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Por uma política das imagens em Georges Didi-Huberman

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Academic year: 2021

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CLAYTON RODRIGO DA FONSÊCA MARINHO

POR UMA POLÍTICA DAS IMAGENS EM GEORGES DIDI-HUBERMAN

Natal/RN 2020

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POR UMA POLÍTICA DAS IMAGENS EM GEORGES DIDI-HUBERMAN

CLAYTON RODRIGO DA FONSÊCA MARINHO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, na linha de pesquisa de Ética e Filosofia política, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Orientador: Dr. Eduardo Anibal Pellejero.

Natal/RN 2020

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA

Marinho, Clayton Rodrigo da Fonsêca.

Por uma política das imagens em Georges Didi-Huberman / Clayton Rodrigo da Fonseca Marinho. - Natal, 2020.

363f.: il. color.

Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Anibal Pellejero.

1. Heurística - Tese. 2. Política das imagens - Tese. 3. Restituição - Tese. I. Pellejero, Eduardo Anibal. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 1:7.01

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A minha mãe, sempre.

A Laura Eunice, a origem dessa deriva que me fez a filosofia.

A Pandora (in memoriam) e a Dike, meus amigos caninos.

Por Claudia, Amarildo, Marielle, Dandara e tantos que hoje não podem falar, o que não significa que não encontrem uma voz, ou várias.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, inicialmente, a CAPES, pelo fornecimento da bolsa, sem a qual, estes longos 4 anos não teriam sido possíveis na dedicação ao estudo aqui apresentado.

Em segundo lugar, ao meu orientador Eduardo Anibal Pellejero, pelas inspirações e, especialmente, pela abertura a meu trabalho. Agradeço ao PPGFIL e aos professores do programa, por tudo que pude aprender e suporte dado, especialmente nas pessoas de Ellen e Thiare, sempre prestativas e atenciosas nos auxílios prestados. Bem como a todos os que participaram do processo de leitura e sugestões para um melhor desenvolvimento desse trabalho.

Agradeço imensamente ao grupo Penumbras, formado em conjunto para estudarmos os textos de estética e filosofia da arte, mas que sempre foi além disso: ele passou a existir para que nunca precisassémos ficar sozinhos nesse árduo percurso. São seus componentes: Jéssica, André, Laisa, Naiana, Álvaro, Sérgio Pereira, Ana Karênina e Anderson. Agradeço ainda, especialmente, a Jéssica e Naiana pela leitura e comentários de partes do meu trabalho, que muito enriqueceram meu texto.

Agradeço a Sérgio Linard pela leitura e correção dos “limiares” e das considerações finais do texto. Fez uma grande diferença na qualidade final. Se ainda resta algum problema, certamente é por minha falta.

Agradeço, por fim, a minha mãe pela paciência com meus aborrecimentos durante esse processo. Agradeço também a Fabíola pelo suporte sempre próximo.

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A medida também precisa ser medida, mas em vão [...] Não entender, apenas medir. (Kuniichi Uno, “Hijikata Tatsumi: Pensar um corpo esgotado”).

Tudo que não invento é falso (Manoel de Barros, “o livro sobre nada”)

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RESUMO

Este estudo consistiu no esforço de pensar uma política das imagens a partir de Georges Didi-Huberman, o que demandou, em alguma medida, montar três planos de composição: um no campo do saber, encontrando na heurística o eixo capaz de articular um saber em relação com o páthos. Para tanto, recorremos a um paradigma estético de pensamento retirado da filosofia de Walter Benjamin, nomeado constelação. A constelação da heurística, então, possibilitou-nos compor esse tipo de saber conjugado com as emoções; um no campo da política, a qual, ao invés de diferenciar público e privado, ato e potência, práxis e poiesis, inscreve-se em outra esfera, a dos gestos, permitindo-nos encontrar com uma política da exposição, na qual se expõe o que está em vias de se perder, o que está desaparecendo. Aí, paradoxalmente, vemo-nos diante do ser em comum, que aparece quando exposto e quando comparecemos, demandando de nós, pois, outras modalidades de relação: a imaginação, a tomada de posição e a empatia, e; por fim, um no campo da imagem, a qual, ao contrário de ser um depósito das ilusões humanas, torna-se lugar de retirada de saberes: sobre os nossos sofrimentos, sobre o que não somos, sobre os passados que não foram, sobre o que ainda não somos capazes de saber, sobre o próprio não-saber, sobre a cólera e sobre nossas potências. Tudo isso significou pensar e assinalar os deslocamentos das imagens no corpo dessa teoria outra, dessa política das imagens, que tem como função restituir as imagens ao livre uso comum dos homens, para dar a conhecer. Talvez, seja essa sua principal atribuição: dar a conhecer para que o resto seja possível.

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ABSTRACT

This study consisted in an effort of thinking a politics of images coming from Georges Didi-Huberman, which, to some degree, required us to come up with three planes of composition: one in the field of knowledge, finding in his heuristics the axis capable of articulating a knowledge in relationship to páthos. Therefore, we resorted to an aesthetic paradigm of thought taken from the philosophy of Walter Benjamin, known as constellation. Thus, the constellation of heuristics has enabled us to compose one such kind of knowledge conjoined with emotions; one in the field of politics, which, instead of differentiating between public and private, potentiality and actuality, praxis and poiesis, is itself inscribed in some other sphere, the one of gestures, allowing us to meet up with a politics of exposition, in which it exposes what is about to be lost- what is disappearing. Right there, paradoxically, we see ourselves faced with the being in common, which appears when exposed and when we appear along with it, thus requiring from us other modes of relation: imagination, taking a stand and empathy; at last, one in the field of image, which, instead of being a reservoir of human illusions, becomes a place of removal of knowledges: about our sufferings, about what we are not, about pasts that didn‟t come to be, about what we‟re still incapable of knowing, about actually not-knowing, about cholera and about our potentialities. All of this meant to think and point out the displacements of images in the body of this other theory, this politics of images, whose function is to retrieve images to the free common usage of men, to make them cognizable. Perhaps, this would be it‟s main attribution: to make cognizable, so that all else is possible.

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RÉSUMÉ

Cette étude a consisté en un effort de réflexion sur une politique d'images basée sur Georges Didi-Huberman, qui a nécessité, dans une certaine mesure, la mise en place de trois plans de composition: un dans le domaine de le savoir, trouvant dans l'heuristique l'axe capable d'articuler le savoir en relation avec le pathos. Pour cela, nous avons recours à un paradigme esthétique de pensée emprunté à la philosophie de Walter Benjamin, nommé comme constellation. La constellation heuristique nous a donc permis de composer ce type de savoir en conjonction avec les émotions; celui du politique, qui, au lieu de différencier public et privé, acte et puissance, praxis et poiesis, s'inscrit dans une autre sphère, celle des gestes, nous permettant de rencontrer une politique d'exposition, dans laquelle il s'expose ce qui va être perdu, ce qui est en train de disparaître. Là, paradoxalement, nous sommes confrontés au fait d'être en commun, qui apparaît lorsqu'il est exposé et lorsque nous apparaissons, nous demandant, par conséquent, d'autres modes de relation: imagination, prise de position et empathie, et; enfin, dans le domaine de l'image, qui, au lieu d'être un dépôt d'illusions humaines, devient un lieu de retrait de les savoirs: de nos souffrances, de ce que nous ne sommes pas, du passé qui ne l'était pas, de ce que nous ne sommes pas encore capables de savoir, de ne pas se connaître, du choléra et de nos puissances. Tout cela signifiait penser et signaler les déplacements des images dans le corps de cette autre théorie, de cette politique des images, dont la fonction est de restituer les images au libre usage commun des hommes, de se faire connaître. C'est peut-être votre tâche principale: faire connaître pour que le reste soit possible.

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LISTA DE IMAGENS

Figura 1- Paradigma da constelação Figura 2 - Benjamin na Biblioteca de Paris

Figura 3 - Frame de "Um condenado à morte escapou" (Robert Bresson, 1956) Figura 4 - Phasme (Phyllium gigantum)

Figura 5 - A rendeira (1669-1670), Johannes Vermeer. Figura 6 - Anjos (1995), Adriana Varejão

Figura 7 – Da esquerda para a direita, de cima para baixo: Die, 1962 (Tony Smith), The cube, 1934 (Alberto Giacometti), Incomplete open cubes, 1974 (Sol LeWitt) e Casulos, 1959 (Lygia Clark).

Figura 8 - Sem título (vapor), 1968-9 (Robert Morris) Figura 9 - Prancha 1, Atlas Mnemosyne (Aby Warburg)

Figura 10 - Disparate feminino (Goya, 1815-1823) com esquema superposto. Figura 11 - Capricho 43 e um dos desenhos preparatórios (Goya, 1797-1798) Figura 12 - Fotos do crematório de Birkenau (fotógrafo anônimo)

Figura 13 - Capa com uma das montagens do ABC da Guerra (Brecht, 1955) Figura 14 - Frame de “Tempos Modernos” (Charlie Chaplin, 1936)

Figura 15 - Série faces - idosos (Philippe Bazin, 1985-1986)

Figura 16 - A lição de anatomia do doutor Nicolaes Tulp (Rembrandt, 1632) Figura 17 - O Perverso (2006), Adriana Varejão

Figura 18 - Lackland Air Base San Antonio (Eugene O. Goldbeck, 1947), com detalhe ao lado

Figura 19 - Saída da usina dos irmãos Lumière (1895) Figura 20 - Frame de “Accattone” (Pasolini, 1961) Figura 21 - Judith e Holofernes, Donatello

Figura 22 - Uma mulher picada por uma serpente (August Clésinger, 1847) Figura 23- Étude de pied guache (Rodin, 1890)

Figura 24 - La Mariée mise à nu par ses célibataires même (Marcel Duchamp, 1915-1923)

Figura 25 - Jeu d'echecs (Duchamp, 1918-1919) Figura 26 - Yvonne (en kimono) (Duchamp, 1901) Figura 27 - Priere de toucher (Duchamp, 1847)

Figura 28 - Feuille de vigne femelle (Duchamp, 1951) Figura 29 - 3 stoppages-étalon (Duchamp, 1952) Figura 30 – 50 cc de Air de Paris (Duchamp, 1919)

Figura 31 - Elevage de poussière (Duchamp e Man Ray, 1920) Figura 32 - With my Tongue in my Cheek (Duchamp, 1959)

Figura 33 - Frames do vídeo de Claudia sendo arrastada por viatura da PM do RJ Figura 34 - Plano de composição da "máquina de chilreio"

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

PROLEGÔMENO: A constelação como paradigma estético de conhecimento 18

LIMIAR – A função da Constelação 56

PARTE I – HEURÍSTICA 62

1.1 A heurística como teoria 73

1.2 A heurística como sem fim... 80

1.3 A heurística como gaio saber 90

LIMIAR – Uso heurístico e ser sem obra 129

PARTE II – POLÍTICA 137

2.1 A política como empatia 138

2.2 A política como imaginação 153

2.3 A política como tomada de posição 164

2.4 A política como exposição 197

LIMIAR – A política da exposição da perda 230

PARTE III – IMAGEM 239

3.1 A imagem como informe 239

3.2 A imagem como técnica e contato 259

3.3 A imagem como citação 313

3.4 A imagem como levante 320

LIMIAR – Nefelomancia 329

CONSIDERAÇÕES FINAIS – RESTITUIR UMA IMAGEM 335

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INTRODUÇÃO

Talvez a pergunta mais importante a se fazer num processo de escrita de uma tese seja: o que significa dedicar certo tempo, ou, para alguns, tanto tempo, a um tema, a um autor, a um trabalho? O tempo que dedicamos é um tempo no qual o que acontece é a tomada do nosso corpo diante do que escrevemos. Não apenas damos corpo a um estudo, nunca damos qualquer corpo, senão o nosso próprio corpo. As palavras o atravessam e o transformam. Fazer esse tipo de experiência, insípida e insignificante para aqueles que não entendem a razão de haver tantos doutores no país, é um processo pelo qual somos também feitos experiência. Ela se faz em nós, nunca em outro lugar. É importante ter isso em mente, pois é ela que, poderosamente, confere valor ao nosso pensamento. Corpo e pensamento atravessados por uma experiência que é a experiência do próprio atravessamento.

Estar diante de uma e várias imagens, a partir do pensamento de um filósofo da imanência, como Georges Didi-Huberman, é entender que enveredar no pensamento é lançar-se no mundo, desde o mundo, para nele lançar-se encontrar novamente. Não há outro mundo, a não ser, talvez, o que não sabemos desse e tudo o que deixamos de ver. Mesmo o que sabemos deve estar sempre no campo da atenção estranhada, para que não se torne uma luz opaca que mais nos cega (com suas certezas) do que nos ensina algo (o próprio processo de saber). Lidar com o pensamento desse sujeito é uma experiência de saber que o pensamento e o conhecimento podem aquilo que com eles e neles se movem e nos co-movem juntamente. Como nosso olhar a acompanhar o voo de uma borboleta, a espera de captar alguns relances, algumas fulgurações de suas cores e seus gestos. No pensamento dele, então, estar diante de uma imagem, como estar diante de um pensamento, é um gesto de abertura alegre e generosa, sem perder a tenacidade e a destreza dos golpes a cortar o que desmobiliza o olhar e o pensamento. Não sabemos, porém, se nos fizemos capazes de disferir tais golpes de maneira “limpa”, com a precisão cirúrgica. Mas a tenacidade em direção às imagens nunca foi abalada, ainda que constantemente alterada. Um caminho e uma paisagem informes, um movimento, por vezes, de errância e perda. Principalmente de perda – e de retirada.

O que podemos dizer é que, na organização desse estudo, perder tornou-se muito mais importante do que ganhar. Perdemos algum senso acerca da teoria. Ela funcionou num contrassenso e num contrarritmo, cada vez mais se abrindo ao páthos, não recusando, mas proliferando as hipóteses, no lugar de causas e de fins. A heurística apareceu como o conceito-chave, conceito-operatório desse momento: ora princípio, ora operação, ora função, ora uso. Uma constelação de formas assumidas pela heurística para tentar dizer de que tipo de

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teoria estamos falando quando tratamos do pensamento de Didi-Huberman. Teoria, processo de saber, que nos abre tanto ao desejo de saber quanto ao saber como um desejo, como uma emoção capaz de mobilizar-nos, fazer-nos vibrar de alegria, mas também de horror. Há todos esses elementos pré-teóricos a fundamentar seu corpo, fazendo dobra ao ponto de ganhar corpo e quase cair ao chão pelo peso do que carrega consigo: o peso de duas mãos e todo sentimento do mundo, como bem o disse Drummond. Mãos e sentimentos fazem dessa teoria, não um fim em si mesmo, mas aquilo que nos ajuda a suportar o mundo. Nosso pensamento ergue-se à altura do que sentimos, sem cair na pobreza do indivíduo. Por isso, ela não se fecha, nem abre para melhor fechar. Ela prolifera, como a grama, como as bactérias, como os fungos, mas também como os corpos no mundo, como o riso. Está sempre em vista do que pode fazer, do que pode não fazer, de como pode funcionar e de como pode ser usada. Seus fins não são um fim, mas a colocação em sintoma de qualquer fim. Assim, não pode haver fim, nem mesmo “considerações finais”. Há apenas o próprio movimento de abertura.

Para fazer jus a esse tipo de atitude, sabemos com o autor que há muito o que perder: as certezas, e, por vezes, a clareza. Perdem-se também as garantias de que o pensamento será capaz de abarcar aquilo que conhece, de que as palavras correspondem-lhe, de que não será necessário recomeçar. Não se trata de sistematizar (ou erguer uma arquitetônica de) o saber, a não ser como o tremor de seu abalo. A estrutura cede lugar à função e ao uso. Por esse caminho, não há essências, não há unidade, não há pureza. Tudo devém dialético, constantemente conectado com outra coisa, fazendo rizoma. Assim, estamos sempre no meio do turbilhão, compondo planos fragmentados, tentado fazer justiça a essas partes, considerando-as em suas singularidades, irredutíveis. A composição do plano a partir do qual o estudo se desdobra não é o único: é uma possibilidade, a organização momentânea de uma mesa de trabalho no formato de uma constelação que se organiza internamente, lançando-se uns sobre os outros e fazendo figura em algumas paradas. Nessa mesa de trabalho, nesse plano de composição, configura-se o saber com seu outro: o não-saber. Contudo, ao invés da angústia por deparar-se diante do que não sabemos, podemos afirmar alegremente este inacabamento, proliferando a n-1 os saberes encontrados.

A política, no corpo dessa proposta, não passa incólume. Ela também se altera. Ao invés de se pensar elementos objetivos que visem a uma certa organização do espaço e distribuição racional e igualitária das questões e das ações (reconhecimentos, afirmações identitárias, consensos), a política das imagens, a partir de uma constelação heurística, parte para um plano no qual o que a compõe são a empatia e a compaixão, a tomada de posição e o trabalho da imaginação, a aproximação com o que não teria lugar e com o que está em risco

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de desaparecimento, com o que difere e com o estranhamento. Essa política não separa a ordem pública da ordem privada, o emocional do racional. Pelo contrário, lança umas sobre as outras, coloca-as em contato e em choque. Uma outra faculdade de conhecimento surge para dar conta desse processo e uma nova modalidade de lidar com seus elementos: a faculdade da imaginação, com sua capacidade de expandir, mas também de retirar sentidos que espaçam a razão (e suas causalidades) unificadora sob a égide do racional; a modalidade é a do uso, pelo qual chegamos ao uso comum dos homens, isto é, um exercício de profanação. A política das imagens torna-se o trabalho de profanar o pensamento, religando-o aos sentimentos, e, ao mesmo tempo, de conferir um caráter impessoal, impróprio e abissal aos sentimentos, capaz de criar um espaço estranho ao qual todos remetem com suas criações, mas que não pertence inerentemente a ninguém: o lugar do comum, no qual o ser do comum se expõe. Sua exposição, então, torna-se o gesto (nem prática, nem produção) da política das imagens. Aí tal política encontra seu ethos: expor os povos que estão desaparecendo, dando-lhes visualidade e permitindo-lhes tomar a palavra, apesar de tudo, no campo mesmo da precariedade de um tal gesto.

Nesse processo, Didi-Huberman está, constantemente, a constituir e mostrar uma série de procedimentos, técnicas e processos capazes de cumprir essa política: a montagem, nos diários, nos atlas, nos abecedários, no cinema, o enquandramento na fotografia, os usos dos poemas e do desenho, a junção de acaso e precisão, as impressões – toda uma sorte de formas artísticas com a intenção de expor sem sub-expor ou sobre-expor, isto é, estabelecer uma justiça da exposição. Isso se torna possível considerando-se tanto a singularidade do que está desaparecendo quanto uma nova dimensão da universalidade, a qual passa pela tomada de consciência diante do sofrimento que a todos conectam – uma universalidade aberta e imanente, sempre passível de atualização e alteração no corpo da sua constelação. Uma comunidade inconfessável, em que há o esforço constante de lutar contra o que nos faz calar, diante daquilo que quer calar e fazer desaparecer (e, por vezes, consegue), restando uma ferida e um buraco a perturbar qualquer desejo de tudo saber. Os povos que aparecem aí estão sempre por vir, como estão, igualmente, ameaçados de deixar de existir. A existência aí se inscreve tanto como sobrevivência quanto como resistência. A política passa, então, a mais operar no espaço denominado pelo autor como “tomada de posição” do que poruma simples “tomada de partido”, como espaço de passagem, como estratégia e tática de existência do que como ato de liberdade do ser humano, obrigando-nos a pensar outra via que não essa da ética do homem livre. A partir da noção agambiana de homem sem obra, que definiu a condição do escravo, tentamos chegar a uma possibilidade de política capaz de articular-se com esses

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sujeitos. Se o afeto e as emoções (empatia e compaixão, mas também alegria e potência) surgem como as estrelas dessa constelação, é porque a política demanda outros pressupostos, não mais “ativos”, mas “afetivos”, para fazer jus a esse sujeito, que é no fim, capaz de uma obra sem ser.

Parece haver, então, um trabalho do negativo, que não foca nem necessariamente na obra, nem necessariamente no ser, mas antes no sem, como um operador relacional, a não meramente negar um ou outro, mas retirar de um e de outro seu estatuto afirmativo. A negação, então, se coloca em contraparte a uma afirmatividade e não a uma positividade. Esse movimento, ao invés de tornar-se uma negação (não-não) abre-se como retirada (sem-sem), um processo de colocação em forma da sua própria configuração. Não se busca, portanto, essências ou substâncias, mas o processo de formação no momento de sua alteração, quando a forma está se formando ou mesmo deformando-se. As imagens parecem um lugar singular para se olhar isso. Elas são capazes, por sua plasticidade, de mostrar esses processos, ainda que cristalizados por um instante. A própria forma revela-se como substrato, como trabalho do tempo e como processo, diz o autor. E, nas imagens, isso fica aparente, torna-se visível. Por isso, elas não podem ser definidas a partir de um ser, ainda que sejam capazes de apresentar o ser, enquanto devir. O próprio estatuto da imagem precisou ser repensado.

Para tanto, Didi-Huberman vai recorrer ao informe batailleano, a partir do qual as imagens, ao invés de buscar uma essência, mostram-se muito mais efetivas na medida em que expõem os processos de alteração da própria forma. Elas surgem como uma espécie de plano cartográfico onde é possível ver as alterações do mundo e dos sujeitos (não apenas do pensamento, bem como de suas emoções). Elas se assemelham à poeria que se assenta lentamente no corpo do mundo, constituindo uma segunda pele, modificando esse mundo imperceptivelmente. O que aparece no corpo do esforço batailleano é a necessidade de uma precisão teórica diante das imagens que é muito difícil de alcançar. Para fazer jus a esse rigor por parte do pensador, Didi-Huberman encontra em Duchamp o sujeito que lhe oferece a mesma dimensão de rigor diante da técnica e dos procedimentos para se entrar em contato com as obras e com as imagens. Enquanto Bataille ensina a armar o olhar para ver, Duchamp mostra como armar as mãos para entrar em contato com essas mesmas imagens. A partir de Pasollini e Farocki, o autor consegue ainda configurar uma maneira mais precisa de citar (sem tomar posse), de escrever as histórias e escrever sobre e a partir das imagens. Trata-se sempre de um esforço de alcançar o maior rigor, a maior pecisão, junto com a maior abertura ao acaso e o melhor nível de imaginação.

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Não é pouca coisa o que o autor exige. Por fim, isso tudo com um objetivo político: desarmar nossos olhares para aprender a olhar (a heurística da política das imagens) e a rearmar o olhar para saber ver (as imagens como uma política heurística), especialmente na situação de quem precisa lutar para sobreviver, encontrando nos momentos de levante a configuração e o aparecimento destas três coisas: a abertura heurística que aparece para uma possibilidade outra (um passado inacabado, uma história descontínua, um povo que falta), a política capaz de fazer jus ao sofrimento (a dor e a capacidade de suportar essa dor para levantar-se em cólera) e as imagens que configuram os sentimentos e os afetos, que podem, ao expor o sofrimento, (re)acender a chama que falta para a revolta. Todo um esforço sempre a nos colocar diante de uma questão: para viver é preciso imaginar, não apenas o que poderá ser, mas também o que poderia ter sido; imaginar não apenas o que teremos, mas tudo o que perdemos, mesmo aquilo que nem somos capazes de saber. A imaginação torna-se a arma mais poderosa dessa máquina de guerra que se constitue das imagens numa política das imagens. Mas, para fazer justiça ao sofrimento, ela se coloca no espaço de uma nefelomancia, isto é, no processo de olhar o que não é no que está desaparecendo. Um tempo do futuro do pretérito, daquela história que guarda as sementes de um mundo que não teve a chance de vir a ser: mundos que faltam.

O estudo aqui realizado pretendeu pensar, ou montar, no pensamento de Georges Didi-Huberman, uma possibilidade política para o uso das imagens, ou, talvez, uma política das imagens, como se a sua existência apontasse para um uso político, sem, contudo, arregimentar uma definição seja para a política, seja para as imagens. A heurística foi esse modo, esse plano sobre o qual as coisas se organizaram, a partir do qual partiram, sem ter um ponto de gênese e apontaram meios. A partir da noção de constelação, retirada da obra de Walter Benjamin, apresentado no prolegômeno, a heurística se configura heuristicamente, mas aqui focado em três eixos: teoria, causalidade e forma de saber, a partir de uma função, apresentado no primeiro limiar. A partir disso, foi possível pensar outra modalidade de saber, que parte, não de uma definição, de um ser, mas de um uso. O limiar que o segue trata justamente dessa variação em torno de uma questão de ética e de política: a condição de ser sem obra dos escravos. O que fundamenta ética e politicamente o trabalho dessa política das imagens é, então, a capacidade de fazer jus, de partir da situção de quem perde, de quem sofre, e não dos poderosos. A política retirada daí foi, pois, uma política da exposição. Essa, por sua vez, compôs-se em quatro eixos: empatia, imaginação, tomada de posição e exposição, a partir dos quais se pensou uma “polìtica da exposição”, não de qualquer coisa, mas precisamente do que se está perdendo, do que está desaparecendo. As imagens, no seu

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plano de composição heurístico, então, tentaram encontrar uma modalidade de fazer justiça a tal política, qual seja, operando como aquilo que é capaz de fazer visível esses processos de desaparecimento, esses povos em risco. Para tanto, elas foram trabalhadas em quatro eixos: informe, técnica e contato, citação e levante. Formas de aproximar e distanciar-se a fim de tornar capaz olhar, ainda que não seja possível alcançar alguma cognoscibilidade. A ideia foi, assim, ofertar um aparato teórico e procedimental, a fim de conseguir relançar as questões sobre as imagens, que demandou remontar a política e a própria configuração da teoria. Tudo com uma função: restituir uma imagem, uma imagem específica, que sempre esteve no fundo desse estudo, alimentou-o, foi a condição de sua forma, a intensidade a medir cada passo e cada parada. Sua força vem de fora da filosofia, colocando e perturbando o próprio fazer, elaborando, por vezes, uma distância que sempre pareceu demasiada, mas que nunca foi demasiadamente longe para que não continuasse a assombrar e demandar reparo. O reparo possível por esse tipo de estudo pode ser, então, expor, mostrar e tomar a palavra, suportar e assumir, no espaço do pensamento o sofrimento dessa imagem. Talvez não seja o suficiente. Talvez.

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PROLEGÔMENO: A Constelação como paradigma estético de conhecimento

Como saber? Questão de teoria. Há saber. Ele está aí, em algum lugar. Buscamos uma forma de se chegar até ele. Está à espreita, latente, até mesmo passivo; aguardando que alguém, qualquer um o saiba, isto é, aprenda-o, compreenda-o e faça-o dizer o que antes silenciava. Pensamos nas ferramentas para chegar até ele, para trazê-lo à luz, para lapidá-lo, para expô-lo. Saber arqueológico, saber genealógico. Questão de saber, enfim.

Saber como? Questão de método. Há saber? Há dúvida quanto a sua existência. Buscamos a própria possibilidade de saber. Não se sabe aonde (se) está. Está por ser inventado. E por vir. É potência e impotência ao mesmo tempo. Está na noite e só a noite guarda sua possibilidade. Há de se criar as ferramentas para buscar esse saber. Inventa-se tudo; vem depois; é anárquica nesse sentido, sem fundo, sem fundamento. Questão de não-saber, enfim.

É possível entrelaçar-se em ambos? A estrutura que define enquadra. E o por-se diante de uma singularidade desconcerta. Podemos trabalhar por um desvio, uma alteração no percurso que nos carrega por outras veredas: sinuosas, mesmo estreitas, de fazer perder-se por vezes; para poder alcançar uma clareira de onde podemos ver as estrelas, entrecortadas por nuvens, algumas dessas límpidas, outras cinzentas – cor de aço – anunciando um temporal, junto ao vento que corta nossa pele, tocando-nos; para labirintos desorientadores, encruzilhadas, mesmo por desertos, e ainda pelo mar. Desvios – essa vida. Caminhando ao lado dos quadros, nos seus limiares. Caminhando ao lado do desconhecido, à beira do abismo, quando não se lançando nele. Paradigma, então. Paradigma que se configura no limiar, desenhando um contorno, a formar uma imagem, capaz de nos colocar diante e dentro de certos desvios. Podemos fazê-lo no chão, criando um percurso habitual a deixar rastros, sua trilha. Podemos fazê-lo nos céus, com as estrelas, através de constelações.

Paradigma na forma de limiar: constelação. Que forma, entretanto? Forma em formação, forma em movimento, forma aberta1. Forma que configura, inventando sua teoria

1

Eichebaum (1978, p.21-22) no inìcio de seu texto, “La teoria del „método formal‟”, funcionando como uma espécie de história do movimento formalista russo, deixa claro, contra os detratores do grupo, que o trabalho realizado não tinha como intuito chegar a um formalismo, um conjunto de doutrinas, mas, muito mais, elaborar uma pesquisa aberta e em formação. Diz ele: “Nós não tìnhamos e não temos nenhuma doutrina ou sistema acabado. Em nosso trabalho científico, apreciamos a teoria só como hipótese de trabalho com cuja ajuda indicam-se e compreendem os feitos [...] Estabelecemos princípios concretos e, na medida em que podem ser aplicados a uma matéria, atentamo-nos a eles. Se a matéria requer uma complicação ou uma modificação de nossos princípios, fazemos de imediato: sentimo-nos livres com respeito a nossas próprias teorias; (e toda ciência deveria sê-lo, pensamos, na medida em que existe diferença entre teoria e convicção). Não existe ciência acabada, a ciência vive vencendo erros e não estabelecendo verdades”. (tradução nossa).

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que lhe enseja um método. As duas inventam-se e se relacionam. Como proceder quanto a isso? Pelo conceito do conceito? Não. Pela sua própria apresentação, nessa forma. A constelação como paradigma só pode ser mostrada constelarmente. Ela é da ordem (ou do modo) do como, não do ser. A constelação não tem ser, isto é, não tem fundamento, senão nos usos que lhe dão no corpo do texto. Ela se configura na relação de uso, de como aparece enquanto se mostra, sem com isso abrir mão de uma estrutura, de uma (e várias) forma(s). Estrutura móvel, forma sem fim. Lida, quer lidar, com o vivo, sem posses, sem desejo último de verdade. Há, porém, certa autoridade, mas aquela que partilha o autor, como lembra Agamben, daquilo que participa junto na configuração, que a produz, capaz de acolher a produção anterior e continuá-la numa outra [nem sempre nova, anacrônica?] moldagem. O que se produz, então, não é histórico, no sentido do historicismo, mas histórico, no sentido de intensidades presentes que figuram o passado histórico, sentindo a proximidade pática com o que se produz, ao qual se liga, por um instante que seja, no trabalho da memória. Rememora-se, muitas vezes, o gesto, o páthos, da produção dessa história. Sentimo-nos, nesse momento, tocados por sua aura. A autoridade é a da resistência experenciada no próprio gesto. A estrutura é a das mãos que recorda o gesto e o leva adiante, nos seus próprios termos, na sua própria forma, no seu molde, na impressão realizada desse molde. É, enfim, um método, a configuração do processo, daquele que um dia inventou e desse aqui e agora, tocado pelo gesto, pelo saber produzido e lançando sua sombra aos pés do presente, que o sente na relação com a distância.

Há um ar circulando nessa cadeia, carregado de poeira e de pequenas luzes a brilhar na noite. São essas as estrelas do chão. Não é difícil imaginarmo-nos levantando os olhos para as estrelas, poeira mais antiga, talvez, a circular sobre nós, deixando-nos apenas um rastro: sua luz, fraca, sem forças para suportar o dia2. Que tipo de saber alcançamos? Não há como crer-se possuidor de certezas, dada a fragilidade do que nosso paradigma tem habilidade de produzir. Que pode nosso paradigma? Ver alguma coisa, olhar o que passa, enquanto passa; registrar algumas observações, recomeçar sempre. O que ele pode, pode, no entanto, diante do que vive, pode vir à altura de nossos afetos e pode inventar para si um saber, nem que seja um saber-como, uma técnica, um modo de fazer. Pode estar além ou mesmo aquém do Saber, mas nunca no seu centro. Ao lado, talvez. Paradigma. Não tão somente um “modelo”, porém um

2 Não devemos pensar as estrelas aqui como pontos fixos e imóveis no céu, a formar constelações. É preciso,

para tanto, concebê-las em movimento, isto é, capazes de abarcar tantas possibilidades de compreendê-las, tal como a fluidez com que devém nos céus: “lascas de gelo”, “buracos”, “condensações de ar”, “átomos em queda no vácuo”, “rebanho da lua”, “esferas de cristal”, tudo isso dito por Weinberger (2019, p.11-12), para quem, aliás, “somos fixos e elas [é que] se movem”.

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limiar, algo que se coloca e relaciona-se à distância com esse Saber3. Encontramos saberes, saberes de sobrevivência, saberes de resistência, saberes de potências, saberes de perigos, saberes comuns. A constelação responde a essa imagem. De onde vem, então? Quem fez dela um paradigma?4 Voltamos a esse ponto, porque seu peculiar olhar sobre o método fundamenta nossa pesquisa.

Walter Benjamin (1892-1940), filósofo sui generis, não pagou barato para compor sua filosofia. Uma obra de pensamento que exigia, nos seus termos, estar no “olho do furacão”, embora à margem, inventariando os estragos, sem perder de vista o centro calmo e lìmpido. Ele soube reconhecer os perigos de um progresso “angélico”, ladeado aos quatro ventos como a promessa da barbárie vigente. Para a abertura das grandes alamedas de Paris havia que arruinar o já existente e expulsar os indesejados. Aparecia aí uma espécie de dialética, perspectivada por aqueles que sequer tinham nome e compunham uma massa com algo em particular por comum: o sofrimento. Ainda que a constelação seja uma metáfora sideral (da mesma que parece assemelhar com o daquele que busca, por fim, a moral dentro de si), ela o é à custa da luz do dia, ao custo do sol. É uma metáfora da noite, a qual reporta, ao mesmo tempo, a ausência de unidade e um comum que toca a todos: o envolvimento expansivo da própria noite. É, talvez, a metáfora do homem que olha à distância, enquanto aguarda na sua janela, a chegada da mensagem imperial, que é a mensagem de um morto, trazida por quem porta um símbolo já incapaz de ultrapassar as próprias muralhas. Uma estrela cintilante que se desfaz em sua pluralidade, agora tendo na noite o elã de sua figura arruinada. O que chega, então, a esse homem é a noite, talvez a única.

A constelação aparece a Benjamin já nessa perspectiva, fazendo a aparência de unidade implodir para dar lugar a outra coisa que não sua unidade totalizadora, desejosa de beleza, suposta manifestação do bom e da razão. Como um verdadeiro sintoma, ela vai expandindo até alcançar o espaço de um esforço metódico, de uma operação de saber, tocando as encruzilhadas da obra benjaminiana. O que faremos consiste em abordar o aparecimento da constelação ao longo da obra desse filósofo, especialmente em quatro textos, onde sua aparição é mais sintomática, isto é, coloca em questão a própria ordem do saber. São eles: “As afinidades eletivas de Goethe” (1924-5), o prefácio de Origem do drama barroco alemão (1925), Passagens (1928-1940) e “Teses sobre o conceito de história” (1940).

3

“O paradigma é apenas um exemplo, um caso individual que, através de sua repetibilidade, adquire a capacidade de modelar tacitamente o comportamento e as práticas de pesquisa dos cientistas [...] lógica especìfica e singular do exemplo” (AGAMBEN, 2019, p.13). O autor ainda o compara com a alegoria (idem, p.22). É preciso também lembrar a máquina de guerra que não se repete, mas sempre começa de novo. Nesse sentido, há um limite na noção agambeniana que não desejamos aqui. Nosso paradigma é máquina de guerra.

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O primeiro texto, uma crìtica elaborada à novela goethiana d‟As afinidades eletivas (1809), visou redefinir o próprio papel da crítica. Benjamin queria aí, não apenas dirigir sua crítica a um tipo de apreciação muito em voga, a daquela do círculo de Stefan George (1868-1933), como, ao fazer isso, abalar a própria tarefa e o sentido da crítica. A obra goethiana não foi escolhida à toa. Ela é peculiar na sua existência, polêmica na época de sua publicação e um ponto de torção na vida artística de seu autor – passagem para a maturidade, de certa inflexão em suas crenças, o que lhe coloca num ponto de crise, de certa forma. Nesse sentido, a obra é um desvio, tanto na sua forma quanto no seu conteúdo. Por isso, pode ter sugerido a Benjamin, a possibilidade de fazer proliferar e instaurar um novo processo de concepção de crítica. Ele não deixa de remeter a uma ruptura com a tradição, seja no trabalho do crítico, seja na existência da obra.

Para melhor compreender esses dois processos, trataremos de um de cada vez. Primeiro, tratemos do trabalho do crítico (do fora) para adentrar a obra (o dentro). De certa maneira, um quer fazer do outro seu escravo, quando o mais potente é a relação de ambos. Enquanto o círculo de George, escreveu Benjamin, tentou a todo custo fazer, com a crítica, da obra um momento da vida do seu autor, isto é, procurando as razões da obra na existência, na psicologia, do autor, como chaves para o enigma, o filósofo redefine a função do crítico, atuando como um alquimista e depois como um paleógrafo. É interessante, então, determo-nos nessas comparações. Sobre o primeiro disse: “Onde para aquele [o quìmico] apenas madeira e cinzas restam como objetos de sua análise, para este tão somente a própria chama preserva um enigma: o enigma daquilo que está vivo” (BENJAMIN, 2009, p.13-14). A segunda afirma que o crítico deveria comportar-se como um paleógrafo, quem “perante um pergaminho cujo texto desbotado recobre-se com os traços de uma escrita mais visível, que se refere ao próprio texto. Do mesmo modo como o paleógrafo deveria começar pela leitura dessa última, também o crítico deveria fazê-lo pelo comentário” (idem, p.13). Ambas as referências lidam com o trabalho do crítico, mas também com um tipo de tradição, essa certamente por vir. Um porvir, todavia, referente a um passado atuante, seja da figura do alquimista, pré-história do cientista, seja do texto antigo desbotado, ao qual se tem acesso pelo comentário mais atual, sua pós-história.

O paradigma de crítica benjaminiana já desafia toda crítica ao fazer jogar com anacronismos e inacabamentos – uma figura quase mítica e um tempo perdido. No entanto, isso é o que garante, e funda, o presente; o que é capaz de fazer jus ao que está vivo, ao enigma do que vive. Isso significa a necessidade de, não apenas estabelecer a diferença entre a forma e o conteúdo, os quais surgem como o teor factual e o teor de verdade da obra,

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respectivamente, como a percepção do próprio movimento da crítica, cuja função, já o notamos, não deveria ser fechar seus sentidos – criando um mito –, mas de lançá-las nessa tradição a carregar a obra consigo, pelo tempo, ainda que ao preço de sua gênese. Se o trabalho executado pelo paleógrafo começa pelas marcas do presente, ele o faz em vista da perda, ou seja, do texto desbotado, o qual ali está configurando a aparição dessa obra. Tal movimento, tal relação, é o que possibilita deparar-se com sua chama, ou seja, com o que vive na obra, porque ela é o resultado desses muitos comentários, vários dos quais presentes como manchas – imagens, portanto – do que poderia ter sido, e do que foi de fato: o gesto de algum crítico anterior, o esforço de se chegar ao teor de verdade daquela obra. Por isso que, nesse sentido, a vida do autor não é suficiente. Ela poderia explicar sua gênese, mas jamais sua origem. Ela poderia dizer algo sobre o tempo de sua aparição no mundo, mas não os desdobramentos e as aproximações temporais que a atualizam e a reavivam. Há de haver um momento de reconhecimento, no sentido de, nas condições do presente, encontrar uma afinidade, uma afiliação, ou mesmo uma aflição nessa obra. Tudo isso independe da vida do artista, partindo sim de seu teor factual, de maneira a dizer mais respeito àquilo que podemos experimentar com a obra, que é, a “conversão do caos em um mundo por um instante” (ibidem, p. 91). À confusão entre esses dois teores, Benjamin denomina mito. Aqui é interessante observar, como na própria redefinição do papel do crítico, o filósofo parece operar no regime estético concebido por Jacques Rancière. O que é tal contestação crítica senão a crise da crítica, ou melhor, a crise de uma forma de crítica que se quer totalitária e mantenedora das suas normas e regimes representativos? Teríamos o que Benjamin chama de próton pseudos em estabelecer-se o devir da obra com base na vida do seu criador, uma tentativa evidente de tornar tudo simbolizável e simbolizado, fazendo da obra um esforço de descoberta de pistas. Tal postura, como a do químico, significa transformar a chama em cinzas e resto de madeira, vestígios não de uma sobrevivência, mas da oportunidade de posse desses restos, agora inertes, logo, “passivos”.

Na própria noção de origem, saída igualmente de Goethe, para Benjamin há o acontecimento, uma ordem fora do instituído que não apenas carrega consigo o rompimento com o contínuo, mas também traz consigo e levanta num redemoinho o esquecido, o impensado e o obscuro. Levanta-se o teor de verdade assentado como segunda pele, ou uma fina camada de poeira, do teor factual, e aí, nessa distância, o mito fica comprometido. Que vem a ser o mito na perspectiva do filósofo alemão? No texto sobre o poeta alemão, ele não deixa de lembrar: é o desejo pela bela aparência, a qual enreda a ação da trama. Tal desejo engendra uma espécie de paralisação como acontece com o lago na trama, inerte, plácido,

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embora seja o exemplo de conformação aos fins de certa tradição. Outro exemplo é a própria trama do casamento, fonte do escândalo da época, no qual ambos os personagens, Charlotte e Eduard, conformaram-se da mesma maneira. A bela aparência aqui também significa a aparência do belo, isto é, o desejo de unidade no âmbito da aparência, numa complacência que retira do sujeito a sua possibilidade de decisão, para simplesmente, salvaguardar-se tal aparência. Os casamentos dos dois foi regida por essa perspectiva: feito por conveniência, liberados pelo destino (o nome mítico do acaso), decidem realizar um desejo de infância, o de juntos viverem em segundas núpcias. Essa única realização fica, pois, marcada por uma tal conformidade, lembra o filósofo. Resta-lhe, então, essa aparência de decisão, chamado aqui de escolha. Isto é, o mito aprisiona no espaço da escolha, a qual consistiria, basicamente, na manutenção da conformidade à ordem instituída.

Para a crítica, nessa perspectiva, isso significa a complacência com a ordem instituída, a continuidade de certa forma, de certa tradição, sem colocar em questão o próprio tempo. Parece que ela existe para o reforço das paredes da prisão da obra, a fim de, não somente mantê-la fechada, como também em afastar qualquer um que não esteja viciado nessa forma, quem ainda teria coragem de romper com o ciclo mítico. Se o casamento e a visão goethiana do matrimônio parecem o tema central da novela – especialmente em relação a uma posição kantiana de casamento como contrato, ao qual Benjamin opõe a união em “A flauta mágica” de Mozart –, para o filósofo trata-se muito mais da ruptura com a tradição e o desejo de salvar o mito que se instaura como teor de verdade da obra. Lembrando: como se trata de uma crise, não se sabe o caminho a seguir pelo poeta. As afinidades eletivas configura-se, pois, como uma imagem de tensão, do ponto de vista benjaminiano. E ele apresenta tal condição da melhor forma possível.

Agora, segundo, voltemo-nos à obra. Uma vez afastado o trabalho do crítico como detetive a remontar as peças para alcançar o enigma que desvenda a obra, encontrada na vida de seu escritor, o objeto parece mais digno do trabalho, assentando-se sobre si mesmo, partindo de si, fragmento de mundo. Tal fragmento, lapidado pelo tempo e pelos comentários, aparece como um elemento configurador de um tempo, o qual, pelo esforço da crítica subitamente reconhece uma afinidade com o tempo presente. Ele vive, porque encontra um tempo-de-agora, ou descobre-se uma iluminação sobre o tempo, um conteúdo que se torna cognoscível. A novela de Goethe é a história, já o adiantamos, de um casal, em segundo casamento, vivendo em perfeita comunhão, realizado obras arquitetônicas em sua região, favorecidos pelos convivas e pelo dinheiro. Estão sempre a remodelar o lugar, uma maneira de ocupar o tempo; trazer beleza para a vida, pelo menos, a aparência dessa vivificação pela

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beleza, ao ponto de, a fim de facilitar um caminho até a capela, reorganizarem a ordem das sepulturas, atitude ao qual Benjamin toma como “a ruptura mais definitiva com a tradição [...] não só no sentido do mito, mas também da religião, que fundamentam o solo sob os pés dos vivos” (ibidem, p. 23). Ruptura que, sem saída do mito, significa punição. Romper com o mito nunca vem sem uma punição. Alguém terá de ser punido pela manutenção de uma aparência, cuja existência põe em xeque a própria tradição.

Tal ruptura começa, justamente, através de uma metáfora científica, aquela que empresta título à obra. A trama dá-se por uma espécie de experimento, oriundo da química – as analogias benjaminianas não são, percebamos, gratuitas – pelo qual, Eduard tenta convencer sua esposa a inserir novos elementos na composição de suas vidas: trazer um amigo (o Capitão) como hóspede, enquanto ela, depois pensa, quando já parece convencida, trazer a sobrinha do internato, Otillie. Porém, como aparências, sua leitura constitui um perigo. Isso sucede em vários momentos: na proposta do experimento do qual se interpreta a afinidade entre, de um lado, os amigos, e, de outro lado, Charlotte e Ottilie, sem a consideração de outra possibilidade, aquela que de fato ocorre, entre Charlotte e o Capitão e entre Eduard e Otillie; no momento da inauguração da pedra fundamental de uma futura residência, quando o copo que deveria se partir como bom augúrio, um sacrifício, permanece intacto; ou mesmo, quando Eduard sai em campanha à procura da morte, não mais suportando seu amor por Otillie e sua traição à esposa, retorna. Todos esses presságios são mal interpretados, enredando mais fundo os quatro personagens na punição. Eles, os quais perderam a habilidade de adivinhar, confiando-se à razão, não souberam ler o destino ao qual se mantinham aferrados, destino matrimonial que reencena aquela do mito e dos deuses antigos. Mesmo o lago que ressurge após demasiadas interrupções geológicas não lhes serve como anúncio de uma desgraça.

A resignação, a falta de decisão e a passividade diante das próprias emoções permitiram ao mito realizar a derradeira esperança entre eles: “Menos hesitação teria trazido liberdade, menos silêncio teria trazido clareza, menos complacência, a decisão” (ibidem, p. 22). O desejo de fazer da aparência de beleza a quintessência de suas existências, todo o jogo de complacências e polidez, silenciando em nome de alguma nobreza, submetendo-se em nome de algum dogma, fazem da trama urdida o embate entre o mito, que lança sua rede sobre tudo, e aqueles que, assujeitados a um novo modo operatório desse mito, o direito, abrem mão da própria possibilidade de decidir, ao mitificarem uma reação da natureza em arquétipo da sociabilidade, encontram a dissolução, ou seja, a punição. A vítima a ser sacrificada, Ottile, é a própria encarnação dessa aparência. Sem forças, desde sempre; débil

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em sua existência (falando pouco, comendo pouco, sujeitando-se voluntariamente à vontade dos demais), ela adquire a aparência de um ser iluminado, como é tudo aquilo que, na queda, queima.

Ottilie será a sacrificada, mas o será na forma da aparência. Ela sucumbe, mas o faz como objeto de punição, não para salvar alguém, ou salvar-se, senão para pagar a conta da culpa, ser a moeda de troca da punição. Sua morte não rompe a trama do destino. Continua-a, tão somente (ibidem, p.82-83). Ottilie, essa “aparência de uma inocência da vida natural” (ibidem, p.82), não possui o elemento decisivo que a libertaria; ela não possui caráter. Tal caráter é, como afirmou o filósofo em outro texto (“Destino e Caráter”), é aquela marca que, num instante, decide, modificando a própria existência (como o ato de nascer, um instante, definidor da própria vida). Realizar tal ato, para Benjamin (2012b, p.51), seria entrar na bem-aventurança, âmbito das divindades. O jogo com a falta de caráter é tão preciso que Goethe acrescentou uma sucinta história dentro da novela, uma pequena novela no espaço da novela, tão contrastante com a maior, ao ponto de revolver em tensão.

Trata-se da história de dois jovens vizinhos, os quais brincavam juntos durante a infância, até o afastamento do rapaz para realizar seus estudos. Eles implicavam um com o outro, de maneira que a moça compreende sua atitude infantil, quando o rapaz retorna, já como um sinal de um amor nascente. Sabendo que ele pretendia casar-se com outra (obedecer aos costumes), numa festa de despedida no barco desse rapaz, ela resolve matar-se, atirando-se ao mar, vivo em atirando-seus movimentos (outro contraste em relação ao lago da trama). Antes de lançar-se, atira a tiara de flores que levava na cabeça, gesto interpretado por Benjamin como a dessacralização de seu sacrifício, ao rapaz que presencia a cena. O rapaz, depois de despir-se de suas pesadas vestimentas, lança-se atrás da moça de modo que ainda consegue resgatá-la, ao custo de quase morrer. Eles, porém, não retornam ao barco, mas são lançados pelo mar revolto à uma ilha, onde acabam por conseguir ajuda. Aí, com as roupas molhadas, recebem socorro de um casal que não possui outra roupa senão as que usaram no próprio casamento, assinalando o porvir do jovem casal naufrago. Declaram-se um ao outro, após tal sinal e consegue, por fim, regressar e constituírem uma vida matrimonial. Sucintamente temos uma oposição drástica e luminosa, pela distância que separa as duas histórias, à crepuscular passividade dos dois casais da trama central. A moça prefere sacrificar a vida a viver sem o amor; prefere lançar-se ao mar a ter de submeter-se a uma vida matrimonial de interesse contratual. Sua decisão, significando tudo ou nada, abriu à jovem o espaço da sua liberdade.

Charlotte e o capitão, Eduard e Ottilie, por sua vez, estão enredados e condenados, porque se mostram incapazes de realizar tal salto, para dentro da bem-aventurança, escapando

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ao espaço do destino: “[...] tão somente a decisão, não a eleição, está inscrita no livro da vida. Pois a eleição é natural e pode até pertencer aos elementos; a decisão é transcendente” (ibidem, 2009, p.103). Poderíamos dizer: a decisão é anárquica. Ela é também, podemos notar, um elemento de interrupção, de ruptura, de cesura, enfim. Há de se perceber que, pela maneira arrazoada e equilibrada com a qual se expressam as personagens, aparentemente deveras razoáveis, a bela aparência, na sua busca por certa justeza, esforça-se em preservar um equilíbrio das emoções. A estética é basicamente esse esforço, como podemos ver com Agamben (“O homem sem conteúdo”). Segundo Benjamin, apenas com a “fala dos afetos”, através da “grande comoção do abalo” (ibidem, p.109), isto é, com o sublime é que se pode encontrar o “poder do verdadeiro” (ibidem, p.92). O sublime, então, precipita a aparência no declínio. Em termos de crítica, podemos perceber já uma tentativa de elaborar um novo modo de sua concepção, pelo desmoronamento dos preceitos e das pequenas comoções: seja a crítica, então, uma porrada de abrir o crânio, parafraseando Kafka.

Insubmisso, Benjamin não deixa por menos, o que nos indica a necessidade de intromissão do páthos no discurso. Apenas o abalo rompe com o “ciclo mìtico”. Para isso o filósofo tem um nome: sem-expressão (das Ausdruckslose). O sem-expressão aparece em Benjamin numa configuração a envolver a noção de (i) enrijecimento, relacionada à forma, ou seja, à configuração dada ao conteúdo da obra para se tornar obra; (ii) interrupção, que se liga à noção de (iii) destruição e (iv) cesura (contrarritmo), quer dizer quatro movimentos de imobilização e remobilização, pois eles visam, de certa forma, instaurar um limiar que abre à reflexão acerca do que aí aparece. O sem-expressão torna-se um modo procedimental da crítica benjaminiana, com a finalidade de suspender, ou melhor, de levantar o que se move sub-repticiamente na obscuridade não-pensada do movimento da obra. Ela cria a distância entre o teor factual e o teor de verdade, para daí encontrar-se com o verdadeiro, com aquilo que rompe o mito. Primeiro dá-se uma configuração, ainda que momentânea do caos no mundo, na forma de uma obra (imaginemos tal enrijecimento num momento de tensão.... As afinidades eletivas parece cumprir essa imagem: tensão entre razão e mito, descobertas científicas e a restauração de uma crença, a ruptura da tradição em nome da conservação da aparência de beleza e da própria tradição).

Configurado numa passagem, numa tensão, a obra não parece bem corresponder ao ideal de beleza. Interrompe-se, então, tal procura totalitária, a qual se tenta salvar a todo custo a aparência. Vê-se, em seguida, a destruição desse sistema, a ruína dessa arquitetura. O que resta ao crítico é, pois, elaborar um contrarritmo, um outro movimento que carrega em si o próprio ato da cesura, da quebra. Tal movimento é um movimento interrompido; é o

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movimento com sua falta, ou a partir dessa falta, inacabado, mas ainda gesto. Perdendo o totalitarismo, ganha-se um “fragmento de um mundo verdadeiro”, o “torso de um sìmbolo” (ibidem, p. 92), uma rosa que lembra a verdade do paraíso sonhado. Porque, para o filósofo, a verdade existe, porém só nos aparece por fragmentos, na multiplicidade de fragmentos descobertos, achados e perdidos pelo mundo. Nesse sentido, o sem-expressão é o aparecer de uma interrupção, mas que se configura na medida em que imobiliza essa interrupção numa imagem, isto é, numa tensão condensada exposta. Benjamin identifica esse sem-expressão num momento específico da obra goethiana, momento crucial, talvez o último, e maior, engano da novela: quando Ottilie e Eduard acreditam poder ficarem juntos, quando finalmente declaram-se um ao outro e selam essa declaração com um beijo.

Nesse instante, o narrador (2014, p. 270) afirma: “A esperança passou sobre suas cabeças feito uma estrela cadente”. Qual o sentido dessa imagem, uma metáfora, senão o próprio aparecer do gesto literário, capaz de suspender toda a trama; interromper a ação para dar-nos uma imagem, abrir-nos no próprio cerne da aparência, que nos chega como aparência de aparência (esperança feita estrela), assinalando uma reconciliação enganosa (porque demasiadamente tarde), quando a verdade é a morte de Ottilie. “Quão superior a qualquer atmosfera anìmica estava aquele momento, e quão clara era a advertência das estrelas” (BENJAMIN, 2009, p. 119). Tal configuração surgida dessa ruptura resulta na frase fatal do filósofo: a esperança de reconciliação não é para “aquele que a acalenta, mas sim àqueles outros para os quais ela é acalentada” (idem). Cabe ao narrador, no aparecer com sem-expressão, configurar o acontecimento da esperança que, para os personagens, já não encontra lugar. É ele que cumpre o papel de sujeito ético em virtude dessa falta; uma ética surgida do fracasso:

[a] luta do ético jamais é apropriada para uma representação estética. Pois ou vence o ético ou ele é derrotado. No primeiro caso, não se sabe o que foi representado e por quê; no segundo, é vergonhoso assistir a tal representação, pois ao final, em algum momento deve-se dar ao sensual prioridade sobre o que é ético; [...] Em tais representações o sensual deve ser sempre soberano; castigado, porém, pelo destino, quer dizer, castigado pela natureza ética, que salva sua liberdade através da morte (GOETHE apud BENJAMIN, 2009a, p.40).

O sensual e o ético embatem-se; a vitória de um significa o fracasso do outro. Não aparece a possibilidade de um e outro. O que faz, então, o sem-expressão, a fim de, nem promover o fracasso ético nem a morte do sensual? Ele imobiliza ambos na tensão, numa

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imagem, a fim de, num momento oportuno encontrar aquilo que lhe permitirá uma saída da aporia, mas não na forma de uma unificação ascética, mas, talvez, de uma queda, como a estrela. De certa forma, e a distância entre o teor factual e o teor de verdade garantiria uma saída, ela já está dada na própria configuração. É a estrela, como imagem do sem-expressão. Ela aparece a Benjamin como o elemento sensível da configuração a responder tal aporia, não com uma síntese, retornando ao totalitário e apagando o rastro da falta constitutiva, mas com uma abertura na própria aparência; com sua chama, o incêndio de seu invólucro, a lançar fagulhas para os lados, a formar uma (ou muitas) constelações, conjunto de fragmentos de mundo verdadeiro, de novas configurações, ainda que arruinadas, ainda que ruínas do mundo antigo (parciais, queimadas, incompletas, desfiguradas).

As estrelas surgem como metáforas para a reflexão sobre o próprio conhecimento, na medida em que, “extinguindo-se o sol, desponta a estrela da tarde no crepúsculo, a qual sobrevive à noite” (ibidem, p.120). Sobrevive por um poder de fragmentação, como fragmentos e daquilo mesmo que resiste à expressão: “a multiplicidade irredutìvel das ideias, sua coexistência no interior de um sistema, o fato de que esse sistema permaneça inalterável, inclusive quando deixa de aparecer” (MÒSES, 1997, p.90)5

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Se o sem-expressão aparece nesse ensaio como uma postura, ou impostura, diante de uma tradição de crítica literária, encontrando na estrela cadente (logo, luminosa, em chamas, em movimento) uma forma sintomática de abertura do conhecimento, no prefácio crítico-epistemológico de Origem do drama barroco alemão, ela se torna, devém, parte configuradora de um método. Se no seu projeto de reconfiguração da crítica Benjamin a quer à altura da obra de arte, no texto de 1925, praticamente paralelo ao ensaio sobre a novela de Goethe, o filósofo, partindo novamente desse poeta, quer uma ciência à altura da arte. Ou melhor, paralela, paradigmática a ela; uma forma que dê a ver na ciência “uma arte”. Ou seja, a arte configura-se como paradigma de pensamento. Se antes dominava um paradigma teológico (da bem-aventurança), passa-se, a partir desse texto, numa nova configuração, a um paradigma estético. Se na crítica, a verdade parecia estar na vida do artista, ou seja, fora da obra, segundo Benjamin, para certas manifestações científicas, a verdade é algo a se agarrar, porque aí também, ela vem de fora, restando-lhes portanto, elaborar sistemas antecipatórios, a determinar, por sua vez, os resultados, exibindo claro interesse na validade de tais sistemas e sua consequente manutenção como possuidor de verdade.

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O filósofo alemão contrapõe a isso duas imagens: o tratado e o mosaico; duas formas no campo de saber e no campo da técnica, as quais, em suas próprias formações, contrariam a perspectiva científica dominante. Tanto o tratado como o mosaico buscam apresentar a verdade, o que significa que ela se dá junto com o processo, na medida em que se estabelece o próprio método. Se há um logos determinado nesse processo, ele está em devir, inacabado e por se configurar. Por seu lado, aquilo que se encontra nesse processo guarda sua singularidade (a “citação autorizada” no tratado, com fim pedagógico, e os fragmentos de cerâmicas visìveis, na estrutura do mosaico), sem cair numa unidade totalitária ou “média vazia”, como denomina o autor. Assim, a verdade não é agarrada de fora; ela é uma construção inter-relacionada com o próprio método, o que permitiu ao filósofo afirmar: “método é caminho indireto, é desvio” (BENJAMIN, 1984, p.50-51). Tal como, posteriormente fez Adorno em “Ensaio como forma”, não se chega à verdade tentando possuì-la. Ela aparece na medida em que se configuram os elementos de sua composição, como o clique do cofre após acertar a combinação de dígitos da senha; uma verdade que se encontra no próprio interior, na própria configuração, e não fora. Aqui Benjamin não perde a dialética de vista. O ato mesmo de conhecer está na direção de uma distância e de uma perda. O tratado não possui o saber final, nem está acabado. O mosaico é um amontoado de pedaços cujo princípio de montagem, com seu caráter de ruínas, forma uma imagem da qual não se perde a visibilidade de seus componentes constitutivos nem a cola, o limiar-negativo que une todos eles. A contemplação garante a distância, mas do tipo a promover um salto, a partir de uma espécie de arrebatamento (esotérico), o que colocava o filósofo em contato com o fenômeno.

Tal contato é igualmente indireto. Benjamin o realiza através do conceito, cujo aporte platônico faz com que o fenômeno necessite de salvação, no espaço das ideias, por meio de uma “inteligibilidade”. Porém, a revelia do filósofo grego, a ideia, em contrapartida, necessita dos fenômenos para ter importância. O conceito é esse caminho. Na verdade, ele é o único, porque o conhecimento é, no fim, acontecimento linguístico; ele está na própria imanência de sua produção, tal como o teor de verdade está no tempo da própria obra de arte. O conceito é a existência concreta da dialética entre o fenômeno e a ideia. E ela aparece ao filósofo como aquilo que queima, como o “incêndio no qual o invólucro do objeto (fenômeno), ao penetrar a esfera das ideias, consome-se em chamas, uma destruição pelo fogo da obra, durante a qual sua forma atinge o ponto mais alto de sua intensidade luminosa” (idem, p.53-54). Mais uma vez a metáfora da chama serve a uma abertura na forma de elaboração do conhecimento. Se aqui é a chama que se mostra como o conceito, vemos, por exemplo em Hegel, a chama ser utilizada como aquilo que aquece o “cadinho da razão que

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depura o ideal”. Enquanto nesse último, o fogo “purifica” o conceito, em Benjamin o fogo é o próprio conceito que destrói, e o faz a fim de penetrar na esfera das ideias, para fazer parte, embora não em sua pureza ou determinidade, e sim por um fragmento que se salva como conceito, um mundo vivo reduzido.

A luminosidade referida não é a do sol, mas a da fogueira, cujo brilho mais intenso prescinde do dia e chama pela noite. De baixo ao alto, as estrelas, fragmento que, ao incendiar-se, liga-se ao desejo, à esperança de bem-aventurança, a um vestígio de tempo-de-agora, abre caminho para a multidão do céu. Em termos de método, a abertura completa-se, ou melhor, prolifera-se: “seu valor heurìstico se mantém com a condição de ser eliminada a metáfora solar”, revirando a metáfora da caverna, de modo a fazer do processo de conhecer uma “metáfora da noite” (MATOS, 1999, p.147-148). Tendo a arte como paradigma, Benjamin põe em obra seu sistema, servindo de aporte metódico para salvar a chama, preservar a singularidade do fenômeno, na mesma medida em que aparece como a possibilidade revolucionária de imobilização e rompimento com a tradição, com certa tradição científica e filosófica, a qual busca na matemática e na física newtoniana um modelo de saber. Muito habilmente, o filósofo vale-se de práticas antigas para oferecer o mais novo e revolucionário em termos de saber: a arte da interrupção, a arte da dialética, “como os átomos, como as células, como os sistemas solares, cada um tinha seu próprio centro: sem hierarquias, estavam juntas umas das outras „em perfeita independência e intactas‟” (BUCK-MORSS, 2011, p.232)6.

Se inicialmente o tratado e o mosaico respondem materialmente à forma da apreensão do fenômeno, no plano da configuração desses fenômenos, Benjamin toma a constelação, não mais a estrela isolada (nem mesmo a estrela cadente), e sim um campo celeste que as reúne e atribui-lhes uma forma, forma em formação, forma aberta, forma a sustentar a singularidade, através de relações. O elemento em comum entre o tratado, o mosaico e a constelação é a relação. É ela o operador dialético (mantém a distância enquanto aproxima, aproxima pela distância), assumindo, na filosofia benjaminiana, a função de conceito. Isso significa que a própria concepção do conceito não se mantém, quando pensado como aquilo que diz, ou pergunta, sobre o ser do que deve ser definido. O conceito, pela relação, assume uma nova postura. Ele é concebido constelarmente. Quer dizer: a constelação aparece como conceito em relação e o conceito como relação constelar. O como dessa relação, lembrando novamente Adorno, diz-nos de uma “quase correspondência”, mas nunca a

Referências

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