CONCORDÂNCIA NOMINAL, CONTEXTO LINGUÍSTICO E SOCIEDADE
por
NORMA DA SILVA LOPES
Orientadora: Profa. Dra. Myrian Barbosa da Silva
Salvador 2001
CONCORDÂNCIA NOMINAL, CONTEXTO LINGUÍSTICO E SOCIEDADE
por
NORMA DA SILVA LOPES
Orientadora: Profa. Dra. Myrian Barbosa da Silva Co-orientadora: Profa. Dra. Maria Marta Pereira Scherre
Salvador 2001
Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística Curso de Doutorado em Letras
Tese de Doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação de Letras e Linguística do Instituto de Letras da Um iversidade Federal da Bahia, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Letras.
A Deus e ao mundo espiritual, que me deram condições para a elaboração deste trabalho,
Aos meus pais, Jaime e Julita, pela base,
Aos meus filhos, Alessandra, Maurício e Mariana, pela paciência de saber esperar.
AGRADECIMENTOS
Ao Dr. Alan Norman Baxter, pela orientação deste trabalho durante a realização da Bolsa Sanduíche, em Macau, pela confiança na minha
produtividade, pela amizade e disponibilidade, de papel decisivo no percurso de elaboração desta tese.
À Dra. Myrian Barbosa da Silva, pela orientação recebida, imprescindível à elaboração deste trabalho, além da atenção dispensada durante todo o
curso.
À Dra. Maria Marta Pereira Scherre, pela disponibilidade, pela atenção, pela orientação e por todo o carinho com que passou a sua experiência
sobre a concordância.
À Dra. Rosa Virgínia Mattos e Silva, pelo encorajamento, desde o início do curso, tendo servido de ponto de partida para muitas das ações que levaram
à apresentação desta tese.
A Emília Helena Portella Monteiro de Souza, Constância Maria Borges de Souza e Olímpia Ribeiro de Santana, amigas de muitos anos, pela
companhia e apoio constantes.
A Maria Cristina Burgos de Paula por ter servido de veículo de tantos ensinamentos.
Aos meus pais, Jaime Teixeira Lopes e Julita da Silva Lopes, e aos meus irmãos Antônio Alberto, Jaime, Maria Ângela, Emanuel Carlos, Marlene,
Carlos Antônio e Marco Antônio, por terem suportado, com paciência, a minha ausência.
À Universidade do Estado da Bahia pela minha liberação para a realização da Bolsa Sanduíche e pela compreensão e colaboração durante os anos de
curso.
Ao CNPQ, por ter possibilitado a realização da Bolsa Sanduíche, em Macau, na China, que foi um marco de grande importância no percurso da
elaboração desta tese.
À Dra Maria Antónia Espadinha, diretora do Departamento de Língua Portuguesa da Universidade de Macau, pela confiança, apoio e atenção
dispensados durante a minha atividade naquela instituição.
Aos meus alunos, amigos de hoje e de sempre, que vibram com cada uma das minhas conquistas.
SINOPSE
Análise da relação entre estrutura lingüística dos enunciados, características sociais dos falantes, procedência étnica dos diversos grupos e a variação da concordância de número entre os elementos flexionáveis do sintagma nominal em Salvador, Bahia. Estabelecimento da conexão entre a constituição do povo, a aquisição de língua e a variação da concordância no português brasileiro.
SUMÁRIO
Índice das Tabelas e Quadros Abreviaturas
Índice dos Gráficos Introdução
1. A Formação do Português do Brasil 1. 1 Introdução
1. 2 A hipótese da língua crioula 1. 3 Os lingüistas atuais
1. 4 As controvérsias
1. 5 Um pouco sobre a Cidade do Salvador, a região de estudo 1. 5. 1 Contexto sócio-histórico
1. 5. 2 Considerações finais
1. 6 Português europeu e português brasileiro: uma ou duas línguas? 1. 7 Conclusões
2. Pressupostos teórico-metodológicos 2. 1 Fundamentação teórica
2. 1. 1 Linhas gerais da sociolingüística variacionista 2. 1. 2 A aquisição
2. 1. 2. 1 A aquisição em condições especiais de movimentação populacional
2. 1. 3 Competição de gramáticas e mudança lingüística 2. 2 Aspectos Metodológicos
2. 2. 1 Constituição da amostra
2. 2. 2 Realização dos inquéritos PEPP 2. 2. 3 Dados sociais dos informantes
2. 2. 4 Descrição das variáveis independentes 2. 2. 4. 1 Formação de plural
2. 2. 4. 2 Tonicidade 2. 2. 4. 3 Posição linear
2. 2. 4. 4 Categoria morfológica
2. 2. 4. 5 Grau dos substantivos e adjetivos 2. 2. 4. 6 Posição relativa
2. 2. 4. 7 Marcas precedentes
2. 2. 4. 8 Contexto fonológico subseqüente 2. 2. 4. 9 A coexistência com o Tudo
2. 2. 4. 10 Escolaridade 2. 2. 4. 11 Gênero 2. 2. 4. 12 Faixa etária 2. 2. 4. 13 Tempo
2. 2. 4. 14 Etnia (a partir dos sobrenomes) 2. 3 Suporte computacional: o Varbrul
3. Análise dos dados: a década atual 3. 1 Variáveis sociais
3. 1. 1 Escolaridade 3. 1. 2 Gênero
3. 1. 3 Faixa etária (Tempo aparente) 3. 1. 4 Tempo (Tempo real)
3. 1. 5 Etnia (a partir dos sobrenomes) 3. 2 Variáveis lingüísticas
3. 2. 1 Saliência fônica
3. 2. 1. 1 Processos de formação de plural 3. 2. 1. 2 Tonicidade e número de sílabas 3. 2. 1. 3 A saliência, análise geral
3. 2. 1. 5 Saliência – Grupos de escolaridade 3. 2. 1. 6 Saliência – Grupos de sobrenome
3. 2. 1. 7 A Saliência nos substantivos, adjetivos e categoria substantivadas
3. 2. 2 Posição linear 3. 2. 3 Classe gramatical
3. 2. 4 Classe gramatical e Posição
3. 2. 5 Classe, Posição linear e Posição relativa
3. 2. 5. 1 Classe, Posição linear e Posição relativa e concordância – Todos os dados
3. 2. 5. 2 – Classe, posição linear e posição relativa e concordância nos Grupos POP e UNI
3. 2. 5. 3 Classe, Posição linear e Posição relativa – Grupos de escolaridade
3. 2. 5. 4 Classe, Posição linear e Posição relativa – Grupos de sobrenomes
3. 2. 5. 5 - Conclusões 3. 2. 6 Grau
3. 2. 7 Marcas precedentes
3. 2. 7. 1 Marcas precedentes – Todos os elementos 3. 2. 7. 2 Marcas precedentes – Grupos POP e UNI
3. 2. 7. 3 Efeito da variável Marcas precedentes na concordância dos grupos diferentes de escolaridade 3. 2. 7. 4 Efeito da variável Marcas precedentes na
concordância dos grupos diferentes de sobrenome 3. 2. 8 Contexto fonológico subseqüente
3. 2. 8. 1 Contexto fonológico subseqüente – Análise geral, separando itens de plural regular e itens terminados em -/s/
3. 2. 8. 2 Contexto fonológico subseqüente aos itens de plural regular – Grupos POP e UNI
3. 2. 8. 3 Contexto fonológico subseqüente na concordância e escolaridade. A tabela 63 apresenta os resultados de análises de cada nível de escolaridade, feitas separadamente
3. 2. 8. 4 Contexto fonológico posterior – Grupos de sobrenomes
3. 2. 9 Coexistência com o Tudo
3. 2. 9. 1 A variável coexistência com tudo – Todos os dados
3. 2. 9. 2 A variável coexistência com tudo – Grupos de escolaridade
3. 2. 9. 3 Efeito da variável coexistência com tudo na concordância dos grupos de sobrenome
3. 3. 1 – Comparação entre o efeito da Saliência Fônica na concordância em Salvador, no Rio de Janeiro e na Região Sul 3. 3. 2 - Comparação entre o Efeito da Classe, posição linear e
relativa na concordância em Salvador, no Rio de Janeiro, em João Pessoa e na Região Sul
3. 3. 3 – Efeito da variável Marcas precedentes sobre a concordância em Salvador, no Rio de Janeiro, na Paraíba e na Região Sul
3. 3. 4 – Efeito da variável Contexto fonológico subseqüente sobre a concordância em Salvador, no Rio de Janeiro, na Paraíba e na Região Sul
3. 3. 5 Conclusões 4. Conclusões finais
ÍNDICE DE TABELAS E QUADROS
Número da Tabela Título da Tabela Página
01 Distribuição dos tipos de sobrenomes entre os níveis de escolaridade
154
02 Taxas de uso da concordância no sintagma nominal em função da Escolaridade
162
03 Taxas de uso da concordância no sintagma nominal em função do Gênero
163
04 Taxas de uso da concordância no sintagma nominal em função do Gênero e da Escolaridade
165
05 Taxas de uso da concordância no sintagma nominal em função da Faixa Etária
169
06 Taxas de uso da concordância no sintagma nominal em função da Faixa etária e do Gênero
171
07 Taxas de uso da concordância no sintagma nominal em função da Faixa etária e da Escolaridade
173
08 Taxas de concordância em função da Faixa etária e do Tempo – Dados do NURC 70 e NURC 90
179
09 Taxas de concordância em função do Tempo real – Dados dos Universitários
180
11 Taxas de uso da concordância no sintagma nominal em função do sobrenome – amostra geral
183
12 Taxas de uso da concordância no sintagma nominal em função dos Sobrenomes – Apenas os dados dos falantes de escolaridade Fundamental e Média, sem os dados dos universitários (apenas o grupo POP)
184
13 Taxas de uso da concordância no sintagma nominal em função dos Sobrenomes – apenas o grupo da última faixa etária: POP4
185
14 Taxas de uso da concordância no sintagma nominal em função da Faixa etária – Comparação entre os grupos de sobrenome
187
15 Taxas de uso da concordância no sintagma nominal em função do Sobrenome e da Escolaridade
191
16 Dados comparativos entre a fala iletrada e a letrada do Rio de Janeiro e textos medievais portugueses
197
17 Efeito dos Processos de Formação de Plural sobre a concordância
201
18 Efeito da tonicidade na concordância 206
19 Efeito da tonicidade na concordância – Sem os Monossílabos de uso átono
208
20 Processos de formação de plural e Tonicidade 210 21 Efeito da saliência fônica (resultante do cruzamento das
variáveis Processos de formação de plural e Tonicidade) na concordância de número no sintagma nominal
22 Efeito da Saliência Fônica sobre a concordância – Comparação entre o Português Popular (POP) e o Universitário (UNI)
215
23 Efeito da Saliência Fônica na concordância da última faixa etária dos grupos do Português Popular – POP 4 – e do Português Universitário – UNI 4
219
24 Efeito da Saliência fônica nos três níveis de escolaridade 223 25 Efeito da Saliência na concordância – Comparação entre os
grupos de sobrenomes
226
26 Efeito da Saliência na concordância dos grupos de sobrenome de nível de escolaridade Fundamental
229
27 Efeito da Saliência na concordância dos grupos de sobrenome de nível de escolaridade Médio
230
28 Efeito da Saliência na concordância – Análise apenas com Substantivos, Adjetivos e Categorias substantivadas – Análise Geral
235
29 Efeito da Saliência fônica na concordância nominal das classes dos Substantivos, Adjetivos e Categorias substantivadas – Comparação entre o Português Popular (POP) e o Universitário (UNI)
236
30 Saliência fônica nos substantivos e adjetivos – Grupos POP e UNI, considerando apenas a última faixa etária (POP 4 e UNI 4)
239
31 Efeito da Saliência na concordância dos substantivos, adjetivos e categorias substantivadas – Grupos de sobrenome
32 Efeito da Posição linear sobre a concordância no sintagma nominal – Todos os dados
245
33 Efeito da Classe gramatical na concordância 248 34 Classe gramatical e Posição linear – Distribuição das classes
nas diversas posições
250
35 Classe gramatical associada à Posição linear na concordância – Freqüência
252
36 Efeito da Classe, posição linear e posição relativa – Análise geral
256
37 Efeito da Classe, posição linear e posição relativa – Todos os dados, observando a adjacência ao núcleo e detalhando a posição linear dos elementos não nucleares à direita do núcleo
259
38 Efeito da Classe, posição linear, posição relativa nos grupos POP e UNI
269
39 Efeito da Classe, posição linear e posição relativa na concordância dos grupos POP4 e UNI4
272
40 Efeito da Classe, posição linear, posição relativa na concordância dos grupos com níveis diferentes de escolaridade
276
41 Classe, posição linear, posição relativa / Comparação entre o efeito da variável entre os grupos de sobrenomes
280
42 Efeito da variável Grau sobre a concordância – Todos os dados 284 43 Efeito da variável Grau na Concordância (juntando itens de
classes diferentes nos graus aumentativo e diminutivo)
44 Posição dos Substantivos, Adjetivos e Categorias Substantivadas nos graus Normal, Aumentativo e Diminutivo
287
45 Efeito da variável Grau sobre a concordância, independente da classe gramatical
288
46 Efeito das Marcas precedentes sobre a concordância dos elementos em segunda posição
291
47 Efeito das Marcas precedentes sobre a concordância dos elementos em 3a, 4a ou quinta posições
294
48 Efeito das marcas precedentes na concordância dos elementos em 2a posição/ com amalgamação de fatores
297
49 Efeito das marcas precedentes na concordância / com amalgamação de fatores – 3a, , 4a ou quinta posições
298
50 Efeito das Marcas precedentes sobre a concordância dos grupos POP e UNI – 2a posição
299
51 Efeito das Marcas precedentes sobre a concordância dos grupos POP e UNI – 3a ou outra posições
300
52 Efeito das marcas precedentes na concordância dos itens em 2a posição dos grupos POP 4 e UNI 4
302
53 Efeito das marcas precedentes na concordância dos itens em 3ª ou outra posições dos grupos POP 4 e UNI 4
303
54 Efeito das Marcas precedentes sobre a concordância dos itens em segunda posição nos grupos de escolaridade diferente
305
em 3a, 4a ou 5a posições dos grupos de escolaridade diferente 56 Efeito das Marcas precedentes sobre a concordância dos itens
em segunda posição dos grupos diferentes de sobrenome
307
57 Efeito da Marcas precedentes sobre a concordância dos itens em 3ª ou outra posições dos grupos de sobrenome diferente
308
58 Efeito do Contexto fonológico subseqüente sobre a concordância – Análise inicial
312
59 Efeito do Contexto fonológico subseqüente sobre a concordância – Análise inicial amalgamando Final interno e Final de sentença
313
60 Efeito do Contexto subseqüente na concordância, análise inicial, considerando a sonoridade da consoante
315
61 Efeito do contexto fonológico subseqüente na concordância em Itens de plural regular e Itens em -/s/, considerando a sonoridade da consoante subseqüente –– Análise geral
318
62 Efeito do Contexto subseqüente aos itens de plural regular na concordância dos grupos POP e UNI
321
63 Efeito do Contexto subseqüente na concordância dos itens de plural regular dos grupos de escolaridade diferente
323
64 Efeito da Contexto fonológico subseqüente sobre a concordância dos itens de plural regular dos grupos de Sobrenome
325
65 Efeito da Coexistência com o Tudo no valor de todos, todas, na concordância entre os outros elementos do sintagma - Análise
sem os universitários.
66 Efeito da Coexistência com o Tudo, na concordância entre os outros elementos do sintagma, separando-se os níveis Fundamental e Colegial
337
67 Efeito da Coexistência com o Tudo na concordância dos grupos de sobrenome no nível Fundamental e o português dos Tongas
339
68 Efeito da Coexistência com o Tudo na concordância dos grupos de sobrenome de escolaridade Média
341
69 Efeito da variável Saliência fônica na concordância em Salvador, no Rio de Janeiro e na Região Sul
345
70 Efeito da Classe e posição na concordância em Salvador e no Rio de Janeiro, considerando a adjacência em elemento à esquerda do núcleo
349
71 Efeito da Classe e posição na concordância em Salvador, Rio de Janeiro e Região Sul - Considerando a posição linear (não a adjacência) nos elementos à esquerda do núcleo
352
72 Efeito da Classe, posição linear e relativa na concordância em Salvador e em João Pessoa - Considerando a posição do elemento à esquerda do núcleo (não a adjacência ao núcleo)
354
73 Efeito da variável Marcas precedentes sobre a concordância de elementos em segunda posição – Comparação entre resultados do POP/Salvador, do Rio de Janeiro e da Região Sul
357
elementos em 3a, 4a ou 5a posições em Salvador, no Rio de Janeiro e na Região Sul
75 Efeito da variável Marcas precedentes na concordância dos elementos de segunda posição em Salvador e em João Pessoa
360
76 Efeito da variável Marcas precedentes na concordância dos elementos de 3a, 4a ou 5a posições em Salvador e em João Pessoa
362
77 Efeito da variável Contexto fonológico subseqüente em Salvador, no Rio de Janeiro e na Região Sul
364
78 Efeito do Contexto subseqüente na concordância em Salvador e em João Pessoa
366
Número do Quadro Título do Quadro Página
01 Distribuição da população de Salvador pela cor em 1808 e 1872 (em %)
63
02 Demonstrativo geral dos inquéritos da amostra atual 118
03 Processos de Formação de plural: fatores 128
04 Tonicidade: fatores 130
05 Posição linear no sintagma: fatores 131
06 Categoria morfológica: fatores 133
08 Grau dos substantivos e adjetivos: fatores 136
09 Marcas precedentes: fatores 138
10 Contexto fonológico subseqüente: fatores 139
11 A coexistência com o Tudo: fatores 142
12 Escolaridade: fatores 143
13 Gênero: fatores 143
14 Faixa etária: fatores 143
15 Tempo: fatores 144
16 Tipos de sobrenome: fatores 144
17 Tipos de sobrenomes adotados por escravos alforriados nos séculos XVIII e XIX
ABREVIATURAS
A aum Adjetivo em grau aumentativo A dim Adjetivo em grau diminutivo A normal Adjetivo em grau normal Adj Elemento adjacente ao núcleo.
Adjetivo 1 Adjetivo assim considerado pela gramática normativa.
Adjetivo 2 Alguns elementos não nucleares que são considerados indefinidos pela gramática normativa que trazem informação restritiva, como
determinados, certos, mesmos.
À dir. Elemento não nuclear à direita do núcleo À esq. Elemento não nuclear à esquerda do núcleo C sonora Consoante sonora
C surda Consoante surda
CV Consoante/Vogal
D2, D3, D4, D5 Elemento não nuclear à direita do núcleo, na 2a, 3a, 4a ou 5a posições
D Duplo
F Escolaridade Fundamental
Homem ou Mulher; 1, 2, 3, 4: Faixas etárias de 15 a 24 anos; 25 a 35 anos; 45 a 55 anos ou acima de 65 anos; F/C/U escolaridade Fundamental, Colegial ou Média, Universitária ou Superior. Em seguida, informa-se o número do inquérito.
Irr. Plural irregular
J. Pessoa João Pessoa
L1 Primeira língua
L2 Segunda língua
M Escolaridade Média
Mon. Át. Monossílabo de uso átono
N0_ Numeral e zero antecedentes
N1, N2, N3, N4, N5 Elemento nuclear em 1a, 2a, 3a, 4a ou 5a posições NNs(N)_ Numeral de mais de uma palavra, com -/s/ final,
antecedente.
NN(N)_ Numeral de mais de uma palavra, sem -/s/ final, antecedente.
NS_ Numeral e marca antecedentes.
NURC 70/90 Projeto Norma Urbana Culta (década de 70 ou década de 90)
Ox. Oxítono
Parox. Paroxítono
P1, P2, P3, P4 ou P5 1a, 2a, 3a, 4a ou 5a posições
PEPP Programa de Estudo do Português Popular de Salvador
P. final Pausa final P. interna/P. int. Pausa interna
PLD Dados lingüísticos primários POP Português Popular de Salvador
POP 4 Português Popular de Salvador, acima de 65 anos
P. R. Peso relativo
Prop. Proparoxítono
Reg. / R. Plural regular
R. J. Rio de Janeiro
S Escolaridade Superior
S0_ Marca de plural e zero antecedentes
Sign. Significância
S aum Substantivo em grau aumentativo S dim Substantivo em grau diminutivo
SM_ Marca e modificador antecedentes
SN_ Marca e numeral antecedentes
S nor Substantivo em grau normal
S0M_ Marca, zero e modificador antecedentes
SS_ Duas marcas antecedentes
SSA Salvador
SSM_ Marcas e modificador antecedentes
Subs. Substantivo
Ton. Tônico
UNI Português universitário de Salvador
UNI 4 Português universitário de Salvador, acima de 65 anos
ÍNDICE DOS GRÁFICOS
Número do Gráfico Título do Gráfico Página
01 Distribuição dos sobrenomes no nível Fundamental 154 02 Distribuição dos sobrenomes no nível Médio 155 03 Distribuição dos sobrenomes no nível Superior 155
04 Efeito da Escolaridade na concordância 162
05 Efeito do Gênero na concordância 164
06 Efeito das variáveis Escolaridade e Gênero, associadas, sobre a concordância
166
07 Efeito da Faixa etária sobre a concordância 170 08 Efeito da Faixa etária e Gênero sobre a concordância 172 09 Efeito da Faixa etária e da Escolaridade sobre a concordância 174 10 Efeito do Tempo aparente e Tempo real na concordância 180
11 Efeito do Tempo real na concordância 181
12 Efeito do Tipo de sobrenome na concordância 183 13 Efeito do Tipo de sobrenome na concordância - POP 184 14 Efeito do Tipo de sobrenome na concordância POP4 186 15 Efeito da Faixa etária e Tipo de sobrenome na concordância 188
16 Efeito da variável Sobrenomes na concordância dos níveis Fundamental e Média
192
17 Taxas de uso da concordância em função dos Processos de formação de plural
202
18 Taxas de uso da concordância em função da Tonicidade 206 19 Efeito da Saliência fônica na concordância – Análise Geral 214 20 Efeito da Saliência na concordância dos grupos POP e UNI 216 21 Efeito da Saliência na concordância - POP 4 e UNI 4 220 22 Efeito da Saliência na concordância - Grupos de escolaridade 224 23 Efeito da Saliência na concordância - Grupos de sobrenome 227 24 Efeito da Saliência fônica na concordância dos grupos de
sobrenome de nível Fundamental
230
25 Efeito da Saliência fônica na concordância dos grupos de sobrenome de escolaridade Média
232
26 Efeito da Saliência na concordância dos grupos POP e UNI - apenas substantivos, adjetivos e categorias substantivadas
237
27 Efeito da Saliência na concordância dos grupos POP4 e UNI4 – apenas substantivos, adjetivos e categorias substantivadas
240
28 Efeito da Saliência na concordância dos substantivos, adjetivos e categorias substantivadas nos grupos de Sobrenome
242
30 Efeito da Classe, posição linear e posição relativa na concordância
257
31 Efeito da Classe, posição linear e posição relativa, detalhando a adjacência do elemento à esquerda e a posição linear do elemento à direita
261
32 Efeito da Classe, posição linear e posição relativa na concordância dos grupos POP e UNI
271
33 Efeito da Classe, posição linear e posição relativa na concordância dos grupos POP4 e UNI4
274
34 Efeito da Classe, posição linear e posição relativa sobre a concordância nos níveis diferentes de escolaridade
278
35 Efeito da Classe, posição linear e posição relativa na concordância dos grupos de sobrenome
282
36 Efeito do Grau na concordância dos substantivos e adjetivos (1)
285
37 Efeito do Grau na concordância dos substantivos e adjetivos (2)
286
38 Efeito do Grau na presença de concordância dos substantivos e adjetivos (3)
288
39 Efeito das Marcas precedentes na concordância dos elementos em segunda posição
298
40 Efeito das Marcas precedentes na concordância dos itens em 2a posição nos grupos POP e UNI
41 Efeito das Marcas precedentes sobre a concordância dos itens em 3a, 4a ou 5a posições nos grupos POP e UNI
301
42 Efeito das Marcas precedentes sobre a concordância dos itens em segunda posição dos grupos POP4 e UNI4
302
43 Efeito das Marcas precedentes sobre a concordância dos itens em 3a., 4a ou 5a posições dos grupos POP4 e UNI4
304
44 Efeito das Marcas precedentes sobre a concordância nos itens em segunda posição dos grupos de escolaridade
305
45 Efeito das Marcas precedentes na concordância dos itens em segunda posição dos grupos de sobrenome diferente
307
46 Efeito das Marcas precedentes sobre a concordância nos itens em 3a, 4a ou 5a posições dos grupos de sobrenome
309
47 Efeito do Contexto subseqüente sobre a concordância Análise inicial
312
48 Efeito do Contexto subseqüente na concordância - Análise inicial, sem distinguir pausas interna e final
314
49 Efeito do Contexto subseqüente, análise inicial, considerando a sonoridade da consoante
316
50 Efeito do Contexto subseqüente na concordância dos itens de plural regular e dos itens terminados em -/s/
319
51 Efeito do Contexto fonológico subseqüente na concordância dos grupos POP e UNI
322
dos itens de plural regular dos grupos de escolaridade diferente
53 Efeito do Contexto fonológico subseqüente na concordância dos itens de plural regular dos grupos de sobrenome
326
54 Efeito da coexistência com o Tudo na concordância 336 55 Efeito da coexistência com o Tudo na concordância da
escolaridade Média
338
56 Efeito da Saliência fônica na concordância em Salvador, no Rio de Janeiro e na Região Sul
346
57 Efeito da Classe e posição linear e relativa sobre a concordância em Salvador e no Rio de Janeiro
348
58 Efeito da Classe e posição linear e relativa sobre a concordância em Salvador, Rio de Janeiro e Região Sul
351
59 Efeito da Classe e posição linear e relativa na concordância, não considerando a adjacência
355
60 Efeito das Marcas precedentes sobre a concordância em Salvador, no Rio de Janeiro e na Região Sul
357
61 Efeito das Marcas precedentes sobre a concordância em elementos em 2a posição em Salvador e em João Pessoa
361
62 Efeito das marcas precedentes sobre a concordância em itens em 3a, 4a ou 5a posições em Salvador e em João Pessoa
362
63 Efeito do Contexto subseqüente na concordância em Salvador, no Rio de Janeiro e na Região Sul
64 Efeito do Contexto subseqüente sobre a concordância em Salvador e em João Pessoa
INTRODUÇÃO
Fala-se muito em variação do português, especialmente na que caracteriza os falares dessa língua no Brasil e em outros países. Mas o que identifica a língua utilizada neste país? Que aspectos da língua sofrem variação e que fatores motivam a escolha das variantes por cada um dos falantes?
É facilmente percebida a diferença entre os diversos usos que se fazem da língua, nos centros urbanos e em localidades rurais, e entre as peculiaridades da língua portuguesa no Brasil e em Portugal. A que se deve essa variação? À própria língua – elementos estruturais – ou a fatores externos?
Entre os diversos aspectos da variação no português do Brasil, talvez a concordância de número – verbal ou nominal – seja um dos que mais chama a atenção de qualquer observador, mesmo não muito preocupado com a linguagem, nem profundo conhecedor da norma preconizada pela escola. A não realização da concordância prevista, sem dúvida, é traço dos mais estigmatizados, sendo considerado como indicador de falta de escolarização ou de desprestígio social. Dessa forma, é comum pressupor que os falantes de nível universitário façam a concordância em qualquer situação ou contexto. Sem acreditar muito que a escolaridade seja o único fator responsável por essa variação, esse trabalho se iniciou.
O presente estudo, dentro de uma visão da sociolingüística variacionista, pretende buscar possíveis relações entre a realização da concordância dentro do sintagma nominal e fatores lingüísticos e sociais. A teoria variacionista considera que a variação é inerente a todo processo
lingüístico e as mudanças, segundo essa teoria, têm também motivações sociais. Este trabalho toma como ponto de partida Scherre (1988), que utilizou o corpus Censo do PEUL, do Rio de Janeiro, e considera outras pesquisas que propõem, como explicação para o fenômeno da variação da concordância no Brasil, o processo de aquisição de língua.
Pretende-se, nesta pesquisa,
1) analisar a concordância de número no sintagma nominal nas falas popular e culta atuais de Salvador, em quatro diferentes faixas etárias, três graus de escolarização, nos dois gêneros, e em dois diferentes grupos de etnia, identificando fatores lingüísticos e sociais que mais condicionam a sua variação;
2) comparar os resultados relativos à escolaridade superior atual (NURC/SSA/90) com o mesmo fenômeno estudado na realização culta da década de 70 (NURC/SSA/70), buscando observar se a variação mostra-se estável ou se há indicação de um processo de mudança lingüística;
3) analisar a possibilidade de a variação da concordância em Salvador refletir uma competição entre gramáticas;
4) fazer comparações entre os resultados encontrados na análise com outras pesquisas sobre a realização da concordância no sintagma nominal em regiões diferentes do país;
5) refletir, com base na análise dos dados, sobre a possibilidade de o português de Salvador estar relacionado a um processo de aquisição de língua diferente de outras regiões.
O primeiro capítulo trata da formação do português do Brasil e das diversas abordagens que se vêm dando ao tema. São apresentados dados relativos à contribuição dos três principais componentes étnicos, o índio, elemento nativo; o branco, português, o colonizador; e o negro, para cá transplantado na escravidão, na construção da nacionalidade brasileira e na formação das particularidades do português nesse novo continente. Além desse aspecto, é apresentada a hipótese, defendida por muitos lingüistas, de que no Brasil existiram processos de crioulização. Focaliza-se o debate existente em torno desse tópico: apresentam-se argumentos em favor da crioulização e as controvérsias. Faz-se, também, uma rápida abordagem a respeito da formação da população de Salvador, da sociedade urbana dessa cidade do período colonial ao período que sucedeu a abolição da escravidão no Brasil. Finalmente, é também abordada nesse capítulo a possibilidade de o português do Brasil, com a diferenciação existente, ser reconhecido como uma língua distinta do português europeu.
O segundo capítulo trata do suporte teórico-metodológico utilizado na pesquisa. São apresentados os princípios da sociolingüística variacionista, que toma como pressuposto que a variação é um aspecto inerente a todas as línguas e que existe uma relação entre a variação e a mudança lingüística. São tomados, também, como suporte teórico, aspectos relativos à aquisição de uma língua, ou aquisição de uma gramática, e a competição de gramáticas, dentro da visão de Lightfoot (1999). Considera-se o tipo de dados lingüísticos a que a criança tem acesso, na aquisição da linguagem, como de fundamental importância para o tipo de gramática que será fixada por ela. Dessa forma, neste trabalho, quando se faz referência à aquisição com muita variação ou diversidade de dados, é a um contexto em que os dados apresentados à criança constituem-se de informações lingüísticas de várias origens, de falantes que aprenderam a língua portuguesa como
segunda língua (L2), não como falantes nativos. Esses dados se caracterizam, pois, por expressarem diferentes direções, orientações ou parâmetros, à criança.
Ainda o segundo capítulo trata da teoria dos 4M, de Myers-Scotton & Jake (2000a), que se refere a uma tipologia de morfemas, que este trabalho considera como de grande interesse para o entendimento do fenômeno da concordância no sintagma nominal no português. Segundo essa teoria, a ordem em que os morfemas são adquiridos numa língua está relacionada a uma tipologia que, assim como explica a aquisição desses elementos, pode servir para entender o processo da variação dos mesmos. Levando em conta esse pressuposto, esta pesquisa procura, com o auxílio dessa teoria, buscar explicação que dê conta do fenômeno da variação da concordância no sintagma nominal do português. São dadas, ainda, informações sobre a metodologia utilizada, são descritas as variáveis observadas na presente pesquisa e são apresentados dados sobre o Programa de Estudos sobre o Português Popular de Salvador – o PEPP – e o Projeto Norma Urbana Culta de Salvador – o NURC, que são a fonte de todo o material lingüístico utilizado.
No terceiro capítulo, apresenta-se o resultado da análise das variáveis sociais e lingüísticas observadas no corpus, com a amostragem das que são consideradas como mais relacionadas ao fenômeno em estudo em Salvador. Nesse mesmo capítulo, analisa-se se o fenômeno da concordância mostra-se apenas em variação ou mostra-se, ao contrário, há a constatação de que existem indícios de um processo de mudança. É feita, também, uma comparação entre os resultados desta pesquisa e outros estudos realizados sobre a concordância no sintagma nominal em diferentes regiões do Brasil.
Finalmente, apresentam-se as conclusões a que se chegou com o estudo realizado. Nesse momento, conclui-se a respeito das variáveis lingüísticas que mais estão ligadas à concordância de número no sintagma nominal e sobre as diferenças entre os resultados de pesquisas que estudaram o fenômeno da concordância no sintagma nominal em outras regiões. Diante das diferenças entre as observações nos diversos grupos, avalia-se a possibilidade de coexistência e competição de gramáticas, de o fenômeno da concordância estar em processo de mudança lingüística e a veracidade da hipótese de que as peculiaridades do português do Brasil tenham alguma relação com a forma de aquisição dessa língua, na sua fase de constituição.
1 - A FORMAÇÃO DO PORTUGUÊS DO BRASIL 1. 1 Introdução
No Brasil, a língua portuguesa chegou desde que Portugal iniciou aqui o processo de colonização. Como os indígenas eram maioria e, além disso, possuíam muitos sistemas lingüísticos diferentes, a língua transplantada não foi utilizada imediatamente pela população nativa. Os jesuítas, sentindo a necessidade de uma língua de contato, instituíram para essa finalidade uma das línguas da costa, o tupi, falada pelos guaranis, tupiniquins, tupinambás, que passou a ser utilizada pelos índios e brancos, na comunicação. Além dessa língua indígena, considera-se que tenha havido outras, as línguas travadas, faladas por outros grupos, dentre os quais os gês, cariris, nuaruaques, panos, guaicurus. A língua geral foi descrita primeiramente pelo padre José de Anchieta, em 1595, na Arte de gramática
da língua mais usada na costa do Brasil, e foi através dela que se passou a
dar o ensino escolar ministrado pelos religiosos aos nativos.
O tupi foi língua geral no Brasil, “necessária a todos: aos mercadores nas suas viagens, aos aventureiros em suas expedições, sertão adentro, aos habitantes das vilas em suas relações com o gentio ...” (Silva Neto, 19761:68) e há registros que indicam que essa língua passou a ser a língua materna, inclusive, de muitas crianças filhas de portugueses, cuidadas por mulheres indígenas. Sobre a língua geral, Câmara Jr. (1975:76) diz que:
“... como lìngua de intercurso, despojou-se de seus traços fonológicos e gramaticais mais típicos para se adaptar à consciência lingüística dos brancos e o português nela atuou, assim, impressivamente, como superstrato. É o que
1
A 1a edição da Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil, de Serafim da Silva Neto, é de 1950.
explica a sua fácil difusão entre os brancos, de que temos testemunho em documentos oficiais.”
Assim como os indígenas, os portugueses tiveram também que se permitir algumas mudanças:
“ ... teriam de renunciar a muitos dos seus hábitos hereditários, de suas formas de vida e de convívio, de suas técnicas, de suas aspirações e, o que é mais significativo, de sua linguagem. E foi, em realidade, o que ocorreu.” (Holanda, 1978).
Séculos depois, o tupi passou a ser a língua de utilização ampla e o português, a língua oficial; o governo, então, começou a exigir o português, buscando refrear o uso da língua geral. Dentro desse ideal é que o ensino teria que deixar de ser ministrado na língua geral e os portugueses, principalmente com cargo público, tinham uma nova função: a difusão da língua portuguesa. É o que se vê nas palavras de Barros, Borges & Meira (mimeo),
“Pela nova orientação, o Português deveria ser difundido pelos portugueses com cargo público nos novos povoados, principalmente os diretores de Índios, que tinham entre suas funções a criação de escola nas povoações, com objetivo de ensinar o Português.”
Mesmo tendo havido, durante tanto tempo, uma convivência tão íntima entre a língua geral - o tupi - e o português, sendo falado por quase toda a população, não se reconhece que o tupi tenha deixado muitas marcas
na língua portuguesa do Brasil2. Apesar disso, sobre a influência da língua indígena, há posicionamentos diferentes.
Há quem considere a necessidade de pesquisa, acreditando na possibilidade de outras influências além da contribuição dada ao léxico. Houaiss (1985) diz ser possível que tenha havido influência no sistema vocálico e Elia (1979), na pronúncia, na entoação e no sistema de redução das flexões:
“Até onde, nessa área, terá ou não terá havido influência da língua geral, das línguas indígenas (e de outras influências, em áreas outras) na regionalização brasileira? Os sistemas vocálicos existentes dialetalmente no Brasil são ainda, genealogicamente ou diacronicamente, enigmas por elucidar, como o são os fatos tonais mais sentidos (nordestino, baiano, carioca, paulistano, gaúcho)” Houaiss (1985: 67-8).
O autor citado evidencia uma consciência de que há, ainda, muita coisa que ser estudada no campo das influências indígenas nos diversos falares que caracterizam o português brasileiro. Sobre o assunto, Elia (1979) apresenta uma idéia semelhante, evidenciando a certeza da necessidade de pesquisa nesse campo:
“A influência do tupi no português do Brasil ainda está por estudar. Por enquanto temo-nos limitado à difusão dos empréstimos, nem sempre com a segurança desejável. Todavia, na pronúncia e entoação brasileiras, mormente de
2“Na verdade, o tupi missionário só trouxe para o português do Brasil empréstimos lexicais, que
se adaptaram à fonologia e à gramática portuguesa. Nenhum fonema indígena entrou para o português do Brasil ...” (Câmara Jr., 1975-76).
caráter regional (Nordeste, Amazônia), há toda a probabilidade de presença de um influxo indígena. Do ponto de vista morfológico, temos a redução de flexões, fenômeno comum aos falares crioulos.” (Elia, 1979:41).
Mas o português, no Brasil, não manteve contato apenas com a linguagem dos índios. Foi muito forte o confronto com várias línguas dos africanos que aqui aportaram com a escravidão, quando o Brasil passou a receber uma população escrava oriunda de regiões diversas da África. Essa diversidade lingüística intencional entre os escravos teve o objetivo de evitar uma possível unidade nos grupos, para manter neles a submissão (Rodrigues, 1983).
As diferentes ascendências dos africanos que para cá vieram é atestada por Rodrigues (1988), como se vê no trecho:
“Na Bahia, fortemente se fez sentir a ascendência dos negros sudaneses, ao passo que em Pernambuco e no Rio de Janeiro prevaleceram sobretudo os negros austrais do grupo banto. (...) As nações africanas mais utilizadas no Rio de Janeiro são: os benguelas, os minas, os ganguelas ou banguelas, os minas-nejôs, minas-maí, os sás, rebolas, caçanjes, minas-cavalos, cabindas d‟água doce, cabindas massudás, congos, moçambiques. Estes compreendem grande número de nações vendidas no mesmo ponto da costa Artres.”
Essa diversidade impedia que entre eles pudesse haver comunicação nas suas línguas maternas e esse fato tem interesse nessa discussão, para que se avaliem as conseqüências dessa possível ausência de língua comum na aprendizagem que os africanos tiveram do português.
Apesar dessa particularidade da população africana vinda para o Brasil, havia também entre eles os ladinos, de origem também diversa, mas já iniciados na língua portuguesa por terem passado por outras colônias portuguesas. Por vezes, esses eram aproveitados como capatazes das fazendas, ou em outras funções, servindo de elo de comunicação entre os portugueses e os outros africanos, no comando desses últimos.
De início, o número de africanos no território brasileiro era menor que o de portugueses e índios, mas, no século XVIII, com a intensificação do comércio de escravos, em algumas regiões eles passaram a ser maioria. Não se tem dados precisos sobre a chegada dessa população nem sobre a língua que eles usavam aqui, se a língua geral indígena, o português ou alguma língua geral africana. Sabe-se, no entanto, que, como as chegadas de escravos eram sucessivas, e eles eram principalmente levados para as plantações, havia sempre muitos deles se iniciando no português nas regiões em que eles eram inseridos. É de se imaginar que, como nas plantações não havia muitos portugueses, o contato que os recém-transplantados tinham com a língua portuguesa trazida pelos colonizadores era muito pouco, senão com um português transmitido por outros africanos, aprendido por eles como segunda língua (L2).
Os africanos são considerados por alguns estudiosos da língua como responsáveis pelas diferenças existentes entre o português do Brasil, hoje, e o de Portugal. Dentre eles, Mendonça (1936:189) diz que, apesar da profunda diferença entre o português e as línguas africanas, o negro deixou no português do Brasil alguns vestígios, por exemplo, na linguagem dos caipiras, com a ausência da concordância nominal nos sintagmas nominais. Nessa variedade do português, ele observa que o plural é apenas indicado pelo artigo, deixando o substantivo invariável: “as casa”, “os caminho”,
“aquelas hora”. Ele refere-se também à falta de concordância no adjunto predicativo: “as criança tavum quetu”, “as criação ficarum pestiadu”.
Da mesma opinião, Andrade (1989: 16), que não é lingüista, mas um estudioso da influência da África no Brasil, diz:
“Na linguagem, na forma de falar o português do Brasil, observa-se também uma grande influência da cultura negra, que se manifesta através da utilização de diminutivos, da colocação de pronomes e de uma série de atentados à sintaxe portuguesa ortodoxa.”
A expressão “atentados”, por ele utilizada para se referir ao uso da língua portuguesa pelos africanos, reflete o estigma de que foi objeto o falar dos negros no Brasil, principalmente devido ao desprestígio social dos seus usuários. Apesar disso, não se considera (pelo menos nos estudos até então realizados – sem levar em conta, nesse momento, a hipótese de Guy (1981), que será apresentada mais adiante – que houve na língua portuguesa influência de lìnguas africanas ou indìgenas, mas da “tosca aprendizagem” (Silva Neto, 1976:96-7) que eles tiveram da língua.
Pelo exposto, tem-se uma idéia de quão particular foi o contexto histórico cultural e lingüístico dos primeiros séculos vividos nesse país. De início, o país, com uma imensa variedade de línguas indígenas, enfrenta a chegada dos portugueses, com uma língua européia, o português. O tupi assume a posição de língua geral e inicia-se a chegada dos africanos, com suas muitas línguas, que continua durante séculos seguidos. Ocorre em seguida a “proibição” do uso do tupi, a lìngua geral, pelo governo português, até que a língua portuguesa assume o lugar que ocupa hoje entre os brasileiros.
1. 2 A hipótese da língua crioula
Alguns estudiosos do português citam um falar crioulo, ou dialeto crioulo ou simplesmente crioulo na história do português do Brasil. Entre os autores, há mais divergências na forma de entenderem o crioulo do que a respeito das influências dos africanos ou indígenas no português do Brasil. A existência desse crioulo é a explicação que alguns deles dão para um português diferenciado no Brasil.
Coelho (1967), Silva Neto (1976), Câmara Jr (1975) e Houaiss (1985) têm uma visão talvez parecida do crioulo e, para eles, existiu um “falar crioulizante”, o português simplificado. A referência que esses autores fazem não é à lìngua crioula, mas a um “dialeto crioulo” ou “crioulizado” ou um “falar crioulo”, usado para a comunicação, ou uma “tendência reducionista tipo crioulizante”.
Desde Coelho (1967), em fins do século XIX, colocou-se a variedade do português do Brasil em meio a diversos falares crioulos do português. A variação da concordância nominal foi, inclusive, referida por ele para justificar a aproximação que fez:
“Diversas particularidades caracterìsticas dos dialectos crioulos repetem-se no Brasil; tal é a tendência para a supressão das formas do plural, manifestada aqui, que, quando se seguem artigo e substantivo, adjectivo e substantivo, etc., que deviam concordar, só um toma o sinal do plural.” (Coelho, 1967: 43).
Dentro dessa visão, Silva Neto (1976:36) considera que existiam muitas semelhanças entre o português dos índios e negros, na época da colonização do Brasil, e diz que a razão da proximidade se identifica no
tipo de contato que eles tiveram do português: “aprenderam o português como lìngua de emergência, obrigados pela necessidade.” Ele observa que muitos africanos que foram transplantados para o Brasil já trouxeram um crioulo-português, oriundo das costas da África.3
A conclusão de que houve aqui esse crioulo é pautada, segundo ele mesmo diz, nas características do próprio português do Brasil e de línguas crioulas: “... rigorosa observação dos nossos falares rurais, aliada ao estudo comparado, das adaptações do português feitas na África e na Ásia, levar-nos-ia à aceitação de um estado lingüístico paralelo no Brasil-Colônia.” (Silva Neto, 1976: 48).
O “grau” desse falar crioulizado varia, dependendo do grau de imersão na cultura européia da região em que o português é falado e do percentual de brancos em relação aos ìndios, negros e mestiços. A fala dos “matutos ou caipiras”, segundo o autor, hoje no Brasil, apresenta vestìgios desse crioulo. Diante das interpenetrações entre as populações rurais e urbanas, nas cidades, há marcas desse falar nos iletrados ou em pessoas de pouca escolarização. Como é a escola, na sua opinião, que promove o “reaportuguesamento”, ele é mais intenso nas cidades. Um dos vestìgios apontado desse crioulo é o “desaparecimento da flexão numérica por meio de –/s/: os livro, as mesa” (Silva Neto, 1976:135), um dos contextos examinados na presente pesquisa.
Sobre esse assunto, e concordando com essa mesma idéia, Houaiss (1985: 119) acrescenta que a existência de um falar “tipo crioulizante” é indiscutível:
3 Por crioulo ou semicrioulo ele entende que é “ ... uma adaptação do português no uso de mestiços,
aborígenes e negros. Caracterizava-se, como em geral esse tipo de linguajares, pela extrema simplificação de formas, e, talvez nos primeiros anos, algum traço lingüístico devido a fenômenos de interferência de outra lìngua.” (Silva Neto, 1976:48).
“O fato de que houve uma tendência reducionista pan-brasileira de tipo crioulizante é aparentemente incontestável – tendo havido (e havendo ainda) contestação quanto às „causas‟ do fenômeno: seria por causa do substrato e adstrato indígenas, seria por causa do substrato africano, seria por ambos os casos ou seria por causa das derivas portuguesas? Ou seria por causa do concurso dessas e outras causas?”
São algumas das caracterìsticas “pan-brasileiras” do português, que ele considera de uso quase geral nos iletrados, apresentadas no seu texto, como indícios desse crioulo: o desaparecimento do r final; a presença de marca de plural no sintagma uma única vez, eliminando a redundância; a “instabilização” do -/l/ final; a redução dos ditongos ou e ei, dentre outras. Ele diz que os crioulos sempre tendem à redução das redundâncias.4
Considerando a existência desse crioulo, Houaiss diz que a língua de uso comum no Brasil passou depois, apesar da deficiência da educação, por uma descrioulização, processo de distanciamento do crioulo, de perda desses traços e aproximação do português:
“ ... vê-se que, a partir do início do século XX, os registros orais supérstites mostram que a nossa oralidade – já a meramente profissional, já a (dita) califásica – se achava muito longe de uma crioulidade. Houvera,
4 “Por seu isolamento e por suas limitações de necessidades fìsicas e mentais, os crioulos tenderam
sempre à eliminação das chamadas redundâncias do sistema linguageiro de origem. Idealmente é como se examinassem a frase „os meninos precisam ter dois pães‟ e chegassem às seguintes conclusões: „os meninos‟ é redundante, basta „os menino‟ (pois o plural continua aì marcado mais economicamente); „os menino precisam‟ é ainda redundante, basta „os menino precisa‟ (pois o plural continua aí marcado mais e mais economicamente)...” (Houaiss, 1985:116).
presumivelmente, mesmo através do mero processo oral, um tipo de policiamento social que buscava afastar-se da massa. Essa tendência teria ido em crescendo tal que, da segunda metade do século XIX em diante, o „ideal‟ linguageiro postulado chegou a ser ostensivamente lusitanizante ...” (Houaiss, 1985:132).
Essa idéia da descrioulização é a tese defendida pelos crioulistas atuais e será mais adiante discutida. Nessa situação, no Brasil, busca-se a língua alvo, o português, com a perda do caráter reducionista crioulizante.
Câmara Jr. (1975:77), mostrando-se de acordo com a existência desse “falar”, no Brasil, acredita que, de inìcio, deve ter havido interferência dele no português:
“Os escravos negros adaptaram-se ao português sob a forma de um falar crioulo. Nos latifúndios, ou fazendas, da época colonial e do império o contato dos senhores brancos com seus escravos negros foi intenso e estreito. As crianças eram confiadas aos cuidados de amas escravas, as chamadas „mães-pretas‟, e devem ter tomado, de inìcio, sem sentir, elementos do português crioulo que elas usavam.”
Ao contrário desses autores, vê-se em Révah (1959:273-291) referência a leis fonéticas naturais para explicar um aspecto da morfologia do português do Brasil, a perda da concordância verbal e nominal (considerado pelos defensores de língua crioula como um traço remanescente dessa língua). Segundo ele, essa ocorrência é registrada também em Portugal, em Barrancos, e ele utiliza isso como argumento de que a falta de concordância no Brasil não pode ser entendida como um
resquício de existência de qualquer crioulo, de substrato indígena ou africano.
Sobre a atuação dos aloglotas no português do Brasil, os autores antes mencionados restringem seu papel a “um efeito de gatilho”, para Mattoso Câmara Jr., usando expressão de Weinreich; ou fator de “precipitação de mudanças”, para Serafim da Silva Neto; ou como elemento de “eliminação das chamadas redundâncias”, para Antônio Houaiss. Nos três casos, o que ocorreu com o português, no Brasil, já era previsto pelo sistema. O contato com os aloglotas, segundo esses autores, não trouxe grandes mudanças, mas a aceleração de um processo.
1. 3 Os lingüistas atuais
Na atualidade, os lingüistas também entendem o crioulo como uma língua resultante de simplificação e fazem uma distinção entre pidgins5 e crioulos. Enquanto os pidgins “são sistemas lingüìsticos reduzidos, sem falantes nativos, usados em contextos funcionalmente restritos de comunicação interétnica”, o crioulo “é mais complexo, „full fledged‟, e variedade funcionalmente irrestrita” De Graff (1999b:3)6
.
Na visão de Bickerton, segundo De Graff (1999b), enquanto na pidginização ocorre uma aprendizagem de segunda língua com input reduzido, na crioulização há uma primeira aprendizagem de língua com
input reduzido. Há autores que não consideram imprescindível a existência
de falantes nativos para a existência do crioulo. Segundo eles, pidgins podem tornar-se crioulos sem terem passado por nativização, bastando para isso tornarem-se de uso primário numa comunidade.
5 Assim como em Lucchesi & Baxter (no prelo), o termo pidgin, utilizado neste trabalho, tem o mesmo
valor de interlíngua, referindo-se a uma segunda língua em processo de formação. Diferenças que se podem identificar dizem respeito a aspectos exteriores ao contexto estrutural.
DeGraff (1999b:6) faz uma distinção entre pidgins e crioulos, envolvendo aspectos históricos, funcionais e lingüísticos:
A distinção entre pidgins e crioulos está na combinação de critérios históricos, funcionais e lingüísticos, tais como ausência versus presença de falantes nativos, aquisição por adultos versus crianças; extensão das funções comunicativas, extensão do repertório lingüístico, complexidade estrutural, consistência de padrões e compatibilidade com restrições universais (UG).7
Os estudiosos relacionam o crioulo a um processo de invasão e escravização, envolvendo uma língua européia, sempre a língua alvo, e línguas africanas, que se tornam substrato da formada. A língua do dominador, nessa situação, é considerada alvo porque o objetivo do escravizado é aproximar-se dela. Para a existência dessa língua, é preciso que algumas condições sejam satisfeitas, dentre elas, segundo Bickerton (1988), que o número de não-europeus, em determinado momento, seja superior ao de europeus, o que ele chama de “evento único”. A extensão de tempo entre o inìcio do contato entre as lìnguas e o “evento único” define a maior ou menor “diluição” da lìngua alvo nessas lìnguas. Quanto mais se retardar o “evento único”, mais traços da lìngua alvo o crioulo terá.
Considera-se a possibilidade de aqui terem existido processos de crioulização no Brasil porque este país viveu durante muitos séculos a situação de escravidão, apesar de o “evento único” não ter ocorrido no paìs
6 “According to standard definitions, (early) pidgins (and jargons) are elementary reduced, simplified
systems, without native speakers, and used in functionally restrict contexts of interethnic communication. (…) [creole] is a more complex, „ full fledge‟ , and functionally unrestricted variety.”
7
“ The distinction between pidgins and creoles has relied on a combination of historical, functional, and linguistic criteria, such as absence versus presence of native speakers, acquisition by adults versus
como um todo, mas em apenas alguns pontos isolados. Sabe-se que, para que um crioulo se forme, é preciso que não haja um outro sistema lingüístico em comum e essa parece ter sido a situação vivida no Brasil (mas não nos centros urbanos) e na maior parte das concentrações de escravos no mundo, formadas por falantes de diversas origens e utilizando línguas diferentes. Esses dados é que levam os pesquisadores à suposição da crioulização prévia no português do Brasil.
É preciso que se observem as teorias existentes sobre a gênese do crioulo para que se possam interpretar os traços das línguas resultantes de um processo de crioulização. DeGraff cita três teorias da gênese do crioulo: a universalista, a substratista e a superstratista. Na primeira dessas teorias, as gramáticas crioulas tendem a manter especificados valores “defeituosos” devido a
1) função privilegiada da criança em formação e a
2) natureza restrita, variável, do input do pidgin não ser regida por regras.
Para os substratistas, crioulos trazem marcas sintáticas e semânticas dos seus substratos, enquanto aspectos fonológicos do léxico remontam ao superstrato. Na teoria superstratista, pela ausência de fortes pressões normativas, e com interferência limitada das línguas nativas dos falantes, os crioulos seriam versões de seus superstratos, originadas de várias camadas de aproximações do coloquial (DeGraff, 1999b:7).
Pelo apresentado por DeGraff, a depender da idéia que o pesquisador faz da gênese do crioulo, ele pode apresentar diferentes explicações para as características de uma língua crioula: 1) ou aponta para os universais, teoria
children, rang of communicative functions, extent of linguistic repertoire, structural complexity, consistency with universal (UG) constraints.”
defendida por Bickerton, dentre outros, 2) ou se constituem explicações as marcas do substrato ou 3) do superstrato.
O termo “crioulo”, ou “falar crioulizado”, utilizado nos discursos de Mattoso Camara, Serafim da Silva Neto e Antonio Houais, parece estar mais relacionado à teoria superstratista, segundo a qual, diante da ausência de fortes pressões normativas, os crioulos seriam versões de seus superstratos, como uma visão deturpada do português, mas sem influência das línguas utilizadas pelos africanos.
DeGraff (1999b) defende a posição de que não existem traços lingüisticos determinados que serviriam como critério para um status crioulo. Essas lìnguas são simplesmente “o produto de certos fatores externos extraordinários unidos à base lingüística ordinária (interna) inerente à faculdade humana da linguagem.”8
No Brasil, as zonas rurais, durante a colonização, receberam grande quantidade de africanos, principalmente para as plantações. Nessas regiões, pode ter havido concentrações deles, talvez em maioria, com pouco acesso à língua-alvo, o português, senão através de outros africanos que a aprenderam como segunda língua.
Ferreira (1994:22) considerou a comunidade de Helvécia, no sul da Bahia, como um possível remanescente de um crioulo de substrato africano. A história da comunidade apresenta um dado curioso. Fazia parte da Colônia Leopoldina, que perdurou de 1818 até a abolição, um núcleo em que, em 1858, existiam “40 fazendas, 200 brancos (na maioria alemães, suíços, alguns franceses e brasileiros) e 2000 negros; os últimos, na maior parte, já nascidos na futura Helvécia.” Baxter (1998:112) observa que
8
“ … creoles would simply be the product of certain extraordinary external (sociohistorical) factors coupled with ordinary (internal) linguistic resources inherent to the human faculte de langage.” (p 11)
muitos dos escravos que fizeram parte do grupo inicial nasceram na África e, segundo os descendentes, falavam o gege e o iorubá. Com o declínio da agricultura, fonte de riqueza da localidade, os europeus abandonaram a região, lá ficando os negros, com a linguagem remanescente do período anterior.
Nessa comunidade, Ferreira constatou, em estudo realizado em 1961, que a língua usada naquela década pelos mais velhos trazia uma série de marcas que ela separou em dois tipos: as comuns a outras áreas rurais e as peculiares a Helvécia, não registradas até então na Bahia. Com base no conhecimento dos dados da história da região, pode-se levantar a hipótese de ter havido aí aprendizagem de primeira língua (L1) pelos filhos dos escravos com base em dados lingüísticos primários (PLD) de um português aprendido como segunda língua (L2) dos pais, oriundos da África. Observe-se que os europeus a que os negros tinham acesso não tinham, na maior parte, o português como L1 e ofereciam-lhes um português talvez deficiente (Baxter, 1998:113).
Baxter (1998: 113) acredita que o contexto de Helvécia indica que podem ter sido muitos os modelos de dados primários colocados à disposição dos escravos adultos e dos nascidos na colônia.
“Nas primeiras épocas da Colônia Leopoldina, diversas variedades de português teriam constituído modelos estímulos (input) para a aquisição do português como L2 e L1 entre os escravos. Variedades de português L2 teriam sido faladas por muitos dos colonos, e os brasileiros teriam falado um português L1. Contudo, duas variedades de português afro-brasileiro teriam constituído modelos-estìmulos significativos (…)
variedade de português afro-brasileiro falada como L2 (…) variedade do português afro-brasileiro falada como L1, influenciada pelo português afro-brasileiro L2 e, também, afastada ou próxima do português L1 falado pela população livre.”
Dentre os aspectos lingüísticos próprios do falar de Helvécia, Ferreira (1994) aponta os seguintes:
- a vogal nasal /õ/ ao invés do ditongo /ãu/ final; - a líquida vibrante simples em posição intervocálica; - a ausência de artigo ou a ocorrência mais comum de artigo masculino, pelo de feminino;
- a existência de indefinido [una], com o [u] nasal ao lado de [uma] e [ua] sempre com o [u] nasal;
- a falta de concordância interna de gênero no sintagma nominal;
- a utilização da 3a pessoa verbal no lugar da 1a, entre outros.
Os achados de Ferreira (1994) implementam as discussões sobre a existência de processos de crioulização na aquisição do português do Brasil. Alan Baxter e Dante Lucchesi visitaram Helvécia na década de oitenta e, dentro do projeto Vestígios, do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, buscaram, com os dados do português atual, traços que estabelecessem alguma relação com a existência de processos de crioulização no Brasil, em diversos estágios de
desenvolvimento e revelando os diversos tipos de acesso à língua-alvo porventura ocorridos no processo de aquisição do português desses grupos. Baxter e Lucchesi (1999:135), estudando a variação da concordância sujeito/verbo e a de gênero no sintagma nominal no dialeto de Helvécia, consideram que as especificidades desse dialeto se justificam por
1) modelos de português L2 falado por escravos africanos, 2) modelos de português L1 falado por escravos nascidos no Brasil, e influenciados, por sua vez, por
3) modelos de português L2 falado por colonos europeus, 4) português brasileiro da região em questão e, possivelmente,
5) línguas africanas, conforme o período.
Gregory Guy e John Holm tomam a hipótese da crioulização prévia do português do Brasil como uma das principais preocupações e, utilizando-se de referências a traços morfológicos do português do Brasil, defendem a existência de processos de formação de crioulos ou semicrioulos na formação do português do Brasil.
Apesar de não encontrar provas históricas da existência do crioulo, Gregory Guy (1981:5), estudando a variação da língua portuguesa no Brasil, caracteriza o português das classes mais populares como um remanescente de processos de crioulização de base lexical portuguesa e substrato africano. No português atual, esse remanescente apresenta, segundo o autor, evidências de estar se descrioulizando, com a incorporação de traços do português standard. Sobre essa variedade do português, ele diz que
“É a linguagem das massas, que são constituìdas predominantemente por negros e mestiços com pouca escolarização, que mostra traços que estamos considerando como caracteristicamente brasileiros e possivelmente de origem crioula.” 9
Guy, diante do contexto histórico da formação do português no Brasil, acha totalmente improvável a não existência de processos de crioulização:
“Do ponto de vista histórico-social, nossa pergunta provavelmente não seria „Foi o Português crioulizado?‟, mas „Como seria possìvel evitar a crioulização?‟ ” (Guy, 1981:309)10
Segundo ele, o processo de redução da concordância nominal é um indício de processo de crioulização, e explica o seu posicionamento com dados de formação de plural em línguas africanas, que marcam o plural com elementos pré-nominais, o que teria resultado na tendência no português popular brasileiro de marcar os elementos em primeira posição do sintagma.
Em parte discordando de Guy, e sendo mais cauteloso que ele, Holm (1992) defende que há mais evidências para a formação de semicrioulos, diante do fato de que os africanos não eram maioria durante os primeiros séculos. A história do Brasil teve, segundo ele, as condições para a formação de línguas crioulas apenas em algumas zonas rurais,
9 “It is the language of the masses, who are predominantly black or mestiço and who have historically had
very little education and a high rate of iliteracy, that shows the features that we are considering characteristically Brazilian and possibly of creole origin.” (Guy, 1981:5).
10
“From the social historical standpoint, our question probably would not be „Was Portuguese creolized in Brazil?‟, but rather „How could it possibly have avoided creolization?” (Guy, 1981:309)