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Adolfo Simões Müller

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Academic year: 2021

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Departamento de Educação

Mestrado em Didática da Língua Portuguesa

Adolfo Simões Müller

Príncipe da Literatura Infanto-Juvenil

Trabalho realizado sob a orientação da Mestre Leonor Riscado

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II

AGRADECIMENTO

Este trabalho só foi possível graças ao préstimo de um grupo de pessoas a quem agradeço a disponibilidade e paciência demonstradas.

À Mestre Leonor Riscado que me acalentou o sonho de empreender esta investigação e que me foi orientando.

Aos Amigos de Hergé, nomeadamente o João Paulo Paiva Boléo que pôs ao meu dispor uma vastíssima documentação. Deste grupo de apreciadores da obra do autor de Tintin fazem ainda parte José Menezes (a quem agradeço a leitura em primeira mão do seu trabalho sobre O Papagaio) e Fernando Cardoso (obrigado por andar de alfarrabista em alfarrabista à procura de obras de Adolfo Simões Müller).

Os agradecimentos só ficam completos se referir os nomes dos escritores António Mota e José Fanha que tiveram a amabilidade de me facultar toda a informação pedida. Um agradecimento especial ainda ao cartunista Zé Oliveira que, por iniciativa própria, me disponibilizou documentos com grande relevância para este meu trabalho. Da primeira à última linha (e até nas entrelinhas) está o dedinho de cada um deles.

À Isabel, por me ter amparado nesta aventura,

à Patrícia e ao Pedro que privei de alguns momentos de convívio, e aos meus progenitores agradeço. Especialmente ao meu pai que sempre acreditou em mim.

Muito obrigado a todos.

O autor

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III

ADOLFO SIMÕES MÜLLER

PRÍNCIPE DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL Resumo da tese

Mais do que realizar um trabalho académico, pretendi com este documento prestar uma homenagem a um escritor grandemente apreciado ao longo de várias gerações e do qual muitos dos que viveram nas décadas de 40 a 80 poderão não recordar o nome, embora tenham lido alguma das suas obras. Adolfo Simões Müller é tão só o maior divulgador da banda desenhada franco-belga em Portugal, tendo sido o responsável pelas principais revistas para jovens. O Papagaio, Diabrete, Cavaleiro Andante, Foguetão e Zorro são as publicações que foram por ele dirigidas. Adolfo Simões Müller está também associado à introdução do Tintin em Portugal, fazendo do nosso país o primeiro do mundo a publicar fora da Bélgica as aventuras daquele herói. Se isso não bastasse, foi em Portugal que o herói de Hergé saiu a cores pela primeira vez, muito antes de tal suceder no seu país de origem.

Adolfo Simões fica também na história da literatura infanto-juvenil por assinar várias biografias romanceadas de figuras como Marie Curie, Thomas Edison e Florence Nightingale, além de ter adaptado para os mais novos clássicos portugueses e universais.

Este é um autor que urge (re)descobrir, já que dedicou a sua vida à escrita, assinando livros, dirigindo revistas, escrevendo para programas radiofónicos e televisivos, sem esquecer o teatro. Cedo experimentou a poesia e sempre a promoveu, procurando cativar os jovens. Este é o retrato de um autor que deixou a sua marca, influenciando homens e mulheres que mais tarde se dedicariam à escrita. Alice Vieira é uma delas. Neste trabalho incluem-se os testemunhos daqueles que, de uma forma ou doutra, foram tocados pela escrita daquele que foi considerado o “príncipe da literatura infanto-juvenil”.

Palavras-chave: Literatura infanto-juvenil; O Papagaio; Diabrete;

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IV

ADOLFO SIMÕES MÜLLER THE PRINCE OF YOUTH LITERATURE Summary of the Thesis

More than writing an academic piece, I have meant to pay a tribute to a writer that many generations between the 1940s and 1980s have greatly appreciated, even if they may not remember his name. Adolfo Simões Müller has been the greatest contributor to the popularization of franco-belgian comics in Portugal, as he was responsible for many youth magazines. He notably directed O Papagaio, Diabrete, Cavaleiro Andante, Foguetão and Zorro. Adolfo Simões Müller is also associated with the introduction of Tintin in Portugal, making this country the first in the world to publish the adventures of this character outside of Belgium. As if it was not enough, Portugal was the first country where its adventures came out in colour, before it actually happened in his country of birth.

Adolfo Simões also features in the history of youth literature by authoring a number of romanticized biographies of characters such as Marie Curie, Thomas Edison and Florence Nightingale, besides having adapted classic works of Portuguese and international literature for a young audience.

This author is worth re-discovering because he dedicated his life to writing, authoring books, editing magazines, writing for radio and television shows and theater. E practiced poetry early on and always promoted it, trying to appeal to young people. This is the portrait of an author who left his imprint, influencing men and women who would later engage with writing, such as Alice Vieira. This piece includes testimonies of people who, in one way or another, have been affected by the work of a man who would be considered the “prince of youth literature”.

Key-words: Youth Literature; O Papagaio; Diabrete; Cavaleiro

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V SUMÁRIO

I – Introdução II – A infância

III – Adescoberta de uma vocação IV – O Papagaio e os concorrentes V – Tim-tim português

VI – O Diabrete: a aventura continua

VII – Do Diabrete para o Cavaleiro Andante VIII - Do Foguetão para o Zorro

XIX- Müller e Hergé

X - Maria Amélia Bárcia: braço direito de Adolfo Simões Müller XI – O amigo Fernando Bento

XII – O homem da rádio

XIII - Produção literária intensifica-se

XIV- Adolfo Simões Müller e a Banda Desenhada XV - Para além da literatura infantil e da BD XVI - O jornalista XVII – O poeta XVIII - Homenagens XIX – Testemunhos XX – Bibliografia XXI – Anexos 1 7 15 23 35 45 53 59 65 69 73 79 83 89 95 101 105 109 113 127 133

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9 Entra-se numa biblioteca, seja ela pública ou escolar, e verifica-se, com algum esforço, que a obra de Adolfo Simões Müller ainda vai figurando nas prateleiras das estantes. Contudo, tendo publicado o seu derradeiro livro até meados dos anos oitenta, este autor está longe de ser, na atualidade, um dos mais lidos dentro e fora das escolas e só os alfarrabistas poderão valer a quem quiser adquirir exemplares da sua vasta obra.

Enquanto professor do 1.º Ciclo, interessei-me pelo trabalho deste escritor por mais do que um motivo. Em primeiro lugar, porque descobrira, há já alguns anos, que o seu nome aparecia ligado ao de Hergé, o mundialmente conhecido pai espiritual do Tintin. Adolfo Simões Müller é tão-somente o responsável pela introdução em Portugal, em 1936, daquele ícone da banda desenhada. Depois da Bélgica, o nosso país foi o primeiro a publicar as pranchas daquele repórter e do seu cão Milu. Isso deveu-se a Adolfo Simões Müller que, nas páginas de O Papagaio, uma revista destinada ao público infantil por ele dirigida, teve também a ousadia de publicar a cores aquele herói das histórias aos quadradinhos, muito antes de isso acontecer na Bélgica, país de origem do Tintim.

Quem era aquele português com quem Hergé trocara correspondência, chegando mesmo o escritor a valer ao desenhador belga no conturbado período da Segunda Guerra Mundial? Como tintinófilo confesso, não tive dúvidas de que Adolfo Simões Müller se me afigurava uma personalidade rica, cuja obra e percurso mereciam ser estudados e, desta forma, apresentados ao público. Daí ter escolhido este autor para tema central do meu trabalho de mestrado.

Por outro lado, enquanto professor titular de uma turma do 4.º ano, descobrira há pouco Sola Sapato e Outras Histórias, uma das últimas 3

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produções de Adolfo Simões Müller, de forma puramente acidental, na biblioteca da minha escola. Arrumado numa das mais dissimuladas prateleiras da última estante, lá estava aquele livro, juntamente com outros da autoria de Ricardo Alberty ou Isabel Mendonça. Estes são apenas dois exemplos de escritores para o público infanto-juvenil que hoje são pouco ou nada conhecidos, em virtude de as suas histórias nunca terem sido reeditadas. As últimas edições, a maioria datada da década de 80, lá vão sobrevivendo sem o brilho dos títulos da atualidade. Adolfo Simões Müller é um deles, vítima de nunca ter sido reeditado.

Propus-me, por isso, empreender este trabalho, com o objetivo de, para uns, reavivar a obra deste escritor que foi considerado o “Príncipe da Literatura”. E ainda são muitos os leitores – já todos com uma idade respeitável – que se lembram de Adolfo Simões Müller. Por outro lado, havia também que dá-lo a conhecer aos mais jovens. Foi isso que fiz, por minha iniciativa, à revelia dos títulos recomendados pelo Plano Nacional de Leitura, lendo algumas das suas obras aos meus alunos de nove e dez anos. Fica o convite, ao longo das próximas páginas, para (re)descobrir esta figura multifacetada, distinguida três vezes com o Prémio Nacional de Literatura Infantil, já que, além de autor de literatura infanto-juvenil, Adolfo Simões Müller será também para muitos o diretor de revistas como O Papagaio, Diabrete e Cavaleiro Andante, publicações que, naqueles anos, faziam com que as crianças formassem filas em frente dos quiosques, que depois de as ler as trocavam. Além de jornalista, pedagogo, dramaturgo, produtor de programas radiofónicos e diretor do gabinete de estudos da Emissora Nacional, ele é também tradutor, adaptador e argumentista de BD. Para outros, ele é também poeta e jornalista, além de ter igualmente feito publicidade. O seu trabalho de tradutor também foi significativo, com traduções de obras como Cartas 4

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11 de Amor, de Pablo Neruda, e Os Possessos, de Dostoievski, além de ter escrito textos narrativos, poéticos e peças de teatro, conforme revela Pires.

Foi considerado, e não só em Portugal, como um mestre da literatura infantil e juvenil, tendo introduzido entre nós o “mágico moderno”, o “maravilhoso real” dos nossos dias. Além disso, é citado no Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e Brasileira: “Entre nós é praticamente único”; na História y Antologia de la Literatura Infantil Iberoamericana (1966), de Carmen Bravo Villasante: “Temos que assinalar a grande obra que está realizando em Portugal Adolfo Simões Müller”; na antologia Los Mejores Cuentos Juveniles de la Literatura Universal (1965), de Carolina Toral: “Considerado o príncipe da literatura infantil portuguesa, tem personalidade própria, com as suas colecções de história e as suas preciosas biografias de grandes figuras à maneira de contos”.

Tendo publicado três dezenas de livros da especialidade, contando mais de 70 edições com cerca de 300 mil exemplares vendidos em Portugal e em Espanha, este é um autor que urge ler. É Adolfo Simões Müller nas suas várias vertentes que vamos conhecer, ora com base nos testemunhos de quem privou com ele, ora recorrendo a variada documentação. Aqui fica o retrato de um “homem dos (setenta e) sete instrumentos”, nas palavras de Pedro Cleto. “Uma vida cheia”. Foi assim que Simões Müller qualificou o seu percurso numa entrevista ao Jornal de Letras (JL). Conheçamos pois aquele que é considerado “um dos grandes pioneiros do registo literário infantil, a partir do segundo quartel do século XX”, conforme é referido no sítio do Centro de Recursos e Investigação sobre Literatura para a Infância e Juventude.

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15 18 de agosto de 1909. A monarquia portuguesa dá os seus últimos suspiros. D. Manuel II, a muito custo, governa o país, enquanto os republicanos vão ganhando força. Em Lisboa, na freguesia de Santa Isabel, nasce Adolfo Simões Müller, filho de Adolfo Emílio José Maria Sexton Müller, de ascendência alemã, e de Maria Albertina Simões Müller. Estamos em Campo de Ourique, num dos bairros mais antigos da capital. É aqui, perto do Jardim da Parada, que Adolfo Simões Müller vive até à adolescência.

É ele quem recorda, em O Príncipe Imaginário e outros contos tradicionais, que “morávamos na rua do Possolo (salvo erro, no n.º 16), ao cimo da Calçada das Necessidades, mesmo defronte do Grupo Recreativo e Dramático “Os Combatentes”, em cujo palco se apresentavam belas promessas de artistas. Ali se estreou Maria Clara, que depois, nos anos 40, se tornaria cançonetista famosa e eu viria a conhecer na Emissora Nacional”.

Vale a pena ouvir da boca do próprio Adolfo Simões Müller como foram vividos estes primeiros anos de vida. Em O Príncipe Imaginário e outros contos tradicionais, Adolfo Simões Müller reúne em livro uma mão-cheia de histórias que ouviu durante a sua infância e que, “muitos anos depois, fui revivendo na leitura dos livros dos especialistas”.

No prefácio da obra acima referida, o escritor refere-se “à criada” chamada Isabel que trabalhava em casa dos pais. Sérgia, a mãe dessa criada, ia uma vez por semana a casa do menino Adolfo Simões Müller. Aí, a Sérgia – apesar de “praticamente analfabeta” - contava histórias que deliciavam as crianças lá de casa. Esta velha ama é, sem dúvida, em parte responsável por ter incutido no jovem Adolfo Simões Müller o gosto pelas histórias e tudo começou quando lhe contou O Príncipe Imaginário. A ela, Adolfo Simões Müller agradece, fazendo o seguinte 9

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pedido: “E vê lá, minha velha amiga, se te ensinam agora outras histórias, nalguma galáxia da vizinhança… Adeus, Sérgia. Obrigado!”

Até numa ida ao Jardim Zoológico, a Sérgia não perdia a oportunidade de maravilhar o jovem Adolfo Simões Müller: “E isso, é claro, serviu de pretexto para a Sérgia nos contar alguns velhos contos de animais”, recorda o escritor.

Afinal, outros nomes da literatura portuguesa tiveram, nalguma página dos seus livros, a velha ama que lhes contava histórias. É o próprio Adolfo Simões Müller que cita os casos de Almeida Garrett, Antero de Quental, António Nobre, Guerra Junqueiro e Eugénio de Castro. Quanto ao livro O Príncipe Imaginário e outros contos tradicionais, que Adolfo Simões Müller publicou em 1985, o autor refere que eles são os contos da sua memória, mas também “os meus contos da Sérgia”.

Ainda nessa mesma coletânea de contos, Simões Müller alude a Ana de Castro Osório, considerada por muitos a criadora da literatura infantil no nosso país. Foi ela quem recolheu e contou numerosos contos da tradição popular. Estão reunidos em dois volumes com o título Histórias Maravilhosas da Tradição Popular Portuguesa.

A este propósito, Adolfo Simões Müller considera “curioso que, num total de 60 contos, não chegue a um terço o número dos que apresentam a abertura “tradicional”: “era uma vez”, substituindo-a com frequência por outras expressões também de uso corrente, como “era de uma vez”, “houve outrora”, “em tempos que já lá vão” e outras. Não obstante este leque alargado de alternativas, “Era uma vez” era a expressão inicial preferida pela Sérgia”.

Conforme referiu a escritora Alice Vieira (2004), numa homenagem prestada a Adolfo Simões Müller, nestas recolhas, ele 10

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17 “salienta muito a importância fundamental dos contadores de histórias, do tempo em que havia tempo para estar à lareira a ouvi-los”, acrescentando ainda que “também nessa época, as avós eram as transmissoras das histórias de tradição popular”, sem esquecer “uma importantíssima, que era a velha Doroteia, que terá contado aos irmãos Grimm mais de metade das histórias que eles depois viriam a relatar”.

Adolfo Simões Müller não perde a oportunidade de homenagear a velha ama contadora de histórias, ao escrever uns versos que saíram num dos primeiros números de O Papagaio, o primeiro jornal que “fundei e dirigi há uns bons cinquenta anos”. Para melhor percebermos a importância da D. Sérgia, nada melhor do que aqui reproduzir o poema de Adolfo Simões Müller:

Era uma vez

Quando eu era pequenino Gostava de ouvir contar Histórias de princesinhas Encantadas ao luar. Havia então lá em casa Uma criada velhinha: A Sérgia contava histórias - e que graça que ela tinha! Lendas de reis e de fadas, Inda me encheis a lembrança! Que saudades de vós tenho; Ó meus contos de criança! “Era uma vez…” As histórias Começavam sempre assim; E eu, então, sem me mexer, Ouvia-as até ao fim. Lembro-me ainda tão bem! Os irmãos à minha beira,

Calados! E a boa Sérgia Contava desta maneira: Era uma vez…” E, depois, Olhos fitos nos meus lábios, Ouvia contos sem conta De gigantes e de sábios… “Era uma vez…” E, por fim, A voz da Sérgia parava… E assim como eu te contei Era como ela contava. Ai! Que saudade, que pena, Que nos meus olhos tu vês! Eu sentava-me e ela, então, Começava: - “Era uma vez…” Mas já a Sérgia, nós sentados, contava:

“Era uma vez…”

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Entretanto, enquanto estudante, Adolfo Simões Müller passa pelo Colégio Figueiredo, em Campo de Ourique. De acordo com Alice Vieira, é neste estabelecimento de ensino que o escritor trava conhecimento com a menina Letícia que ali trabalhava como empregada e “a quem depois terá pago essas histórias, escrevendo-lhe quadras, que foram as suas primeiras quadras, quando tinha para aí seis ou sete anos. As primeiras quadras de amor foram para a menina Letícia, que lhe tinha contado muitas histórias no Colégio Figueiredo! Nessas histórias nós podemos, realmente, viajar, por esses longos serões das espaçosas noites de inverno, pelo murmúrio das vozes junto à lareira, pelas xácaras e romances de princesas e cavaleiros, pelas bruxas e lobisomens, pragas e feitiços”.

Nas páginas de introdução de As Mil e Uma Noites, numa parceria com o desenhador Fernando Bento, Adolfo Simões Müller recorda que “era eu um catraio, um miúdo de bibe e calção, mais pequeno do que a maioria dos que me estão a ler agora… Andava a aprender a ler – a… i… lê-se ai… - com a menina Letícia, uma simpática velhota dos seus sessenta e tal anos, julgava eu, quando, soube depois, tinha apenas dezassete… Eu cá tinha pressa de saber ler, para poder ler todos os livros de folhas douradinhas que havia na estante do meu pai, ao fundo do corredor. Entretanto, valia-me a senhora Sérgia, mãe de Isabel, a nossa empregada doméstica, que aparecia uma vez por outra lá por casa e nos contava, a mim e aos meus irmãos, uma lengalenga de histórias que eu nunca havia de esquecer pela vida fora. Assim que soube escrever, passei a apontá-las na melhor letra que tinha – que era muito má… Depois, mais tarde, quando a vida deu um pulo, li essas mesmas histórias aos outros rapazes que apareciam lá em casa e a quem a minha mãe dava sempre pão com marmelada e eu só comia pão com manteiga”.

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19 Adolfo Simões Müller rememora ainda que “as histórias da senhora Sérgia eram quase sempre as mesmas. Falavam de um sultão, um chefe das Arábias, que tinha a mania de casar com uma mulher que lhe contasse uma história para ele adormecer e depois, no dia seguinte, mandava cortar-lhe a cabeça quando bastaria mandar cortar-lhe a palavra… Até que um dia encontrou uma noiva, chamada Xerazade, que descobriu a artimanha – a manhosa! – de chegar à meia-noite com a história ainda no meio, de modo que o sultão, tão tão mau, tinha tanta pena de Xerazade ou, antes, tinha tanta pena de não saber o resto, que adiava para a noite seguinte a continuação. É claro que nessa segunda noite a história acabava cedo, e a Xerazade dizia que sabia uma ainda mais bonita. O sultão caía na esparrela e ela deixava outra vez uma história em meio. E assim as noites foram passando, até que, ao cabo de mil e uma noites, a vida principiou a correr normalmente no palácio do velho rei das Arábias. Mais tarde, publicou-se um livro com as histórias das Mil e Uma Noites, que a senhora Sérgia ouviu ler e foi decorando e que, depois, passou a contar, atrapalhando-se muitas vezes, mas seguindo sempre em frente”.

Mais tarde, transita Adolfo Simões Müller transitou do Colégio Figueiredo para o Liceu Pedro Nunes, revelando-se sempre um aluno brilhante.

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23 Chega então o curso de Medicina da Escola Politécnica de Lisboa, que o jovem Adolfo passa então a frequentar, mas que não o motiva. É nesse mesmo período que é obrigado a lecionar aos 18 anos nas Oficinas de S. José, em Lisboa. Conforme refere numa entrevista a Luís Almeida Martins para o Jornal de Letras, de 16 de março de 1987, “as posses da minha família não eram grandes”. Este é, seguramente, um momento marcante na vida de Adolfo Simões Müller, já que é nestas funções que contacta com crianças do ensino primário, todas elas com poucas referências literárias. Descobre então a vocação de comunicar com os jovens e a facilidade de lhes transmitir conhecimentos, inventando processos de os entreter.

A este propósito, o escritor recorda na mesma entrevista que um dos processos “consistiu em dividir a turma em dois grupos de futebol, com onze de cada lado, perfeitamente definidos como avançados, halves, backs, keeper e tal. A bola ia progredindo até ao golo, através de perguntas que se iam formulando sobre a matéria (neste caso, Ciências Naturais). Quando era golo havia uma algazarra! Este processo era ótimo porque os rapazes tinham sempre a matéria na ponta da língua, para tramarem o parceiro. Um dia, quando uma das equipas marcou golo, foi tal a barulheira que apareceu o diretor acompanhado de umas senhoras muito bem vestidas. Fiquei atrapalhado, mas lá expliquei em que consistia o jogo. Pois a verdade é que o «público» ficou para assistir e, no final, aplaudiu… Também ensinava a História de Portugal recorrendo à narração de episódios como se fossem histórias maravilhosas e os alunos aderiam entusiasmados. Assim começou, digamos, a exprimir-se a minha vocação para o contacto com a gente nova...”.

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Um ano antes, em 1926, publica aquele que é o seu primeiro livro de poesia. “Asas de Ícaro: versos dos dezasseis anos”, recebendo na época rasgados elogios por parte da crítica.

Em 1927, um ano depois do golpe militar que veio interromper os primeiros tempos conturbados da República, Adolfo Simões Müller publica Santos do meu altar, mais um livro de poesia, a que se seguem, a partir de 1931, as primeiras obras destinadas às crianças. É o caso de Meu Portugal, meu Gigante, Jesus Pequenino (1934) e Caixinha de Brinquedos (1937). Este último título, com ilustrações de Rudy, é distinguido com o Prémio Nacional de Literatura Infantil a que se sucedem vários outros: Maria Amália Vaz de Carvalho e o do Secretariado Nacional de Informação e Turismo.

Com cerca de 30 anos, é convidado para trabalhar no jornal Novidades (órgão oficioso da Igreja Católica), onde passa a desempenhar as funções de redator. Ao deixar o jornal Novidades, torna-se redator no Secretariado de Propaganda Nacional, onde colabora com António Ferro nos trabalhos da Exposição do Mundo Português. Nesta qualidade, por exemplo, em 1940, o escritor acompanha a embaixada do Brasil às festas do duplo centenário de Portugal.

Chega o ano de 1935 e o diretor da Renascença, Lopes da Cruz, “lembrando-se da minha vocação para lidar com jovens (e eu, entretanto, tinha já publicado um livro infantil), convidou-me para fazer um jornal”, rememora Simões Müller. Nascia assim O Papagaio.

Em dezembro de 1950, Simões Müller integra a Comissão de Censura, no que toca à Literatura Infantil. Este é aliás um episódio que o próprio recorda na entrevista a Carlos Gonçalves, publicada no Correio de Manhã a 16/01/1982. Na resposta à pergunta que Adolfo Simões Müller considerou provocadora, o escritor sublinha que “nunca existiu, 18

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25 quanto a mim, censura às publicações infantis e juvenis no nosso país. Pelo menos censura prévia. Havia, de facto, uma Comissão fiscalizadora (chamemos-lhe assim) que funcionava, por acaso, em instalações anexas aos Serviços de Censura. Mas, apenas, por uma questão de instalação. Cumpria-lhe, somente, observar o cumprimento das «instruções» tornadas públicas em 1950 e que, segundo me disseram, teriam sido escritas, pelo menos em parte, pelo José de Oliveira Cosme, diretor de um jornal da especialidade e, portanto, insuspeito, no seu natural desejo de defender os jornais que fazia”. Simões Müller acrescenta ainda que “foi, aliás, essa circunstância que me levou a ser nomeado para a primeira Comissão, uma espécie de instalação instaladora, porque a Empresa do Diário de Notícias entendeu que por uma questão de prestígio, se o diretor de uma revista concorrente – o Mundo de Aventuras, dirigido pelo Cosme – tinha lugar nessa Comissão, não se podia negar outro ao diretor do Diabrete (de que Simões Müller viria a ser diretor). Fiz parte, pois, dessa Comissão durante alguns meses. E nunca recebi, por isso, qualquer remuneração. O meu trabalho, o nosso trabalho, consistia em verificar se eram atendidas as recomendações daquele documento, que me sugerira um extenso comentário crítico”, explica o escritor na mesma entrevista concedida ao Correio da Manhã.

Noutra entrevista, desta vez ao Jornal de Letras, Simões Müller suaviza o papel da comissão que integrou, substituindo a censura pela leitura: “pertenci a uma comissão de leitura, que não era de censura e se limitava a aconselhar. Eu próprio recebi conselhos da comissão de que fazia parte. Era sobretudo o tom: para quê escrever que “Fulano foi arremessado para uma fria masmorra”, em vez de que “Fulano foi encarcerado”, ou assim?”, elucida o escritor.

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Na mesma entrevista, sublinha ainda que nunca teve relações com o poder. “Vi o Salazar uma vez, mas nunca falei com ele. O Marcelo Caetano foi o único governante que manifestou algum interesse pela minha obra: quando ocorreu o quarto centenário da publicação de Os Lusíadas, deu instruções no sentido de uma reedição estatal do meu livro As Aventuras do Trinca-Fortes. Pois sabe quantos exemplares se venderam? Como diria o João Soares: zero! (Risos). Aquilo nunca foi avante. Agora, recentemente, a dr.ª Maria Barroso esteve presente no lançamento do meu livro A Torre de D. Ramires. E foi tudo”.

Ainda a respeito de censura, Leonardo de Sá, no seu Dicionário Universal de Banda Desenhada – pequeno léxico disléxico, dá conta de que “a partir da criação do nosso próprio código interno, apelidado Instruções Sobre Literatura Infantil, estabelecido em 1950”, a comissão instaladora tomou posse “a 15 de Dezembro desse ano. Constituíram-na Serras e Silva (presidente), Edmundo Curvelo, Américo Cortês, Noémia Cruz, Eduardo António Pestana, Luís Mota, Adolfo Simões Müller e José de Oliveira Cosme. Estes dois últimos eram diretores, respetivamente, das revistas Diabrete e O Mundo de Aventuras. No que dizia respeito à literatura infanto-juvenil, entre nós, a censura não tinha verdadeiros objetivos políticos, mas antes sociais. Incidia fundamentalmente sobre a representação do horror, sadismo, violência, cenas escabrosas e sobre o próprio tamanho ou corpo do texto impresso… Algumas séries foram simplesmente afastadas. Outras foram mutiladas pelos próprios editores, a fim de assegurarem a publicação”.

E quanto a pressões para que determinado conteúdo fosse alterado, terão alguma vez existido no que diz respeito às publicações infantis? Müller diz que “como diretor de um jornal, recebi uma vez um telefonema da Comissão, pedindo-me que evitasse frases como a que 20

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27 aparecia numa adaptação ilustrada do romance O Pajem de Luís XIV, de Ponson du Terrail. A frase era, julgo eu, “masmorra húmida e lúgubre”, considerada traumatizante. A não ser que algumas pessoas bem-intencionadas quisessem ver naquilo uma referência às prisões da Pide, uma das quais visitei – para ver um amigo que, pouco depois, iria para o Tarrafal, donde regressou a minha casa…”

Simões Müller acrescenta ainda que “é curioso registar que uma das melhores publicações então recebidas na Comissão, segundo me disse um dos seus membros, era um semanário russo, parece que destinado a alguém da família do dr. Álvaro Cunhal. Esse jornalzinho, na informação de um consultor que sabia russo, era excelente e lembrava, no aspeto gráfico, no formato, nas cores, O Papagaio.

Se, com este episódio, Simões Müller procura tornar claro o seu afastamento em relação ao regime salazarista, há quem considere precisamente o contrário. No Dicionário de Literatura Infantil Portuguesa, Garcia Barreto (2002) defende que, “apaixonado pela História de Portugal e pelos seus heróis, Simões Müller serviu-se dela para erguer uma obra assente na divulgação desses temas junto das camadas mais jovens, numa perspetiva educativa e lúdica, mas à qual e a nosso ver, não conseguiu retirar a carga da História institucional salazarista”.

Barreto diz ainda que “a sua obra de raiz, Meu Portugal, Meu Gigante…, publicada em 1931 pela ENP, até pelo título denota esse olhar para dentro, acrítico e lisonjeiro. E há ainda a sua Historiazinha de Portugal. Neste livro, publicado em 1944, mas que em 1983 ia já na sua 6.ª edição, é desta forma que o autor define a atuação de António de Oliveira Salazar: “veio, primeiro, o período das ditaduras, com um Mussolini, um Hitler, um Franco, outros mais… E um Salazar. Este teve 21

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erros decerto. Quem os não tem? Mas deixou muita realização grandiosa”. Seja como for, Barreto conclui, não tendo dúvidas de que “o seu trabalho é relevante para a literatura infantil portuguesa”.

Também no sítio da Casa da Leitura, da Gulbenkian (www.casadaleitura.org), Simões Müller é “reconhecido como um dos nomes mais importantes da nossa literatura nos anos 40 e 50, ainda que enfeudado a preocupações nacionalistas e comprometido com intenções moralistas flagrantes, tem numerosos títulos premiados, tendo recebido, em 1982, pelo conjunto da sua obra, o Grande Prémio da Fundação Calouste Gulbenkian”. Numa outra perspetiva, há quem ignore qualquer seguidismo ideológico e defenda, antes, uma “tendência educativa frequente nas primeiras décadas do século xx” que “é bastante evidente nos seus textos, como se verifica logo em Meu Portugal Meu Gigante… e em Historiazinha de Portugal, de 1944, que ilustram simultaneamente a linha patriótica que era uma das principais vertentes dessa tendência educativa, conforme refere Pires.

Quanto a revistas, o percurso de Simões Müller não poderia ser mais rico e teria ido mais além se tivermos em conta as palavras do próprio. Na entrevista já atrás citada ao Correio da Manhã, o escritor dá conta de dois sonhos: “o de um grande jornal infantil e juvenil, de organização internacional” e outro “de um jornal para os filhos dos emigrantes portugueses espalhados pelo Mundo”. Nenhuma destas duas aspirações viu a luz do dia, é certo. Contudo são reveladoras do espírito empreendedor e incansável de um homem que nasceu e viveu para a literatura infanto-juvenil, além de merecer o título de maior divulgador da banda desenhada. Em declarações prestadas ao JL, Simões Müller deixa um lamento: “agora os interesses dos jovens são outros: é a música, é a televisão, é o cinema. Quase não leem…”

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31 É preciso recuar até ao último quartel do século XIX, mais concretamente até 1874, para descobrirmos as origens da imprensa infantil portuguesa. De acordo com Peixoto (1986), a quem se deve o trabalho O Papagaio, revista miúda para miúdos: sua influência ao serviço da Igreja, na formação ideológico-cultural da juventude dos anos 30-40, foi naquele ano que apareceu O Amigo da Infância. Da responsabilidade da Igreja Evangélica Portuguesa, esta publicação tinha como principais caraterísticas o seu conteúdo pedagógico e, como não podia deixar de ser, predominantemente religioso. Além disso, conforme refere Peixoto, “O Amigo da Infância foi o periódico infantil de maior longevidade: 66 anos”.

Do mesmo ano data o Recreio Infantil, quinzenário que, no meio de muitos autores estrangeiros, incluía alguns desenhos originais de portugueses. Cessa a sua publicação três anos mais tarde, a que se segue Ilustração da Infância, de que saíram apenas três números.

Em 1883, é a vez de O Jornal da Infância, cuja maioria das suas gravuras era de origem francesa ou alemã. Merece particular destaque por incluir numerosos desenhos originais de Rafael Bordallo Pinheiro e Ribeiro Arthur. É neste jornal que encontramos Os Macacos e os Barretes, considerada por Peixoto “sem dúvida uma das primeiras histórias em quadradinhos portuguesas”.

Em dezembro de 1898, surge o quinzenário Jornal das Crianças que não ultrapassou um ano de existência.

É preciso esperar até 1903, para que surja um exemplo verdadeiramente notável de revista infantil: O Gafanhoto, que foi publicado em duas séries (de 1903 a 1904 e em 1910). A dirigi-lo estavam Thomaz Bordallo Pinheiro e Henrique Lopes de Mendonça (o autor da letra do hino A Portuguesa).

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Só nos anos 20 surgem novidades no que diz respeito à imprensa infantil. 1921 marca a data do nascimento de uma publicação que ficará na história das revistas para o público infanto-juvenil. Trata-se do ABC-zinho, revista inovadora no campo gráfico e que teve como diretor o escritor Cottinelli Telmo. A revista contou com um vasto leque de artistas de entre os quais se destaca Stuart Carvalhais.

Em 1931 chega ao fim a aventura do ABC-zinho, pelo que a editora ABC o substitui, em 1933, pelo Senhor Doutor, considerado por muitos um grande jornal infantil, dada a sua superior qualidade, nomeadamente pelo primor da sua composição e impressão. Esta publicação conquistou logo uma larga fatia do mercado juvenil.

Nos anos 20 surgem ainda O Bebé (de 1923 a 1925), O Pirilampo (publica-se apenas um número, em junho de 1925), A Cigarra (de que saíram dez números), O Pintainho (ao longo de 1925), O Có-có-ró-có (de 1928 a 1929), este último da responsabilidade do Diário de Notícias e dirigido por António Cardoso Lopes. Teve como colaboradores Graciette Branco, Virgínia Lopes de Mendonça e Luís Ferreira.

Com o fim de O Có-có-ró-có, Peixoto diz que “as crianças portuguesas ficaram sem um jornal expressamente feito para elas”, razão pela qual as histórias de cowboys surgem como único alimento cultural da juventude desta época.

Em 1932, surge o Tic Tac, quinzenário dirigido por Cardoso Lopes que, terminado este projeto, estará na génese do emblemático O Mosquito.

Em 1935, sai para as bancas e ao longo de nove números O Gaiato, com direção de Alice Ogando e que contou com colaborações invejáveis como as de Aquilino Ribeiro, Afonso Lopes Vieira e Álvaro Cunhal, entre outros.

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33 Peixoto grante que “tanto O Senhor Doutor, como O Gaiato, sem esquecer O Tic Tac, são publicações que nada devem ao regime totalitário instalado em Portugal”, logo a seguir ao 28 de maio de 1926. É neste contexto que, em 1935, surge O Papagaio, “aparentemente como resposta da Igreja a um mundo (o da juventude influenciada pelo laicismo do Senhor Doutor e do Tic Tac) que sentia escapar-lhe” (Peixoto, 1986).

Em 1936, como reação ao impacto inicial de O Papagaio, nasce O Mosquito (escrito e desenhado na Amadora, quase da primeira à última página, por Cardoso Lopes), que tenta captar uma fatia da clientela do Senhor Doutor e que sucede ao Tic Tac.

Explicado o contexto em que surgiu O Papagaio, importa determo-nos nesta publicação e acompanhar o percurso de Adolfo Simões Müller. Como referência no universo das revistas para o público infanto-juvenil e da banda desenhada nacional e europeia, O Papagaio está indubitavelmente ligado ao nome de Adolfo Simões Müller. É na Páscoa de 1935 (mais precisamente a 18 de abril) que surge O Papagaio, em “plena hora das ditaduras”, refere Peixoto. Por convite de Mons. Lopes da Cruz, à data diretor da Renascença, Simões Müller torna-se diretor de O Papagaio. Revista miúda para miúdos. Para o efeito, rodeia-se de nomes como António Botto, Virgínia Lopes de Mendonça e José de Lemos, entre muitos outros. A ele se deve também a participação naquele semanário de dois irmãos, Sérgio Luís e Güy Manuel, desenhadores e autores de O Boneco Rebelde, uma personagem de BD que preencheu as páginas de O Papagaio.

Num artigo assinado por Álvaro Costa de Matos (2009), dedicado a Adolfo Simões Müller, publicado na revista Jornalismo & Jornalistas, refere-se que, segundo António Dias de Deus, “nunca como n‟O 27

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Papagaio, se congregaram tão ilustres escritores e tão louvados artistas na síntese da revista modelo da imprensa infantil católica”. Aos nomes acima referidos, importa acrescentar os de Emília Sousa Costa, Acácio de Paiva, Denis de Ribadouro (Hilda Correia Leite), Padre Moreira das Neves, Maria Lamas, Armando Ferreira, Alice Ogando, Luís Forjaz Trigueiros, Aníbal Nazaré, Maria Archer, Aurora Jardim e Gudes de Amorim, para só citar os principais.

No campo gráfico, não pode deixar de ser referido o nome de Tom (D. Tomás José de Mello), responsável pela maquetização inicial, capas, cabeçalhos, ilustrações soltas e histórias aos quadradinhos. No lote de desenhadores, além do já citado José de Lemos, Adolfo Simões Müller rodeia-se de Margarida Müller Dias (sua sobrinha), Júlio Resende (que mais tarde enveredaria pela pintura), Arcindo Madeira, Ilberino dos Santos, Rudy (Manuel Baptista), Ruy Lupi Manso, José Viana, os já referidos irmãos Sérgio Luís e Güy Manuel, Méco (António Serra Alves Mendes), entre outros.

Facto concreto é que, de acordo com Peixoto, em Portugal, “construía-se um Estado forte, procurando-se redefinir uma identidade nacional na base dos «valores eternos e sagrados»: Deus, Pátria, Família. Salazar imprimia já a marca da sua vontade férrea em todos os domínios – servido por uma Igreja ansiosa pela recuperação dos privilégios perdidos e por um Exército domesticado e apoiado numa classe média cansada de desassossego, indiferente aos valores das democracias de quem cada vez menos se falava (e porventura inconsciente dos tenebrosos métodos da emergente PVDE)”.

Feito este retrato de Portugal, percebe-se facilmente que a propaganda, à semelhança do que acontecia na Alemanha, Itália e Espanha, ganhava força, tornando-se na arma mais eficaz para 28

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35 sensibilizar a sociedade e, no caso da revista O Papagaio, para conquistar a juventude. Peixoto diz que “não dispondo o regime de órgão informativo juvenil próprio, e impotente para controlar publicações independentes como o Senhor Doutor e o Tic Tac, O Papagaio – resposta da Igreja à influência laica sobre a juventude – vem prestar ao Estado Novo um serviço extremamente eficaz (e porventura não solicitado) no espartilhar das ideias, no estreitar dos horizontes culturais. Não sendo uma emanação do regime, a novel mas não inocente «revista miúda para miúdos» ajustava-se como uma luva aos seus ideais – logo penetrando em força na camada que se não podia perder: as crianças e os jovens da média e alta burguesia”.

Não obstante a bem definida orientação desta revista, Simões Müller parece ter um papel mais independente. De acordo com Peixoto, “a um lirismo deste tipo – e a um sobre-enaltecimento dos valores tradicionais, constante ao longo de toda a sua vida – aliavam-se todavia no jornal a inteligente (e aparentemente independente) orientação de Müller, com caraterísticas de certo modo inovadoras no meio: para além de conseguir em poucos anos uma situação de equilíbrio a 50% quanto à inclusão de textos e gravuras portugueses e estrangeiros, O Papagaio exibia um bom grafismo (servido por grandes artistas nacionais como Tom, Júlio Resende, Vasco Lopes de Mendonça e Stuart de Carvalhais – este apenas episodicamente, que não era homem da Igreja), e publicava excelentes histórias em quadradinhos estrangeiras, com muito especial referência para o Tim-Tim, do genial Hergé.”

A ligação da personagem de Hergé a Portugal é de tal forma relevante que Boer escreveu um livro intitulado Tintin au Portugal (2004). Nesta obra (que não é uma banda desenhada, mas sim um relato das ligações do herói ao nosso país), o autor dá conta de que foi no dia 18 29

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de abril de 1935 que o n.º 1 de O Papagaio é publicado, referindo-se à revista como sendo “monótona” até ao n.º 53, tendo em conta a predominância de histórias ilustradas e a existência de uma história portuguesa. Segundo Boer, “Adolfo Simões Müller, na altura diretor de O Papagaio, torcia o nariz às bandas desenhadas inglesas e norte-americanas, uma vez que não iam ao encontro da mentalidade da juventude portuguesa. Considerava que a língua e a cultura francesas tinham mais a ver com os portugueses”.

O autor de Tintin au Portugal explica como Tintin chegou ao nosso país: “Este religioso, Abel Varzim da Silva, mostrou a Adolfo Simões Müller alguns números do Petit Vingtième (o suplemento infantil belga em que nasceu o herói de Hergé) e mais em pormenor algumas pranchas do Tintin que, em 1935, já existia há seis anos. O herói da poupa já tinha vivido quatro aventuras e era já fortemente apreciado”. Acrescenta ainda que “a pedido de Adolfo Simões Müller, Varzim contactou, em fins de maio de 1935, com Hergé, para se inteirar dos direitos de publicação. Aproveitou a oportunidade para, imediatamente, assinalar que O Papagaio não tinha meios para pagar os direitos considerados elevados”. Por outro lado, “Hergé, que ainda não tinha experiência no domínio dos direitos para o estrangeiro, contactou a Société du Droit d‟Auteur, sedeada em Paris. Para o efeito, enviou alguns dos seus álbuns àquele instituto e propôs ao padre Abel Varzim de tratar do assunto com eles. Na opinião de Hergé, a quantia de 50 francos franceses por episódio (uma dupla página dos álbuns a preto e branco) era razoável”, esclarece Boer.

O autor de Tintin au Portugal destaca o dia 16 de abril de 1936, como data importante, uma vez que Tintin é publicado pela primeira vez num país não-francófono: Portugal. É por isso que o n.º 53 de O 30

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37 Papagaio, datado de 16 de abril de 1936, ocupa um lugar de destaque na história de Tintin. Depois de Tim-Tim na América do Norte, oito outras histórias serão publicadas naquela revista para miúdos.

Importa aqui fazermos uma pausa e perguntarmo-nos por que razão Portugal foi o primeiro país não-francófono a publicar as aventuras de Tintin. Mérito de Adolfo Simões Müller? Boer explica que “sem dúvida que a ele se deve a proeza, mas não nos podemos esquecer de que, ao contrário do que se verifica no presente, na década de 30 do século passado, Portugal é um país consumidor de banda desenhada”. Assim, conforme referido anteriormente, o primeiro verdadeiro magazine de BD, o ABC-zinho, data de 1921. Uma outra publicação ainda mais popular, O Senhor Doutor, era um sucesso em 1933. Data de 1935 a chegada à Europa da revista americana Mickey, ao mesmo tempo em França, Espanha, Itália e Portugal. “Existia assim um clima propício à banda desenhada, o que se entende, uma vez mais, pelo facto de Portugal ser um país um tanto ou quanto «francófono» e de se orientar mais para a França do que para Espanha. Sem esquecer que, à data, os portugueses falavam mais francês do que castelhano ou inglês”. Boer conclui assim que, por todos estes motivos, “não é de admirar que o herói de Hergé tenha chegado tão cedo a Portugal”.

Outra das facetas de Simões Müller n‟O Papagaio é a de adaptador de muitos clássicos da literatura universal. O autor tem, por isso, a preocupação de adaptar obras de outros autores, para as dar a conhecer às crianças, nunca esquecendo nas páginas d‟ O Papagaio de alertar os seus leitores para a necessidade de lerem o texto original.

Simões Müller deixa O Papagaio numa altura em que esta publicação já atravessava dificuldades financeiras eventualmente resultantes de uma queda na tiragem, que radicava não só num certo 31

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afrouxamento da qualidade, como ainda na crescente popularidade de O Mosquito e na forte implantação de O Senhor Doutor (Peixoto, 1986).

Para Peixoto, outro fator ditou o encerramento de O Papagaio: “a insistência (a contrapor ao espírito democrático e aberto de O Senhor Doutor e de O Mosquito) e o empolamento de determinados valores, fielmente alinhados pelos princípios orientadores do Estado Novo, permaneceram uma constante na vida de O Papagaio. Levados ao exagero inconcebível após a saída de Müller e à sua substituição pelo Dr. Artur Bivar – um homem ligado aos setores mais retrógrados da Igreja, formado na Universidade Gregoriana de Roma, polemista radical, palestrante habitual da Rádio Renascença e colaborador do jornal Novidades – acabaram por abrir caminho à decadência da revista e ao seu desaparecimento em 1949”.

Peixoto considera ainda “lamentável, porém, que uma publicação juvenil com tantos aspetos positivos – designadamente nos anos de Simões Müller – se tenha deixado tão marcadamente amarrar aos preceitos da ideologia dominante. Ficará assim na história da imprensa infantil portuguesa muito mais como deformadora do que como educadora. Com a preocupação de variar o grafismo das suas capas, logo no n.º 87 (1936) aparece no cabeçalho uma garbosa marcha de jovens da Mocidade Portuguesa, saudando à Hitler e (pasme-se!) precedida – como as mascotes dos bombeiros – por um papagaio de passo certo, fardado a preceito e também de braço estendido! Todos construindo uma sociedade forte, crente e limpa dos miasmas do liberalismo e do comunismo” (Peixoto, 1986).

Não restam dúvidas de que O Papagaio tinha como alvo um público bem distinto. Peixoto acrescenta que “n‟O Papagaio, apesar da sinceridade com que Müller trabalhava a temática infantil e juvenil – 32

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39 fazendo-o como um verdadeiro profissional, e dominando perfeitamente a difícil arte de comunicar com as crianças – transpareciam à evidência, como demonstrado anteriormente, as marcas classistas. A clientela de pequenos leitores (respigada de listas de concorrentes premiados em concursos, e da secção “O que eu queria ser…”) incluía não poucos nomes sonantes de filhos de “boas famílias” que, na órbita do poder político, formava a oligarquia constituinte duma parte essencial do regime”.

Além disso, “os primeiros seis anos d‟O Papagaio foram, com pontos altos e pontos baixos, os anos da qualidade – qualidade a que Simões Müller esteve sempre associado. A sua saída em 1941 (divergências pelos excessos ideológicos que a Igreja viria forçando?) marca o início da marcha descendente do jornal” (Peixoto, 1986). Como consequência da saída de Simões Müller, os melhores colaboradores foram saindo – alguns, solidários com Müller, tinham passado com ele para o Diabrete, a próxima aventura editorial do autor de Meu Portugal, Meu Gigante....

A aventura de O Papagaio termina a 30 de dezembro de 1949, ao fim de 720 números publicados ao longo de 14 anos de “continuada e influente barrela (a sabão azul e branco – que, além de ser português, tinha as cores da tradição) a muitas das cabecinhas que vieram a ter papel ativo na condução dos destinos da Nação. Para isso existiu O Papagaio”, conclui Peixoto.

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43 Outro atributo de Adolfo Simões Müller é o de aportuguesar o que vinha de fora. As personagens de Hergé não foram por isso exceção. Se Tintin virou apenas Tim-tim, o seu cão Milou passou a chamar-se Rom-Rom, enquanto o Capitaine Haddock era conhecido por Capitão Rosa em terras lusas e o professeur Tournesol por cá dava pelo nome de professor Pintadinho.

Para quem conhece a versão original, as alterações dos nomes soam, no mínimo, estranhas. É o caso do Sombra, publicado no suplemento Quadradinhos Especial, do jornal A Capital, onde Adolfo Simões Müller é acusado de ter “batizado” o nome das personagens do “herói Tim-Tim”. Inclusivamente alterou a nacionalidade do português Oliveira da Figueira, personagem da história Os Charutos do Faraó e outras, tornando-o espanhol.

Adolfo Simões Müller considera a crítica infundada. E explica: “troquei os nomes de várias personagens do Tim-Tim com o consentimento dos editores e de outras histórias, não em obediência a quaisquer instruções de qualquer censura, mas porque sempre achei disparatado dar a ler aos compradores dos nossos jornais nomes que eles, muitas vezes, nem compreendem. Na adaptação do Tintin, comecei por substituir este nome por Tim-Tim. Na verdade, ou se lê o nome à francesa, ou então está mal escrito à portuguesa”.

Mas o caso mais caricato é do cão Milou (Adolfo Simões Müller, erradamente, diz tratar-se de uma cadela). Conforme revela na já citada entrevista ao Correia da Manhã, “depois fui à cadela Milou, nome de várias meninas na época e até de uma cantora de rádio muito popular, e dei-lhe a onomatopaica designação de Rom-Rom, paralela à do Tim-Tim. Capitão Haddock? Que queria isto dizer? O que era ad hoc, no trocadilho, para os jovens? Polícias Dupond e Dupond? Que significava 37

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essa troca de letras finais? E assim por diante! O mesmo fiz com o tal Olivero – Oliveira, ou como era, e noutra altura até com um Müller, que algum jovem leitor poderia julgar ser eu próprio”.

A este propósito, veja-se o seguinte caso: estamos no dia 16 de janeiro de 1941. O Papagaio inicia a publicação de Na Ilha Negra (L’île Noire, em francês). Numa das vinhetas, Tintin compõe um pequeno puzzle, onde consta o nome daquele que viria a ser o mau da fita. Dr Müller é o seu nome. Acostumados ao aportuguesamento do nome das personagens, os leitores de O Papagaio descobrem, em vez do homónimo do diretor da “revista para miúdos”, o maléfico Silva.

Numa entrevista publicada na revista Les Amis de Hergé, Adolfo Simões Müller conta que não podia permitir que o inimigo de Tintin partilhasse consigo o mesmo apelido. Foi por isso e a seu pedido que mudaram o nome de Müller para Silva.

Mas no que diz respeito ao aportuguesamento do Tintin e seus companheiros, Adolfo Simões não se limitou a mudar os nomes. Tintin, personagem nascida em 1929 no suplemento infantil Le Petit Vingtième, quando chegou a Portugal, transformou-se pela mão de Adolfo Simões Müller no Tim-tim, o famoso repórter de O Papagaio. Mas há mais: Tintin no Congo passa a ser Tim-tim em Angola, havendo ainda cenas adaptadas à realidade portuguesa. Nesta aventura, publicada do dia 13 de abril a 14 de dezembro de 1939, um barco navega ao largo da Ilha de São Tomé, Tim-tim diz ao seu fiel companheiro Rom-rom: “Estamos diante da Ilha de São Tomé que é, como sabes, uma rica possessão portuguesa”. Ora acontece que na versão original Tintin navega, não ao largo da antiga colónia lusa, mas sim ao longo das ilhas Canárias. Quando, mais tarde, Tim-tim chega a Angola, ele é oficialmente repórter de O Papagaio. Olhando para as roupas da época, torna-se claro que o xadrês está na 38

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45 moda. Repare-se no Tim-tim com umas calças de golfe axadrezadas. O rapaz negro chama-se Bola de Neve, praticamente igual a Boule di Neige, na versão original. Além disso, ele tem um exemplar de O Papagaio na mão.

Mas há mais. Em Tim-tim na América do Norte, aparece um camião carregado de pipas de vinho do Porto, mascaradas de bidões de gasolina. A bebida nacional substitui assim, na versão original, o whisky contrabandeado.

Salvado (2011), no seu artigo Tintin em Portugal: 75 anos de inovações, alterações e aportuguesamentos, dá mais exemplos. Explica que “as próprias histórias também tiveram várias adaptações à realidade portuguesa, quer por via da sensibilidade política e social (um suicídio passa a falecimento súbito, a greve dos funcionários de uma fábrica – algo proibido em Portugal – passa a paragem para almoço, o whisky de Haddock passa a água)”.

Não restam dúvidas de que Tintin contribuiu para o sucesso de O Papagaio. Curiosamente, quando o padre Lopes da Cruz propôs a Adolfo Simões Müller que a revista começasse a publicar as aventuras de Tim-Tim, o diretor esteve inicialmente contra. Apercebendo-se da qualidade do trabalho de Hergé, Simões Müller rapidamente mudou de opinião e ainda bem, já que O Papagaio viu rapidamente subir a sua tiragem até aos notáveis 30 mil exemplares que – taco a taco com o Senhor Doutor – terá atingido no seu apogeu, no fim da década de 30” (Peixoto, 1986).

A este respeito, é importante aqui referir a forma como eram pagos os direitos de autor. De acordo com o diretor de O Papagaio, numa entrevista ao Jornal de Letras, datada de 16/03/1987, “pagava-lhe em dólares ou francos, ou lá o que era (já não me lembro), mas veio a guerra e aquilo para nós era uma ninharia. Eles lá é que estavam pobres… Ora, 39

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uma belo dia, o Hergé escreveu-me e pediu-me, se possível, o pagamento dos direitos, não em dinheiro, mas em latas de sardinhas, que se destinariam a um irmão dele (Paul Remi) que estava prisioneiro dos alemães num campo de concentração… Assim fiz”.

Nessa altura, Tim-tim era já uma série de sucesso. Mas qual o segredo do êxito? Simples: é que esta banda desenhada estava nos antípodas do proposto pelas homónimas americanas divulgadas em Portugal. A principal diferença residia no facto de a inteligência e o humor se sobreporem à violência gratuita. Foi assim que o Tim-Tim se tornou num êxito na época em Portugal, o que deu azo a situações de rapazes vestidos como o herói de Hergé, sonhando com viagens a países exóticos, acompanhados do Rom-Rom, um cão da raça fox terrier. O próprio Adolfo Simões Müller aficionou-se tanto àquele ícone da nona arte que chegou a ter um animal em tudo igual ao fiel companheiro do Tim-Tim, só faltando a poupa para que o diretor da revista O Papagaio se parecesse com o herói nascido em Bruxelas, em 1929.

Com o sucesso de Tintin em Portugal, Hergé passa a receber, a partir de julho de 1936, um cheque e alguns exemplares de O Papagaio. Para sua grande surpresa, o desenhador constata que os episódios da sua história estavam a cores (sem a sua concordância, mas gostou: "fiquei encantado por ver os meus desenhos aparecerem a cores", diz Hergé numa carta que enviou a 12 de maio desse ano ao padre Abel Varzim, que o contactara em maio de 1935, em nome da publicação, para negociar a divulgação das histórias de Tintim. Hergé descobre também que a ordem original das vinhetas fora alterada, aspeto esse que o desagradou. Boer (2004) refere que “os responsáveis pela colocação em página da história simplesmente a recortaram na íntegra e voltaram a colá-la no jornal tendo em conta o espaço disponível”. Isto é o suficiente 40

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47 para Hergé reagir: “uma banda desenhada é concebida como um folhetim, de forma a, no fim de cada episódio, o leitor ficar na expetativa do capítulo seguinte, o que não é o caso”, sublinha o artista belga, aludindo-se ao trabalho dos portugueses. Hergé insistiu para que a configuração original fosse de novo retomada, mas a recomendação parece ter caído em saco roto.

Este incidente, contudo “não chegou para comprometer as relações entre o criador de Tintim e a revista portuguesa, que divulgou mais oito aventuras do herói até ao final da sua existência, em fevereiro de 1949”, refere Pessoa (2007). Acrescenta ainda que “além de efetuar a primeira publicação em quadricromia do mundo, O Papagaio foi também a primeira revista de um país não francófono a divulgar Tintim”.

A dada altura, o pai espiritual de Tintin recebe uma carta de Portugal. O padre Varzim informa o desenhador belga de que o Tim-tim (grafia portuguesa) se tornou muito popular no território lusitano. Entretanto, a redação de O Papagaio não teve em conta (à exceção de um ou outro caso) as observações de Hergé.

Mas algo deve ter aborrecido ainda mais o autor de Tintin: em mais do que uma ocasião, diferentes desenhadores ficam responsáveis, alternadamente, pela capa de O Papagaio. Manuel Güy, irmão de Sérgio Luís, autor do Boneco Rebelde, recria (ou melhor tentou recriar) um desenho com Tintin, Milou (Rom-Rom) e companhia, mas o resultado – pelo menos na opinião de Boer – deixa muito a desejar, o que, naturalmente, deve ter desagradado ao próprio Hergé, desenhador representante da linha clara e muito perfecionista. Além de Manuel Güy, também Tom, Arcindo e José de Lemos, entre outros, se encarregam de desenhar o Tintin à sua maneira. Fazem-no “não só em diversas capas do jornal como também como personagem de corpo inteiro no início das 41

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histórias do Boneco Rebelde, de Sérgio Luiz, e Na Pista de Tim-tim, de Rodrigues Neves e Diniz de Oliveira”, (Salvado, 2011).

No artigo Tintin em Portugal: 75 anos de inovações, alterações e aportuguesamentos, Salvado explica que “no início da presença de Tintin em Portugal as alterações e aportuguesamentos praticados sobre a obra de Hergé foram muitos, por vezes revolucionários e nem sempre permitidos”.

Em Tintin au Portugal, Boer dá conta do grande desejo de Adolfo Simões Müller. É o próprio que revela que “em abril de 1939, Hergé recebe uma carta do diretor de O Papagaio. Um plano gigantesco! Adolfo Simões Müller quer editar uma aventura de Tintin em Portugal (aqui sim, uma história aos quadradinhos). Ao que parece, Hergé gosta da ideia, mas quer ter algum controlo. Contacta de imediato Jean-Louis Duchemin, do Syndicat de la Propriété Artistique, com sede em Paris. Este apresenta-lhe os custos da operação a Adolfo Simões Müller. Este último deve contentar-se com 10% do preço do álbum, cabendo 40% desse montante à SPA. O projeto foi imediatamente arrumado na gaveta”, revela Boer.

Mas este não foi o único desaire de Adolfo Simões Müller. Ele foi incansável, finda a II Guerra Mundial, na aquisição dos direitos das Aventuras de Tintin para Portugal. Müller trava a sua última batalha pelos direitos de Tintim e perde-a. Numa carta enviada a Hergé em março de 1960, Müller pede a «intervenção» de Hergé para evitar que "outro editor português faça uma edição que eu me proponho fazer há muito tempo e sobre a qual julgo ter um indiscutível direito de prioridade".

A resposta de Hergé chega a 22 de março: Casterman, o editor belga, reconhece em Müller um "amigo da primeira hora", mas "a lógica 42

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49 dita que seja utilizada a edição brasileira igualmente em Portugal" (Pessoa, 2007). Só em 1988 a editora portuguesa Verbo compra os direitos de publicação para o mercado português.

Todavia, não restam dúvidas de que Adolfo Simões Müller é a peça-chave para explicar a curiosa relação que Hergé teve com Portugal. (Pessoa, 2007)

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53 Em 1941, Adolfo Simões ainda é diretor de O Papagaio, mas por pouco. Existe nesta época uma grande rivalidade na cena editorial para crianças. Assim, com a competição bem acesa e em plena crise da indústria gráfica, surge nas bancas dos jornais, em 1941, “a que foi porventura a melhor revista juvenil portuguesa da época: o Diabrete (Peixoto, 1986).

Entretanto, é também neste ano que Simões Müller participa em Acção Infantil, um suplemento para crianças do semanário direitista Acção, dirigido por Manuel Múrias. Enquanto a Europa central e ocidental está em guerra, Hergé precisa de dinheiro e espera impacientemente o que lhe é devido em direitos de autor, enviado diretamente de Portugal. A resposta tarda, mas o autor de BD recebe, por acaso, uma carta de Adolfo Simões Müller em que este lhe comunica que quer deixar O Papagaio, para lançar uma nova publicação. Para essa publicação, a que dará o nome de Diabrete, o português quer utilizar os desenhos de Hergé. Entretanto, despede-se de O Papagaio a 30 de janeiro de 1941 e torna-se diretor do Diabrete, a convite da Administração da Empresa Nacional de Publicidade, proprietária do Diário de Notícias. Adolfo Simões Müller substitui assim A. Urbano de Castro. Ao tornar-se diretor, empenha-se em transformar o Diabrete, tornando-o “mais patriótico e conservador, mas acima de tudo num rival eficaz d‟O Mosquito, publicação considerada na época mais incómoda e irreverente” (Peixoto, 1986).

À semelhança de O Papagaio, o Diabrete foi mais uma revista a conquistar um número considerável de seguidores, principalmente pela aposta num determinado setor da banda desenhada, onde imperavam personagens como Tarzan, de Burne Hogarth; Rusty Riley, de Frank Godwin; Bob e Bobette, de Willy Vandersteen, e Quick e Flupke 47

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(rebatizados Trovão e Relâmpago), de Hergé, tendo esta publicação como público-alvo os leitores de mais tenra idade. Na área gráfica, o Diabrete não fica aquém dos seus rivais. Fernando Bento – a quem se dedica um capítulo neste trabalho - é desde logo o nome mais sonante, mas há outros desenhadores dignos de serem referidos. Vítor Peón, Servais Tiago, Vasco Lopes de Mendonça, Rodrigues Neves, Marcello de Morais, Luís de Barros, San-Payo, José Manuel Soares, entre outros, asseguram os desenhos. No setor literário, além do próprio Adolfo Simões Müller, temos Maria Amélia Barça, de quem se falará mais adiante.

Com este novo projeto de Simões Müller, a lealdade de Hergé é posta à prova. Os direitos de publicação pertencem a O Papagaio, mas na verdade é com Adolfo Simões Müller que o pai de Tintin mais contacta. Convém não esquecer que, enquanto diretor de O Papagaio, Simões Müller envia regularmente víveres ao desenhador, mas também ao seu irmão, Paul, feito prisioneiro pelas tropas nazis.

Neste período, as relações de Adolfo Simões Müller com a direção de O Papagaio azedam-se. É que “o braço de ferro entre Varzim e Müller pelos direitos de Tintim conhece novos desenvolvimentos no início de 1943. A 25 de janeiro, Hergé recebe uma carta muito contundente de Varzim, defendendo com unhas e dentes a sua publicação: "O nosso jornal - como pode constatar - é para a elite das famílias portuguesas. O Diabrete não passa de um jornal para as classes menos bem, pois para poder viver vende-se a metade do preço do nosso, não tendo mesmo tentado colocar-se ao nível d‟O Papagaio".

No início do mês de abril de 1941, a dupla Quick et Flupke, também da autoria de Hergé, é publicada pela primeira vez no Diabrete. Nessa mesma altura, o artista belga envia uma carta a Adolfo Simões 48

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55 Müller, fazendo-lhe uma pergunta pertinente. É que O Papagaio ainda deve muito dinheiro a Hergé, mas não é por isso que mais anseia o pai de Tintin. Conforme Boer (2004), “a comida é muito mais importante naqueles anos de guerra. Hergé pede a Adolfo Simões Müller para este lhe enviar víveres a partir de Portugal, bem como para o seu irmão Paul, preso pelos alemães num oflag, um campo para oficiais. O curioso neste episódio e daquilo que se pode depreender da carta de Hergé a Adolfo Simões Müller é que o primeiro ainda não terá percebido que o segundo já não era o diretor de O Papagaio. Provavelmente não, reforça Boer. O certo é que, nesse ano e nos seguintes, uma grande variedade de encomendas alimentares são enviadas de Portugal para a Bélgica: sardinha enlatada, chocolate, cacau, azeitonas, atum e tabaco.

"Foi um nobre gesto da parte de Hergé", comenta Boer. Mas os pacotes de alimentos nunca chegaram ao irmão. No final do período O Papagaio, quando o acerto de contas foi feito, constata-se que todas as encomendas foram enviadas para o próprio Hergé. Por outras palavras, a história dos envios para o irmão tem que ser um pouco retificada" (Pessoa, 2007).

Numa altura em que O Papagaio já está em declínio, é O Mosquito que está na mó de cima. A Empresa Nacional de Publicidade, editora de vários jornais, decide criar o Diabrete precisamente para fazer face ao sucesso à revista que tem um inseto no cabeçalho. Adolfo Simões não é logo o primeiro diretor do Diabrete. Precede-o Urbano de Castro. Só no n.º 14 é que Adolfo Simões Müller toma as rédeas da revista. A criação de Hergé, Quick et Flupke, é a imagem de marca do Diabrete, já que os dois rapazes, autores de mil e uma tropelias, fazem jus ao nome da nova publicação portuguesa. Resta dizer que, nas páginas do Diabrete, Quick et Flupke dão pelo nome de Trovão e Relâmpago. Anos mais tarde, já em 49

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