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Reconstituindo famílias escravas

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Academic year: 2021

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Reconstituindo famílias escravas

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Maísa Faleiros da Cunha♣♣♣♣

Palavras-chave: população escrava; século XIX; Franca (SP).

Resumo

O presente trabalho busca mostrar as possibilidades e/ou dificuldades na reconstituição de famílias escravas a partir de duas fontes documentais: a lista nominativa de habitantes e os registros paroquiais (batismo, casamento e óbito). As questões que o norteiam são: como a família escrava se manifesta nessas fontes?; é possível o resgate de suas histórias?; a partir da reconstituição dessas famílias há possibilidades de se mensurar indicadores demográficos para a população escrava? Esperamos, através do cruzamento das fontes citadas, acompanhar as famílias e indivíduos a fim de apreender elementos para desvendar histórias como a de Antonio, Francisca e seus filhos, assim como as de outros escravos inseridos em uma economia voltada para o abastecimento interno em meados dos oitocentos em uma vila do norte paulista.

* “Trabalho apresentado no XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em

Caxambú-MG – Brasil, de 18 a 22 de setembro de 2006”.

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Reconstituindo famílias escravas

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Maísa Faleiros da Cunha♣♣♣♣ Introdução

No dia quinze de novembro de 1821, às dez horas da manhã de uma quinta-feira, era celebrada na Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição de Franca o matrimônio de Francisco e Antonia escravos de Mateus Inácio de Faria1. Consta no registro de casamento deste casal,

além de seus prenomes e o nome do proprietário, o nome de duas testemunhas: João Paulo de Sousa e João Antonio de Faria, ambos livres.

Antonio e Francisca eram naturais da África e a idade estimada ao se casarem seria de 16 anos. Certamente trabalhavam no cultivo de gêneros alimentícios e Antonio também lidava com o gado vacum. A união desse casal cativo foi relativamente longa, estável e profícua, pois Francisca e Antonio batizaram onze filhos entre março de 1822 e julho de 1842. Até 1835, ano de realização de um levantamento de população, pelo menos oito crianças filhas do casal haviam sido levadas ao batismo na Igreja Matriz: Eva, Manoel, Maria, Miguel, Rafael, Gabriel, Sebastião e Fortunato2.

A morte não deixou intocada a família de Francisca e Antonio3. No ressequido mês de agosto de 1825, faleceu Manoel de um ano e seis meses, cuja causa mortis foi uma “rotura” (sic). O pequeno garoto foi enterrado no “cemitério desta Matriz” envolto em pano branco.

De acordo com a Lista Nominativa de Habitantes de 1835-1836, a posse de Mateus Inácio de Faria era composta por dezenove cativos, dos quais oito pertenciam a uma mesma família, qual seja, o casal Francisca e Antonio e seis de seus prováveis filhos sobreviventes: Eva com 13 anos de idade, Miguel de 8 anos, Rafael de 6 anos, Gabriel de 4 anos, Sebastião de 3 anos e Fortunato de 1 ano. Ou seja, essa família representava 42,1% da escravaria. E essa participação pode ter sido ainda mais significativa, uma vez que outros três filhos de Antonio e Francisca nasceram após 1835: Fortunato, Faustino e Domingos4. Após o batismo

* “Trabalho apresentado no XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em

Caxambú-MG – Brasil, de 18 a 22 de setembro de 2006”.

Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Demografia (NEPO/IFCH/UNICAMP).

1

Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Casamentos n. 1.

2 Eva batizada em 10/03/1822 aos oito dias de vida, Manoel (31/12/1823 – 8 dias), Maria (21/03/1826 – 8 dias),

Miguel (20/11/1827 – 14 dias), Rafael (04/10/1829 – 10 dias), Gabriel (21/04/1839 [sic] – 1 mês), Sebastião (11/08/1833 – 8 dias) e Fortunato (20/07/1835 – 8 dias). Supomos que Gabriel tenha nascido entre 1830 e 1831 (sobre a idade de Gabriel ver nota 3). Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livros de Batismo n. 1 e 2. Neste trabalho atualizamos a ortografia das palavras.

3 De acordo com os registros de óbitos, podemos afirmar que dois filhos de Antonio e Francisca faleceram:

Manoel (em 12/08/1823 então com um ano) e Gabriel de dois (06/05/1838) (há a filiação das crianças). Em relação a Gabriel, o registro de batismo data de 1839 (refere-se a uma criança filha de Antonio e Francisca escravos de Mateus Inácio de Faria). Uma criança de nome Gabriel foi listada em 1835 com 4 anos no fogo de Mateus Inácio de Faria. Acreditamos ter ocorrido uma das possibilidades: omissão do batismo de Gabriel (nascido por volta de 1830-1831), erro na data de batismo ou de óbito ou na idade presente no registro de óbito. Resta dúvida quanto o registro de Maria falecida em 23/08/1827 (sem informação da filiação e idade) enterrada no cemitério da matriz, envolta em pano branco de “moléstia incógnita”. Como veremos adiante, Maria não é listada no fogo de Mateus Inácio de Faria em 1835, o que nos leva a crer que o óbito se trate de Maria filha de Antonio e Francisca batizada em 1826. Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Óbitos n. 1.

4 Fortunato (09/04/1837 – 10 dias), Faustino (26/12/1840) e Domingos (11/07/1842 – “ingênuo”). É curioso

haver dois filhos com o mesmo nome, nesse caso, Fortunato. No entanto, não sabemos se houve erro por parte do pároco em repetir um registro de batismo (não encontramos dentre os registros de óbitos de escravos de Mateus Inácio de Faria a menção a Fortunato) ou de um caso de necronymic name, ou seja, o nome de um irmão

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de Domingos (em 1842), não há mais referências à família de Francisca e Antonio nas fontes consultadas5.

A reconstituição dessa família e de outras mais que viveram no município de Franca6 serviram de experiência para testar as possibilidades e/ou dificuldades no trabalho com as fontes documentais (Lista Nominativa de Habitantes de 1835-36 e os registros paroquiais de batismo, casamento e óbito) privilegiadas pela pesquisa que venho realizando7. De pronto, essa primeira incursão na reconstituição de famílias levantou duas questões: o número de famílias reconstituídas permitiria a mensuração de indicadores demográficos?; a experiência familiar de Antonio e Francisca é semelhante ou não daquela vivida por outras famílias da mesma localidade e dos escravos de outras áreas escravistas? Por outro lado, aponta pistas para o estudo de vários aspectos, que a bibliografia internacional tem tratado, como por exemplo: a formação da família escrava em áreas de fronteira, a caracterização dessas famílias, os arranjos familiares diante da instabilidade, o sistema de nomeação dos escravos, dentre outros.

Essa comunicação tem como objetivo principal trazer para a discussão a metodologia de trabalho aplicada na reconstituição de famílias do segmento cativo da população e apontar as possibilidades e dificuldades encontradas.

Metodologia e fontes documentais utilizadas na reconstituição de famílias escravas

O parentesco cativo não é mencionado na Lista Nominativa de Habitantes de 1835-368 para Vila Franca do Imperador. Para se identificar possíveis laços familiares entre os escravos tivemos que recorrer aos registros paroquiais. O cruzamento dessas fontes permitiu que trajetórias familiares como as de Francisco e Eufrásia, Vicente e Joaquina, Inácio e Juliana e de vários outros escravos viessem à tona9.

Para realizar este trabalho, contrastamos duas listagens: 1.a de proprietários de casais escravos registrados nos livros de casamento da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição de Franca e 2. a dos chefes de domicílios que possuíam escravos na Lista Nominativa de Habitantes de 1835-1836. Selecionamos os proprietários que estavam nas duas listas e os escravos que se casaram e que pertenciam a eles.

Em seguida, verificamos se o casal escravo arrolado no registro de casamento se encontrava no domicílio do mesmo proprietário quando foi realizado o levantamento da Lista de 1835-36.Se o casal estava presente no domicílio, ele foi inserido na amostra. Dessa forma, conseguimos selecionar 96 casais escravos, presentes naquela lista, que se encontravam em

já falecido é reempregado com o nascimento de uma criança. Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livros de Batismo n. 2 e 3.

5 Esperamos ao longo de nossa pesquisa nos arquivos locais ampliar as fontes consultadas privilegiando outras listas nominativas, os inventários post mortem, processos crimes e as escrituras de compra e venda de escravos. Sabermos que Mateus Inácio de Faria permaneceu como proprietário de escravos até 1855, data do último registro paroquial referente a este senhor (Registro de óbito de Mateus 40 anos solteiro escravo de Mateus Inácio de Faria. Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Óbitos n. 2).

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Ao longo de boa parte do século XIX, a economia desse município estava voltada para o abastecimento interno (através da produção de gêneros de primeira necessidade) e o comércio com as tropas que seguiam o Caminho dos Goiases. Até a abolição da escravatura, a economia de Franca ainda se alicerçava na pecuária e produção de gêneros (milho, feijão, arroz, toucinho, tecidos de algodão e lã) para o abastecimento interno.

7 Nosso objetivo inicial é tentar adaptar a metodologia de reconstituição de famílias proposta por Louis Henry

(1977). No entanto, dado o conjunto relativamente restrito de fontes e a subenumeração dos óbitos,estamos

encontrando algumas dificuldades que esperamos superar ao longo da pesquisa, que ainda se encontra em sua fase inicial, alargando o escopo documental.

8 O levantamento da população na Vila Franca do Imperador foi realizado em quatro distritos no ano de 1835 e

em dois distritos em 1836.

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diferentes momentos do ciclo familiar: casais com famílias já estabelecidas há mais tempo, casais em famílias de formação recente e outros que só se casaram após 1835 (alguns de seus membros ainda eram crianças ou adolescentes quando foram arrolados na Lista Nominativa). Nossa amostra não se restringiu a esses casais cativos, também procuramos identificar o parentesco entre os demais escravos que se encontravam nas mesmas escravarias dos casais selecionados, os quais denominamos “grupo de parentes”. A partir do nome do proprietário do casal cativo, buscamos verificar se havia outras pessoas que fossem parentes entre si, no domicílio, consultando os registros paroquiais (batismo, casamento e óbitos). Dessa forma, conseguimos identificar novos casais (não encontrados nos registros de casamento) com e sem filhos, mães e filhos e irmãos presentes no domicílio, evidenciando outros casos de parentesco consangüíneo e por afinidade, entre os escravos de um mesmo domicílio.

De um total de 630 domicílios com cativos (40,1% dos domicílios da Vila) e uma população escrava total de 3.395 pessoas (32,7% da população da Vila), nossa amostra selecionou 60 proprietários, 96 casais escravos, com ou sem filhos, que em conjunto somavam 177 pessoas e 25 grupos de parentes que envolviam 62 cativos (mãe e filhos, irmãos, pai e filha, pai, mãe e filhos etc.). Dessa forma, chegamos a um total de 239 escravos (7% da população escrava total da Vila) inseridos em relações de parentesco na mesma escravaria em que se encontravam. Os sessenta proprietários de escravos selecionados possuíam 595 cativos em 1835-36 (17,5% do total de escravos da Vila). Assim, de um total de 595 escravos analisados em 1835-36, conseguimos identificar as relações de parentesco entre 239, ou seja, cerca de 40% dos cativos de nossa amostra possuíam parentes entre seus companheiros de cativeiro10.

A partir desses resultados, consideramos que o nosso primeiro exercício de reconstituição de famílias escravas atingiu seu objetivo, qual seja, o de destacar a potencialidade das fontes para o estudo da família escrava através do cruzamento de dados.

Dentre os 96 casais escravos de nossa amostra, a união entre 36 se deu após 1835, o que nos levou a não considerá-los como parentes na Lista Nominativa, pois o parentesco só se efetivaria no futuro. No entanto, encontramos cinco mulheres que se casaram após 1835 e que estavam com seus filhos ilegítimos no levantamento de população. Assim o parentesco entre essas mães e suas crianças considerado. Como nada sabemos sobre a paternidade das seis crianças ilegítimas, não consideramos como pais os futuros cônjuges das cinco mulheres.

Ao que parece, vinte e seis casais não tiveram filhos, pois não encontramos registros de batismos ou óbito de seus filhos. Desses casais, quatorze se uniram após 1835, dois se casaram em 1835 e dez, oficializaram suas uniões antes de 1835.

Após o levantamento, coleta e informatização das fontes partimos para o levantamento das informações.

A partir das duas listagens já citadas, abrimos uma ficha para cada proprietário selecionado onde anotamos o nome do proprietário, o número do distrito e quarteirão do fogo, os nomes dos cativos arrolados no registro de casamento, a data do matrimônio, as características demográficas presentes na Lista Nominativa de Habitantes referentes aos casais cativos, o tamanho da posse e os cativos que nela se encontravam em 1835-36. Em relação aos cativos que compunham as posses selecionadas, anotamos a idade, a cor e o estado conjugal. Nessas mesmas fichas copiamos os nomes dos indivíduos, sua filiação, se casado ou viúvo, o nome do cônjuge, a idade e as datas dos eventos arroladas nos registros de casamento, óbito e batizado de escravos pertencentes ao proprietário selecionado.

Finalizada esta etapa, passamos à reconstituição de famílias: quais os filhos tidos pelo casal selecionado, assim como os óbitos do casal e das crianças. Em seguida, verificamos

10 É importante ressaltar que esses resultados se referem a um ponto específico no tempo (1835). O que implica

em possíveis variações na proporção de escravos inseridos em famílias se um estudo semelhante fosse realizado em uma outra data.

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quais os membros da família reconstituída poderiam estar arrolados na Lista Nominativa de Habitantes de 1835-36. Em uma planilha de Excel anotamos a identificação do fogo onde se encontrava o casal escravo, o número de filhos tidos, o tamanho da posse, o número de parentes que estavam presentes na Lista Nominativa de Habitantes e o tipo de parentesco observado em 1835-36 (cônjuges, pai/mãe/filhos, mãe/filhos, padrasto/mãe/filhos, etc.).De forma similar, reconstituímos as famílias dos demais escravos que compunham a posse.

Nesse processo, as dificuldades e incertezas não foram poucas. Além da morosidade em que se processa o trabalho de reconstituição que exige muita atenção, observamos incoerência quanto às idades registradas, existência de pessoas homônimas, indivíduos que deixaram de constar nos registros, datas desencontradas, enfim, uma série de lacunas, omissões e falhas, pedras já conhecidas no percurso dos historiadores11.

No tocante às idades, citemos um exemplo. Inácio e Juliana, escravos de Hilário Dias Campos, casaram-se em fevereiro de 1832 às quinze horas12. Na Lista Nominativa, Hilário era chefe de um fogo no distrito da Vila e possuía seis cativos: João, Inácio, Silvéria, Juliana, Maria e Faustino13. De acordo com a Lista Nominativa de 1835-36, Inácio tinha 21 anos e era casado e Juliana contava com vinte anos (sem informação do estado conjugal). Teriam se casado com 18 e 17 anos respectivamente. Quando Inácio faleceu em novembro de 1840, seu registro de óbito informou a idade de 30 anos (se considerássemos a idade presente na Lista ele teria por volta dos 26 anos)14. É difícil optar por uma ou outra fonte, uma vez que ambas são aproximações da idade desse escravo.

Os registros de batismo atestam que Inácio e Juliana batizaram três filhas (Maria, Eva e Umbelina) entre 1835 e 183915. Maria veio a falecer de “defluxo” em três de fevereiro de 1837 e sua irmã Umbelina de “febre” em dois de outubro de 1841, ambas falecidas com dois anos de idade (significativa parte dos registros de óbitos de crianças indica a filiação)16. Após a morte de Inácio, a viúva Juliana teve então mais três filhos ilegítimos: Gabriel (1841), Paulo (1843) e Vicente (1846)17.

Maria faleceu com dois anos de idade, assim como Umbelina, o que mostrou coerência entre os registros de batismo e óbito (Maria foi batizada aos vinte e cinco de janeiro de 1835 com 17 dias e Umbelina aos treze de março de 1839). Segundo a Lista Nominativa, Maria teria um ano de idade quando foi arrolada no levantamento de população. Assim, a discrepância de idades verificada nessa família foi relativamente pequena entre as duas fontes.

O que observamos ao trabalharmos com os registros de óbitos de adultos foi a preferência pelas idades terminadas em zero e as nítidas aproximações: 30 e tantos anos, 80 e tantos, 40 anos mais ou menos. Em relação aos óbitos de crianças, havia maior verossimilhança com os registros de batismo, uma vez que a chance de erro era menor em poucas idades. No entanto, como não tivemos acesso aos registros de batismo de um grande número de adultos tivemos que considerar a idade arrolada na Lista Nominativa. Pudemos perceber que diversas idades presentes nos registros paroquiais de batismo e óbito quando contrastadas com as informações da Lista estavam corretas, no entanto, sabemos que as discrepâncias estão presentes tanto nos registros paroquiais como nas listas nominativas, mas

11

Dificuldades até certo ponto já esperadas levando-se em conta os objetivos almejados na origem e produção de tais fontes.

12 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Casamentos n. 2.

13 João e Silvéria se casaram em 1838. Na ficha deste casal não mencionamos parentesco na Lista de 1835, mas

colocamos a observação de que se casaram depois de 1835 (assim como o nascimento de seus filhos é posterior ao matrimônio).

14 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Óbitos n. 1.

15 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Batizados n. 2.

16 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Óbitos n. 1.

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assumimos o risco para termos uma referência temporal dos eventos que marcavam a vida dos escravos.

Perante homônimos entre os escravos, saímos à procura de outras características que os individualizasse: como a cor, naturalidade e estado conjugal. Como essas informações nem sempre aparecem na Lista Nominativa e nos registros paroquiais, eliminamos os casais em que não conseguíamos identificar claramente o parceiro.

No entanto, isso raramente ocorreu, uma vez que homônimos entre os escravos de um mesmo proprietário não eram comuns. A leitura de autores, que se dedicaram aos sistemas de nomeação entre os escravos norte-americanos, afirma que os escravos africanos ao serem batizados recebiam um nome (de preferência) cristão, o que permitia ao proprietário identificá-lo e, ao mesmo tempo, suprimia sua identidade individual anterior ao cativeiro18. Contudo, havia uma tentativa dos escravos em respeitar a individualidade das crianças: era incomum a repetição de nomes de irmãos falecidos (Cody, 1982). Observamos que em Franca tal prática ocorria, mas não era tão difundida19. A repetição de nomes entre distintas gerações também foi constatada (nomes de pessoas mais velhas sendo empregados entre os netos ou outros escravos da senzala sem relação explícita de parentesco).

Felícia, uma escrava de Simão Ferreira de Meneses, teve dois filhos ilegítimos: Jerônimo e Rita (batizados respectivamente em 1825 e 1827) antes de se casar com o preto Jacob em 182820. Dada a proximidade entre o nascimento dos filhos e o ano do casamento, Jacob certamente era o pai das duas crianças. Depois de unida formalmente, nasceram mais três filhos: Domingos (1829), Magdalena (1833) e João (1836), este último faleceu em 184021.

Em 1835, estavam na posse de Simão Meneses, além de outros sete cativos, Jacob, Felícia, o menino Jerônimo (então com nove anos) e Madalena de quatro anos. Felícia faleceu em agosto de 183722. Em 1849, Madalena batizou uma filha com o nome de Felícia23. Em 1863, o casal Domingos e Maria (o registro de casamento data de 1855) batizou sua pequena filha Felícia24. Como podemos ver, as crianças escravas batizadas receberam o nome em homenagem à avó.

O desaparecimento de indivíduos das fontes também dificultou na reconstituição de famílias. Não raro, encontrávamos um mesmo homem ou mulher com cônjuges diferentes batizando seus filhos. Em alguns casos, não tivemos acesso ao registro de óbito de um dos cônjuges e nem ao registro de casamento do novo casal.

Em outros casos, apesar da existência dos registros, os erros parecem evidentes. Agostinho e Joana se casaram em 182825. Antes da morte de Joana em 1835, nasceu Brígida (presente na Lista Nominativa de 1835-36)26. Agostinho se casou novamente em 184827. Com sua nova esposa Esmeria teve mais quatro filhos batizados entre 1843 e 185428. No entanto, há um registro de batismo de 1844 em que consta como pais de Bernardino, João e Esmeria29.

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No Brasil, os africanos também eram batizados com nomes cristãos, uma vez que o Concílio de Trento (1533) proibiu a utilização de nomes pagãos ou não religiosos. Esta norma perdurou até o século XIX (Revista Nossa História, Editora Vera Cruz, Ano 3/ n.28, fevereiro 2003, p. 38).

19 Ver nota 4.

20 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Casamentos n. 1 e Livro de Batizados n. 1.

21

Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Batizados n. 1 e 2 e Livro de Óbitos n. 1.

22 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Óbitos n. 1.

23 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Batizados n. 3.

24 No registro de casamento consta que Domingos é filho de Jacob africano escravo e Felícia, falecida. Fonte:

Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Casamentos n. 3 e Livro de Batizados n. 5.

25 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Casamentos n. 1.

26 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Óbitos n.1 e Livro de Batizados n. 2.

27 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Casamentos n. 2

28 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Batizados n. 3 e 4.

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Certamente o vigário se confundiu ao nomear erradamente o pai dessa criança. Agostinho era companheiro de cativeiro de Antonio e Francisca, o casal de nossa introdução.

Se os nomes dos proprietários eram um norteador para a identificação de um escravo, os nomes dos escravos também auxiliaram no reconhecimento de um chefe de domicílio. Em razão da omissão de alguns sobrenomes de chefes de domicílio na Lista Nominativa de 1835-36, recorremos à escravaria para confirmar se o domicílio pertencia ao proprietário de escravos. Assim, nos registros paroquiais encontramos o proprietário Joaquim Correia de Oliveira e no levantamento populacional apenas Joaquim Correia. Ao conferir os nomes dos cativos, encontramos Joaquim, Benedita, Venceslau e João nos registros de casamentos e batizados e na Lista Nominativa como pertencentes a Joaquim Correia (de Oliveira)30.

Um outro obstáculo à reconstituição das famílias escravas refere-se aos diversos desmembramentos territoriais e a criação de novas freguesias nas localidades que compunham o município de Franca. Entre 1839 e 1885, cinco novas vilas se desmembraram de Franca: Batatais (1839), Cajuru (desmembrou-se de Batatais em 1865), Igarapava (1873), Ituverava (1885) e Patrocínio Paulista (1885). A Lista Nominativa de 1835-1836 traz o levantamento da população da Vila Franca dividido por distritos: Vila (Franca), Santa Bárbara (Patrocínio Paulista), Chapadão (Igarapava), Carmo (Ituverava), Cana Verde (Batatais) e Cajuru. È importante ressaltar que, antes do desmembramento territorial do município, novas freguesias foram criadas e suas paróquias responsáveis pela abertura de novos livros de registros de casamentos, batismos e óbitos.

Batatais foi elevada a freguesia em 1815. Certamente, os registros de Batatais e Cajuru se concentraram na paróquia de Batatais. Em 1835 foi criada a capela curada de Cajuru, as freguesias de Igarapava, Ituverava e Patrocínio Paulista são respectivamente dos anos 1851, 1847 e 1874 (Municípios e distritos de São Paulo, 1995). Estas informações a respeito da evolução político-administrativa do município acabam por dar sentido ao baixo número de proprietários do distrito de Batatais que casaram seus escravos na paróquia da Vila onde realizamos a coleta dos registros (apenas dois escravistas de Batatais e nenhum de Cajuru se enquadraram na seleção de nossa amostra). Assim estamos cientes de que para a reconstituição de famílias escravas na Vila Franca, seria necessário coletar os registros paroquiais de diversas localidades que compuseram o território original da Vila, tarefa em nada simples dada a sua extensão territorial (Ver Mapa 1 e Anexo 1).

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Mapa 1

Municípios de Batatais, Cajuru, Franca, Igarapava, Ituverava e Patrocínio Paulista (Região Norte de São Paulo), 1886 Batatais Franca Cajuru Patrocínio Paulista Igarapava Ituverava

Municípios de Batatais, Cajuru, Franca, Igarapav a, Ituverava e Patrocínio Paulist a

0 70 140 Kilometers

N

Fonte: IBGE, 2001. Secretaria de Economia e Planejamento, Coordenadoria de Planejamento Regional, Instituto Geográfico e Cartográfico – Municípios e distritos de São Paulo. Instituto Geográfico e Cartográfico. São Paulo: IGC, 1995.

Esses são obstáculos que podem ser transpostos, senão na sua totalidade, mas em boa parcela, através de um persistente e atencioso trabalho de cruzamento de dados juntamente com a utilização de um número maior de fontes históricas, como: censos de população, inventários post mortem, testamentos, escrituras de compra e venda de escravos, cartas de liberdade, processos crimes e cíveis, entre outros.

As famílias escravas

A família de Antonio e Francisca pode ser considerada uma bem sucedida família escrava (relativa estabilidade e duração longa da união, prole numerosa, baixo número de óbitos no período). O que poderia até surpreender, em uma região que pouco se assemelhava economicamente às plantations do Sudeste brasileiro, áreas de reconhecida estabilidade da família escrava (Florentino e Góes, 1997; Slenes, 1999). Mesmo que a trajetória familiar de Antonio e Francisca possa não ter sido a regra entre os escravos do município analisado, podemos dizer que a família escrava garantiu espaço para se efetivar em uma área onde a posse escrava se caracterizava por ser diminuta.

Pouco mais da metade dos cativos em Franca viviam em posses pequenas (menores de 10 escravos) em 1835-36. Nesse contexto de proprietários de poucos escravos, é evidente que os cativos das pequenas escravarias enfrentavam maiores dificuldades para formar uma família e mantê-la ao longo do tempo do que aqueles presentes em médias e grandes posses.

Em nossa amostra, pouco mais de dois terços das famílias escravas e grupos de parentes encontravam-se em posses com 10 ou mais cativos. Aproximadamente um terço dos cativos cujas famílias reconstituímos estavam em posses de 2 a 9 escravos, metade em escravarias com 10 a 19 escravos e por fim, 16,5% dos cativos encontravam-se em posses com 26 a 44 escravos31. O tamanho da escravaria era um fator relevante para o escravo (a)

encontrar um parceiro (a), pois como já verificou Slenes, havia maior número de escravos casados e viúvos em médias e grandes posses, ou seja, com 10 ou mais escravos (Slenes,

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1999, p. 71-72). Quanto maior o tamanho da escravaria mais chances o (a) escravo (a) tinha em encontrar um (a) parceiro (a)32, especialmente as mulheres dada a razão de sexo mais elevada entre os cativos adultos (aproximadamente 146)33.

É o que parece ter ocorrido na posse de doze cativos de Francisco Barbosa Sandoval em 1835. Além do casal Francisco e Eufrásia e seus três filhos (menores de 10 anos), estavam presentes nessa escravaria Maria e sua filha Narcisa (grupo de parentes), Joaquim de 40 anos, Domingos de 25 anos e Antonio com também 25 anos. Havia ainda no domicílio os escravinhos Januário de 6 anos e Luísa de 1 ano. Maria de 20 anos, mãe de Narcisa, era viúva de Paulo que faleceu em 183534. De acordo com os registros de óbitos de escravos desse

proprietário, dois cativos adultos faleceram em 1834: Gonçalo de 22 anos e João de 20 anos35. Como podemos ver, havia uma preferência por homens em idade produtiva nessa posse e, provavelmente, nem todos os cativos iriam encontrar uma parceira.

Como já dissemos, reconstituímos famílias escravas em diferentes momentos de seu ciclo familiar. Em relação aos casais escravos (total de 96), encontramos 51 que se uniram antes de 1835, nove que se casaram no ano de 1835 e 36 após 1835.

A reconstituição de famílias nos permitiu uma análise longitudinal desses casais (através do acompanhamento nos registros paroquiais) e uma fotografia da família escrava em 1835, a partir da Lista Nominativa de Habitantes.

Assim, a partir dos registros paroquiais, verificamos que 71 casais tiveram filhos ao longo de sua trajetória familiar e 25, aparentemente, não tiveram nenhum.

O parentesco escravo identificado através da Lista Nominativa de Habitantes de 1835, mostrou-nos que para aqueles casais que se uniram antes de 1835 (total de 51 casais – excluídos os que se uniram em 1835 e após 1835), o arranjo familiar pai, mãe e filhos predominou, num total de vinte e cinco. Em seguida, temos doze casais que mesmo tendo filhos antes de 1835, não se encontravam na companhia desses quando a Lista foi realizada. Um casal se encontrava com a filha ilegítima (pai ou padrasto?, mãe e filha), três casais tiveram filhos somente depois de 1835, portanto estavam apenas os cônjuges no domicílio do senhor, e dez casais, aparentemente, não tiveram filhos em momento algum.

No total de 25 grupos de parentes encontramos 62 pessoas com relações de parentesco entre seus companheiros cativos. Dentre esses, três casais se uniram em data posterior a 1835, oito arranjos familiares eram compostos pela mãe e seu (s) filho (s), sete por pai, mãe e filho(s), dois por irmãos, um por irmãs e sobrinha (uma irmã era mãe de uma menina), um por pai e filha, um por casal, um por padrasto, mãe e filhos e outro por padrasto e enteado (tivemos acesso ao registro de óbito dos pais das crianças).

A comprovação de existência da família escrava foi essencial para se contestar a historiografia tradicional que destacava a promiscuidade e ausência de laços familiares entre os escravos. Se por um lado, tal constatação ajudou a derrubar mitos e pré-noções, por outro, passou a ser um “padrão” procurado pelos historiadores, mas nem sempre encontrado. Devemos estar atentos às divergências quanto à caracterização da família escrava, pois diversos estudiosos demonstraram que as generalizações não são possíveis frente à diversidade de contextos e conjunturas do sistema escravista americano.

Ainda que houvesse uma preocupação dos estudos pioneiros sobre a estrutura familiar dos escravos se aproximar ou não de um padrão de família europeu (“nuclear”), devemos ter

32 Apenas 1,3% dos matrimônios de escravos arrolados na Paróquia de Franca entre 1807 e 1888 realizou-se

entre escravos de proprietários diferentes (CUNHA, 2005, p. 145).

33 A razão de sexo entre as crianças escravas (menores de 11 anos) era 104. Os valores foram calculados a partir

da população escrava masculina e feminina por idade presente na Lista Nominativa de Habitantes de 1835-36.

34 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Óbitos n. 1.

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sempre em mente que a concepção de família escrava muitas vezes divergia daquela do proprietário, ainda que aparentemente fosse identificada como “europeizada” (Cody, 1987).

Higman (1975) ao estudar a Jamaica, Barbados e Trinidad encontrou maior proporção de africanos em famílias nucleares do que entre os crioulos. Estes últimos tinham maior número de parceiros (as) vivendo em propriedades diferentes das suas, além das famílias estendidas serem compostas por maior número de crioulos. Assim, a família que se iniciava com uma matriz africana, ao longo de sua permanência em uma propriedade, complexificava suas relações de parentesco (família estendida) e ampliava sua rede de sociabilidades.

Ao analisarem a estrutura do domicílio escravo outros estudos encontraram proporções significativas de famílias nucleares, assim como redes de parentesco que se estendiam a outros parentes (Cody, 1982; Craton, 1979; Higman, 1973).

Encontramos a presença africana nas escravarias de Franca e assim como os africanos Antonio e Francisca, podemos citar Matheus e Mariana (Angola), Pedro (Angola) e Vicência (Banguela), Jose e Ana (Congo)36 e casais em que via de regra o marido era africano: João Congo e Joana (São Paulo), Joaquim (Angola) e Eva (São Paulo), Vicente (Angola) e Zeferina (Minas Gerais), Bento (Cabinda) e Eva (Franca), Lino (Angola) e Vicência (Franca)37.

Stevenson (1996), ao analisar a Virgínia, afirma que ao contrário das assertivas de Herbert Gutman, Eugene Genovese, John Blassingame, e mais recentemente, Ann Malone (1992), grande parte das crianças escravas não crescia com a presença dos dois pais, os papéis dos escravos homens como pai e marido eram diminuídos, e os escravos vivenciavam uma variedade de estilos maritais e domésticos, não justamente uma estrutura familiar nuclear.

Tais observações parecem ser recorrentes em comunidades escravas de áreas já estabelecidas e mais antigas que se viam diante de perdas de seus membros e, conseqüentemente, o esfacelamento da família escrava. Dessa forma, diante da instabilidade os escravos rearranjavam suas vidas domésticas e familiares, e se por um lado enfraqueciam laços paternos, ao mesmo tempo, reforçavam outros laços, como Cody (1982) verificou na Carolina do Sul. Após a divisão da propriedade de algodão e a separação da família escrava, os laços matrifocais e entre irmãs (que eram com mais freqüência permanecidas unidas) foram reforçados. Para o proprietário, a família nuclear tinha uma função reprodutiva com a permanência de pais e filhos de até 15 anos, ou seja, a partir de então os filhos eram separados de seus pais, com maior perda de vínculos para o escravo homem.

Conseguimos identificar a presença de irmãos escravos (ausentes as mães ou pais) em apenas três domicílios. O mais instigante e que merece um olhar mais cuidadoso se refere às irmãs Catarina e Joana, ambas crioulas. Seus pais, Manoel e Maria pretos se casaram em 1813 e tiveram seis filhos, dos quais quatro faleceram: um recém nascido (sem nome) morreu em 1816, Felíciana em 1820 aos dois anos de vida, Domingos em 1823, um dia após o seu batizado e Clemente aos 17 anos em 183438. Em 1835, Catarina contava com 20 anos e Joana 18 (segundo o registro de batismo, Catarina nascida em 1820 teria 15 anos em 1835 e Joana 14, pois seu batismo é de 1821)39. As duas irmãs batizaram seis filhos ilegítimos: Maria (batizada em 1835 e arrolada na Lista com um ano de idade), Joaquina (1838) e Romana (1839) filhas de Catarina, Jerônimo (1838), Silvério (1843) e Jose (1847), filhos de Joana40.

36 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Casamentos n. 1-3.

37 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Casamentos n. 1-3. A informação sobre a

naturalidade dos escravos foi retirada da Lista Nominativa de Habitantes de 1835-36.

38 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca. Livro de Casamentos n. 1, Livro de Óbitos n. 1, Livro de

Batizados n. 1.

39 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca. Livro de Batizados n. 1.

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No registro de batismo de Jose consta que Manoel Nunes da Silva, proprietário de Catarina e Joana já era falecido41.

Não sabemos se Manoel e Maria eram africanos, mas podemos verificar que os arranjos familiares e conjugais de Catarina e Joana divergiam do de seus pais (casados formalmente), sem, contudo, significar a ausência de laços de parentesco entre irmãs e entre essas e seus filhos.

Em outro exemplo, encontramos Francisca como a mãe de Joana (1818), Sebastião (1822) e Manoel (1827)42. Em 1835, Francisca não se encontrava no domicílio de Jose Rodrigues de Barros, mas seus filhos Joana (16 anos), Sebastião (14 anos) e Manoel (8 anos) estavam lá. Em cinco de maio de 1838, Joana natural de São Paulo se casa com João preto natural do Congo43. Não sabemos o destino de seus irmãos, pois eles não se casaram ou batizaram filhos na paróquia de Franca.

No domicílio de Veríssimo Plácido de Arantes, um proprietário de 28 escravos em 1835, Manoel, Roberto e Miguel (todos filhos de Maria) foram listados em 1835 respectivamente com 18, 12 e nove anos (a mãe já não se encontrava no domicílio)44. Em 1844, Roberto se casou com Beatriz45. Os três filhos de Beatriz são listados como ilegítimos, pois nasceram antes do casamento46. De Manoel e Miguel, não obtivemos mais informações.

Por fim, temos as irmãs Francisca e Rita, filhas do casal Cecília e Antonio (que tiveram sete filhos), estavam no domicílio de João Gonçalves Campos no distrito do Chapadão em uma posse de 12 cativos47. As duas irmãs eram solteiras. Francisca teve duas

filhas ilegítimas, Ana e Verônica, Rita, apenas Anselmo.

É preciso ressaltar que as mulheres deixaram com maior freqüência suas marcas nos registros paroquiais de batismo, pois os filhos ilegítimos eram sempre arrolados com o nome das mães e em nenhum registro de escravos consta apenas o nome do pai. Talvez por essa razão, as escravas foram acompanhadas por um período mais longo nas posses de seus proprietários em detrimento de seus irmãos.

Por outro lado, em áreas de fronteira ou expansão, com plantações ainda recentes ou em formação, apesar de apresentarem elevadas razões de masculinidade e um número significativo de escravos vivendo sozinho, eram os locais em que a família escrava nuclear se encontrava em maior número (assim demonstraram Malone para Louisiana, 1992; Craton para Barbados, 1979 e Higman para Trinidad, 1975).

Franca pode ser considerada uma área de fronteira? Seu povoamento efetivo remonta às primeiras décadas do século XIX, quando os mineiros afluíram para a região em busca de novas terras para a expansão de suas atividades agropecuárias48. Esta é uma questão para a qual não temos resposta e que necessita ser aprofundada.

41 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca. Livro de Batizados n. 3.

42 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca. Livro de Batizados n. 1.

43

Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca. Livro de Casamentos n. 2.

44 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca. Livro de Batizados n. 1.

45 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca. Livro de Casamentos n. 3.

46 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca. Livro de Batizados n. 3.

47 Não localizamos o registro de casamento desse casal. Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca. Livro de

Batizados n. 2 e 3.

48 Em trabalho anterior sobre a legitimidade dos filhos de cativos, destacamos uma possível relação entre a

posição geográfica de Franca (fronteiriça com Minas Gerais) e a necessidade de povoar a região frente às investidas mineiras no território paulista. Se a Capitania de São Paulo sofria ameaças por parte das colônias espanholas, Franca por ser vizinha a Minas Gerais corria o risco de ser tornar parte de seus limites. O embate sobre as fronteiras entre o lado paulista e mineiro perdurou por longos anos. Em 1866, Franca perdeu uma parte de seu território para Jacuí. Somente no século XX os limites de São Paulo e Minas Gerais nessa região são delimitados. O que ajudaria a explicar o interesse por parte dos senhores em promover o casamento de seus escravos, em parte para povoar a região e como forma de garantir a ampliação de suas posses, mesmo que isto não fosse uma preocupação, uma vez que o tráfico externo garantia a reposição de mão de obra (Cunha, 2004).

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Em nossa primeira tentativa, podemos afirmar que há possibilidades de se mensurar indicadores a partir da reconstituição de famílias escravas (taxas de fecundidade, mortalidade, nupcialidade, migrações), desde que ampliado o leque de fontes documentais. Destacamos a necessidade de se utilizar outras fontes documentais, como os inventários post mortem, testamentos, escrituras de compra e venda de escravos, os processos cíveis e criminais que relacionem escravos para compreendermos a rede social de cativos com seus pares e com livres. Isto implica empreender um estudo longitudinal que leve em conta o contexto socioeconômico local e regional e o sistema escravista no Brasil, assim como estabelecer um quadro comparativo com outros estudos sobre a escravidão.

Jacob Gorender (1990) faz críticas aos estudos sobre a família escrava fundamentados em dados demográficos, entendidos por este autor como “reabilitadores da escravidão” por exaltarem, em sua opinião, o aspecto doce e ameno da escravidão africana no Brasil. A família escrava, legítima ou não, existiu e se evidenciou através do cruzamento das fontes. Mas terá sido a família uma realidade para a maioria dos cativos do norte paulista? Em nossa amostra, abarcamos 594 cativos, dos quais, cerca de 60% não possuíam relações de parentesco. Isso se deve, em parte, à utilização de apenas duas fontes, no entanto, já apontam para dificuldades em se estabelecer o parentesco cativo em uma área de predomínio de pequenas posses. Realçar as experiências familiares escravas não amenizam a violência praticada contra os cativos e as adversidades enfrentadas pelos negros no sistema escravista. Ao contrário, evidencia o quão perverso foi esse sistema.

Outros aspectos sociodemográficos na reconstituição de famílias escravas

Nas linhas que resumem os 21 anos em que acompanhamos o casal Antonio e Francisca (desde o casamento até o último registro de batismo de um filho), vários aspectos sociodemográficos podem ser ressaltados: o calendário do casamento, as preferências matrimoniais, a presença do intercurso sexual e mesmo da união entre os escravos antecedendo o casamento formal (Antonia estava grávida de cinco meses ao se casar), a procedência dos cativos (estudo das migrações), o intervalo intergenésico, a mortalidade cativa, o tamanho da posse etc. A título de exemplo, apresentamos alguns aspectos já quantificados.

Havia uma preferência para o dia do casamento? A sazonalidade dos casamentos realizados na paróquia de Franca entre 1807 e 1888 indicou claramente o respeito ao calendário litúrgico, uma vez que a população escrava pouco se casava na Quaresma e no Advento (respectivamente março e dezembro). Junho era o mês com maior freqüência de casamentos de escravos, certamente em razão das festas juninas. Em seguida, fevereiro (antecedia a quaresma). Novembro, mês que antecedia o advento, ocupava a sexta posição (atrás dos meses já citados e também de maio, janeiro e julho, respectivamente). Os momentos desaconselhados pela Igreja para festas ou o “período proibido” eram evitados para realização de cerimônias matrimoniais, sendo rigorosamente respeitados por escravos e livres.

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Gráfico 1

Sazonalidade dos casamentos. Paróquia de Franca, 1807-1888 93 108 13 72 101 111 78 73 58 39 74 8 0 20 40 60 80 100 120 Ja ne ir o Fe ve re ir o M ar ço A br il M ai o Ju nh o Ju lh o A go st o Se te m br o O ut ub ro N ov em br o D ez em br o Meses N . a bs ol ut os

Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Casamentos n. 1 a 5.

Vistos os meses preferidos para o casamento de escravos, passemos aos dias. Na Paróquia de Franca, a segunda-feira era o dia em que mais se casava (24,4% das cerimônias), seguida do domingo (23,6%) e do sábado (15,1%). A sexta-feira permanecia sendo um dia pouco propenso para o matrimônio (5,9%), isso em parte se justifica em razão da Igreja considerar a sexta-feira um dia de abstinência. A sazonalidade dos casamentos de escravos, especialmente os dias, é um tema não explorado nos estudos sobre a população escrava.

Gráfico 2

Sazonalidade dos casamentos. Paróquia N.S.C.Franca, 1807-1888 195 202 98 90 69 49 125 0 50 100 150 200 250 D om in go T er ça -fe ir a Q ui nt a-fe ir a S áb ad o Dias da semana N . a bs ol ut os

Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca, Livro de Casamentos n. 1 a 5.

Outros aspectos podem ser levantados a partir da trajetória familiar de Antonio e Francisca, como o estudo das migrações, pois há uma estreita vinculação dos indivíduos envolvidos na história familiar desse casal com o povoamento da localidade. Como vimos, Antonio e Francisca eram africanos. Segundo a Lista Nominativa de Habitantes de 1835-1836, os homens africanos representavam 37,4% da população masculina e os crioulos (nascidos no Brasil) 51,8%, já as cativas africanas eram 24% e as crioulas, 61,8%, resultado de um movimento imigratório que privilegiava não só adultos, mas, sobretudo homens. Para a naturalidade dos escravos nascidos no Brasil, há referências aos termos genéricos “crioulo(a)” ou Brasil e indicações de origem como: Província de Minas Gerais (15,2%), da Província de São Paulo (10,4%) e do município de Franca (10,4%). As cativas naturais de Franca ultrapassavam em números absolutos e proporcionais seus pares homens. A porcentagem de mulheres cativas provenientes de São Paulo (inclusive Franca) chegava a

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24,3% e as naturais de Minas Gerais a 15,8%. Acreditamos que diversos escravos africanos acompanhando seus proprietários compuseram o significativo fluxo migratório proveniente de Minas Gerais para a região do norte paulista nas primeiras décadas do século XIX e trouxeram consigo seus filhos nascidos em terras mineiras

Outro aspecto passível de ser estudado e também ainda pouco conhecido se refere ao estudo do compadrio. Todos os filhos de Antonio e Francisca tiveram pessoas livres apadrinhando-os. Mas qual a relação dos escravos com essas pessoas livres? Uma pista é dada pelo padrinho de Domingos, Jose Ignácio de Faria, que teria mais de 80 anos na data do batismo (pois em 1835 sua idade era de 78 anos). Este senhor também era natural de Faial, vizinho de quarteirão de Mateus Inácio de Faria e possivelmente parente deste (seu pai?, o que se mostra cabível uma vez que em 1835 Mateus estava com 49 anos). Acreditamos que os compadres livres de Antonio e Francisca possam ser pessoas do convívio social de seu proprietário, mas também indivíduos com quem o casal se relacionava, sem a intermediação de seu senhor. Francisco Gonçalves de Faria não foi encontrado nas fontes e aparentemente não era um senhor de escravos, apesar disto apadrinhou três filhos de Antonio e Francisca.

Como podemos observar, a informações que a lista nominativa de habitantes e os

registros paroquiais trazem mostram-se uma fonte rica em análises socioculturais e demográficas, especialmente quando cruzamos seus dados.

Considerações finais

O cruzamento das fontes documentais exige um meticuloso trabalho e nos coloca diante de incertezas, mas essas dificuldades são relativizadas quando conseguimos localizar e acompanhar uma família identificando seus membros no batismo, casamento, no nascimento dos filhos e no momento da morte. Descobrimos que em uma listagem de escravos há muitas histórias para se contar. Agora conhecemos um pouco mais da família de Antonio e Francisca.

Ressaltamos alguns aspectos sociodemográficos para demonstrar como a história regional, assim como as redes de sociabilidade e as relações hierárquicas podem ser vislumbradas em uma perspectiva mais ampla através de um enfoque específico: a família escrava.

Em nossa primeira tentativa de aplicar a metodologia de reconstituição, não nos preocupamos em realizar um trabalho com representatividade estatística, mas sim apresentar os percursos e escolhas durante a pesquisa que nos ajudaram a pensar e ampliar o estudo da família escrava em um contexto socioeconômico ainda pouco estudado.

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Anexo

Mapa 2

Estado de São Paulo e Região Norte, 2001

Estado de São Paulo

Região Norte do Estado de São Paulo

0 200 400 600 800 1000 Kilometers

N

Fonte: IBGE, 2001. Secretaria de Economia e Planejamento, Coordenadoria de Planejamento Regional, Instituto Geográfico e Cartográfico – Municípios e distritos de São Paulo. Instituto Geográfico e Cartográfico. São Paulo: IGC, 1995.

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