da população masculina do ambiente escolar, o que pode ser associado à necessidade de trabalho na roça da família ou em lavouras em outros Estados, e se reflete na organização comunitária local.

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Quanto à comercialização do excedente de produção dentro da Área, as relações se baseiam em trocas informais, nem sempre intermediadas pela moeda. Observou-se, em diversas reuniões com as comunidades10, uma dificuldade para estabelecer trocas regulares internas, com queixas sobre exigências de parentes e vizinhos por preços mais baixos, o que faz com que haja uma preferência por vender e comprar fora da Reserva. Assim, geralmente comercializa-se com não-índios, fora e dentro da própria Reserva, através de ‘atravessadores’, que muitas vezes vêm buscar o produto. A dificuldade com transporte é um problema enfrentado pela população Xakriabá. Como seria de se esperar, a venda tende a ocorrer com o preço abaixo do valor do produto no mercado, mas essa opção tende a ser preferida por alguns à de vender por preço mais baixo dentro da própria Reserva.

A Tabela 1 revela que, dos dez produtos agrícolas mais consumidos na Reserva, cinco são comprados por mais da metade dos consumidores. Essa compra é feita, em sua maioria, com atravessadores ou fora da Reserva (Tabela 2), o que evidencia a fragilidade da produção e das condições de comercialização local. O mesmo ocorre entre os produtos beneficiados, como mostram as Tabela 3 e Tabela 4, a seguir.

Tabela 1

Consumo, produção e compra de produtos agrícolas - T.I.X. - 2004

% do total de domicílios entrevistados Produto

Consumidores Produtores Compradores

Arroz 97,4% 12,7% 72,1% Milho 95,6% 84,8% 68,5% Alho 91,3% 29,5% 62,1% Abóbora 90,0% 67,6% 11,4% Manga 88,4% 46,8% 7,5% Banana 88,1% 43,9% 27,3% Melancia 86,5% 65,3% 12,6% Feijão de arranca 85,1% 52,9% 63,6% Cebola 84,7% 30,9% 52,1% Temperos 84,6% 14,8% 58,0%

Fonte: Pesquisa “Conhecendo a Economia Xakriabá”, 2004

10

Tais reuniões com as comunidades na Reserva ocorreram no âmbito do projeto de extensão “Educação e Alternativas de Produção”, proposto à Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (FUNDEP) e ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) pela FAE/UFMG, e realizada em parceria com o CEDEPLAR/UFMG, ao longo dos anos 2004 e 2005.

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Tabela 2

Local de compra dos dez produtos agrícolas mais consumidos - T.I.X. - 2004

% de domicílios entre os que compram Produto

Na própria aldeia Em outra aldeia Com atravessador ou na cidade

Arroz 8,6% 2,1% 89,2% Milho 48,5% 5,7% 45,9% Alho 11,0% 3,8% 85,2% Abóbora 27,8% 3,1% 69,1% Manga 26,6% 4,7% 68,8% Banana 12,9% 7,3% 79,7% Melancia 15,9% 1,9% 82,2% Feijão de arranca 15,7% 5,4% 78,9% Cebola 14,2% 4,5% 81,3% Temperos 5,3% 2,6% 92,1%

Fonte: Pesquisa “Conhecendo a Economia Xakriabá”, 2004. Tabela 3

Consumo, produção e compra de produtos beneficiados - T.I.X. - 2004

Fonte: Pesquisa “Conhecendo a Economia Xakriabá”, 2004. Tabela 4

Local de compra dos dez produtos beneficiados mais consumidos - T.I.X. - 2004

% de domicílios entre os que compram

Produto Na própria

aldeia

Em outra

aldeia Com atravessador ou na cidade

Farinha de mandioca 29,3% 10,2% 60,5% Ovos 50,8% 5,0% 44,2% Carne de sol/serenada 16,6% 4,9% 78,4% Toicinho 32,8% 7,5% 59,7% Rapadura 34,0% 18,5% 47,5% Goma ou tapioca 36,7% 14,3% 49,0% Farinha de milho 29,1% 1,0% 69,9% Fubá de milho 21,1% 1,6% 77,3% Queijo 15,5% 2,3% 82,2% Leite de vaca 43,9% 1,1% 55,0%

Fonte: Pesquisa “Conhecendo a Economia Xakriabá”, 2004.

% do total de domicílios entrevistados Produto

Consumidores Produtores Compradores

Farinha de mandioca 96,4% 29,5% 85,2% Ovos 78,2% 52,7% 30,4% Carne de sol/serenada 75,1% 10,2% 74,2% Toicinho 73,6% 14,5% 64,5% Rapadura 72,6% 7,4% 65,4% Goma ou tapioca 68,0% 19,3% 54,2% Farinha de milho 65,6% 39,6% 24,2% Fubá de milho 63,3% 31,2% 29,5% Queijo 51,5% 8,6% 45,5% Leite de vaca 48,2% 20,7% 22,2%

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A criação de animais de pequeno porte (galinhas, galinhas d’angola e porcos), de animais domésticos (cachorros e gatos), de animais usados para o transporte (cavalos, mulas e burros) e de bovinos é comum em todas as aldeias e sub-aldeias, como mostra a Tabela 5.

Note-se que o gado de corte constitui uma atividade relevante dentro do T.I.X., com profundos efeitos sobre o ecossistema local11. Na verdade, como em outras regiões pobres de economia de subsistência, o gado possui um papel importante como investimento e reserva de valor, onde as famílias podem depositar suas pequenas economias. Em muitos casos – e também no caso Xakriabá – esta atividade acaba ganhando o peso de principal produto a ser levado ao mercado, podendo significar promessa de autonomia e emancipação econômica. Entretanto, os problemas ambientais evidentes de uma pecuária extensiva em uma área seca e confinada são também agravados pelas limitações de uma economia de baixa produtividade e com frágeis relações regionais.

Tabela 5

Criação de animais - T.I.X. - 2004

Animal Número de domicílios % do total de domicílios

entrevistados Galinha 692 81,4% Cavalo 341 40,1% Porco 296 34,8% Vaca leiteira 186 21,9% Novilha 181 21,3% Égua 169 19,9% Bezerro 136 16,0% Jegue 115 13,5% Boi de carro 84 9,9% Touro 81 9,5%

Cocá (galinha d'angola) 77 9,1%

Potro(a) 67 7,9%

Vaca para abate 45 5,3%

Fonte: Pesquisa “Conhecendo a Economia Xakriabá”, 2004.

O rápido processo de transformação demográfica, política, cultural, ecológica e econômica vivenciado no espaço social ocupado pelos Xakriabá nas últimas décadas levou a novas formas de articulação sócio-política e de organização ecológico-econômica dessa população. Dadas as especificidades locais do povo Xakriabá (em particular, a terra coletiva e a identidade étnica), a atual tendência de organização dessa população pressupõe um avanço econômico que melhore suas condições de vida e não se traduza em transformações rápidas e violentas a ponto de comprometer o maior patrimônio que possuem - sua esfera cultural e ecológica. Um desenvolvimento que preserve esse patrimônio, sem subordiná-lo aos valores de mercado característicos da sociedade capitalistas, pode ser caracterizado como um etnodesenvolvimento. Em outros termos, o etnodesenvolvimento é “algo que trata da autonomia dos índios, da valorização de seus saberes tradicionais e do respeito às formas escolhidas por eles para construir seus projetos de futuro(...)” (BARROSO-HOFFMANN e SOUZA LIMA, 2002).

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Há fortes indícios de que os dados relativos ao rebanho bovino, aqui apresentados, estão subestimados, sendo que particularmente aquelas famílias que possuem maior rebanho informaram um número de cabeças menor que o real, por razões diversas, tais como receio de tributação, expectativa de ganhos futuros, entre outros.

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Na seção seguinte busca-se discutir a realidade sócio-econômica dos Xakriabá e as possibilidades de um desenvolvimento econômico do Território que signifique geração de renda e melhora do bem-estar da população e ao mesmo tempo seja compatível com a idéia de etnodesenvolvimento.

4 Etnodesenvolvimento e a produção de caráter popular e solidário

O povo Xakriabá apresenta características peculiares que devem ser levadas em conta ao se pensar o quadro econômico do seu território: a identidade étnica, a terra coletiva e predomínio da “moral” e da “tradição” como centro de referência dos valores sociais. De acordo com Santos (1997), a sociedade Xakriabá constitui-se como produto de uma ordem moral que, se pensada como um modelo, pode ser apresentada nos termos de uma ética camponesa. Tal ética é caracterizada por Woortmann (1990, p. 23):

[...] existem certas categorias comuns às sociedades camponesas em geral, como terra, família e trabalho. O importante, contudo, não é que sejam comuns — pois elas estão presentes, também, em culturas urbanas — mas que sejam nucleantes e, sobretudo, relacionadas, isto é, uma não existe sem a outra. Nas culturas camponesas, não se pensa a terra sem pensar a família e o trabalho, assim como não se pensa o trabalho sem pensar a terra e a família. Por outro lado, essas categorias se vinculam estreitamente a valores e a princípios organizatórios centrais, como a honra e a hierarquia. Pode-se opor este tipo de sociedade às sociedades modernas, individualizadas e voltadas para o mercado; em outras palavras, pode-se opor uma ordem moral a uma ordem econômica.

O conceito de etnodesenvolvimento pode constituir um referencial para se pensar as novas formas de organização que vêm se configurando no Território Xakriabá, visto que é desejável que os fatores que caracterizam a identidade da população não sejam radicalmente transformados pela modernização sócio-espacial imposta pelo entorno no qual o Território se insere. A economia mainstream ou tradicional, centrada no estudo da formação de preços no mercado e baseada em escolhas racionais maximizadoras do lucro ou benefício, apresenta grandes limitações para tratar das questões apresentadas (GOMES e MONTE-MÓR, 2006). Mesmo a economia política se apresenta inadequada a esse contexto, na medida em que se apóia em categorias da economia capitalista, como trabalho assalariado, lucro, propriedade privada, renda da terra, ganhos tecnológicos, economias de escala ou de escopo, entre outras (CLEMENTINO e MONTE-MÓR, 2006).

Na dimensão de emancipação presente no discurso etnodesenvolvimentista deve-se inserir a necessidade de formas de organização por parte das comunidades em questão. Nesse sentido, a organização em torno de formas de produção de caráter popular e solidário parece compatível com o conceito de etnodesenvolvimento, como se verá a seguir.

Segundo Monte-Mór (2006), a economia popular, no sentido proposto por Coraggio (1994) consiste em uma alternativa à exclusão crescente promovida pelo capitalismo contemporâneo, sendo marcada por objetivos distintos dos da acumulação capitalista e da economia do setor público, estando articulada em torno de relações sociais predominantemente não-capitalistas. A economia popular estaria “centrada no fundo de trabalho, integrando ações políticas e econômicas e criando formas de articulação, de baixo para cima, do poder sócio-político à dimensão econômica, capazes de contrabalançar e negociar com o poder exercido pela economia empresarial capitalista mundial” (MONTE-MÓR, 2006, p. 5).

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A unidade básica da economia popular é a doméstica, que pode ser conduzida a nível unipessoal, familiar, comunitário, associativo e/ou cooperativo, além de grupos étnicos, religiosos, organizações não-governamentais, profissionais liberais, entre outros, que lançam mão de seu fundo de trabalho (capacidades de trabalho de seus membros potencializadas pelos meios de trabalho disponibilizados) para garantir melhores níveis de “reprodução ampliada” da vida (MONTE-MÓR, 2006).

Uma característica importante da economia popular, que a diferencia da capitalista, é a não-divisão entre meios de trabalho e meios de vida, ou seja, os meios de trabalho disponibilizados podem ser aqueles utilizados pelas unidades domésticas para sua reprodução diária; em outras palavras, produção e reprodução se confundem em busca da reprodução da vida (e não do capital, como ocorre no capitalismo).

Ao se comprometer com a reprodução ampliada da vida, a economia popular vai além da busca da competição e da acumulação internacionais e tem como eixos centrais a educação e a conscientização para a construção do desenvolvimento sócio-econômico (CORAGGIO, 1994). De fato, como demonstram Santos e Rodríguez, o desenvolvimento alternativo sublinha a necessidade de tratar a economia como parte integrante e dependente da sociedade e de subordinar os fins econômicos à proteção destes bens e valores, sendo “contra a idéia de que a economia é uma esfera independente da vida social, cujo funcionamento requer o sacrifício de bens e valores não-econômicos – sociais, políticos, culturais e naturais -, o desenvolvimento alternativo” (SANTOS E RODRÍGUEZ, 2002, p. 46).

Além disso, o potencial emancipatório e as perspectivas de êxito de uma organização da produção alternativa ao sistema capitalista dependem, em boa medida, da integração que consigam entre processos de transformação econômica e processos culturais, sociais e políticos. Ainda que a produção seja uma parte essencial das iniciativas porque providencia o incentivo econômico para a participação dos atores, a decisão de empreender um projeto alternativo e a vontade diária de o manter dependem igualmente das dinâmicas não-econômicas – culturais, sociais, afetivas, políticas, etc. – associadas à atividade de produção (SANTOS e RODRÍGUEZ, 2002, p. 64).

Entretanto, o sentido solidário, marcado por formas coletivas, associativas e/ou cooperativas de organização da produção e do consumo, não está necessariamente presente nessa forma popular. Segundo Gomes e Monte-Mór (2006, p. 20)

o sentido da solidariedade é culturalmente construído a partir de cimentos sociais e morais no interior das unidades domésticas, as quais podem ser pensadas a partir de relações familiares, sociais, políticas, religiosas, entre outras, sempre implicando coesão social e sentido da reprodução ampliada coletiva.

No caso específico dos Xakriabá, a propriedade coletiva da terra e a organização das relações sócio-políticas, feita parcialmente em torno da base familiar/coletiva na qual as relações de reciprocidade são predominantes, podem consistir nesse “cimento social e moral” capaz de construir a dimensão solidária da economia popular. Dessa forma, a organização da produção Xakriabá poderia ser erguida sobre as bases de uma economia popular e solidária, combinando integração sócio-cultural e sustentabilidade econômico-ecológica .

Além disso, por consistir em um ajuste estrutural exigido pela globalização, a economia popular possibilita a integração sócio-espacial e econômica (além de cultural e política) entre os subsistemas das economias urbanas (e rurais) (MONTE-MÓR, 2006). No caso do desenvolvimento pensado para populações tradicionais, como é o caso do Território em estudo, fortalecer a economia local e ao mesmo tempo fortalecer as relações desta com os mercados externos significa articular-se às formas de produção diferentes daquelas desenvolvidas internamente, pois definidas em uma economia de mercado. A idéia de economia popular permite compreender a peculiaridade dessa inserção.

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Sendo assim, acredita-se que o conceito de economia popular possa se adequar às necessidades do Território Xakriabá, constituindo referencial para novas formas de produção e de trabalho que se constituam na região em busca de uma melhora das condições de produção e de vida. A organização em torno de uma economia popular poderia ocorrer em vários níveis de unidades domésticas: o nível familiar seria o mais comum, dado o histórico de produção do Território em torno da família nuclear, como descrito no capítulo anterior. Além disso, a produção pode ocorrer em torno da família estendida (grupos de famílias ou gerações reunidos em torno de uma família) ou de grupos maiores, como associações de produtores, associações de grupos de aldeias e até mesmo toda a comunidade.

A organização em torno de uma economia popular deve privilegiar, ainda, a articulação com outros mercados e produtores em redes, privilegiando a troca de informações intra e inter-sistema de economia popular (MONTE-MÓR, 2006, p.16). Conforme Santos e Rodríguez (2002, p.53), “no campo da produção, a fragilidade das alternativas existentes torna necessária a articulação destas entre si – em condições que devem ser negociadas para evitar a cooptação e o desaparecimento das alternativas -, com o Estado e com o setor capitalista da economia”. De fato, o caráter contra-hegemônico das alternativas e a necessidade de competir com padrões de produção capitalistas fazem com que essa articulação seja necessária.

5 Formas atuais de organização da população Xakriabá e algumas políticas

públicas empreendidas na reserva

No que se refere às políticas públicas indigenistas, o etnodesenvolvimento pode se afirmar como alternativa emergente à política tutelar, a qual, embora já tenha sido extinta oficialmente, ainda encontra resquícios tácitos em diversas ações governamentais (BARROSO-HOFFMANN e SOUZA LIMA, 2002, p.17). Partindo-se do pressuposto de que o conceito de etnodesenvolvimento tem como principal pilar a autonomia sustentada dos povos indígenas, acredita-se aqui que, para que esta se concretize, são necessários primordialmente dois tipos de ações: o primeiro consiste nas formas de organização das populações indígenas, as quais expressam precisamente a colocação em prática da autonomia; o segundo são as políticas públicas que auxiliem na promoção do etnodesenvolvimento. Diferentemente de se pensar o papel estatal como de tutela, trata-se, ao contrário, de conceber as políticas públicas indigenistas como um importante passo para o fomento de condições que possibilitem a efetivação das práticas etnodesenvolvimentistas.

Nas últimas décadas, observou-se, no território Xakriabá, a efervescência de diversos movimentos que buscam resgatar a identidade indígena e lutar por melhorias no âmbito social e produtivo.

A organização sócio-política emergente na Reserva Indígena constitui um movimento no sentido de superação dos entraves ao desenvolvimento sócio-econômico da região. Atualmente, as Associações de aldeias Xakriabá têm buscado, junto com a Prefeitura, uma maior organização política e produtiva, de modo a gerir de maneira eficaz os recursos e toda forma de auxílio proveniente de atores externos, como ONGs ambientalistas, universidades e órgãos do setor público como a FUNAI e o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Além do incremento produtivo, essa organização pretende organizar e consolidar as trocas internas e as relações de compra e venda com os mercados externos.

A criação das duas primeiras associações Xakriabá ocorreu nos anos noventa. Desde então, foram criadas mais oito associações, além de uma associação de professores. Esses órgãos têm tido papel cada vez mais relevante na condução de projetos comunitários e na gestão de recursos públicos de projetos contratados junto aos ministérios do Desenvolvimento Agrário

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e do Meio Ambiente, entre outras fontes. No entanto, são grandes as dificuldades de trabalho, sobretudo devido à dificuldade com a burocracia existente nos órgãos estatais.

Outro fator influente na organização sócio-produtiva da Reserva é a conquista da prefeitura e de cinco cargos na Câmara Municipal por índios Xakriabá em 2005, o que significa a possibilidade de que um volume maior de recursos públicos seja destinado ao Território. Além da criação das associações e da movimentação política, uma série de acontecimentos recentes na Reserva, ainda que marquem uma maior integração sócio-territorial à sociedade capitalista, podem representar potencialidades no sentido da mobilização das comunidades em torno de um etnodesenvolvimento:

o grande avanço da escolarização, o aumento da renda familiar devido a uma presença maior do Estado em serviços de educação, saúde, previdência social e programas de transferência de renda; a melhoria das condições de infra-estrutura sanitária, além da melhoria das estradas pela prefeitura municipal e o aumento dos meios de transportes individuais e coletivos (GOMES e MONTE-MÓR, 2006, p. 14).

Algumas iniciativas relacionadas a alternativas de produção encontram-se em andamento no Território, como projetos para a produção comunitária de peixes, a implantação de casas de farinha, o crescimento da atividade do artesanato, o aumento da construção civil movido em parte por demandas do setor público, como a construção de cisternas para água de chuva e investimentos em saneamento pela Funasa (GOMES e MONTE-MÓR, 2006). Um dos problemas crônicos da economia Xakriabá, qual seja, a necessidade constante de compras externas, foi em parte minimizado através da implantação, desde janeiro de 2005, do sistema de intermediação da CONAB (Companhia Nacional de Abastecimento). Este órgão compra produtos locais que são repassados pela prefeitura às escolas. Além de possibilitar um aumento da renda dos produtores que conseguem vender seus produtos à CONAB, tal sistema permite que os alunos tenham acesso à uma alimentação mais saudável, e também significa um incremento dos recursos destinados à merenda escolar, uma vez que a verba repassada pela Secretaria Estadual de Educação se manteve. Outra vantagem propiciada pelo sistema, apontada por Emanuel Custódio Fraga, secretário municipal de Agricultura, é o fato de que a renda gerada através dele pôde auxiliar na amortização dos empréstimos do PRONAF B. Com a implementação do programa, o município de São João das Missões chegou a atingir o menor índice de inadimplência de toda a jurisdição de Montes Claros e, na Reserva, não houve inadimplência.

De acordo com o Secretário de Agricultura do município de São João das Missões Secretário Municipal de Agricultura, o PRONAF B† atende aos pequenos agricultores da Reserva fornecendo-lhes empréstimos que podem ser amortizados em até dois anos. Desde janeiro de 2005, foram destinados R$ 1 600 000,00 à Reserva, repassados pela Prefeitura. Cerca de 95% da verba do PRONAF B na Reserva é destinada para o rebanho bovino. O Secretário mencionou a necessidade de maior diversificação produtiva, apontando, como principais vantagens, o auxílio na diversificação da merenda escolar e a minimização dos impactos ambientais trazidos pelo gado. Cada produtor pode vender até que se atinja um limite no valor estabelecido pela CONAB.

Outra iniciativa interessante é a criação da COOPERMIS, Cooperativa dos Pequenos Produtores Rurais de São João das Missões, estimulada pela Secretaria Municipal de Agricultura, e que vem sendo concluída. De acordo com informação do Secretário da

Até 2002, o PRONAF B era disponível apenas para os agricultores do Nordeste, tendo sua cobertura ampliada nos anos de 2003 e 2004. Ver

https://www.planalto.gov.br/consea/exec/noticias_antigas.cfm?cod=4544&ano=2005 Acesso em 14/03/2007.

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Agricultura, 70% da diretoria da cooperativa é composta por Xakriabás. A cooperativa pretende ser diversificada, atuando tanto no ramo da produção como no do consumo. Algumas das vantagens da Coopermis apontadas pelo secretário seriam a facilitação da compra de sementes, a priorização concedida por muitas entidades, como a PETROBRAS, em negociar com cooperativas, quando, por exemplo, da discussão da produção de biodiesel com pinhão-manso, além da facilitação do escoamento da produção para os índios, já que, através da cooperativa, não é necessário que eles tenham o cartão de produtor rural. O fato de muitos beneficiários do PRONAF estarem dentro da cooperativa também facilita a sua atuação, já que ela passa a ter acesso a mais vantagens.Algumas das atividades econômicas apontadas pelo secretário que poderiam auxiliar na diversificação da cooperativa são: a produção de laticínios via o PCPR (Programa de Combate à Pobreza Rural), a produção de frutos do cerrado, e a produção de açúcar utilizando-se a cana-de-açúcar da própria Reserva.

6 Considerações finais: a especificidade das condições de pobreza e

inserção sócio-econômica

Ao se tratar a situação de populações tradicionais, pensar a pobreza apenas em termos monetários significa deixar de lado características inerentes ao modo de vida dessas populações que são importantes e imprescindíveis em uma análise realista. No entanto, numa sociedade como a Xakriabá, que passa por um crescente processo de monetarização, a análise da pobreza monetária é, ainda que insuficiente, indispensável. As Tabelas 6 e 7 ilustram a entrada de dinheiro no Território Xakriabá entre julho de 2003 e julho de 2004.

Tabela 6

Domicílios que recebem rendimento monetário – T.I.X. – 2004

Rendimento % de domicílios entrevistados Bolsa Escola 31,5% Trabalho temporário 30,5% Aposentadoria 30,4% Salário fixo 14,9% Empreitada 13,4% Bolsa Família 7,3% Vender gado 6,6%

Vender porco e galinha 5,7% Outras fontes de renda 4,4% Cuidar de casa 2,8%

Lavar roupa 1,7%

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Tabela 7

Características da distribuição do rendimento anual (excluindo trabalho temporário) – T.I.X. – 2004

Rendimento anual total do domicílio Valor (R$)

Média R$ 723,97 Mediana R$ 0,00 Desvio-padrão R$ 1.465,38 Mínimo R$ 0,00 Máximo R$ 8.588,00 Total R$ 613.927,00

Fonte: Pesquisa “Conhecendo a Economia Xakriabá”, 2004

Apenas 408 domicílios (48,1%) declararam rendimento monetário positivo. Cerca de 30% dos domicílios declararam receber rendimentos de trabalho temporário e aposentadoria. 31,5% e 7,3% declararam receber os programas Bolsa Família e Bolsa Escola, respectivamente. A renda anual declarada média, incluindo os domicílios que declararam renda nula (51,9%) é de R$ 723,97, o que equivale a um valor mensal de R$ 60,33. O desvio-padrão mensal é igual a R$ 122,11, o que revela a relativa desigualdade de renda dentro da população Xakriabá.

Enfatize-se novamente que, apesar da crescente monetização vivenciada no território ao longo dos últimos anos e da ligação com mercados e agentes externos à reserva, a população Xakriabá guarda características de uma sociedade tradicional, características essas expressas em suas relações de troca e nas formas de convivência e de organização social.

Assim, enseja-se, em eventuais futuros trabalhos, a formulação de diversas questões, tais como: Qual seria o conceito de pobreza mais aplicável à realidade das populações tradicionais em geral e especificamente da população Xakriabá? Haveria um único conceito adequado ou a transição econômica pela qual a população vem passando nas últimas décadas permitiria uma abordagem transitiva também em relação ao aspecto conceitual, isto é, a aplicação de conceitos diversos relativos a matrizes sociais também diversas, cada uma dela com características semelhantes às da sociedade Xakriabá? Como ocorreria uma adequação correta de tal (is) conceito (s) à temática etnodesenvolvimentista?

Para se responder a tais questões, faz-se necessário um intenso debate interdisciplinar. Questões profundas e delicadas como as aqui tratadas só podem ser solucionadas através de diálogo entre as diversas esferas do conhecimento envolvidas, as quais não são apenas as do saber acadêmico, mas envolvem também, impreterivelmente, as formas de conhecimento da população Xakriabá. A apresentação dessa importante premissa dá espaço para que concluamos este trabalho com a seguinte colocação: a única resposta da qual de fato dispomos é a de que, sejam quais forem os caminhos a serem seguidos pela população e pela economia Xakriabá, estes devem partir de escolhas da própria população, e não impostos por quaisquer agentes externos a ela.

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Referências

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